NEGÓCIO SIMULADO
SIMULAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
PROVA INDIRECTA
Sumário

I - Invocada a simulação do negócio, o ónus da prova da simulação compete a quem a invoca, enquanto facto constitutivo do direito de que se arroga – artigo 342º, n.º 1 do C. Civil – o direito do terceiro em ver declarada a nulidade do negócio por simulação.
II - Porém, sendo rara a prova direta da simulação, deverá admitir-se uma prova ampla a fim de obter indícios que, segundo o que ensina a experiência comum, só se verificam na prática de atos simulados.
III - A prova tem de ser feita, quase sempre, por meio de indícios ou presunções, meio de prova que se mostra necessário para alcançar a prova de factos psíquicos, constituindo ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido.
IV - Se o simulador alega a existência de uma motivação atendível para a celebração do negócio impugnado – no caso a existência de empréstimos entre o casal dos réus - esta não deve ser admitida como válida sem que venha acompanhada da sua oportuna demonstração.

Texto Integral

Proc. n.º 7810/22.6T8PRT.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Central Cível do Porto - Juiz 5

Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízas Desembargadoras Adjuntas:
Maria da Luz Seabra
Márcia Portela

SUMÁRIO:
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Acordam as juízas que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:
Banco 1... S.A., Sucursal em Portugal, com o número único de identificação fiscal e de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na Avenida ..., ... Lisboa, instaurou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra:
1.º AA, divorciado, titular do cartão de cidadão n.º ... e do NIF ......, residente na Praceta ..., ..., r/c Dto, ... Vila Nova de Gaia e,
2.º BB, divorciada, titular do NIF ......, residente na Rua ..., ..., 7.º Dto frente, ... Porto, tendo formulado o seguinte pedido:
Que, na procedência da ação seja:
a) Declarada nula, por simulação absoluta, a escritura de dação em cumprimento celebrada entre o 1.º Réu e a 2.ª Ré, com o consequente cancelamento da inscrição daquela aquisição no registo predial;
Subsidiariamente, e sem prescindir,
b) Ser declarada nula, por simulação relativa, aquela escritura de dação em cumprimento, passando este negócio a valer como doação e, em consequência, ser julgada procedente a impugnação pauliana desta, decretando-se a ineficácia em relação ao Autor do ato de transmissão das frações autónomas melhor descritas no artigo 30.º da petição inicial, sendo este admitido a executar os aludidos bens transmitidos no património do aqui 1.º Réu;
Subsidiariamente, e sem prescindir,
c) Ser julgada procedente a impugnação pauliana do negócio de dação em cumprimento celebrado entre os Réus e, em consequência, ser decretada ineficácia em relação ao Autor do ato de transmissão das frações autónomas melhor descritas no artigo 30.º da petição inicial, sendo este admitido a executar os aludidos bens transmitidos no património do aqui 1.º Réu.
Fundamenta a ação, de forma sintética, na outorga entre os réus de uma escritura que denominaram de dação em pagamento, no dia 15-05-2017, quando ainda eram casados entre si, dação inexistente e que apenas teve como propósito dissipar bens e impedir a autora de ressarcir o seu crédito.
Alega os factos segundos os quais considera que a dação é nula porque simulada ou se assim não se entender, sempre o negócio jurídico integra os pressupostos da impugnação pauliana, alegando a factualidade correspondente.
Válida e regularmente citados, os réus apresentaram contestação conjunta, em que impugnam o valor da ação, defendem-se por exceção e por impugnação.
Por exceção invocam a atuação da autora em abuso de direito e a caducidade do direito de invocar a impugnação pauliana.
Por impugnação negam a versão apresentada pela autora e apresentam uma diversa, da qual resulta a ausência do preenchimento dos pressupostos legais, quer da simulação, quer da impugnação.
Concluíram pela procedência das exceções ou, se assim não se entender, pela improcedência da ação e sua absolvição do pedido.
Mais requererem a condenação da autora como litigante de má-fé.
A autora exerceu o contraditório em relação ao incidente de valor é à matéria de exceção, concluindo pela sua improcedência.
Requereu a condenação dos réus como litigantes de má-fé, sobre o qual os réus se pronunciaram.
Foi realizada uma audiência prévia.
A ação foi registada.
Veio a ser realizada a audiência final e de seguida foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto decide-se; a) Julgar improcedente a exceção de caducidade invocada pelos réus.
a) Julgar improcedente, por não provada, a simulação da dação em pagamento outorgada pelos réus em 15-05-2017, absolvendo os réus desse pedido, assim como dos pedidos de cancelamento dos registos efetuados com base nesses negócios;
b) Julgar procedente o pedido de impugnação pauliana formulado em relação ao negócio identificado na alínea anterior, considerando-a ineficaz em relação à autora e reconhecendo-lhe, no que for necessário para satisfazer o seu crédito, o direito de praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei e de executar o direito de propriedade do primeiro réu sobre esse imóvel no património da segunda ré.
c) Condenar os réus nas custas do processo, por a elas terem dado causa.”
Inconformados, os Réus AA e BB, vieram interpor o presente recurso de Apelação, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. Os autores interpõem recurso de apelação nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 644 (1,a) e 647 (1), todos do CPC, por terem legitimidade para tal e estarem em tempo de o fazer (cf. artigo 638, do CPC), por não se conformarem com a decisão proferida e ora recorrida e com a mesma discordarem.
2. Sem prejuízo do que se dirá de seguida, impõe-se começar por abordar a questão do ónus da prova no contexto da uma disputa sobre a existência dos empréstimos da ré ao réu. As principais conclusões que podem ser extraídas sobre isso são:
a. Ónus da Prova: Os réus argumentam que não lhes compete demonstrar a existência dos empréstimos, mas sim ao autor provar a inexistência dos mesmos. Este ponto baseia-se na ideia de que provar um facto negativo não altera as regras estabelecidas de ónus da prova.
b. Prova por Presunções Judiciais: O autor, ao alegar a ausência de empréstimo por parte da ré ao réu, procura induzir uma presunção judicial de que a transação foi gratuita em vez de onerosa. Segundo o autor e professor Luís Filipe Pires de Sousa (igualmente Venerando Juiz Desembargador) e a jurisprudência do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, a alegação e prova de tais factos indiciários incumbem ao autor, já que estes servem como base para a sua pretensão.
c. Direito: Sugere-se, sempre com o devido respeito, que houve um erro de direito na sentença ao exigir dos réus a prova de um empréstimo efetivo da ré ao réu, quando o autor, a quem cabe essa alegação e prova, nunca a procurou produzir, nomeadamente requerendo o que tivesse por conveniente.
d. Demonstração dos Empréstimos: A despeito das dificuldades, foram os réus que, com esforço, que obtiveram e apresentaram extratos bancários que demonstram o fluxo de dinheiro correspondente aos empréstimos alegados. Este ponto é relevante, pois mostra a iniciativa dos réus em fornecer evidências apesar do autor nunca ter tentando produzir tal prova (contrária).
3. A sentença deu como provado os factos que constam nos factos provados de 1 a 48, para onde se remete evitando aqui a sua longa reprodução, assim como deu como factos não provados os 38, 47, 49, 51, 70, 71, 72, 73, 74, 12, 14, 15, 16, 17, 23, 24, 25, 26, 27, 73, 112 e 139, que constam nos factos não provados e que aqui também se dão como reproduzidos por uma questão de proficiência.
4. Impõe-se reconhecer o acerto e elevado cuidado do tribunal a quo nas várias questões apreciadas, nomeadamente ao reconhecer que o negócio ora impugnado não foi celebrado em má fé pelos réus e nem com qualquer intenção de enganar o autor ou terceiros.
5. No entanto os réus consideram que incorretamente julgados os factos provados 33, 41 e 42, indicados no ponto 3.3. supra, para onde se remente por questões de proficiência, assim como os factos não provados 12, 14 e 23, indicados no ponto 3.4. desta peça, os quais consideram que deviam ser dados como provados, pelo que os réus impugnam cada um especificamente, apontado os concretos meios probatórios, constantes do processo (prova documental) ou de registo ou gravação nele realizado, que impõe uma decisão diversa de tais factos [cf. artigo 640(1,a,b) do CPC] e indicam a decisão que, em seu entender, devia ser proferida sobre tais questões impugnadas [cf. artigo 640(1, c) do CPC].
6. Porque a sua reprodução em sede de conclusões, tornaria esta peça insuportável, para o evitar, remete-se para o §3, ponto 3.3 e 3.4. para a sua total e profunda compreensão.
7. Aí também se encontram as transcrições de segmentos relevantes dos depoimentos da ré e do réu que, coadjuvados com os documentos juntos ao autos, nomeadamente os extratos bancários que provam os empréstimos em causa.
8. No §3 estão todos os factos com interesse para a boa decisão da causa decantados e depurados pelos meios probatórios, para uma maior facilidade, nomeadamente aqueles que a sentença cuidadosamente tratou e com os quais os réus consideram perfeitamente e corretamente julgados.
9. No entanto, de forma o mais resumida possível, são os seguintes factos provados que os autores consideram incorretamente julgados:
a. Facto 33: Os réus contestam a avaliação das frações P-2 e X-4, argumentando que o uso do IPC como deflator para estimar o valor dos imóveis é inadequado. Eles apresentam uma análise comparativa detalhada, utilizando dados tanto do momento da compra dos imóveis em 2000 como dos valores de mercado estimados em anos subsequentes, para demonstrar inconsistências na aplicação do IPC. Argumentam, aderindo às conclusões do perito nomeado pelos réus que, com base nos preços reais e na evolução do mercado imobiliário, os valores de mercado em 2017 e 2014 deveriam ser substancialmente menores do que os afirmados, sugerindo valores de €144.128,00 em 2017 e €120.552 em 2014, baseados nos dados do A... ou então, ainda menores, de €80.321.611 em 2017, utilizando exatamente o mesmo IPC, mas em vez de ser como deflator do preço apurado em 2023 para estimar o de 2017, a ser como inflator (facto de inflação) do preço real da compra em 2020 para estimar o preço de 2017. Portanto, consideram o facto de os imóveis terem sido avaliados em €222.452 em 2017 e €213.378 em 2014 como incorretamente julgado. Assim, entendem que tal facto deveria ser provado no seguinte sentido: As frações P-2 e X-4, à data de 2023, têm um valor de mercado não inferior a € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros); em 2017 tinham um valor de mercado estimado de €144.128,00 e em 2014 de €120.552, seguindo os preços publicados pelo A....
b. Facto 41: Os réus argumentam que os €25.000,00 declarados na escritura representam, de fato, empréstimos da ré ao réu, contrariamente ao que foi julgado. Eles fornecem uma cronologia detalhada e evidências de transferências bancárias (assentes nos documentos – extratos bancários – juntos aos autos) que corroboram a existência dos empréstimos, destacando ainda o regime de casamento de separação de bens do casal e o uso desses empréstimos exclusivamente pelo réu para investimentos na bolsa. Assim entendem que tal facto deve ser modificado e ser reconhecido que os €25.000,00 mencionados na escritura de dação em cumprimento, correspondem a dívidas do réu para com a ré, baseando-se nas provas documentais apresentadas e na consistência das alegações dos réus.
c. Facto 42: Contestam a interpretação de que a dação em pagamento poderia ser uma doação gratuita, argumentando que tal não faz sentido à luz da dívida existente do réu para com a ré. Eles enfatizam a separação factual dos réus, com cada um dos réus a residir em casas separadas (a ré no imóvel em crise e o réu noutra casa que arrendou a quando a separação – anterior à dívida do autor), a ausência de filhos, e em particular regime de casamento de separação de bens, para sustentar que o propósito da dação foi o de saldar a dívida e não uma doação gratuita. Sendo que tal facto deve ser modificado para confirmar que a dação em pagamento teve como objetivo o pagamento da dívida existente do réu para com a ré, refletindo as intenções claras dos réus e a lógica dos eventos e transações financeiras relatadas.
10. Igualmente da forma o mais resumida possível, são os seguintes factos não provados que os autores consideram incorretamente julgados e que deveriam ser dados como provados:
a. Facto 12: Argumenta-se que a ré assumiu o pagamento das prestações do crédito habitação após a separação, baseando-se nas transferências bancárias regulares (mensais e sempre com o mesmo valor) indicativas do pagamento dessas prestações, desafiando a conclusão de que não estava provado que apenas a ré pagava as prestações após a separação. A consistência dos pagamentos, a mudança de comportamento financeiro pós-separação (do réu e da ré) e a liquidação final do crédito habitação (exclusivamente) pela ré com recurso aos seus capitais próprios em maio de 2021 reforçam a tese de que ela assumiu as responsabilidades financeiras do imóvel. Sendo que dever ficar provado que, após a separação, a ré foi responsável pelo pagamento das prestações do crédito habitação até à sua liquidação final.
b. Facto 14: Refere-se ao conhecimento de um contrato promessa de dação em pagamento entre os réus, comprovado pelo depoimento de uma testemunha que viu um contrato manuscrito em 2014. Este fato desafia a alegação de não provado ao demonstrar a existência de um acordo (ainda que promessa) entre os réus para a dação em pagamento da dívida já em 2014, anterior à dívida do autor. Sendo que deve ficar provado que os réus tinham feito a promessa de dação em pagamento, evidenciado por um contrato celebrado em janeiro de 2014.
c. Factos 23 e 26: Os réus argumentam que houve vários empréstimos da ré ao réu, demonstrados através de movimentos bancários na conta comum, mas usada exclusivamente pelo réu. As transferências refletem os empréstimos inerentes à dação em cumprimento, apoiando a reivindicação de que tais montantes foram de fato emprestados pela ré ao réu.
Assim, deve ser dado como provado que a ré realizou múltiplos empréstimos ao réu, totalizando o montante de €25.000,00, com base nas transferências bancárias documentadas e na coerência do argumento apresentado pelos réus.
11. Deveriam ainda ser dados como provado o facto 44, de que o réu detinha 1/3 de uma patente (facto que foi provado), cuja parte a sua parte valia €1.945.866,00, uma vez que estão juntos aos autos um relatório de um revisor oficial de contas, para efeitos de entradas em espécie numa sociedade, relatório ou valor que não foi impugnado pelo autor, sendo que apenas em 25.07.2018, portanto, mais de um ano depois do registo da dação em cumprimento. Agora, como mero obiter dictum, importa sublinhar que o réu continua a ter direitos sobre a referida patente (direito ao pagamento de royalities – embora até agora ainda não tenham sido pagos nenhuns), que o autor sempre terá direito de penhorar e executar assim que gerados e colocados à disposição do réu.
12. Em suma, a partir dos fatos apresentados e provados e do entendimento geral do comportamento humano e das relações financeiras, é razoável concluir que a transferência das frações imobiliárias pelo réu à ré foi motivada por razões pragmáticas, especificamente a liquidação de uma dívida, ao invés de uma intenção de doar os bens de forma gratuita. Tal conclusão apoia-se na observação do comportamento esperado em tais circunstâncias, onde as ações individuais são guiadas por necessidades pessoais, obrigações financeiras e a procura por estabilidade e segurança, ao invés de gestos de generosidade sem expectativa de reciprocidade – nos quais o próprio autor declarou não acreditar na sua petição inicial5.
13. Ou seja, é manifestamente improvável que o réu pretendesse fazer uma doação gratuita à ré sob tais circunstâncias, sustentando-se na lógica da situação e na análise dos fatos conhecidos. As ações do réu alinham-se mais coerentemente com a intenção de resolver uma dívida existente para com a ré.
14. Destarte e sempre com o todo e devido respeito, o raciocínio empregue pelo tribunal a quo não merece enquadramento numa presunção judicial, quando muito seria uma mera possibilidade e, mesmo sob esta perspetiva, ao abrigo das regras da experiência comum e da racionalidade, seria uma probabilidade muitíssimo reduzida. Tal conclusão é evidente quando atento ao que supra se referiu (regime de casamento, separação de facto do casal, ausência de filhos, a ré ter assumido todos os custos com os imóveis, incluindo a liquidação da dívida remanescente) e ao facto de existirem, de facto, transferências bancárias de dinheiro da ré para o réu que sustentam os empréstimos que estribam a dívida e consequente dação em cumprimento, e porque a decisão ora sob recurso não contém qualquer elemento factual ou racional que seja suscetível de alicerçar que se tratou de uma doação gratuita.
15. Ou seja, é patente da decisão de facto e da respetiva motivação que o raciocínio presuntivo desenvolvido pelo tribunal a quo com base ao apelo às regras da experiência padece de manifesta ilogicidade no que concerne à reposta dada ao quesito em crise.
16. Em consequência, ficando provado que o negócio celebrado entre os réus foi uma dação em cumprimento e não um doação gratuita, perante a provada existência dos empréstimos da ré ao réu e da inexistência de má fé no negócio celebrado com a intenção de defraudar os credores.
17. Com base na análise dos requisitos gerais para a impugnação pauliana, conforme delineado no artigo 610 do CC e na consideração específica dos requisitos adicionais para atos onerosos estabelecidos no artigo 612 do mesmo código, conclui-se que os fundamentos para uma ação de impugnação pauliana não estão preenchidos neste caso. A essência da impugnação pauliana reside na proteção dos credores contra atos fraudulentos praticados pelos devedores que prejudicam a satisfação dos seus créditos. No entanto, a análise dos factos provados demonstra que não existiu a intenção fraudulenta (consilium fraudis) por parte do devedor nem o conhecimento da fraude pelo terceiro (scientia fraudis), elementos cruciais para configurar a fraude contra credores.
18. Além disso, a evidência apresentada sugere que o ato contestado foi oneroso e não se verifica má fé por parte dos envolvidos, requisito necessário conforme o artigo 612 do Código Civil para atos onerosos na impugnação pauliana. A dação em pagamento discutida ocorreu num contexto de reorganização pessoal e financeira dos réus após a sua separação de facto e sem o intuito de prejudicar credores.
19. Ademais, o réu possuía ativos de valor significativo, como evidenciado pela patente avaliada em valor consideravelmente superior ao crédito em questão, indicando que não houve um esforço para esconder bens ou evitar o pagamento das dívidas. A inércia do credor em não executar a penhora sobre bens penhoráveis do réu (demorou 5 anos, menos 16 dias, para instaurar esta impugnação pauliana) também enfraquece o argumento de que houve uma fraude orquestrada para prejudicar o credor.
20. Portanto, a conclusão lógica, diante dos argumentos e evidências apresentados, é que não estão preenchidos os requisitos necessários para a procedência da impugnação pauliana neste caso. Aliás, tal entendimento evita o enriquecimento sem causa do autor (e igualmente do réu) às custas da ré e preserva a integridade das transações efetuadas de boa fé entre os réus, em consonância com os princípios que regem a justiça e equidade nas relações jurídicas.
21. Abuso de Direito: O abuso de direito, enquadrado pelo artigo 334 do CC, é reconhecido oficiosamente como uma exceção perentória, que se manifesta quando há uma divergência significativa entre o exercício de um direito subjetivo e os valores da ordem jurídica, violando a boa fé, os bons costumes ou o fim social ou económico desse direito. Sendo que neste caso está evidenciado o abuso de direito nas modalidades de venire contra factum proprium, onde a conduta, embora lícita, cria uma oposição com ações anteriores, e supressio, onde a inação gera uma expectativa legítima de não exercício do direito. Isto porque a inação do autor, especialmente em situações onde os réus, baseados em confiança legítima, ajustaram suas vidas à luz do negócio jurídico realizado, constitui abuso de direito. A ré, em particular, investiu no imóvel e liquidou dívidas, consolidando uma expectativa de que o negócio não seria questionado. Ou seja, o comportamento do autor, ao tentar anular um negócio legítimo após um período considerável, caracteriza litigância em abuso de direito pela modalidade de supressio, prejudicando a confiança e causando potenciais danos irreparáveis aos réus, em especial à ré, que investiu mais de €60.000 nos imóveis, desde obras de conservação e benfeitorias, como no pagamento das prestações mensais e da liquidação da dívida remanescente do crédito habitação. Se a ré soubesse, em início de 2013, que poderia estar sujeita a ver a casa que na altura não valia mais de €100.000 (ou no limite um máximo de €120.000), sobre a qual recai um crédito habitação com um dívida remanescente na ordem dos €60.000, que precisava de obras de conservação (tanto exteriores do edifico, como interiores na fração), a ser hoje, quando vale €255.000, abalada por está impugnação pauliana, há qual é alheia e cujos fundamentos desconhecia em absoluto até da mesma ser citada em 2022, nunca teria feito o negócio que fez com o réu, pois em vez disso exigia-lhe os €25.000 de dívida e entrava com um processo de divisão de coisa comum. A ré só realizou o negócio nos termos em que o fez, por desconhecer a dívida do réu ao autor (que na altura da separação do então casal e da promessa do negócio ainda nem sequer exista) e por razões de praticidade e pragmatismo, assente num normal acerto de contas – por via da dação em cumprimento. Assim, passado mais de 10 anos da separação do casal e da promessa do negócio que esteve na consequência dessa separação, do investimento emocional e financeiro que a ré fez nos imóveis, da valorização do mesmo em mercado, vê-se agora absolutamente abalada e apanhada desprevenida com este inusitado caso – ao qual é absolutamente alheia, não fosse ter aceite a dação em cumprimento da dívida que o réu tinha para com ela. Por razões de justiça, boa-fé e paz social, deve o direito do autor ser paralisado por abuso de direito na modalidade de suppressio.
22. Prazo de Caducidade: O direito à ação pauliana caduca em cinco anos a partir da data do ato impugnável, conforme artigo 618 do CC. É certo que o autor intentou a ação 16 dias antes de perfazer cinco anos sobre a data de registo da dação em cumprimento dos ditos imóveis. No entanto, o início do prazo não depende do conhecimento do ato pelo credor, mas sim da celebração do negócio. Assim, uma vez que o acordo entre os réus data de janeiro de 2014 (ainda que nas vestes de uma promessa), tal prazo deve ser contado a partir da celebração do negócio e não do seu registo, o que leva à caducidade do direito do autor. A jurisprudência supra citada do Colendo Supremo Tribunal de Justiça sustenta que o prazo de caducidade para a impugnação pauliana é contado a partir do ato e não do seu registo, mesmo quando este é exigido, afastando a validade do ato somente no interesse do credor impugnante. Assim, deve-se julgar procedente a exceção de caducidade do direito do autor.
Termos em que, ex vi do alegado supra, os apelantes rogam a Vossa Excelências, Venerandos(as), Senhores(as), Juízes(as)Desembargadores(as), que o presente recurso de apelação seja considerado meritoriamente procedente. Consequentemente, impõe-se a revogação da douta sentença proferida pelo tribunal a quo, e, concomitantemente, seja declarado, pelo douto acórdão de Vossas Excelências, que o negócio celebrado pelos réus em 15.05.2017 foi uma dação em cumprimento e não uma doação (não onerosa), com as legais consequências, nomeadamente a improcedência da ação pauliana.
Em qualquer caso, deve o direito da autora ser paralisado por abuso de direito e consequentemente a ação pauliana declarada improcedente.
Deve ainda ser julgada procedente a exceção de caducidade do direito do autor à ação pauliana com as demais consequências legais.”
A Autora Banco 1..., S.A., veio juntar contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e subsidiariamente, veio Ampliar o Objeto do Recurso, apresentando as seguintes conclusões:
“A. A reapreciação pedida pelos Réus viola o princípio da liberdade de julgamento ou livre apreciação porquanto teria de implicar a existência de um erro evidente, a existência de meios probatórios que expressa e inequivocamente contrariassem a apreciação da matéria de facto que foi feita pelo Tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto objeto de impugnação, o que manifesta e inequivocamente não sucede in casu, devendo, por conseguinte, ser integralmente mantida por este Venerando Tribunal ad quem.
B. A resposta dada pelo Tribunal a quo ao ponto 33 dos factos provados encontra-se suportada em relatório pericial e dele expressamente resulta que os valores alcançados na peritagem foram-no de acordo com os dados do INE e tendo por referencia o critério de IPC, o qual constitui o único critério de avaliação sério, isento e suscetível de responder ao objeto da perícia, pelo que não podem ser questionados ou postos em causa em detrimento de uma plataforma especulativa como pretendido pelos Recorrentes, não merecendo qualquer reparo a resposta dada pelo Tribunal a quo, a qual, deve ser mantida na integra.
C. A resposta dada pelo Tribunal a quo ao ponto 41 dos factos provados decorre da total ausência de prova da existência de um qualquer empréstimo entre os Réus, para além de que, encontra-se cabalmente suportada no confronto das declarações da 2ª Ré - depoimento de parte gravado em suporte digital (ficheiro áudio Diligencia_7810-22.6T8PRT_2023-11-06_09-50-25.mp3), com a duração de 44 minutos e 54 segundos com início às 9 horas e 50 minutos do dia 06.11.2023 e os extratos bancários juntos aos autos pelos Réus, não merecendo qualquer reparo a resposta dada pelo Tribunal a quo, a qual, deve ser mantida na integra.
D. A resposta dada pelo Tribunal a quo ao ponto 42 dos factos provados decorre expressamente das declarações da 2ª Ré - depoimento de parte gravado em suporte digital (ficheiro áudio Diligencia_7810-22.6T8PRT_2023-11-06_09-50-25.mp3), com a duração de 44 minutos e 54 segundos com início às 9 horas e 50 minutos do dia 06.11.2023, das quais expressamente resultam que nunca existiu qualquer empréstimo da Ré ao Réu digno desse nome ou tentativa de obter do Réu o reembolso de uma qualquer quantia que lhe possa ter transferido, mas antes praticar um qualquer ato que lhe permitisse ficar proprietária única das frações, que eram comuns, não merecendo, pois, qualquer reparo a resposta dada pelo Tribunal a quo, a qual, deve ser mantida na integra!
E. É falso que exista qualquer contradição na resposta dada pelo Tribunal a quo ao ponto 12 dos factos não provados com o vertido em 28 e 29 dos factos provados.
F. O facto provado n.º 28 apenas decorre que até à separação, o pagamento das prestações era assegurado pelo Réu, nada dizendo quanto aos pagamentos feitos após a separação.
G. De igual modo, do facto provado n.º 29, decorre tão só que, após a separação, a Ré liquidou pelo menos as prestações de janeiro a abril de 2021,
H. O que está em perfeita consonância com o facto não provado n.º 12, que exclui daquela “não prova” as prestações relativas aos meses de janeiro a abril de 2021 que, de facto, foram liquidadas pela Ré.
I. Desta feita, e ao contrário do pretendido pelos Réus, dos extratos por eles juntos não é possível retirar nenhuma outra ilação para além daquela que foi tida pelo Tribunal a quo não merecendo, pois, qualquer reparo a resposta dada pelo Tribunal a quo, a qual, deve ser mantida na integra.
J. A resposta dada pelo Tribunal a quo ao ponto 14 dos factos não provados decorre da total falta de prova por parte dos Recorrentes, sendo certo que, o documento em que sustentam tal alegação constitui um documento particular cuja veracidade quer quanto ao conteúdo, quer quanto à data, foi impugnada pela Recorrida e os Réus não fizeram prova da sua veracidade.
K. Fazendo fé na contestação apresentada pelos Réus, constata-se, também, que já após o início da audiência prescindiram da única testemunha que, alegadamente, seria a pessoa que teria sugerido à 2ª Ré celebrar este negócio por via da dação em pagamento,
L. Por seu turno, o depoimento escrito da testemunha CC, vago e impreciso, não tem o condão de modificar a resposta dada pelo Tribunal a quo ao ponto 14 dos factos não provados, para além de que encontra-se em contradição com as declarações da 2ª Ré - depoimento de parte gravado em suporte digital (ficheiro áudio Diligencia_7810-22.6T8PRT_2023-11-06_09-50-25.mp3), com a duração de 44 minutos e 54 segundos com início às 9 horas e 50 minutos do dia 06.11.2023, não merecendo, pois, qualquer reparo a resposta dada pelo Tribunal a quo, a qual, deve ser mantida na integra.
M. A resposta dada pelo Tribunal a quo aos pontos 23 e 26 dos factos não provados confunde-se com o já alegado a respeito do ponto 41 dos factos provados que aqui se dá por reproduzido, não merecendo, pois, qualquer reparo as respostas dadas pelo Tribunal a quo, as quais, como tal, devem ser mantidas na integra.
N. Não tem qualquer cabimento a pretensão dos Réus de que na sequência do facto provado n.º 44 se considere provado que “O 1.º réu detinha 1/3 dessa patente, cuja parte valia €1.945.866,00, mas já não detém, tendo-a transmitido em 25-07-2018”.
O. Os Réus sustentam tal pretensão num alegado relatório do revisor oficial de contas, elaborado em 09.10.2019 para efeitos de verificação de entradas em espécie na constituição de sociedade denominada B..., Lda.
P. Ao contrário do alegado pelos Réus, desse relatório do ROC não resulta que a referida patente tivesse o valor pelos mesmo indicado, referindo apenas que aquele valor decorre de “um relatório independente” - que nunca foi junto pelos Réus, sendo certo que, tão pouco se sabe por quem foi elaborado e com base em que critério.
Q. Para além disso, tendo em atenção a pessoa que o subscreve – nem mais nem menos que - DD - a mesma pessoa que interveio como perito avaliador indicado pelos Réus na perícia destinada a apurar o valor dos imóveis objeto dos autos e, também, o presidente do Conselho Fiscal da associação Citizen’s Voice – Consumer Advocacy Association, da qual o 1ª Réu é Presidente da Direção e a 2ª Ré membro do conselho consultivo, apenas se pode concluir que se tratou de um documento de “favor”.
R. Em qualquer caso, e a respeito de tal patente, o que se sabe e resulta dos registos junto do INPI, é que essa patente só terá sido concedida em 26.06.2018, que o mesmo é dizer que, à data da dação (2017) não existia ainda enquanto tal e, como tal, nenhum valor detinha, pelo que, ao contrário do pretendido pelos Réus, nada há, pois, a acrescentar ao vertido em 44 dos factos provados que deve ser mantido nos exatos termos concluídos pelo Tribunal a quo.
S. Da prova produzida em audiência de julgamento, é mister concluir que ficou amplamente demonstrado que não houve um qualquer empréstimo da Ré para o Réu, tendo a dação em cumprimento em causa nos presentes autos consubstanciado, antes sim, uma doação!
T. Tratando-se de uma doação, a lei dispensa que o requisito da má-fé esteja verificado – o que, de qualquer forma, como adiante se demonstrará, sempre estaria.
U. Para que a ação pauliana proceda, basta que estejam preenchidos os demais requisitos previstos no artigo 610.º do Código Civil:
V. Quanto ao primeiro requisito, dúvidas não quedam que, tendo a dação em cumprimento sido celebrada em 2017, o crédito da ora Recorrente, constituído e cristalizado em 2016, é anterior.
W. Quanto ao segundo, atendendo a que o Réu não tinha quaisquer outros bens penhoráveis em seu nome, conforme ficou demonstrado na ação executiva n.º 27762/19.9T8LSB que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução de Lisboa, Juiz 5, impõe-se concluir que a impossibilidade de recuperação do crédito agravou-se substancialmente com a celebração do negócio em causa ficando, assim, amplamente demonstrados os dois requisitos de que depende a impugnação pauliana de um negócio gratuito.
Subsidiariamente, e sem prescindir,
Da ampliação do objeto do recurso (conclusões)
X. É igualmente entendimento da Recorrida que o Acórdão a quo argumentou em termos objetivos, racionais e devidamente fundamentados, fazendo uma correta interpretação e aplicação das normas jurídicas vigentes relativamente à procedência da impugnação pauliana e respetivas consequências.
Y. Sem prejuízo, entende a Recorrida que o Acórdão a quo enferma de erros na apreciação da conduta dos Réus e o seu enquadramento na apreciação da má-fé em sede de impugnação pauliana,
Z. Ao contrário do entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, em sede de impugnação pauliana não se impõe ao credor a prova do conluio entre o devedor e o terceiro para atentar contra o direito do credor, sendo suficiente a demonstração de que aqueles tenham agido com consciência do prejuízo que o ato poderia causar, o que, no entendimento da recorrida constam dos autos elementos e meios de prova bastantes que impunham necessariamente uma decisão diversa daquela a que se chegou na sentença recorrida.
AA. Assim, e sem prejuízo de tudo quando acima se alegou relativamente aos argumentos aduzidos pelos Recorrentes, não pode a Recorrida conformar-se com a decisão proferida quanto ao pedido de simulação relativa deduzido nos presentes autos.
BB.Com efeito, quanto a este ponto, entendeu o Tribunal a quo que “dos três pressupostos da simulação (…) apenas logrou a autora provar a divergência entre a vontade declarada e a vontade real no que diz respeito à alegação de que ocorreu um empréstimo entre os réus e sobre o valor do mesmo. Não provou a autora o acordo ou conluio (pactum simulationis) entre os contraentes, nem a intenção de enganar terceiros (animus decipiendi), na medida em que não se provou que a ré tinha conhecimento das dívidas do réu para com a autora”.
CC. Da sentença sub judice infere-se que, para o sentido decisório da inexistência do pressuposto da má-fé, foi decisiva a resposta dada aos factos não provados números 71, 72, 73 e 74, no entender da Autora, erradamente julgados:
● “71.º Como também sabia que o 1.º Réu, para além do bem que lhe estava a transmitir, não tinha em seu nome quaisquer outros bens imóveis ou móveis suscetíveis de responderem pelas dívidas que o 1.º Réu detinha perante terceiros.”
● “72.º Pelo que, quando celebrou a escritura de dação em cumprimento, também por esse motivo, tinha plena consciência de que estava a celebrar um negócio destinado à dissipação de património da esfera jurídica do 1.º Réu, i.e.,“
● “73.º estava consciente que, celebrando aquele negócio, estava a prejudicar gravemente os credores do ora 1.º Réu, em particular o Autor, impedindo-o de cobrar o crédito que detém sobre o 1.º Réu através da penhora e venda da metade indivisa dos imóveis objeto da presente ação,”
● “74.º ao mesmo tempo que defendia o seu próprio património, já que, a execução da metade indivisa da propriedade do 1.º Réu, direta ou indiretamente, teria impacto sobre a metade indivisa de que é proprietária.”
DD. A Autora respeita, mas discorda do entendimento tido pelo Tribunal a quo, que com ele não se pode conformar, considerando que foi produzida prova relativamente aos referidos factos que impunha uma decisão diversa da que foi proferida pelo Tribunal a quo que,
EE. Entende a Recorrida que os referidos factos se encontram provados pela análise das declarações da Ré - gravadas em suporte digital (ficheiro áudio Diligencia_7810-22.6T8PRT_2023-11-06_09-50-25.mp3), com a duração de 44 minutos e 54 segundos com início às 9 horas e 50 minutos do dia 06.11.2023, que, quando a esse respeito inquirida, expressamente confirma ao Tribunal o seu conhecimento de que o 1ª Réu não detém quaisquer bens em seu nome, pelo que, justificação alguma há para que tal facto tenha sido dado como não provado devendo, em conformidade, ser alterado para provado.
FF. Do mesmo modo, em tais declarações, a Ré também revelou conhecer as “atividades” de risco em que o Réu se encontrava envolvido, tendo perfeita consciência de que se algo corresse mal, o património comum do casal poderia ser chamado a responder por prejuízos decorrentes do risco financeiro que envolvia os investimentos do Réu.
GG. Das declarações da Ré resulta, no mínimo, que aquela tinha perfeita consciência dos negócios do ex-marido e dos riscos que esses negócios poderiam constituir para o imóvel registado em nome de ambos.
HH. Foram igualmente demonstradas as contradições das declarações da Ré proferidas neste processo com as proferidas no processo cuja sentença condenatória titula o crédito da Autora nestes autos, o que, erradamente, não foi devidamente valorado pelo Tribunal a quo.
II. A mesma Ré que neste processo e sob juramente afirma que que desde finais de 2012 que está separada de facto do marido e que com ele apenas mantém relações cordiais, é a mesma Ré que que em 2015 e igualmente sob juramento depôs sem referir essa circunstância, pronunciando-se sobre a correspondência que o Réu recebia ou não na casa de ambos, ocultando a separação de facto nestes autos convenientemente alegada.
JJ. Do mesmo modo não se compreende que o Tribunal “a quo” não tenha valorado a circunstancia de a Ré ter afirmado que desde finais de 2012 que está separada, de facto do 1º Réu, e que com ele apenas mantém relações cordiais, mas depois, em 2024, apareça registada no site da associação Citizen’s Voice – Consumer Advocacy Association como membro do conselho consultivo, da qual o 1ª Réu é Presidente da Direção.
KK. Todos estes factos, não são compagináveis com a existência de relações de natureza meramente cordial, sendo evidente que a 2ª Ré continua a intervir e a acompanhar os “negócios” do seu ex-marido e que conhecia, e bem, os riscos que corria caso as frações se mantivessem em nome daquele.
LL. Sendo evidente que a 2ª Ré quando outorgou a escritura de dação tinha o claro propósito de proteger o seu património, bem sabendo que, desse modo, impedia que terceiros pudesse executar o próprio património que entendia ser seu mas que estava registado em nome do seu marido.
MM. Sendo manifesto o erro em que incorreu o Tribunal a quo quanto à resposta dada a estes factos que, ao contrário do sucedido, não poderia deixar de ser positiva, impondo-se, pois, que a resposta dada pelo Tribunal a quo aos factos 71, 72, 73 e 74 seja alterada para provados, o que, a suceder, tem como consequência a verificação do pressuposto da má-fé no caso em concreto.
NN. A doutrina e a jurisprudência têm entendido que é tal a dificuldade da prova do conhecimento do terceiro, que basta que este tenha a perceção da eventualidade de, com a celebração do negócio, estar a prejudicar terceiros, não se exigindo um conhecimento efetivo de que está a prejudicar os credores do outro contraente.
OO. A este respeito veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto Processo: 5337/15.1T8VNG.P1 de 09-11-2023, disponível em www.dgsi.pt
PP. Da prova produzida resulta inexoravelmente a existência de um negócio simulado, conquanto, se afigura claro que: (i) existe uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada – o negócio real foi uma doação e não uma dação em pagamento; (ii) houve o intuito de enganar terceiros- para este efeito basta a intenção de enganar, não sendo necessário que esse engano vise o prejuízo efetivo dos terceiros e (iii) é clara a existência de um acordo simulatório entre o declarante e declaratário, conforme resulta das palavras da própria Ré ao afirmar que o único intuito que teve na celebração deste negócio era o de colocar a casa em seu nome, fosse porque meio fosse.
QQ. Da prova produzida resulta evidente estarmos perante um negócio simulado - simulação relativa – conquanto a vontade real das partes foi a de celebrar uma - Doação - mas diferente do negócio que foi celebrado – Dação em pagamento – e a má-fé dos contraentes na celebração desse negócio - o que importa a prevalência do negócio dissimulado em detrimento do negócio simulado, que aqui se invoca, relevando a má-fé também para a procedência da impugnação pauliana, tudo nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 241º, 610º e 612º do CC .
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, com o mui Douto suprimento de V. Excelências, deverá o recurso interposto pelos Recorrentes ser julgado totalmente improcedente, por manifestamente infundado.
Caso assim não se entenda, o que não se concede, Subsidiariamente,
Deverá ser admitido e dado provimento à ampliação do objeto do recurso interposto pela Recorrida e, em consequência, ser a douta sentença recorrida substituída por outra que julgue procedente, por provada, a existência de simulação relativa no negócio de dação em cumprimento celebrado entre os Recorrentes e, também, o pedido de impugnação pauliana por existência de má-fé no negócio impugnado, tudo com todas as consequências daí resultantes,
Assim decidindo, Venerandos Desembargadores, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!”
Os RR, AA e BB vieram responder ao pedido de ampliação do objeto do recurso, pugnando pela sua improcedência, juntando contra-alegações, concluindo:
“1. A ampliação do objeto de recurso requerida pelo autor, ora apelante, procura obter a declaração de nulidade, por simulação relativa, da escritura de dação em cumprimento. No entanto, a análise detalhada dos fatos e circunstâncias subjacentes demonstra um uso inadequado e descontextualizado das declarações da ré pelo apelante, que parece ignorar as distintas fases da relação entre os réus - casados, separados de fato e finalmente divorciados, para além de todas as outras circunstâncias vertidas na douta decisão ora sob apelação.
2. O apelante tenta persuadir este Tribunal de que a ré estava ciente da situação patrimonial e financeira do réu pós-separação, para sustentar uma suposta má-fé na realização da dação em cumprimento. Contudo, tal argumento mostra-se infundado quando confrontado com a realidade financeira dos réus e o contexto em que se deu a transação, sendo relevante os seguintes factos:
3. Compra e Valorização dos Imóveis: Os réus adquiriram os imóveis em questão por €57.811 em 2000. Apesar das melhorias e equipamentos adicionados ao imóvel, a valorização até 2014, e mesmo até 2017, nunca poderia justificar uma avaliação desproporcionalmente alta, conforme ilustrado pela incongruência dos valores estimados pelo IPC e pelo índice A....
4. A utilização do IPC em diferentes perspetivas (um como deflator e outro como inflator) demonstra distorções significativas quando aplicados retroativamente ou prospectivamente – o que não pode ser aceite, devendo por isso prevalecer o deflator mais coerente, que é o índice do A... – ou então, a utilização de outras métrica precisas disponíveis no Instituto Nacional de Estatística e que os peritos não utilizaram, ou por desconhecerem, ou porque acharam que o A... e o IPC eram suficientes.
5. A decisão de realizar a dação em cumprimento foi uma medida pragmática e ajustada à realidade económica e jurídica dos réus. A escolha por este meio jurídico foi baseada na equivalência do valor da dívida e do imóvel, mostrando-se como uma solução justa e razoável dadas as circunstâncias financeiras partilhadas, em concreto a dívida, documentado pelos extratos bancários junto aos autos, do réu para com a ré, dívida essa utilizado pelo réu para fazer investimentos pessoais (sem a ré) em bolsa.
6. As alegações de que a ré tinha conhecimento detalhado da situação financeira do réu após a separação são inconsistentes com o depoimento da ré e a dinâmica financeira do casal. A ré teve um papel passivo nas finanças durante o casamento, limitando-se a cumprir solicitações pontuais de empréstimos sem imiscuir-se em outros aspetos financeiros. Além disso, a comunicação limitada e superficial após a separação reforça a improbabilidade de ela estar ciente ou compreender as complexidades das disputas legais do réu com o autor (num contexto em que o réu é que era autor) – podemos mesmo afirmar que é esdrúxulo dizer que a ré, depois de separada de facto do réu, no contexto supra demonstrado e sendo a pessoa que demonstrou ser no seu depoimento (alheia às questões financeiras e jurídicas em geral e mesmo em particular, nas que dizem respeito a si mesmas), soubesse do desfecho da ação em primeira instância, de que dai emergia um crédito do aqui autor, ou tivesse minimamente noção que a dação em cumprimento que celebrou com o réu de alguma forma, mesmo que remotamente, fosse prejudicar quem quer que fosse – quando lhe pareceu um negócio justo e adequado ao que era ali visado.
7. As provas demonstram que a ré não possuía conhecimento suficiente para entender as implicações legais ou financeiras das ações do réu, muito menos para participar de uma alegada simulação para dissipar património do réu, desde logo porque desconhecia em absoluta a decisão da primeira instância (pois estava separada de facto do réu e vivendo vidas absolutamente separadas e com pouco contacto) e mesmo que conhece-se tal decisão, nunca da mesma, poderia concluir ou inferir quais as consequências que não fossem apenas o seu ex marido não receber o dinheiro que ali reclamava (pois era autor e não réu nesse processo).
8. A realização da dação em cumprimento reflete uma abordagem equitativa e transparente na resolução de uma dívida pendente, distante de qualquer tentativa de dissipação de património. A separação de facto dos réus, e a subsequente independência financeira, apenas fortalecem a legitimidade da transação. Se a intenção fosse ocultar ativos, métodos mais eficazes e menos rastreáveis estariam à disposição dos réus, pelo que nunca teriam optado por uma dação em cumprimento se objetivo fosse dissipar o património do réu.
9. Acresce que não existe lógica o réu querer afastar património da sua esfera, o qual nunca o recuperaria – não o tornaria a integrar na sua esfera direta ou indiretamente, o mesmo ou seu equivalente – em vez de utilizar para pagar dívidas que tinha, fosse, como aconteceu, a dívida com a réu, ou, se essa dívida não existisse, a dívida para com o autor.
10. Os argumentos e provas apresentadas confirmam que a dação em cumprimento não foi produto de má-fé, mas sim uma solução lógica e fundamentada nas circunstâncias financeiras dos réus. A tentativa de caracterizar o negócio como uma simulação é desprovida de base factual e jurídica, devendo ser rejeitada por este Tribunal, desde logo porque parece ter ficado demonstrado que o negócio se tratou efetivamente de uma dação em pagamento e não num negócio simulado - simulação relativa – e muito menos que os réus tivessem agiu com má-fé na celebração desse negócio, não estando assim verificados os pressupostos impostos pelos artigos 241, 610 e 612 do CC .
Termos em que, ex vi do alegado supra, os apelantes rogam a Vossa Excelências, Venerandos(as), Senhores(as), Juízes(as)Desembargadores(as), que julguem improcedente o pedido subsidiário do autor, aqui apelante, por não provada a existência de simulação relativa no negócio de dação em cumprimento celebrado entre os réus, ora apelados e, também, seja improcedente o pedido de impugnação pauliana por existência de má-fé no negócio impugnado, tudo com todas as consequências daí resultantes.”
O recurso interposto pelos RR foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – artigos 644º, n.º 1, al. b), 645º, n.º 1, al. b) e 647º do C.P.C., assim como a ampliação do recurso requerida pela autora, nas suas contra-alegações, nos termos do disposto no artigo 636º e 638º, n.º 7, todos do C.P.C.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II-OBJETO DO RECURSO
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
As questões decidendas são as seguintes:
No recurso dos RR:
-modificabilidade da decisão de facto por reapreciação das provas produzidas e eventual alteração da decisão de direito em consequência de tal modificação;
-erro na aplicação do direito quanto:
-ao ónus da prova,
-ao abuso de direito;
-ao prazo de caducidade
Na ampliação do objeto do recurso, subsidariamente feita pela A:
-impugnação da decisão quanto ao pedido de simulação relativa deduzido nos presentes autos, com modificabilidade da decisão de facto por reapreciação das provas produzidas e eventual alteração da decisão de direito em consequência de tal modificação.

III-FUNDAMENTAÇÃO:
Na sentença foram julgados provados os seguintes Factos:
1.º Em resultado de operação de fusão transfronteiriça por incorporação outorgada em 1 de outubro de 2018, por escritura pública junto do Cartório Notarial de EE, em Madrid, Espanha, verificou-se a transferência global do património do Banco 1... (Portugal), S.A. para o Banco 1..., S.A. O Banco 1... S.A. outorgou naquela mesma data junto do referido Cartório Notarial, uma Ata complementar à mencionada escritura de fusão transfronteiriça por incorporação, pela qual, em conformidade com o Projeto Comum de Fusão, deliberou passar a ter representação permanente em Portugal sob a denominação de Banco 1..., S.A., Sucursal em Portugal, a quem passou todas as situações ativas e passivas derivadas da atividade desenvolvida pelo Banco 1... (Portugal), S.A., compreendendo a universalidade dos bens, direitos, obrigações e situações passivas, entre eles, os créditos nestes autos invocados (doc. de fls. 2 a 17 do apenso documental)
2.º Por força do registo da aludida operação de fusão transfronteiriça por incorporação e nos termos da Lei, verificou-se a extinção da sociedade incorporada (fls. 2 a 17 e certidões permanente da sociedade incorporada e da sociedade agora Autora acessíveis para consulta em www.portaldaempresa.pt, com os códigos de acesso ... e ...)
3.º O Autor dedica-se à atividade bancária (certidão permanente disponível para consulta em www.portaldaempresa.pt, com o código de acesso ...).
4.º O 1.º Réu foi cliente do Autor na área de investimentos em valores mobiliários.
5.º O 1.º Réu e a 2.ª Ré, contraíram casamento no dia 8 de Setembro de 2001, sob o regime de separação de bens, casamento dissolvido por divórcio decretado no dia 23 de Julho de 2018 (certidão de fls. 17 verso a 19 verso do apenso documental)
6.º O crédito do Autor sobre o 1.º Réu está titulado em sentença judicial, que constitui o título executivo de ação executiva proposta pelo Autor contra o 1.º Réu (fls. 22)
7.º A ação que deu origem à referida sentença foi proposta pelo ora 1.º Réu contra o ora Autor, tendo aquele pedido a condenação deste no pagamento de uma indemnização no valor de € 1.286.868,00, acrescida de uma quantia a liquidar, na qual o ora Autor deduziu pedido reconvencional e pedido de condenação do ora 1.º Réu como litigante de má-fé, processo que correu seus termos pela então Instância Central, Secção Cível, J 18 do Tribunal da Comarca de Lisboa, sob o n.º 2393/09.5TVPRT. (sentença de fls. 22 a 49 verso do apenso documental);
8.º De acordo com o relatório exarado na referida sentença, o ora réu:
“AA (…) com domicílio na Rua ..., n.º ..., 7.º dto. frente, no Porto, moveu a presente ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra o Banco 1... (Portugal), SA, pessoa coletiva n.º ..., com domicílio na Avenida ..., ..., Porto, pedindo ao Tribunal que condene a Ré a pagar-lhe:
(i) A quantia de € 1.286.868,00 relativa aos prejuízos «referidos, designadamente, nos arts. 79.º a 73.º, 74.º a 79.º, 80.º a 85.º, 89.º, 90.º a 92.º, 96.º a 101;
(ii) A quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença relativamente aos prejuízos sofridos pelo Autor «no que respeita ao seu real e efetivo prejuízo pelo deficiente cumprimento da ordem de compra de dois milhões de direitos de subscrição Banco 2... a € 0,01 na parte que exceda a quantidade de 52.750 direitos e até 2 milhões, sendo essa indemnização calculada pela diferença entre o preço de aquisição a € 0,01 e o preço de venda de e 0,25”
(iii) A quantia que se vier a liquidar em execução de sentença relativamente aos prejuízos sofridos pelo Autor no que respeita ao seu real e efetivo prejuízo pelo deficiente cumprimento da ordem de compra de 2 milhões de direitos de subscrição do Banco 2... a € 0,02 consoante a prova que se vier a fazer da quantidade que o Réu efetivamente teria obrigação de comprar, sendo essa indemnização calculada pela diferença entre o preço de aquisição a € 0,02 e o preço de venda a € 0,25;
(iv) A quantia de € 20.000,00 a título de danos morais sofridos pelo Autor em consequência do incumprimento do contrato celebrado entre as Partes;
(v) Os juros que se vencerem à taxa legal de 12% contados desde a data da citação e até integral pagamento.;” (sentença de fls. 22 a 49)
9.º A ré, aqui autora, contestou “(…) invocando (…), a prescrição dos direitos do Autor, ao abrigo do disposto no art. 324.º, n.º 2, do Código dos Valores Mobiliários, e invocou abuso de direito, e por impugnação, em termos que aqui se dão por integralmente reproduzidos (vd. fls. 79 e ss.) e deduziu pedido reconvencional, requerendo a condenação do Autor/Reconvindo a pagar-lhe a quantia de € 36.900,27 acrescida de juros vencidos e vincendos. Requereu, ainda, a condenação do Autor, em multa e indemnização, por litigância de má-fé.” (fls. 22 a 49)
10.º Na sentença em causa foram considerados como provados os seguintes factos:
“1. O Réu encontra-se matriculado na 1.ª secção da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa com o n.º ... e encontra-se inscrita pelas ap. ... de 30.12.2002 a fusão, por incorporação, da sociedade C..., SA, á qual se procedeu por escritura pública de 23.12.2002, (…)
2. Em 23 de Maio de 2001, o Autor e a sociedade C..., SA celebraram entre si um acordo sujeito às “Condições Gerais de Abertura de Conta de Registo e Depósito de Valores Mobiliários”, onde se dispõe, nomeadamente, que:
«2. Objeto, condições e legislação aplicável
2.1. O presente documento constitui um contrato de registo e depósito de valores mobiliários, incluindo outros instrumentos financeiros equiparados a valores mobiliários (…), o qual visa a abertura, a manutenção e a movimentação de uma ou mais contas de
registo e depósito desses instrumentos financeiros pelo Cliente ou Clientes junto do C... (…), aplicando-se o clausulado constante nas presentes Condições Gerais, e muito especialmente, no Código de valores Mobiliários, no Regulamento n.º 12/2000 aprovado pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e na restante legislação em vigor. (…)
2.1.2. A abertura de uma ou mais Contas, de acordo com a vontade do Cliente ou com as necessidades decorrentes das operações por ele ordenadas, permite-lhe instruir a C... (…) para a realização de operações sobre valores mobiliários, com o consequente crédito e débito da Conta (…); (…)
2.2. A C... (…) é responsável perante o Cliente pela entrega dos valores mobiliários adquiridos e pelo pagamento do preço dos valores mobiliários alienados (…);
2.3. Os valores mobiliários que o Cliente entenda, inicialmente, creditar na Conta, são os que resultam identificados no primeiro extrato que venha a ser emitido pelo C...(…), sendo o saldo da Conta, em cada momento, o que resultar dos créditos e/ou débitos efetuados em razão das operações ordenadas e que venham a ser concretizadas, o qual constará dos extratos periodicamente emitidos, numa base mensal, pelo C... (…);
3. Relações entre os Contraentes
3.1. Constituem obrigações legais da C... (…) informar o Cliente relativamente: (…)
4. Regras aplicáveis ao funcionamento da Conta
Sem prejuízo das regras legais e regulamentares em cada momento em vigor: (…)
4.1.1. A C... (..) pode recusar a execução de uma ordem quando o cliente não prove a disponibilidade dos valores mobiliários ou não disponibilize as quantias em dinheiro necessárias para o cumprimento das obrigações decorrentes da liquidação financeira da operação (…).»
3 . Na sequência do acordo supra referido, veio a ser aberta uma conta à qual foi atribuído o n.º ...; (…)
4. O Réu comunicou ao Banco de Portugal (Central de Responsabilidades de Crédito) a existência de uma dívida do Autor no valor de € 36.900,25; (…)
5. O Autor tem formação académica em Direito e em Administração de Empresas; (…)
6. O Autor tinha, à data dos factos, e tem experiência profissional na Banca; (…)
7. Desde 1 de Outubro de 2006, que o Autor é o Presidente da “ATM – Associação de Investidores e Analistas Técnicos do Mercado de Capitais”, associação que tem por objeto a proteção dos interesses dos investidores e analistas técnicos do mercado de capitais (…)
8. O Autor remeteu ao Réu uma carta recebida por este em 16 de Fevereiro de 2005, cuja cópia se encontra a fls. 159-161 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, onde, por referência ao assunto “operações D...” refere, nomeadamente, que: «as ordens de compra, ainda que na falta de alguns registos com mais ordens a comprar, aceito-as como ordenadas de acordo com a minha instrução verbal (…). As ordens de venda, porque tenho a certeza que não foram esses os valores, datas e montantes a que ordenei a execução, não as posso aceitar. (…) Devo (…) solicitar a V. Exas. que me sejam imediatamente disponibilizados os 490.439 títulos ao preço de 1.998604 euros para, entendendo, vendê-los ao preço atual de mercado que se encontra próximo dos 4.45 euros (…).»;
9. O Autor remeteu ao Réu uma carta datada de 29.03.2004 com o seguinte teor: «Em 08.12.2002, solicitei a V. Exas. o carregamento de uma ordem de compra de vários milhões de direitos sobre ações do Banco 2... em negociação entre 09-12-2002 e 17-12-2002. A ordem foi carregada em 09-12-2002 na abertura ao carregamento de ordens para o mercado, salvo erro às 7 h 30 com validade até 17.12.2002 conforme minha instrução. Fui informado que fiquei colocado como segundo comprador em 09.12.2002, passando a primeiro comprador em 10-12-2002. Para poder apurar responsabilidade sobre o sucedido com este negócio, solicito completa e cabal informação sobre esta operação de compra, a única que ordenei para este produto.»;
10. O Réu enviou ao Autor a carta cuja cópia consta de fls. 126 a 130 (…), datada de 30.04.2004, recebida pelo Autor em Maio de 2004, cujo teor se dá por reproduzido, na qual o Réu apresenta um resumo das transações efetuadas desde a abertura da conta n.º ... até à data da carta e um saldo negativo final da referida conta no montante de 37 mil euros. Na carta em causa é referido: «Os elementos solicitados foram enviados por carta registada em 01.04.2004 de onde se destacam: cópia dos dados de cliente que se encontram registados em sistema; composição da carteira de títulos em 29-11-2002; composição da carteira de títulos em 31.12.2002; total return swap on snc ordinary shares; contrato de abertura de conta de registo e depósito de valores mobiliários na C..., SA; cópia do documento provisório de identificação do número de contribuinte; cópia do bilhete de identidade; extrato da conta corrente n.º ... desde a sua abertura até à presente data; (…)»; (…)
11. Em resposta, o Autor remeteu ao Réu a carta cuja cópia consta de fls. 135 a 152 (…)), datada de 12.05.2004 (…)
12. Em Junho de 2004, o Autor enviou ao Réu o email cuja cópia consta de fls. 152 (…), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual refere «Verifico em consulta à central de responsabilidades do Banco de Portugal (BdP) que sou titular de um financiamento de curto prazo de aproximadamente trinta e sete mil Euros (…).»; (…)
13. O Autor enviou ao Réu a carta datada de 01.10.2004, cuja cópia consta de fls. 144 a 150 (…) e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, da qual consta, nomeadamente: «(…) Numa repetição do movimento em D... que aconteceu em final de 2002 e início de 2003, tentei semelhante operação que já tinha sido coroado de sucesso no final de 2003 para início de 2004, desta a valores, suportes e resistências superiores e num movimento com mais “momentum” e por isso força, associar ao especial período em que o mercado marcava o início de uma recuperação. Solicitei a execução em diversas ordens de compra que situaram 0.02 a 0.04 de Euro abaixo das resistências e suporte do título, nomeadamente de 1.97 a 1.99 (a grande resistência dos 2 euros e impulsionador de todo o movimento) 2.06 a 2.18 (junto as pequenas resistências redondas dos 2.10 e 2.20) e próximo dos 2.40 que não entendo como V. Exas. Executaram a 2.53 e 2.52. Essas ordens estão, na sua maioria, corretas, à exceção, mais uma vez das datas –valores. No entanto, como em 2002/2003, com este título o vosso colaborador, talvez na procura de mais-valias e corretagens rápidas, decidiu vender antes da minha instrução que ele sabia ser próximo dos 3.50 euros (3.46 a 3.49). Esta precipitação do vosso colaborador, que me esconde o que tinha feito, como já era hábito, resultou na perda de mais-valias, apesar de mesmo assim ter conseguido um ganho que julgo superior a 32%.
Atendendo ao exposto solicito que me reponham a diferença entre as mais-valias creditadas na conta e as que teria efetivamente ganho se a ordem fosse cumprida e executada como solicitei ou, se estiver enganado no que estou a afirmar, me facultem comprovativo inequívoco que comprove que as ordenei ou autorizei, até porque, efetivamente, houve uma pequena ordem de venda ordenada abaixo desse valor, mas comunicada ao vosso colaborador o Exmo. Sr. FF e não o Exmo. Sr. GG, por isso fácil de detetar.»; (…)
14. O Autor remeteu ao Réu a carta datada de 02.06.2005 (…) onde por referência ao assunto “operação de compra de D...” se refere, nomeadamente, que: «(…) Considerando a venda executada a valores próximos de 4,45 Euros (conforme solicitado) e o preço médio de aquisição de 2 Euros, o lucro obtido nesta operação é de aproximadamente 1.201.576 Euros (…). Aproveitando a mais valia obtida, solicito que procedam a compra em mercado a vista de 400.000 ações (…) da D... (SNC: Euronext Lisbon – PTSNC0AE0006) a preço limite de 3.05 Euros (…).»; (…)
15. Em resposta, o Réu remeteu ao Autor a carta cuja cópia consta de fls. 132 e 133 (…), datada de 09.06.2005, onde escreve: «(…) Relativamente à V. comunicação datada de 11 de Fevereiro do presente ano, V. Exa. (…) não tem depositado junto desta instituição quaisquer ações D.... Consequentemente, como é óbvio, não iremos proceder a qualquer venda desses ativos tendo V. Ex.ª como ordenante.»; (…)
16. O Autor requereu a notificação judicial avulsa do Réu nos termos que constam de fls. 154 a 157 (…), onde consta, nomeadamente: «(…) 11.º Aproxima-se, porém, o prazo de prescrição do seu direito, razão pela qual o requerente pretende, nos termos do disposto no art. 323.º do C. Civil, interromper tal prazo, 12.º Exprimindo, deste modo, de forma direta a intenção de exercer o seu direito a ser indemnizado de todos os prejuízos emergentes da atuação da requerida no âmbito do contrato acima referenciado.»; (…)
17. O Autor não pagou à Ré a quantia de € 36.900,27 por esta reclamada como saldo negativo da sua conta de títulos; (…)
(…)
20. Em 06.04.2006, o Conselho Diretivo da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários deliberou, por unanimidade, aplicar ao Réu uma admoestação pelos fundamentos fáticos e jurídicos constantes da decisão cuja cópia consta de fls. 233 a 295 (…)
(Da base Instrutória)
21. Desde data não determinada e até 2004, o Réu celebrou, como contraparte do Autor, contratos de “Total Return Swap”; (…)
22. Entre 8 de Fevereiro de 2002 e 27 de Fevereiro de 2004, o Réu executou para a conta n.º ... a venda de um total de 1. 561.1 ações da D..., a um preço médio ponderado de € 1,86919; (…)
23. Por carta registada, com aviso de receção, o Autor solicitou ao Réu a venda de 480.439 ações pelo preço de € 4,45 cada uma; (…)
24. O Réu não deu cumprimento à solicitação/ordem supra referida; (…)
25. O Réu executou para a conta n.º ... várias operações sobre os ativos E..., F..., G..., H..., I..., J..., K..., L..., M...; (…)
26. O Réu adquiriu ações da N... na modalidade de Equity Swaps; (…)
27. O Réu sabia, por o Autor lhe ter comunicado, que a razão da compra de ações da N..., pelo Autor, seria o de poder tornar-se acionista para participar na Assembleia Geral da N...; (…)
28. O Réu debitou ao Autor o valor de € 5.564,00 relativos a custos de corretagem e juros com a operação referida no art. 17.º da Base Instrutória; (…)
29. Entre 4 de Janeiro de 2002 e 22 de Março de 2004, o Réu debitou da conta do Autor o montante total de € 61.000,00 referente a encargos consistente, na grande maioria, em comissões cobradas pelo Réu; (…)
30. Em Dezembro de 2002, o Autor instruiu o Réu para que, no dia 9 de Dezembro de 2002, colocasse no mercado uma ordem de compra de trinta mil direitos sobre ações do Banco 2..., ao preço de € 0,01, para a conta n.º ..., com data de validade até 17 de Dezembro de 2002; (…)
31. O Réu, por lapso, não colocou a ordem de compra com validade até ao dia 17 de Dezembro, pelo que, de imediato, colocou uma outra ordem de compra a € 0,01 com validade até ao dia 17 de Dezembro, a favor do Autor; (…)
32. O Réu garantiu a colocação do Autor na primeira posição; (…);
33. O Réu obrigou-se a vender direitos de subscrição do Banco 2... que não possuía e de que não era titular, pelo que foi forçado a adquiri-los a preço superior àquele que se tinha obrigado a vender; (…)
34. O preço dos direitos do Banco 2... supra referidos atingiram em bolsa o valor de € 0,07; (…)
35. O Réu adquiriu 52.750 direitos sobre ações do Banco 2..., ao preço de € 0,01; (…)
36. Desde Janeiro de 2003, que o Réu deixou de enviar para a morada do Autor os extratos das contas abertas em seu nome, designadamente, a de valores mobiliários; (…)
37. O Autor efetuou um último depósito na sua conta, transferindo a quantia de € 1.500,00; (…)
38. A comunicação referida no facto provado n.º 4 não permitiria que o Autor acedesse a crédito, pelo menos junto de uma instituição que concede crédito; (…)
39. O Réu propôs ao Autor pagar-lhe a quantia de € 100.000,00; (…)
40. Foi o Autor quem, em 2002, solicitou ao Réu que este deixasse de enviar a correspondência relativa a operações financeiras para a sua morada, por razões da sua vida familiar; (…)
41. O Autor e o Réu acordaram, então, que tal correspondência passaria a ser levantada pelo Autor nas instalações do Réu, sitas no Edifício ..., na Praça ..., Porto; (…)
42. O Autor continuou a ser informado regularmente sobre a composição da sua carteira de títulos e do estado da sua conta corrente na sequência das ordens que ia dando; (…)
43. O Autor tinha e tem conhecimentos e experiência de investimento em bolsa que lhe permitiam compreender as operações realizadas pelo Réu, por suas expressas instruções; (…)
44. Desde o início que o Autor sabia que em relação à N... seriam realizados contratos de Equity Swaps e instruiu o Réu para que este realizasse operações de equity swap; (…)
45. Todas as ações D... adquiridas para o Autor, por intermédio do Réu foram vendidas por instrução do Autor; (…)
46. Outros clientes do Réu instruíram-no para dar ordens de aquisição de direitos sobre ações do Banco 2..., pelo preço de € 0,01; (…)
47. No total, os clientes do Réu deram-lhe instruções para que introduzisse ordens de compra de cerca de 280.002 direitos de subscrição sobre ações do Banco 2..., ao preço unitário de € 0,01; (…)
48. As ordens dos vários clientes foram agrupadas e introduzidas em conjunto; (…)
49. No dia 9 de Dezembro de 9/12/2002, pelas 7 horas e 30mn e 3 segundos, o Réu introduziu uma ordem de compra de 280.002 direitos sobre ações do Banco 2..., pelo preço de € 0,01, válida até 17.12.2002; (art. 68.º da BI)
50. A ordem supra referida resultou na aquisição de 52.750 direitos; (…)
51. Os referidos direitos adquiridos pelo Réu foram rateados pelos vários clientes deste último, incluindo o Autor, na proporção das respetivas ordens de compra solicitadas, tendo sido atribuídos ao Autor 5652 direitos sobre ações do Banco 2...; (…)
52. O único intermediário financeiro que, entre 09.12.2002 e 17.12.2002 adquiriu direitos sobre ações do Banco 2... pelo preço de € 0,01 para os seus clientes foi o Réu, pelo que caso tivesse sido recebida e introduzida pelo Réu uma ordem de compra de 2 milhões de direitos, o número de direitos adquiridos por intermédio do Réu, entre 09.12.2002 e 17.12.2002, teria sido igualmente de 52.750; (…)
53. As operações realizadas pelo Réu para o Autor no âmbito do contrato referido na al. B) dos Factos Assentes – todas autorizadas ou ordenadas pelo Autor - originaram um saldo negativo de € 36.900,27, gerado na conta do Autor n.º ..., a qual contém os reflexos financeiros das operações realizadas através da conta de títulos do Autor; (…)
54. A conta supra referida transitou para o Réu, após a fusão da C... no Réu; (…)
55. O Autor conhecia o risco inerente às operações supra referidas e respetivos custos; (…)
56. O Autor foi interpelado para pagar a quantia de € 36.900,27; (…)
57. O Réu tem registado nos seus sistemas tal dívida como estando em mora no dia 22 de Março de 2004; (…)
11.º Com a factualidade provada e aplicado o direito foi proferida a seguinte decisão:
“Em face de todo o exposto, o Tribunal:
1. Julga a presente ação improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolve o Réu Banco 1... (Portugal) dos pedidos peticionados por AA.
2. Julga procedente o pedido reconvencional e, consequentemente, condena AA a pagar ao Banco 1... (Portugal) o montante de trinta e seis mil, novecentos euros e vinte sete cêntimos (€ 36.900,27), acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal aplicáveis às operações comerciais, contados desde 22 de Março de 2004 e até integral e efetivo pagamento.
3. Condena o Autor AA, por litigância de má-fé, em multa de três UC e no pagamento de uma indemnização ao Réu correspondente ao valor dos honorários e das despesas que o segundo suportou em consequência da propositura da presente ação.
As custas são da responsabilidade do Autor (cfr. art. 527.º, do Código de Processo Civil).
12.º Na sequência da decisão reativa à condenação do autor como litigante de má-fé, a ré, por requerimento de 24.05.2016, indicou o valor dos honorários e despesas com a ação, num total de € 65.438,55 (documento de fls. 239 a 260 verso do anexo documental, vol. II).
13.º Por decisão proferida no dia 07.06.2016, foi determinado que: “em face do exposto, o Tribunal fixa em €65.438,55, o valor da indemnização que deve ser paga pelo Autor ao Reu, fruto da sua condenação por litigância de má-fé.”, decisão notificada às duas partes processuais (fls. 261- 261 verso)
14.º O valor da indemnização a título de litigância de má fé foi fixado em despacho complementar em € 65.438,55 (consta do teor do relatório do Acórdão proferido pelo TRP constante de fls. 78 verso a 103)
15.º Da sentença proferida pela primeira instância o autor (ora réu) interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, recurso admitido com efeito meramente devolutivo (fls. 263-263 verso), Tribunal que, por Acórdão proferido no dia 13-07-2017, alterou parcialmente a redação do facto 21º, considerou como não provados os factos 23º, 24º; alterou a redação do facto 39º; considerou como não provados os factos 40º e 41º e, no que à decisão final diz respeito, julgou parcialmente procedente a apelação, condenando-se o réu a pagar ao autor a quantia de € 3.465,24, acrescida de juros desde a citação. Confirmou, no mais, a decisão recorrida;
16.º Do Acórdão proferido pelo TR de Lisboa, o autor interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Por Acórdão proferido no dia 7 de Junho de 2018, foi julgada improcedente a revista e confirmado o Acórdão proferido pela Relação (Acórdão do STJ de fls. 104 a 120)
17.º O réu apresentou a sua nota discriminativa de custas de parte no valor total de €14.102,60, calculadas nos termos da douta decisão de 14.01.2019, que determina a redução em 70% do remanescente da taxa de justiça devida pelo ora Réu.
18.º O ora réu não procedeu ao pagamento ao Autor das quantias em que foi condenado, tendo o ora autor instaurado uma ação de execução para pagamento de quantia certa dando à execução a sentença condenatória, execução instaurada em 10.12.2019 e que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução de Lisboa, Juiz 5, sob o número de processo 27762/19.9T8LSB, correspondendo a quantia exequenda ao valor global de € 177.785,79, à qual acrescem juros de mora, à taxa de 7%, sobre o capital em dívida de € 116.441,47, desde 06.12.2019, até integral e efetivo pagamento. (fls. 76 verso a 78)
19.º Sucede que, no âmbito da referida execução, e não obstante as inúmeras diligências de tentativa de identificação de bens levadas a cabo pela Sra. Agente de Execução, apurou-se que os únicos bens existentes em nome do 1.º Réu e, nessa medida, os únicos suscetíveis de penhora eram:
a) Conta de valores mobiliários n.º 400745, junto da O..., S.A., composta por € 11,68 em posições em títulos e € 40,10 em dinheiro;
b) Direito sobre 50% de uma Patente de Invenção Nacional n.º ..., cujos titulares são o 1.º Réu e HH, no valor de 51,78€ (auto de penhora de fls. 220 a 221 verso e docs de fls. 222 a 226 verso),
20.º O autor teve conhecimento de que os réus, por escritura pública denominada de “Dação em Cumprimento”, outorgada no dia 15.05.2017, o aqui 1.º Réu, na qualidade de primeiro outorgante e a 2ª ré, na qualidade de segunda outorgante, declararam, de entre outras menções, o seguinte:
“(…)
Declarou o primeiro outorgante:
Que é devedor à segunda outorgante, no montante de vinte e cinco mil euros, proveniente de diversos empréstimos que a segunda outorgante lhe efetuou por diversas vezes, há cerca de quatro anos, quantia de que se confessa devedor.
Que, pela presente escritura e para pagamento integral da referida dívida, dá à segunda outorgante, metade indivisa de cada uma das seguintes frações autónomas, no valor de vinte e cinco mil euros, igual ao da dívida:
Verba um: Metade indivisa da fração autónoma designada por P-2, correspondente a habitação (…) e que tem o valor patrimonial tributário correspondente a € 34.375,00 e a ela atribuem o valor de vinte e três mil e quarenta e cinco euros.
Que sobre a fração incide ainda uma hipoteca registada (…) de dez de Fevereiro de dois mil e onze, a favor do Banco 2... S. A.;
Verba dois: Metade indivisa da fração autónoma designada por X-4, correspondente ao espaço no primeiro piso destinado a garagem (…) com o valor patrimonial tributário correspondente a € 1.955,00 e a ela atribuem o valor de mil novecentos e cinquenta e cinco euros
As referidas frações (…) estão registadas em seu favor e da segunda outorgante, na proporção de metade indivisa para cada um, pela apresentação (…) de vinte e três de Junho de dois mil.
Declarou a segunda:
Que aceita esta dação nos termos exarados e, em consequência, declara totalmente extinta a mencionada dívida.
Que a fração P-2 de que passou a ser a única proprietária se destina, exclusivamente, a sua habitação própria permanente. (…)”(fls. 227 a 228 verso)
21.º A segunda ré registou o direito de aquisição com base na escritura referida no artigo anterior sobre as duas frações, pela AP ... de 2017-05-17, descritas, respetivamente, na CR Predial do Porto, freguesia ..., sob os n.ºs ...-P-2 e ...-X-4 (certidões prediais de fls. 229 a 230 verso)
22.º O registo inicial de aquisição do direito de propriedade dos dois réus em relação às frações identificadas no artigo anterior foi efetuado pela Ap ... de 2000-06-23 (fls. 229 a 230 verso)
23.º Em relação à fração P-2, encontra-se registada uma hipoteca, em favor do Banco 2..., S. A. registada pela Ap. de 10-12-2012 para garantia do capital, à data de 20.000.000,00 escudos, tendo como sujeitos passivos os dois réus (fls. 229 e 229 verso)
24.º Os imóveis em causa foram adquiridos pelos réus com recurso a um financiamento por intermédio de um contrato de mútuo com hipoteca outorgado pelos dois, por escritura pública denominada de compra e venda e mútuo com hipoteca, outorgada no dia 05.07.2000, pelo montante de €99.759,58. 24.º As duas frações – P-2 e X-2 –foram adquiridas pelos réus no estado de solteiros, pelo valor global de 11.590.000$00 escudos e nessa data os Réus, dando em garantia em favor do banco mutuante – Banco 2..., S. A. - os mesmos imóveis, obtiveram, ainda, um outro empréstimo no montante de 8.410.000$00 escudos, para obras de beneficiação dos imóveis (fls. 235 a 238 e de 321 a 326)
25.º O empréstimo bancário em 2000 foi, assim, no valor global de 20.000.000$00 escudos, equivalente a € 99.759,58, sendo parte da quantia financiada destinada a obras de remodelação dos imóveis em discussão. (fls. 235 a 238 e de fls. 321 a 326)
26º. Em data não concretamente apurada, situada no entre finais do ano de 2012 e inícios do ano de 2013 os réus separaram-se de facto, mantendo, no entanto, contacto regulares entre ambos;
27º. Em data não concretamente apurada, após a separação de facto, o réu teve uma relação com uma cidadã estrangeira, italiana, residente em Itália, e que durou aproximadamente 4 anos;
28.º Até à aludida separação, em meados de 2012, os pagamentos das prestações eram assegurados pelo réu, enquanto que a ré e também o réu procediam a outros pagamentos da vida dos mesmos em economia comum.
29º. Após a separação as prestações continuaram a ser pagas tendo a ré liquidado pelo menos as prestações de Janeiro a Abril de 2021;
30.º O 1.º Réu, apesar de se ter divorciado da 2.ª Ré em 23.07.2018 e de formalmente não ser proprietário de nenhuma das frações, continuou a ser responsável pelo pagamento do financiamento contraído em 05.07.2000 para aquisição das mesmas, no montante de Esc: 20.000.000$00, do contravalor em euros de € 99.759,58. O crédito à habitação, ao qual foi atribuído o n.º ..., era pago em prestações mensais de sucessivas por débito na conta à ordem titulada unicamente pelo réu no Banco 2... S. A com o n.º ... (informação do Banco 2... S. A. de fls. 335 do anexo documental, vol. II; resulta da certidão predial de fls. 229-229 verso que o crédito foi concedido aos dois réus)
31.º Depois da separação de facto a ré ficou a habitar e a usufruir das frações, em exclusivo;
32.º A ré não teve conhecimento do desfecho da ação judicial de 2009 identificada pela autora;
33.º As frações P-2 e X-4, à data de 2023, têm um valor de mercado não inferior a € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros); em 2017 tinham um valor de mercado não inferior a € 222.452,00 (duzentos e vinte e dois mil, quatrocentos e cinquenta e dois euros) e em 2014 de € 213.378,00 (duzentos e treze mil, trezentos e setenta e oito euros), seguindo os fatores de atualização indicados pelo INE;
34.º O valor patrimonial dos imóveis era, em 2021, de € 69.781,25, em relação à fração P-2 e de € 3.968,65, sendo que a anterior avaliação tinha ocorrido em Agosto de 2012 (certidões matriciais de fls. 155 verso a 158)
35.º O 1.º Réu tem formação académica em Direito e em Administração de Empresas, tem experiência profissional na banca, e em corretoras e consultoras de investimento (Currículo do 1.º Réu de fls. 192 verso, disponível em:...).
36.º O 1º réu é presidente da “ATM – Associação de Investidores e Analistas Técnicos do Mercado de Capitais”, associação que tem por objeto a proteção dos interesses dos investidores e analistas técnicos do mercado de capitais (fls. 193),
37.º Ocupou cargos em entidades internacionais relacionadas com os mercados financeiros, designadamente na “P...” (fls. 193 verso).
38.º Tem obra publicada sobre investimentos em mercados de capitais (fls. 194)
39.º Em 2015 doutorou-se em Economia e Gestão, apresentando uma tese intitulada “...?” (tese disponível em ...).
40.º Apesar disso não é titular de outros bens ou rendimentos penhoráveis para além dos identificados no auto de penhora;
41.º Os €25.000,00 declarados na escritura não correspondem a qualquer dívida do 1.º Réu perante a 2.ª Ré;
42.º O propósito da dação em pagamento foi o de garantir que a ré ficasse com a propriedade plena sobre as duas frações e não a de proceder a um pagamento do 1º réu à 2ª ré;.
43.º Após a escritura de dação o réu transferiu ainda outros bens/direitos, que lhe permitiram auferir rendimentos significativos, para o nome de terceiros, nomeadamente, segundo os documentos juntos pelo próprio réu de fls. 329-334 - registos junto do INPI –dos quais constam que o 1º Réu AA está identificado como inventor de uma patente, tendo a mesma sido inicialmente registada em seu nome, em 12.01.2014, bem como em nome de II e HH, patente aprovada em 26.06.2018.
44º. O 1º réu detinha 1/3 dessa patente, mas já não detém, tendo-a transmitido em 25-07-2018;
45.º O 1º réu foi trabalhador bancário para o Banco 2... S. A., relação laboral que cessou tendo o 1º réu instaurado contra o Banco uma ação judicial que correu seus termos sob o n.º 957/13.1TTPRT, da então Instância Central, 1ª Secção Trabalho, J2 (fls. 266 a 268);
46.º Nesse processo as partes transigiram sobre o objeto do processo, mediante o qual o Banco 2... S. A. obrigou-se a pagar ao aí autor, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 70.000,00. A transação foi homologada por sentença proferida no dia 14-12-2015 (fls. 266 a 268);
47.º O remanescente do valor do crédito à habitação foi liquidado pela ré, estando em dívida, à data de Maio de 2021, o valor de € 33.639,18 que foi pago por cheque bancário com o n.º ... emitido da conta n.º ... do Banco 2..., conta titulada pela ré (fls. 328, 337, 366-367 do anexo documental, vol II);
48.º À data de 8-2-2014 o crédito referido no ponto anterior apresentava um saldo devedor de € 59.966,30 e em 15-05-2017, um saldo devedor de € 48.185,58 (fls. 373 verso e fls. 380 do anexo documental, vol. II)
E foram julgados não provados, os seguintes Factos:
(da Petição Inicial)
38.º Não provado que a ré tivesse conhecimento do valor real dos imóveis.
47.º Esta transmissão, nitidamente simulada, configurou um claro e evidente esquema do 1.º Réu, em conjunto com a então sua mulher, aqui 2.ª Ré, para esvaziar o seu património pessoal e para, dessa forma, impedir que o Autor, credor do 1.º Réu, satisfizesse o seu crédito.
49º: não provado que a segunda ré ao declarar o valor de 25.000.00€ tivesse atuado com o propósito de:
(i) atribuir caráter aparentemente oneroso ao negócio com o propósito de dificultar a impugnação da transmissão;
(ii) atribuir uma aparência de negócio legítimo através da indicação de um valor próximo de metade do valor patrimonial dos imóveis dados em dação que no global ascende a €73.749,90;
(iii) evitar que o suposto empréstimo pudesse ser declarado nulo por inobservância da forma legal nos termos do artigo 220.º do CC;
(iv) indicar um montante com o menor impacto fiscal possível em sede de mais valias imobiliárias, IMT e de IS;
(v) indicar um montante que se aproximasse de metade do valor patrimonial desses imóveis de modo a evitar qualquer alerta junto da Autoridade Tributária quanto ao negócio celebrado e aos reais valores nele envolvidos.
51º. A ré à data da escritura de dação em cumprimento conhecia o crédito que a Autora reclamava sobre o seu então marido.
70.º É, pois, incontestável que à data da celebração da escritura de dação em cumprimento - 15.05.2017 - a 2.ª Ré, ainda casada com o 1.º Réu, conhecia o litígio que existia entre aquele e o Banco 1... e a sentença condenatória proferida em 09.05.2016.
71.º Como também sabia que o 1.º Réu, para além do bem que lhe estava a transmitir, não tinha em seu nome quaisquer outros bens imóveis ou móveis suscetíveis de responderem pelas dívidas que o 1.º Réu detinha perante terceiros.
72.º Pelo que, quando celebrou a escritura de dação em cumprimento, também por esse motivo, tinha plena consciência de que estava a celebrar um negócio destinado à dissipação de património da esfera jurídica do 1.º Réu, i.e.,
73.º estava consciente que, celebrando aquele negócio, estava a prejudicar gravemente os credores do ora 1.º Réu, em particular o Autor, impedindo-o de cobrar o crédito que detém sobre o 1.º Réu através da penhora e venda da metade indivisa dos imóveis objeto da presente ação,
74.º ao mesmo tempo que defendia o seu próprio património, já que, a execução da metade indivisa da propriedade do 1.º Réu, direta ou indiretamente, teria impacto sobre a metade indivisa de que é proprietária.
(da Contestação)
12.º Não provado que a partir da separação tenha sido apenas a ré a pagar as prestações até ao pagamento final, feito pela ré em Maio de 2021, com exceção dos meses de Janeiro a Abril de 2021;
14. Mas já em Janeiro de 2014, em data que não se consegue de momento precisar, mas que é precisa, os réus acordaram, com perfeição, fazer a dita dação em pagamento atento às circunstâncias da sua vida pessoal, nomeadamente à dívida do réu 1 à ré 2 e o destino a dar à casa de família, detida em regime de compropriedade entre os dois, tal como aconselhados, na altura, pelos advogados de cada um dos réus.
15. Na realidade, os réus tinham acordado o animus de tal negócio de dação em pagamento, por telefone, ainda que o possam ter feito sem as vestes jurídicas rigorosas com as quais celebram o contrato em Janeiro de 2014 e depois, ainda que eventualmente com algumas, mas ligeiras, modificações, o registaram em 15.05.2017
16. Tal dação em cumprimento só não foi imediatamente registada, por inércia de ambos e pelo momento, difícil, e que implica outras reorganizações pessoais, que ambos passavam, incluindo o facto do réu 1 passar bastante tempo fora de Portugal.
17. Mas tal vontade estava já perfeitamente sedimentada e inclusivamente perfeitamente acordada entre as partes
23. A ré 2 fez vários empréstimos ao réu 1, sendo que os movimentos na conta ..., titulada pelos réus, mas única e exclusivamente utilizada pelo réu 1, entre a sua abertura e finais de 2012 o demonstram, por refletirem transferências provenientes de contas tituladas pela ré.
24. Assim como várias outras transferências da ré 2 para o réu 1, entre a conta titulada pela ré 2 junto do antigo Banco 3... (atual Banco 4...) e a conta pessoal do réu 1 junto do Banco 2..., sucursal Banco 5... situado em ..., cujo número não é possível indicar mas que certamente é possível ao banco identificar.
25. Assim como a ré 2 emprestou €6.250, em 2006, ao réu 1, para a constituição e entrada de sócio num clube de investidores, mas cujos movimentos financeiros, face ao tempo recorrido, não é possível reconstituir, sendo que a própria ré 2 e alguns seus familiares, também fizeram entradas de dinheiro para esse mesmo clube de investidores, detendo, a família da ré 2, aproximadamente 50% do ownership do fundo comum do clube, entretanto extinto;
26. Todos esses empréstimos perfazem o montante global de €25.000, que na realidade, sabem os réus, mas não o conseguem, face ao tempo recorrido, lembrar na perfeição e muito menos comprovar, ser muito superior a esse montante.
27. A ré 2 é, de facto, detentora de vários bens imóveis de elevado valor, na ordem de milhões de euros, mas que resulta de heranças do seu falecido pai, assim como será herdeira, esperando que ainda falte para isso muitos anos, de uma fortuna muitíssimo considerável proveniente da sua ainda viva e amada mãe, pelo que não precisaria de dar estribo a uma qualquer simulação como a que alude autora, para ficar com a casa onde desde pelo menos 2001 habita como sua casa própria e permanentemente, podendo, se fosse caso disso, pagar o que tivesse de pagar ao réu 1, para ficar com a totalidade da mesma;
73.ª Como se não bastasse, a ré 2 achava que o réu tinha ativos, ainda que eventualmente não disponíveis no momento, porquanto a mesma lhe tinha feitos vários empréstimos em dinheiro, aos quais se somaram montantes doados pelos pais do réu 1 e empréstimos feitos pela irmã do réu 1, e que o réu 1 necessitava para financiar a dita ação judicial – bastante dispendiosa - na altura ainda a correr termos, – pelo menos foi essa informação, ainda que sumariamente, que foi partilhada entre os réus.
112.ª Mas o negócio, entre os réus, já advinha, pelo menos desde Janeiro de 2014 altura em que o acordaram na perfeição por intermédio de documento particular, embora apenas o tenham registado em 15.05.2017 pelas razões já supra referidas.
139.ª Para além disso, os referidos imóveis necessitavam de obras, tanto exteriores, como interiores, as quais eram dispendiosas e vieram a realizar-se a expensas da ré 2 e sem contribuição do réu 1.

IV-MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO:
Decorre do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que "A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa" (sublinhado nosso).
A “Exposição de Motivos” que acompanhou a Proposta de Lei nº 113/XII salientou o intuito do legislador de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada ao referir que “para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar insuficiente, obscura ou contraditória – são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede á reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material”.
Porém, a possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta pois tal só é admissível quando os meios de prova reanalisados não deixem outra alternativa, ou seja, em situações que, manifestamente, apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo, melhor dizendo, “imponham decisão diversa”.
O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos consagrados pelo n.º 5 do art.º 607.º do CP Civil, sem olvidar porém, o princípio da oralidade e da imediação.
Com efeito, há que ponderar que o tribunal de recurso não possui uma perceção tão próxima como a do tribunal de 1ª instância ao nível da oralidade e sobretudo da imediação com a prova produzida na audiência de julgamento. Na verdade, a atividade do julgador na valoração da prova pessoal deve atender a vários fatores, alguns dos quais – como a espontaneidade, a seriedade, as hesitações, a postura, a atitude, o à-vontade, a linguagem gestual dos depoentes – não são facilmente ou de todo apreensíveis pelo tribunal de recurso, mormente quando este está limitado a gravações meramente sonoras relativamente aos depoimentos prestados.
Dito isto, e tendo presente estes elementos, cumpre conhecer, em termos autónomos e numa perspetiva crítica, à luz das regras da experiência e da lógica, da factualidade impugnada e, em particular, se a convicção firmada no tribunal recorrido merece ser por nós secundada por se mostrar conforme às ditas regras de avaliação crítica da prova, caso em que improcede a impugnação deduzida pelo apelante, ou não o merece, caso em que, ao abrigo dos poderes que lhe estão cometidos ao nível da reapreciação da decisão de facto e enquanto tribunal de instância, se impõe que este tribunal introduza as alterações que julgue devidas a tal factualidade, sendo certo que, na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
Dentro destes parâmetros, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição[1], está em posição de proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo recorrente, pelo que neste âmbito a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de primeira Instância, apenas cedendo nos fatores da imediação e da oralidade.
No sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”[2].
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPC).
Haverá ainda que ter presente que não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma certeza absoluta raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança.
Como refere Manuel de Andrade,[3] a prova não é certeza lógica, mas tão só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida”.
Por último, haverá ainda que atender na tarefa de reapreciação da prova produzida que, a apreciação da modificabilidade da decisão de facto é atividade reservada a matéria relevante à solução do caso, devendo a Relação abster-se de conhecer da impugnação cujo objeto incida sobre factualidade que extravase o objeto do processo – sendo propósito precípuo da impugnação da decisão de facto, o de possibilitar à parte vencida a obtenção de decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido quanto à interferência na solução do caso, ou seja, fica a impugnação limitada àquela cuja alteração/modificação se mostre relevante para a decisão a proferir.
Assim sendo, sob pena de estar a levar a cabo atividade inútil, infrutífera, vã e estéril, deve a Relação abster-se de apreciar da impugnação da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto relativamente a factualidade que não interfere de modo algum na solução do caso, sendo alheia à sorte da ação.[4]
É que a reapreciação da matéria de facto apenas se justifica quando, se for alterada, essa alteração tiver incidência na questão de direito; se assim não suceder, não tem o Tribunal da Relação de proceder à análise do material probatório tendo em vista saber se a prova produzida justifica ou não justifica que determinado quesito seja dado como provado integralmente
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe inútil.
À luz destas considerações e princípios, cumpre reanalisar a decisão proferida sobre os pontos da matéria de facto que se mostram impugnados pelos Réus.
Compulsado o Recurso interposto, pode-se concluir que, como resulta do corpo das alegações e das respetivas conclusões, os réus impugnaram a decisão da matéria de facto, tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPC, pois que, fazem referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, e a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida.
Considerando-se cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objeto de recurso nesse segmento, importa verificar, pois, se se pode dar razão aos recorrentes, quanto aos questionados pontos da matéria de facto.
Com o presente recurso, pretendem aqueles alterar a matéria de facto provada, nos pontos 33, 41 e 42 e dos factos não provados dos pontos 12, 14, 23 e 26 e ainda ver aditado um facto (44).
O Facto 33 dos factos provados tem a seguinte redação:
33.º As frações P-2 e X-4, à data de 2023, têm um valor de mercado não inferior a € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros); em 2017 tinham um valor de mercado não inferior a € 222.452,00 (duzentos e vinte e dois mil, quatrocentos e cinquenta e dois euros) e em 2014 de € 213.378,00 (duzentos e treze mil, trezentos e setenta e oito euros), seguindo os fatores de atualização indicados pelo INE;
Os réus contestam a avaliação das frações P-2 e X-4, argumentando que o uso do IPC como deflator para estimar o valor dos imóveis é inadequado. Eles apresentam uma análise comparativa detalhada, utilizando dados tanto do momento da compra dos imóveis em 2000 como dos valores de mercado estimados em anos subsequentes, para demonstrar inconsistências na aplicação do IPC. Argumentam, aderindo às conclusões do perito nomeado pelos réus que, com base nos preços reais e na evolução do mercado imobiliário, os valores de mercado em 2017 e 2014 deveriam ser substancialmente menores do que os afirmados, sugerindo valores de €144.128,00 em 2017 e €120.552 em 2014, baseados nos dados do “A...” ou então, ainda menores, de €80.321.611 em 2017, utilizando exatamente o mesmo IPC, mas em vez de ser como deflator do preço apurado em 2023 para estimar o de 2017, a ser como inflator (facto de inflação) do preço real da compra em 2020 para estimar o preço de 2017.
Consideram, portanto, o facto de os imóveis terem sido avaliados em €222.452 em 2017 e €213.378 em 2014 como incorretamente julgado e entendem que tal facto deveria ser provado no seguinte sentido: As frações P-2 e X-4, à data de 2023, têm um valor de mercado não inferior a € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros); em 2017 tinham um valor de mercado estimado de €144.128,00 e em 2014 de €120.552, seguindo os preços publicados pelo A....
Vejamos.
Estando em causa a atribuição de um valor aos imóveis objeto do negócio impugnado, o tribunal determinou a realização de prova pericial, por avaliação, a qual mostra-se realizada mediante perícia colegial.
Na sentença o tribunal a quo fundamentou os valores, ora impugnados pelos Recorrentes, com a seguinte fundamentação: “A prova que foi valorada foi o relatório de peritagem, tendo o tribunal considerado mais credível a posição defendida pela maioria dos Sr.s Peritos – perito do tribunal e perito da autora.
A maioria dos peritos, apesar das dificuldades manifestadas, seguiram os critérios do INE e não de uma plataforma privada a “A...”, que não tem o carácter uniforme e o escrutínio que os critérios do INE fornecem, sendo, nessa medida, mais isentos e mais próximos da realidade. Por outro lado, os critérios do INE indicam valores entre os anos de 2023, 2017 e 2014, mais proporcionais entre si, enquanto os valores para os imóveis indicados pela outra plataforma apontam para valores nos anos de 2017 e 2014 com reduções que chegam a quase 50%, quando comparados o valor de 2023, valores que não se entendem quando, segundo a própria perícia, a crise no sector imobiliário já estava em recuperação e não decréscimo.”
Não tendo havido unanimidade na resposta dos peritos relativamente à á questão que lhes foi colocada, o Tribunal aderiu aos valores indicados pela maioria dos peritos, justificando, de forma fundamentada essa opção.
Dispõe o art.º 388.º do CCiv. que a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial.
Diz ainda a lei que a força probatória das respostas deles é fixada livremente pelo tribunal (artigos 389º do CC e 489º do CPC).
Se a vocação da prova pericial é, precisamente, a de apreciar a tecnicidade alheia ao conhecimento do julgador, é natural que presuntivamente, e salvo algum indício concludente que o faça preterir, seja o juízo pericial o acolhido; exigindo-se, assim, para aquela preterição, ao menos, um outro ou semelhante parecer que, no universo da técnica em questão, induza a resultados ou conclusões diversos, de igual maneira, sustentados em argumentos ou razões lógicas e aceitáveis[5].
Assim sendo, não tendo sido violada qualquer norma de direito probatório e inserindo-se a resposta dada ao facto, com base no relatório pericial – laudo maioritário, e nos poderes de livre apreciação da prova do tribunal recorrido, indefere-se o requerido.
Passemos reanálise da aprova produzida relativamente aos factos 41 e 42, dos factos provados, cuja apreciação implica a análise da questão do ónus da prova suscitado pelos apelantes.
O facto 41 tem o seguinte teor:
41.º Os €25.000,00 declarados na escritura não correspondem a qualquer dívida do 1.º Réu perante a 2.ª Ré;
E o facto 42:
42.º O propósito da dação em pagamento foi o de garantir que a ré ficasse com a propriedade plena sobre as duas frações e não a de proceder a um pagamento do 1º réu à 2ª ré;.
Será feita uma apreciação conjunta desta factualidade, porque ambos os factos estão relacionados entre si, já que o primeiro diz respeito ao negócio jurídico que serviu de justificação para a realização da dação em pagamento dos imóveis a favor da ré, impugnados nesta ação pela autora, quer pela via da invocação da simulação, quer da impugnação pauliana.
Com efeito, na escritura pública de dação em cumprimento, celebrada em 15.5.2017, ficou a constar que o Réu aí declarou o seguinte:
“Que é devedor à segunda outorgante, no montante de vinte e cinco mil euros, proveniente de diversos empréstimos que a segunda outorgante lhe efetuou por diversas vezes, há cerca de quatro anos, quantia de que se confessa devedor.”
Esta declaração consta de documento autêntico, o qual, nos termos do disposto no art. 371º nº 1 do C.Civil, faz prova plena quanto à declaração negocial documentada, mas não quanto à conformidade da declaração com a vontade real, não fazendo prova da sinceridade das afirmações prestadas perante o notário.
Invocada a simulação do negócio, o ónus da prova da simulação compete a quem a invoca, enquanto facto constitutivo do direito de que se arroga – artigo 342º, n.º 1 do C. Civil – o direito do terceiro em ver declarada a nulidade do negócio por simulação.
A prova dos requisitos da simulação - a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório (pactum simulationis) e o intuito de enganar terceiros - pode ser feita por qualquer dos meios normalmente admitidos na lei: confissão, documentos, testemunhas, presunções.
Acontece que, tal como é reconhecido, a demonstração da simulação é quase uma “probatio diabolica”, nomeadamente para os terceiros lesados, ou enganados.
É muito rara e difícil a existência de prova direta da simulação.
Como refere o Prof. Manuel de Andrade,[6] “os simuladores em geral procuram as trevas, fogem de testemunhas. Por outro lado, está pouco divulgada entre nós a prática das contra-declarações. Em regra, portanto, não há prova direta da simulação. A prova tem de ser feita, quase sempre, por meio de indícios ou presunções”.
Sendo rara a prova direta da simulação, deverá admitir-se uma prova ampla a fim de obter indícios que, segundo o que ensina a experiência comum, só se verificam na prática de atos simulados.
Seguindo os ensinamentos de Luís Filipe Pires de Sousa,[7] “Na prova direta, o procedimento probatório consiste na contrastação empírica direta do enunciado fáctico que se prova. Diversamente, na prova indireta o procedimento probatório permite alcançar o facto que se prova a partir de outro ou outros factos mediante um processo inferencial.”
“A prova por presunção constitui forma incontornável de alcançar a prova de factos psíquicos, razão suficiente para a sua enorme relevância.”[8]
As presunções estão por sua vez consagradas no art. 349º do C.C, nos termos do qual, “presunções são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”.
De forma bastante explicita, no Acórdão do STJ de 19.01.2017[9], pode ler-se, a propósito da prova da simulação: “aqueles que efetuam contratos simulados ocultam os seus propósitos e intenções, não manifestando publicamente a sua vontade de simular, antes se esforçando em tornar verosímil o que há de aparente e fictício no ato que praticam” (...) “há quase sempre que recorrer para a demonstrar a um conjunto de factos conhecidos, tais como as condições pessoais ou patrimoniais dos outorgantes, as relações em que eles se encontram entre si, os factos que precedem a realização do ato jurídico, as circunstâncias em que foi celebrado, o seu próprio conteúdo e finalmente os factos posteriores à celebração, mas com eles relacionados. Destes factos, que se conhecem, se deduzirá a simulação que se pretende demonstrar. Dentre esses factos constituirão indícios aproveitáveis aqueles que, segundo o que ensina a experiência comum, segundo o que normalmente acontece na vida, em regra só se verificam, quando se praticam atos simulados”.
Quer na simulação, quer na impugnação pauliana, impõe-se a indagação de condutas humanas em que a motivação tem um papel essencial como elemento propulsor. O simulador atua de forma planeada com o intuito de se esquivar a um determinado efeito jurídico ou adverso aos seus propósitos. O motivo ou interesse que determinam a atuação do simulador constitui a causa simulandi (…). A causa simulandi constitui um indício tipicamente axial, no sentido que presença da mesma, só por si, não permite construir definitivamente a presunção, mas constitui um catalisador heurístico que pode resultar da prova de outros indícios da síndrome simulatória. Ou seja, perante o apuramento de uma concreta causa simulandi, ficará facilitada a prova da simulação porquanto a causa simulandi operará como fio condutor na averiguação e interpretação dos demais factos sob julgamento.”[10]
Se o simulador alega a existência de uma motivação atendível, para a celebração do negócio, esta não deve ser admitida como válida sem que venha acompanhada da sua oportuna demonstração.
No caso em apreço, tendo os réus invocado como causa do negócio de dação em pagamento, a existência de vários empréstimos feitos pela ré, no valor de e 25.000,00 euros, impõe-se-lhes, por esta via, a demonstração da sua existência, sob pena de se concluir que, faltaram à verdade e assim a causa do negócio entronca numa causa simulandi.
Desta forma, a demonstração dos empréstimos, é-lhes exigível, apesar do ónus da prova da simulação ser da autora, para afastar a prova da existência duma concreta causa simulandi.
Á luz desta explicação, vejamos agora se procede a impugnação dos Apelantes.
Na impugnação feita, há ainda que ter em consideração que, com base na mesma fundamentação, pretendem os Apelantes que fiquem demonstrados aqueles empréstimos, impugnando os factos 23 e 26 dos factos não provados, que pretendem ver integrados no elenco dos factos provados.
Aquele factos têm a seguinte redação:
23. A ré 2 fez vários empréstimos ao réu 1, sendo que os movimentos na conta ..., titulada pelos réus, mas única e exclusivamente utilizada pelo réu 1, entre a sua abertura e finais de 2012 o demonstram, por refletirem transferências provenientes de contas tituladas pela ré.
26. Todos esses empréstimos perfazem o montante global de €25.000, que na realidade, sabem os réus, mas não o conseguem, face ao tempo recorrido, lembrar na perfeição e muito menos comprovar, ser muito superior a esse montante.
Diz o Tribunal, na análise crítica da prova a que procedeu, na fundamentação da matéria de facto feita na sentença:
“Nenhuma prova foi produzida pelos réus que minimamente evidenciasse a existência de empréstimos entre o casal.
Os próprios réus nos seus depoimentos não souberam situar quando ocorreram, quais os valores, finalidades, prazos de pagamento. Nada.
Os diversos documentos bancários, nomeadamente os que foram juntos pelo Banco 2... S. A, em 21-11-2022, não provam qualquer empréstimo da ré para o réu. Os extratos bancários de fls. 369 a 377, relativos a movimentos de uma conta do réu, não comprovam também a existência de quaisquer empréstimos, quando, de que valores, para que finalidades.
Na escritura de maio de 2017 afirmam que terão ocorrido empréstimos nos 4 anos anteriores à escritura. Ora, nos 4 anos anteriores os réus já estavam separados de facto e a ré foi perentória em referir que depois da separação de facto nada emprestou ao réu.
Por outro lado, no alegado contrato promessa de 2014 junto pelos réus a fls. 53, já se mencionava o valor de 25.000,00€, o que não é coerente com o que é afirmado na escritura de dação em pagamento.
A ré, quando questionada sobre a razão da indicação dos 25.000,00€ referiu que aceitava qualquer valor, valor indicado pelo réu, mas que não era relevante o valor. O que a mesma queria com a dação era um documento que lhe permitisse ficar com a casa para si, queria ficar com a casa “livre”, sem ónus, admitindo, dessa forma, que não estava em causa qualquer dação, mas um documento de transferência do direito de propriedade do réu para si.
Também admitiu que não estava à espera de receber qualquer quantia das que entregava ao réu (apesar de não as identificar).
Referiu por várias vezes que a escritura foi o meio que encontraram para que o imóvel ficasse para si, como sua habitação.
O réu por sua vez também não conseguiu situar no tempo os alegados empréstimos, como foram feitos, alegando que por acordo chegaram a esse valor, depoimento sem qualquer consistência ou credibilidade sobre a alegada existência afirmada pelo réu de empréstimos.”
A Autora, na p.i alegou que a dação em pagamento celebrada entre os réus, por escritura pública em 15.5.2017 configura uma transmissão, nitidamente simulada, da sua meação nas frações autónomas supra identificadas e configurou um claro e evidente esquema do 1.º Réu, em conjunto com a então sua mulher, aqui 2.ª Ré, para esvaziar o seu património pessoal e para, dessa forma, impedir que o Autor, credor do 1.º Réu, satisfizesse o seu crédito.
E após referir ser suspeito e inusitado que marido e mulher façam operações de dação em cumprimento, tanto mais quando essas operações são realizadas por valores absolutamente irrisórios face ao real valor desses bens, acrescenta que “os €25.000,00 declarados não correspondem a qualquer dívida do 1.º Réu perante a 2.ª Ré, mas tiveram sim o propósito de:
(i) atribuir caráter aparentemente oneroso ao negócio com o propósito de dificultar a impugnação da transmissão;
(ii) atribuir uma aparência de negócio legítimo através da indicação de um valor próximo de metade do valor patrimonial dos imóveis dados em dação que no global ascende a €73.749,90 – Cfr. cadernetas prediais juntas sob Documentos n.ºs 10 e 11;
(iii) evitar que o suposto empréstimo pudesse ser declarado nulo por inobservância da forma legal nos termos do artigo 220.º do CC;
(iv) indicar um montante com o menor impacto fiscal possível em sede de mais valias imobiliárias, IMT e de IS;
(v) indicar um montante que se aproximasse de metade do valor patrimonial desses imóveis de modo a evitar qualquer alerta junto da Autoridade Tributária quanto ao negócio celebrado e aos reais valores nele envolvidos.
Os réus por sua vez, lograram demonstrar que apesar de casados, na data daquele negócio estavam separados de facto, separação essa desde o início do ano de 2013, tendo cessado a vida em comum e o réu iniciado um novo relacionamento que durou cerca de 4 anos com outra pessoa, com quem passou a viver, justificando não terem ainda naquela altura formalizado o divórcio (só consumado em 23.7.2018) porque, não tinham filhos e eram casados sob o regime da separação de bens, apenas tendo dois bens em comum (sob o regime da compropriedade, as duas frações autónomas aqui em discussão, - o apartamento e garagem - tendo ambos afirmado, nas declarações de parte que prestaram que desde o início tinham acordado entre si, que aquelas frações ficariam para a ré mulher.
Foi a ré mulher quem, após a separação continuou a habitar naquele imóvel, que até aí constituía a casa de morada de família e foi ela quem, em 7.5.2021 procedeu á liquidação do remanescente do valor do crédito à habitação foi liquidado pela ré, estando em dívida, naquela data o valor de € 33.639,18 que foi pago por cheque bancário com o n.º ... emitido da conta n.º ... do Banco 2..., conta titulada pela ré
É neste contexto que temos de apurar se os Réus lograram demonstrar ter a ré feito, durante o casamento, empréstimos ao réu que totalizaram a quantia de 25.000,00 euros.
A convicção do julgador sobre a realidade dos factos alegados fundamenta-se na avaliação global dos meios de prova produzidos, na qual recorre a diversos critérios entre os quais a razão de ciência de cada testemunha, as relações familiares, de amizade e de inimizade, a serenidade, coerência, segurança e verosimilhança do depoimento.
Uma vez que cuidamos de apreender a motivação dos réus para a celebração do negócio impugnado, concretamente a intenção que precedeu a sua celebração, as declarações de parte, revelam-se um meio probatório relevante para serem aferidas, no contexto das demais circunstancias apuradas.
No que concerne especificamente as declarações de parte como meio de prova, Lebre de Freitas[11] esclarece que “A apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas”.
A posição reiterada da jurisprudência e doutrina sobre este meio de prova considera, nas palavras consignadas no Acórdão da Relação de Lisboa, de 14/01/2021 [12] que “(…) o juiz apreciará esse meio de prova de acordo com a sua livre convicção, à luz da experiência normal das coisas e da conjugação com outros meios de prova que existam, de tudo devendo fazer uma análise crítica, que deverá verter na fundamentação da decisão de facto (art.º 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC).
Ora, das declarações prestadas pelos Réus em julgamento, não se oferecem dúvidas quanto à existência de um acordo entre ambos, no sentido de que a casa de morada do casal ficaria para a 2ª ré, que nela continuou a habitar.
Com efeito, a Ré referiu que a mãe reside ali próximo e sempre foi sua vontade ficar com a casa, tendo passado a pagar as amortizações do empréstimo que ambos tinham feito ao banco, tendo ainda pago obras de remodelação (interiores e exteriores do prédio), sendo que o 1º réu afirmou nenhum interesse ter na casa desde que lá deixou de viver.
Provou-se que os imóveis em causa foram adquiridos pelos réus com recurso a um financiamento por intermédio de um contrato de mútuo com hipoteca outorgado pelos dois, por escritura pública denominada de compra e venda e mútuo com hipoteca, outorgada no dia 05.07.2000, pelo montante de €99.759,58. 24.º As duas frações – P-2 e X-2 –foram adquiridas pelos réus no estado de solteiros, pelo valor global de 11.590.000$00 escudos e nessa data os Réus, dando em garantia em favor do banco mutuante – Banco 2..., S. A. - os mesmos imóveis, obtiveram, ainda, um outro empréstimo no montante de 8.410.000$00 escudos, para obras de beneficiação dos imóveis (fls. 235 a 238 e de 321 a 326).
Os réus eram assim comproprietários, na proporção de 1/2 cada um, situação que, com a separação do casal e a falta de interesse do réu em permanecer proprietário, justifica a existência de um acordo para a divisão daquele bem comum, já que, como é sabido, de acordo com o ar. 1412º do Código Civil, nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa.
Sendo pois natural que após a separação de facto, o ex-casal procedesse à divisão dos imóveis entre si, até porque a Ré mulher nele permaneceu a viver e a custear os encargos bancários com o empréstimo e outros, a escritura de dação em pagamento, que teve como consequência ter passado a ré mulher a ter a propriedade plena dos identificados imóveis, ocorre apenas em 15.5.2017, numa altura em que o casal ainda se não tinha divorciado e quando o Réu havia sido condenado, no âmbito dum processo judicial por si instaurado, mas em que foi deduzida reconvenção (se bem que ainda apenas em primeira instância, existindo possibilidade de discussão nos tribunais superiores através de recurso), no âmbito do pedido reconvencional deduzido pelo Autor Banco 1... (Portugal), a pagar ao Banco 1... (Portugal) o montante de € 36.900,27, acrescido de juros de mora, e condena ainda o ora réu como litigante de má-fé no pagamento de uma indemnização, que, por decisão judicial proferida no dia 07.06.2016, foi fixada em €65.438,55.
Neste contexto, em que surge a dação em pagamento coloca-se a questão se a causa invocada na escritura notarial, a existência de um empréstimo no valor de €25.000 é real, ou serviu apenas para camuflar a retirada do património da sua meação nos aludidos imóveis, aproveitando os réus para dividir os bens entre si.
Nos termos do disposto no artigo 1142.º do C.Civil, mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
Não obstante, no âmbito duma economia comum entre o casal (mesmo casados sob o regime de separação de bens), não ser usual a existência de empréstimos, tal constatação por si só não seria suficiente para a afastar a possibilidade do declarado empréstimo de quantias a totalizarem o valor de € 25.000,00 ter ocorrido no âmbito do casamento.
Para além do mais o réu marido tem o perfil de investidor, como resulta da matéria de facto provada, mostrando-se pois reforçada essa possibilidade de empréstimo de quantias por um dos cônjuges, para serem investidas pelo outro, dotado de conhecimentos técnicos e experiência para o efeito, mas seria necessário convencer o tribunal que tivesse ficado acordada a restituição desses valores, (quer no sucesso do investimento, quer no seu insucesso) e isso, a nosso ver não sucedeu.
Com efeito, ouvidos os depoimentos prestados pelos Réus, é notória a perturbação da ré, com a existência desta ação, e com as consequências nefastas que para ela podem advir, com a sua procedência, já que, tal como a mesma referiu, está convencida que a casa onde habita só a si pertence, por ter procedido ao pagamentos das mensalidades ao banco e o valor remanescente, por ter custeado as obras, e por ter confiado sempre no ex-marido, dizendo-se em “choque” com a situação.
Porém, sendo ela alegadamente a credora dos valores mutuados, e mesmo tendo em consideração o tempo decorrido, e o facto de não se mostrar entendida em questões jurídicas e financeiras, o certo é que o seu depoimento foi, mesmo nestas circunstâncias, demasiado vago, não logrando identificar quantias concretas que tenha emprestado ao seu então marido, nem situando temporalmente tais entregas em dinheiro, não sendo assertiva quanto á obrigação da restituição das mesmas (“se lhe pedisse”) apenas afirmando que estavam de acordo com o valor de €25.000,00 declarado na escritura.
E na verdade, tendo o casal se separado no início de 2013, tendo ademais o réu iniciado uma vivência conjunta com outra pessoa, assumindo um novo relacionamento conjugal, a terem existido empréstimos desse valor, seria natural a ré, ter tido o cuidado de apurar ao certo o valor em dívida e pedir a sua restituição, o que não ocorreu, o que seria um comportamento cauteloso, por muita confiança que existisse entre os dois, tendo em consideração que a ré sabia que o cônjuge era um investidor em bolsa, não podendo desconhecer os riscos de tal atividade.
Por outro lado, dizendo o réu que as quantias foram emprestadas para serem usadas em investimentos, no âmbito dum casamento, de vivência em economia comum, coloca-se a questão de saber se os investimentos eram para ser efetivamente devolvidos, ou para, consoante a sorte daqueles, serem utilizados para custear a vida em comum, que mantinham desde que casaram em 2001.
Daí que entendamos que, mesmo comprovada documentalmente (documento junto em 23.1.2023 – extrato bancário nº 2012/001 – 2º via - uma transferência de €10.000,00 da 2ª ré para o reu em 30.12.2011, na conta daquele do Banco 6... e que aquele usou em investimentos em bolsa, não se pode dizer que os réus tenham convencido o tribunal da existência dos aludidos empréstimos.
Como dissemos, as declarações de parte constituem um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, e a sua eficácia probatória depende, normalmente, da conjugação com outros meios de prova e com as regras da experiência à luz da matéria factual em discussão e da forma como são prestadas.
Entendemos pelo exposto, ser de acompanhar o juízo decisório exposto na sentença.
Daí que seja nosso entendimento, em face do exposto, que não existe erro de julgamento na prova destes dois factos 41 e 42 e na resposta negativa aos factos 23 e 26, sendo por isso de manter a resposta dada, julgando-se improcedente a impugnação.
Pretendem ainda os Recorrentes impugnar os seguintes factos julgados não provados, que os recorrentes pretendem ver passados para o elenco dos factos provados:
12.º Não provado que a partir da separação tenha sido apenas a ré a pagar as prestações até ao pagamento final, feito pela ré em Maio de 2021, com exceção dos meses de Janeiro a Abril de 2021;
Quanto a este facto, dadas as dificuldades de obtenção da documentação bancária, o facto da ré ter ficado a viver no imóvel, as declarações prestadas, e o facto de ter sido ela quem suportou a liquidação do remanescente empréstimo bancário, pelas regras da normalidade e experiência, entendemos ser de dar como provado aquilo que ambos os réus declararam em audiência de julgamento, que foi a ré quem, após a separação passou a liquidar as prestações daquele empréstimo.
As declarações daqueles foram igualmente coincidentes quanto á forma como passaram a ser executados os pagamentos das prestações mensais, que tinham de ser efetuados através da conta do Réu existente no Banco 2..., que se encontrava associada ao mútuo, procedendo a ré às transferências mensais dos valores da prestação para efeito do seu pagamento, o que tem igualmente correspondência com a documentação junta.
Assim deve ser eliminado o facto 12 dos factos não provados, acrescentando-se o seguinte facto aos factos provados:
A partir da separação foi a ré quem pagou as prestações até ao pagamento final, feito pela ré em Maio de 2021.
Pretende ainda ver alterado o seguinte facto que mereceu resposta negativa:
14. Mas já em Janeiro de 2014, em data que não se consegue de momento precisar, mas que é precisa, os réus acordaram, com perfeição, fazer a dita dação em pagamento atento às circunstâncias da sua vida pessoal, nomeadamente à dívida do réu 1 à ré 2 e o destino a dar à casa de família, detida em regime de compropriedade entre os dois, tal como aconselhados, na altura, pelos advogados de cada um dos réus.
Foi junto aos autos um documento manuscrito, assinado pelos réus, onde se pode ler:
“(…) Considerando que AA é devedor a BB de €25.000,000 de empréstimos por esta ultima efetuados… AA promete dar os imóveis identificados nos considerandos para pagamento integral da divida também referida, na parte, metade indivisa, de que é proprietário, ao qual atribui um valor igual ao da divida referida (…)”.
Aquele facto foi julgado não provado, na sentença, com a seguinte fundamentação: “O documento de fls. 53 foi impugnado, é um documento particular cuja veracidade quer quanto ao conteúdo, quer quanto à data foi impugnada pela autora.
Competia aos réus a prova da sua veracidade, prova que não foi feita.
O documento não é uma dação mas um contrato promessa de dação, sem que os réus tenham conseguido explicar porque não concretizaram a dação nessa altura, se essa era realmente a sua vontade. O documento por outro lado é contraditório com o teor da escritura de dação outorgada em 2017 e que refere que em 2014 a 2ª ré alegadamente teria emprestado 25.000,00€ ao 1º réu, quando na escritura de dação é referido que esses empréstimos ocorreram nos 4 anos antecedentes.”
Atento o princípio da livre apreciação da prova, não nos merece reparo a avaliação dos meios de prova analisados, à luz das regras da lógica e da experiência.
Por último, pretendem ainda os Recorrentes ver aditado o facto 44 de que à data o réu detinha 1/3 de uma patente (facto que foi provado), cuja parte a sua parte valia €1.945.866,00.
Alega para tanto que estão juntos aos autos um relatório de um revisor oficial de contas, para efeitos de entradas em espécie numa sociedade, relatório ou valor que não foi impugnado pelo autor, sendo que apenas em 25.07.2018, portanto, mais de um ano depois do registo da dação em cumprimento. E que o réu continua a ter direitos sobre a referida patente (direito ao pagamento de royalities – embora até agora ainda não tenham sido pagos nenhuns), que o autor sempre terá direito de penhorar e executar assim que gerados e colocados à disposição do réu.
Resulta da matéria de facto (factos não impugnados) que:
Após a escritura de dação o réu transferiu ainda outros bens/direitos, que lhe permitiram auferir rendimentos significativos, para o nome de terceiros, nomeadamente, segundo os documentos juntos pelo próprio réu de fls. 329-334 - registos junto do INPI –dos quais constam que o 1º Réu AA está identificado como inventor de uma patente, tendo a mesma sido inicialmente registada em seu nome, em 12.01.2014, bem como em nome de II e HH, patente aprovada em 26.06.2018.
O 1º réu detinha 1/3 dessa patente, mas já não detém, tendo-a transmitido em 25-07-2018 (factos 43 e 44).
Acresce que, no âmbito da execução de sentença e não obstante as inúmeras diligências de tentativa de identificação de bens levadas a cabo pela Sra. Agente de Execução, apurou-se que os únicos bens existentes em nome do 1.º Réu e, nessa medida, os únicos suscetíveis de penhora eram:
a) Conta de valores mobiliários n.º 400745, junto da O..., S.A., composta por € 11,68 em posições em títulos e € 40,10 em dinheiro;
b) Direito sobre 50% de uma Patente de Invenção Nacional n.º ..., cujos titulares são o 1.º Réu e HH, no valor de 51,78€ (auto de penhora de fls. 220 a 221 verso e docs de fls. 222 a 226 verso).
Desta forma improcede também esta pretensão dos Réus.

V-APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:
5.1.Da impugnação pauliana
Na sentença recorrida, o tribunal afastou, por falta de verificação dos respetivos pressupostos a procedência do pedido nuclear feito nesta ação, que consistia na declaração de nulidade de negócio jurídico, sendo causa de pedir a simulação.
Julgou sim procedente o pedido subsidiário feito pelo Autor, declarando procedente a impugnação pauliana.
Pretendem os Réus através deste recurso, ver revogada a sentença na parte em que julgou procedente a impugnação pauliana do negócio de dação em cumprimento celebrado entre os Réus e, em consequência, decretou a ineficácia em relação ao Autor do ato de transmissão das frações autónomas supra identificadas.
Defendem que, ficando provado que o negócio celebrado entre os réus foi uma dação em cumprimento e não um doação gratuita, perante a provada existência dos empréstimos da ré ao réu e da inexistência de má fé no negócio celebrado com a intenção de defraudar os credores.
Assim, com base na análise dos requisitos gerais para a impugnação pauliana, conforme delineado no artigo 610 do CC e na consideração específica dos requisitos adicionais para atos onerosos estabelecidos no artigo 612 do mesmo código, conclui-se que os fundamentos para uma ação de impugnação pauliana não estão preenchidos neste caso. A essência da impugnação pauliana reside na proteção dos credores contra atos fraudulentos praticados pelos devedores que prejudicam a satisfação dos seus créditos. No entanto, a análise dos factos provados demonstra que não existiu a intenção fraudulenta (consilium fraudis) por parte do devedor nem o conhecimento da fraude pelo terceiro (scientia fraudis), elementos cruciais para configurar a fraude contra credores.
Além disso, a evidência apresentada, dizem os RR sugere que o ato contestado foi oneroso e não se verifica má fé por parte dos envolvidos, requisito necessário conforme o artigo 612 do Código Civil para atos onerosos na impugnação pauliana. A dação em pagamento discutida ocorreu num contexto de reorganização pessoal e financeira dos réus após a sua separação de facto e sem o intuito de prejudicar credores.
Isto para concluir que não se encontram preenchidos os requisitos necessários para a procedência da impugnação pauliana.
Esta argumentação recursiva dos Réus assentava na alteração da matéria de facto, nomeadamente na questão da (in)existência dos empréstimos á Ré.
A impugnação pauliana é um dos meios de conservação da garantia patrimonial – art. 601.º -, ao lado da declaração de nulidade – art. 605.º -, da sub-rogação do credor ao devedor – arts. 606.º a 609.º -, e do arresto – arts. 619.º a 622.º, todos do C. Civil.
É um dos meios através dos quais o credor pode reagir contra os negócios jurídicos do devedor celebrados em prejuízo dele, seja pela diminuição dos bens patrimoniais, seja pelo aumento do passivo.
A impugnação pauliana permite ao credor reagir contra atos praticados pelo devedor, que inconvenientemente diminuam o ativo ou aumentem o passivo do património deste. Traduzindo-se na intromissão de terceiros (o credor) num ato praticado pelo devedor, compreende-se que a lei a subordine à verificação de requisitos estritos.
O primeiro desses requisitos consiste no prejuízo causado pelo ato impugnado à garantia patrimonial (corpo do art. 610.º do CC).
A diminuição da garantia consiste tanto numa perda ou decréscimo do ativo, como num aumento do passivo, pois que, em ambas as hipóteses se poder diminuir o leque de bens penhoráveis que, nos termos do art. 601.º do CC, respondem pelo cumprimento da obrigação.
O requisito da nocividade concreta do ato é explicitado no art. 610.º, al. b), do CC, segundo a qual é necessário que do ato resulte a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade.
Sobre a má fé prevista pelo artigo 610º do C.C. estabelece o artigo 612º do mesmo código o seguinte:
“1. O ato oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o ato for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé.
2. Entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor.
Revestindo-se o ato de natureza gratuita, o art. 612.º, n.º 1, in fine, do CC, não exige um específico consilium fraudis por parte do alienante e do adquirente, por entender não poderem preferir-se os interesses em causa num ato gratuito em detrimento dos direitos do credor.
Assim, relativamente aos atos gratuitos, a impugnação pauliana procede, mesmo que o devedor e o terceiro tenham agido de boa fé.
Na sentença sob recurso, entendeu-se o seguinte, quanto a esta questão:
“(…) A dação em pagamento é um ato oneroso. A dação em cumprimento (artigo 837º do C. Civil), é um ato oneroso de alienação, com prestação de coisa em lugar de prestação pecuniária, cuja modalidade muitos autores aproximam de venda (Nesse sentido: Antunes Varela, Direito das Obrigações, Volume II, página 171). É distinto da dação em função do cumprimento, esta regulada no artigo 840º do mesmo diploma. Na dação em função do pagamento o devedor pretende apenas facilitar o cumprimento, fornecendo ao credor os meios necessários para este obter a satisfação futura do seu crédito. (C. Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela).
Na dação em cumprimento o devedor pretende, através de prestação diversa da devida, extinguir imediatamente a obrigação.
O ato oneroso só está sujeito a impugnação pauliana, de acordo com o artigo 612, se o devedor e o terceiro tiverem agido de má-fé.
Contudo, no caso em apreço, apesar de não ter a autora provado os requisitos da simulação, provou que com a dação em pagamento não ocorreu na medida em que provou que a segunda ré nada emprestou ao primeiro réu e o primeiro réu pela referida escritura nada pagou à ré.
A dação declarada não correspondeu à vontade real. A dação não foi uma forma de extinção de uma obrigação, porque não se provou que o réu tinha que cumprir uma pecuniária que declarou e que era o pagamento de empréstimos que não se provaram.
Estamos por isso perante negócios gratuitos e não onerosos, não sendo exigível ao credor a prova da má-fé do devedor e dos terceiros contraentes. O réu está a proporcionar vantagens patrimoniais à ré, transferindo-lhe o seu direito de propriedade sem qualquer contraprestação o que característicos dos negócios gratuitos (Antunes Varela, obra citada, II, página 286).”
Para concluir:
“(…)Com efeito, os factos provados evidenciam que, em data anterior muito à dação o autor era credor do primeiro réu, dívida reconhecida em 2016 por decisão da primeira instância e confirmada pelos dois Acórdãos dos Tribunais Superiores.
Ocorre igualmente a inexistência de outros bens que garantam o pagamento do crédito da autora, para além dos penhorados no processo de execução em curso, manifestamente exíguos para o credito exequendo.
Acresce que ao réu competia a alegação e prova de que possuía outros bens penhoráveis de igual ou maior valor que o passivo – artigo 611º C. Civil – o que não fez.
Resultando dos autos que a dação traduziu-se num negócios gratuito e não oneroso, não é necessária a prova da má-fé.
Temos assim como provados os pressupostos da impugnação pauliana.”
Desta forma, considerando que a eventual alteração da solução jurídica dependia da modificação da decisão de facto, o que não sucedeu, apenas resta confirmar a sentença, em relação à qual se adere, por se encontrar bem fundamentada.
Só assim não será se o recurso proceder quanto às questões jurídicas do abuso de direito e da exceção da caducidade, relativamente ás quais os Réus não se conformaram.
5.2.Da caducidade:
Alegam os Apelantes que o direito à ação pauliana caduca em cinco anos a partir da data do ato impugnável, conforme artigo 618 do CC. É certo que o autor intentou a ação 16 dias antes de perfazer cinco anos sobre a data de registo da dação em cumprimento dos ditos imóveis. No entanto, o início do prazo não depende do conhecimento do ato pelo credor, mas sim da celebração do negócio. Assim, uma vez que o acordo entre os réus data de janeiro de 2014 (ainda que nas vestes de uma promessa), tal prazo deve ser contado a partir da celebração do negócio e não do seu registo, o que leva à caducidade do direito do autor. A jurisprudência supra citada do Colendo Supremo Tribunal de Justiça sustenta que o prazo de caducidade para a impugnação pauliana é contado a partir do ato e não do seu registo, mesmo quando este é exigido, afastando a validade do ato somente no interesse do credor impugnante. Assim, deve-se julgar procedente a exceção de caducidade do direito do autor.
Na sentença, foi afastada esta exceção oportunamente invocada pelos Réus, nestes termos: “A dação em pagamento ocorreu em Maio de 2017 e a ação foi instaurada em Abril de 2022. Não estavam decorridos os cinco anos previstos pelo artigo 618º do C. Civil. Em 2014 não houve qualquer dação em pagamento. Improcede assim a caducidade invocada.”
A caducidade é a extinção do direito pelo seu não exercício durante certo tempo e o seu fundamento específico é a necessidade de certeza jurídica já que, como ensinava Manuel Andrade, “certos direitos devem ser exercidos durante certo prazo para que ao fim desse tempo fique inalteravelmente definida a situação jurídica das partes. É de interesse público que tais situações fiquem, assim, definidas duma vez para sempre com o transcurso do respetivo prazo”.[13]
A caducidade, cujo fundamento, de interesse público, é a necessidade de certeza jurídica, permite que a situação jurídica das partes fique definida após o decurso de certo prazo. [14]
Na situação em apreço, a questão não suscita quaisquer dúvidas, uma vez que o negócio impugnado foi celebrado mediante escritura pública outorgada no dia 15.05.2017, pelo que, o prazo de cinco anos estabelecido no art. 618º do Código Civil, que dispõe que “o direito de impugnação caduca ao fim de cinco anos, contados da data do ato impugnável”, ainda não terminara aquando da interposição desta ação.
Desta forma é manifesta a falta de razão dos apelantes.
5.3. Do abuso do direito
Defendem por último os Apelantes que o deve o direito da autora ser paralisado por abuso de direito e consequentemente a ação pauliana declarada improcedente.
Para tanto alegam que ocorre abuso de direito, enquadrado pelo artigo 334º do CC, nas modalidades de venire contra factum proprium, onde a conduta, embora lícita, cria uma oposição com ações anteriores, e supressio, onde a inação gera uma expectativa legítima de não exercício do direito. Isto porque a inação do autor, especialmente em situações onde os réus, baseados em confiança legítima, ajustaram suas vidas à luz do negócio jurídico realizado, constitui abuso de direito.
A ré, em particular, investiu no imóvel e liquidou dívidas, consolidando uma expectativa de que o negócio não seria questionado. Ou seja, o comportamento do autor, ao tentar anular um negócio legítimo após um período considerável, caracteriza litigância em abuso de direito pela modalidade de supressio, prejudicando a confiança e causando potenciais danos irreparáveis aos réus, em especial à ré, que investiu mais de €60.000 nos imóveis, desde obras de conservação e benfeitorias, como no pagamento das prestações mensais e da liquidação da dívida remanescente do crédito habitação. A ré só realizou o negócio nos termos em que o fez, por desconhecer a dívida do réu ao autor. Passado mais de 10 anos da separação do casal e da promessa do negócio que esteve na consequência dessa separação, do investimento emocional e financeiro que a ré fez nos imóveis, da valorização do mesmo em mercado, vê-se agora absolutamente abalada e apanhada desprevenida com este inusitado caso – ao qual é absolutamente alheia, não fosse ter aceite a dação em cumprimento da dívida que o réu tinha para com ela. Por razões de justiça, boa-fé e paz social, deve o direito do autor ser paralisado por abuso de direito na modalidade de suppressio.
O Tribunal a quo, entendeu não eram verificados os requisitos do abuso de direito e bem.
Nos termos do art. 334º do C.C. é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Ensina Vaz Serra[15] que deve considerar-se existir abuso de direito quando o comportamento do seu titular se mostre clamorosamente chocante para o sentimento jurídico reinante na coletividade, quer essa contrariedade resulte de factos subjetivos, quer de fatores objetivos ou simultaneamente de fatores subjetivos e objetivos:
Também Antunes Varela [16] defende que o abuso de direito pressupõe que os direitos sejam exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça. E para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes deve atender-se de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade.
Os direitos não devem ser exercidos de modo insuportavelmente injusto para a consciência jurídica dominante. E quando a aplicação concreta dos preceitos legais conduzirem a uma conclusão que flagrantemente viole essa consciência jurídica o instituto do abuso de direito funcionará como “válvula de segurança” do sistema jurídico.[17]
A teoria do abuso do direito tem em vista impedir que as normas jurídicas formuladas em termos gerais e abstratos, determinem, na sua aplicação aos casos concretos, flagrantes injustiças.
O Professor Menezes Cordeiro[18] sustenta que o artigo 334º do CC é o resultado codificado de uma série de regulações típicas de comportamentos abusivos, apreciados pela doutrina germânica.
Abordando de forma detalhada e completa o instituto do abuso de direito o mesmo Professor,[19] enuncia seis tipos característicos em que se pode manifestar o «abuso de direito», a saber:
- A “exceptio doli” (que permitia no Direito Romano deter uma posição jurídica do adversário, num caso, invocando o defendente a prática, pelo autor, de dolo no momento da formação da situação jurídica levada a juízo e, noutro, contrapondo o defendente o incurso do autor em dolo no próprio momento da discussão da causa);
- O “venire contra factum proprium” (ablação do brocardo latino “venire contra factum proprium nulli concidetur”, significando, que a ninguém é permitido agir contra o seu próprio ato, expressando a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assume comportamentos contraditórios);
- As “inalegabilidades formais” (consistente na alegação, em contradição com a boa fé, de nulidade derivada da inobservância da forma prescrita por lei para certos negócios);
- A “supressio” (posição jurídica que não tendo sido exercida durante certo tempo, não mais o pode ser, pois, tal exercício atenta contra a boa fé) e a surrectio (caso em que uma pessoa vê surgir na sua esfera jurídica, por força da boa fé, uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria);
- O “tu quoque” (expressão que visa cobrir os casos em que aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partida do violação exigindo, a outrem, o acatamento das consequências daí resultantes); e,
- O “desequilíbrio no exercício” (ou seja, aquelas situações em que ocorre desequilíbrio no exercício de várias posições jurídicas, nos diversos casos em que tal desequilíbrio se pode manifestar: exercício danoso inútil; dolo agit qui petita quod statim redditurus est; e a desproporcionalidade).
No caso em apreço, nenhuma destas situações ocorre, a nosso ver, sendo certo que são precisamente as razões de certeza e segurança jurídicas que subjazem ao instituto da caducidade que levaram o legislador a impor ao impugnante um prazo relativamente curto – de 5 anos – no art. 618º do C.C., para exercer o direito á ação pauliana, sendo do interesse público que tais situações fiquem, assim, definidas duma vez para todas após o decurso do prazo.
Uma vez que tal prazo se mostra respeitado, não estaremos seguramente numa situação que possa ser considerada abusiva, nomeadamente na modalidade da supressio, apesar de reconhecermos que, não tendo sido provada a má-fé da ré, no sentido que não se provou que a mesma quando celebrou a escritura de dação em cumprimento, tivesse plena consciência de que estava a celebrar um negócio destinado à dissipação de património da esfera jurídica do 1.º Réu, terá de com ela conformar-se, sendo certo que, sabedora do risco patrimonial que a atividade do seu agora ex-marido, enquanto investidor envolvia, também não cuidou de acautelar atempadamente os seus interesses, através da divisão do património comum, após a sua separação de facto, o que lhe teria evitado dissabores no futuro.
Improcede pois in tottum o recurso dos Réus.

VI-DA AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Considerando a improcedência do recurso dos Réus, mostra-se inútil proceder à apreciação da ampliação do objeto do recurso feita pelo Autor ao abrigo do disposto no art. 636º do CPC.
Com efeito, a ampliação do objeto do recurso (requerida pelo Apelado) prevista no art. 636º do CPC constitui uma solução legal que proporciona à parte vencedora, a possibilidade de se acautelar duma decisão desfavorável em consequência do recurso interposto pela parte contrária, o que não ocorre na situação em apreço.

VII-DECISÃO
Pelo exposto e em conclusão acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso dos Réus e em considerar prejudicada a apreciação da ampliação do objeto do recurso feita pelo Autor.
Custas pelos Apelantes.

Porto, 24 de setembro de 2024.
Alexandra Pelayo
Maria da Luz Seabra
Márcia Portela
______________
[1] Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 266 “ A Relação atua como Tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de primeira Instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o Tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo de confirmação ou alteração da decisão recorrida… “;
[2] Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, p. 348.
[3] Noções Elementares de Processo Civil, pág. 191.
[4] Neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014 (Henrique Antunes) e os acórdãos do STJ de 19/05/2021 (Júlio Gomes) e de 14/07/2021 (Fernando Baptista), todos in www.dgsi.pt.
[5] Vide, neste sentido, AC RP de 11.03.2013 (relator Luís Lameiras), in dgsi.pt.
[6] In Teoria Geral da Relação Jurídica”, II, 1972, p. 207.
[7] In Prova por Presunção no Direito Civil”, Almedina, 2017-3a ed. Pág.23.
[8] Mesmo autor, loc cit. Pg. 29.
[9] Disponível in www.dgsi.pt
[10] Luís Filipe Sousa, ob citada, pg. 265 e 266.
[11] In A Ação Declarativa Comum, 3.ª edição, pág. 278.
[12] Disponível em www.dgsi.pt.
[13] Teoria Geral da Relação Jurídica, vol II, pag. 464.
[14] Manuel de Andrade, mesmo loc.
[15] in BMJ nº 85, de Abril de 1959, pg 243 e ss.
[16] In Código Civil anotado, Vol I, pg 299
[17] Vaz Serra ob. cit. pg. 326.
[18] In Da Boa-Fé no Direito Civil, 1997, pp. 717-718.
[19] no Tratado de Direito Civil Português; Vol. I, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 199 a 213.