I - Tal qual resulta da leitura das disposições legais contidas nos nºs 3 e 4 do artigo 1083º do CC, preveem as mesmas duas realidades diversas como fundamento resolutivo do contrato de arrendamento entre as partes celebrado.
II - Ambas tendo como pressuposto a mora.
A primeira relacionada com o não pagamento de rendas por período igual ou superior a 3 meses. A segunda relacionada com a mora no pagamento das rendas por prazo superior a 8 dias por mais de 4 vezes seguidas ou interpoladas num período de 12 meses.
III - As duas situações factuais podem coincidir e como tal não são entre si incompatíveis.
3ª Secção Cível
Relatora – M. Fátima Andrade
Adjunta – Teresa Fonseca
Adjunta – Anabela Morais
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este – Jz. Local Cível de Felgueiras
Apelante - AA
Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC).
………………………………
………………………………
………………………………
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I- Relatório
i. “A..., Lda.” instaurou Procedimento Especial de Despejo contra AA, nos termos do artigo 1083º nº 3 do CC, requerendo:
“a) Que seja reconhecida e declarada a resolução do contrato de arrendamento nos termos do disposto no n.º 3 do art. 1083.º do Código Civil;
b) Subsidiariamente, que seja reconhecido e declarada a resolução do contrato de arrendamento nos termos do disposto no n.º 4 do art. 1083.º do Código Civil;
(…)
c) Que a requerida seja condenada a pagar à requerente o montante de EUR. 458,02, a título de rendas vencidas e juros vencidos, acrescido dos respetivos juros de mora vincendos, até integral e efetivo pagamento e ainda as custas e encargos com o processo, tudo nos termos dos arts. 15.º, n.º 1 e 5 da Lei n.º 31/2012 de 14 de agosto que alterou a Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro;
d) Que a requerida seja condenada a pagar à requerente o montante correspondente as rendas que se forem vencendo durante a pendência deste processo, até entrega efetiva do locado, acrescidas de juros de mora à taxa legal;
e) Que a requerida seja condenada a pagar à requerente a indemnização prevista no n.º 2 do art. 1045.º do Código Civil, até entrega efetiva do locado.”
Para tanto tendo alegado:
“1) Por contrato de arrendamento, celebrado a de 15 de junho de 2020, a Requerente deu de arrendamento à Requerida, o prédio urbano composto pela fração G do prédio urbano constituído por lojas, escritórios e habitações, descrito na matriz com o nº ..., com o alvará de licença de utilização nº ... emitido pela Camara Municipal ..., sito na Praça ..., e Rua ..., na ..., concelho ....
2) O convénio aludido no ponto anterior assumiu a forma escrita de contrato de arrendamento urbano, para fins não habitacionais, com prazo certo, tendo aí a Requerente assumido a posição de Senhoria e a requerida a posição de Arrendatária (Doc. n.º 1, que se junta e se reproduz para os devidos e legais efeitos – contrato de arrendamento).
3) O contrato de arrendamento supra referenciado foi registado junto da Repartição de Finanças, tendo sido pago o respetivo imposto de selo (Doc. n.º 2, que se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos).
4) O arrendamento foi celebrado com prazo certo, com duração de 1 (um) ano, iniciando-se no dia 1 de julho de 2020 e renovando-se automaticamente no seu termo por iguais e sucessivos períodos de tempo, (cláusula terceira do Doc. n.º 1).
5) A renda anual estipulada e ajustada pelas partes foi de EUR. 1 800,00 (mil e oitocentos euros), pagável em duodécimos mensais, no valor de EUR. 150,00, a pagar pela requerida até ao oitavo dia do mês anterior aquele que diz respeito.
6) As partes estipularam domicilio convencionado, acordando que todas as notificações, para efeitos do contrato, seriam efetuadas para as moradas indicadas no intróito do contrato (vide, ponto 1 da décima cláusula do Doc. n.º 1).
7) Sucede que a requerida tem vindo a incumprir reiteradamente o contrato de arrendamento, em especial, no que toca ao pontual pagamento das rendas.
8) Por carta registada com aviso de receção, datada de 14-07-2023, a Requerente comunicou à Requerida, para a morada indicada por esta no contrato para efeitos de comunicações atinentes ao contrato, a resolução do contrato de arrendamento, com efeitos imediatos, com base no disposto no n.º 3 do art. 1083.º do Código Civil, dado que esta se mantinha em mora igual ou superior a 3 (três meses) de renda, instando-a a deixar o locado livre e devoluto de pessoas e bens no prazo de 5 (cinco) dias (Doc. n.º 3, que se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos).
9) Com efeito, à altura da comunicação data de 14-07-2023, a requerida estava em dívida, quanto ás rendas referentes aos meses de maio, junho, julho e agosto de 2023, no valor de EUR. 450,00, a que acresciam os respetivos juros no valor de EUR. 2,56.
10) Sucede que mesmo após a comunicação da resolução do contrato, a requerida não procedeu ao pagamento integral das rendas em dívida, não desocupou o locado nem fez cessar a mora nos termos do disposto no n.º 3 do art. 1084.º do Código Civil, tendo pago apenas a renda de maio de 2023, muito depois do prazo.
11) Por outro lado, na mesma comunicação, a requerente advertiu a requerida nos termos dos n.ºs 4 e 6 do art. 1083.º do Código Civil, de que se encontrava em mora superior a 8 (oito) dias, e que subsidiariamente, pretendia resolver o contrato de arrendamento com fundamento nesses dispositivos legais.
12) A requerida incumpriu o contrato celebrado entre as partes, deixando de pagar a renda a que livremente se vinculou, comportamento este reiterado e contínuo, legitimando a requerente a resolver o contrato com base no disposto no n.º 3 do art. 1083.º do Código civil, e, subsidiariamente, com base no disposto nos n.ºs 4 e 6 do mesmo dispositivo.
13) A requerida permanece em dívida no montante das rendas de junho, julho e agosto de 2023, no valor de EUR. 450,00, a que acrescem os respetivos juros de mora no valor de EUR. 3,02, o que perfaz o total em dívida EUR. 458,02.
14) Em consequência, deverá ser reconhecida e declarada a resolução do contrato de arrendamento, com os fundamentos supra expostos, condenando-se a requerida a desocupar o locado livre de pessoas e bens, o que desde já se requer”;
ii - A requerida deduziu oposição, em suma tendo impugnado a alegada mora por período superior a 3 meses – concretamente a falta de pagamento das rendas relativas aos meses de maio, junho, julho e agosto de 2023 - e o não pagamento das rendas vencidas.
Afirmou a inexistência de rendas em atraso, quer à data da apresentação do requerimento, quer à data da apresentação da oposição. Afirmando ter efetuado depósitos bancários das rendas devidas que a senhoria sempre aceitou (conforme documentos 1 a 7 que ofereceu aos autos).
Igualmente impugnou o alegado fundamento de mora por não cumprimento atempado do prazo de pagamento da renda, porquanto sempre a requerente aceitou receber a renda por parte da requerida, conformando-se com o pagamento.
Termos em que concluiu pelo indeferimento do requerimento de despejo.
Tendo sido determinada a notificação da requerente para responder à exceção invocada pela R. na contestação (despacho de 03/11/2023).
Tendo em resposta alegado:
- a requerida não comprovou nos autos o pagamento integral da dívida, pelo que a oposição não deveria ter sido recebida;
Nem fez cessar a mora nos termos do artigo 1041º nº 1, 1042º nº 3 e 1084º do CC todos;
- a requerente comunicou à requerida a resolução contratual por carta registada com AR de 14/07/2023, por então estar em mora o pagamento das rendas referentes aos meses de maio a agosto de 2023 no valor de € 450,00, não tendo a requerida feito prova do pagamento da indemnização a que aludem os artigos 1041º nºs 1 e 2, 1042º e nº 3 do artigo 1084º, todos do CC;
- à data da entrada do requerimento de despejo a 08/08/23 a requerida não tinha feito cessar a mora, não juntando a requerida os comprovativos de pagamento da totalidade das rendas em dívida e indemnização devida;
O incumprimento contratual da requerida é inequívoco, seja por via do disposto no n.º 3 do art. 1084.º do Código Civil, seja por via da aplicação do disposto no n.º 4 do mesmo dispositivo, pelo que deverá a exceção de pagamento invocada pela requerida ser julgada totalmente improcedente, julgando-se procedente o requerimento de despejo apresentado pela autora, nos precisos termos nele formulados (a título principal ou subsidiário).
Após o que foi proferida sentença, decidindo:
“Pelo exposto, julgo a oposição improcedente e a ação procedente e, em consequência, julgo resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre as partes e condeno a Requerida a entregar o locado à Requerente, livre e devoluto de pessoas e bens, bem como a pagar à requerente as rendas vencidas e não pagas correspondentes aos meses de Maio a Agosto de 2023 (inclusive) e, bem assim no pagamento das rendas vincendas desde a propositura da ação até efetiva entrega do locado, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, deduzindo-se, não obstante, tudo quanto tiver sido liquidado pela Requerida nos termos que resultaram demonstrado no elenco dos factos provados.
Absolve-se a Requerida do demais peticionado.”
“Conclusões:
a) No curto espaço de um ano, o presente processo constitui a segunda investida de despejo da senhoria, agora Recorrida, contra a inquilina, agora Recorrente;
b) Por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 12 de julho de 2023, a aqui recorrente foi absolvida; Sem que o Acórdão atrás referido transitasse em julgado, apenas dois dias após a notificação do mesmo, a Recorrida enviou a carta que constitui o documento número 1, junto com o requerimento inicial, a comunicar a resolução do contrato;
c) O envio da comunicação foi prematuro e contraditório;
d) Apenas com o trânsito em julgado do acórdão referido é que o contrato de arrendamento se repristinou; O que ocorreu apenas em setembro de 2023, atento o período de férias judiciais;
e) A alegada resolução do contrato a que se refere a carta junta como documento número 1, do requerimento de injunção é inócua; Pois, versa sobre algo que não existe;
f) O que torna a alegada resolução do contrato a que se refere a mencionada carta inócua, com as legais consequências;
Sem prescindir,
g) Os fundamentos de resolução a que aludem os números 3 e 4, do artigo 1083.º do Código Civil são incompatíveis; Ou se invoca um, ou o outro; Nunca se poderá invocar os dois, em simultâneo; Muito menos sob “condição”.
h) Entre outros, a sentença recorrida apenas considerou provado que:
8. Com efeito, à altura da comunicação datada de 14/07/2023, a requerida estava em dívida quanto às rendas referentes aos meses de maio, junho, julho e agosto, de 2023, no valor de € 450,00, a que acresciam os respetivos juros, no valor de € 2,56;”
Considerou ainda provado a sentença recorrida que:
10. No dia 28 de abril de 2023 a requerida transferiu para a conta da Requerente o montante de € 150,00;
11. No dia 10 de julho de 2023 a requerida transferiu para a conta da Requerente o montante de € 150,00;
12. No dia 19 de julho de 2023 a requerida transferiu para a conta da Requerente o montante de € 150,00;
13. No dia 31 de julho de 2023 a requerida transferiu para a conta da Requerente o montante de € 150,00;
i) Perante esta factualidade, a Recorrente entende que não existe fundamento para a resolução do contrato.
j) Aquando da comunicação de 14/07/2023, a Requerida, agora Recorrente, tinha entregue e depositado à ordem da Requerente, aqui Recorrida, as seguintes quantias:
- 28/04/2023 - € 150,00;
- 10/07/2023 - € 150,00;
No total de € 300,00;
k) Pelo que, a Recorrente apenas estava em mora relativamente a três meses;
l) A renda relativa ao mês de agosto de 2023 não estava em mora aquando do envio da carta a 14 de julho de 2023;
m) Na verdade, a renda é devida até a oitavo mês dia do mês anterior a que diz respeito (facto provado número 5);
n) Assim, a renda do mês de agosto deveria ter sido paga até ao dia 8 do julho de 2023;
o) A partir desta data, a Recorrente tinha oito dias para fazer cessar a mora, conforme o disposto no artigo 1041.º n.º 2 do Código Civil;
p) A Recorrente tinha até ao dia 16 de julho de 2023 para fazer cessar a mora;
q) A Recorrida enviou a carta a comunicar a resolução do contrato de arrendamento a 14 de julho de 2023;
r) Isto é, dois dias antes do termo do prazo concedido por lei à Recorrente para por fim à mora;
s) Pelo que, o envio da carta a resolver o contrato por falta de pagamento das rendas foi intempestivo;
t) A comunicação não respeitou o prazo devido, em clara violação do artigo 1041.º n.º 2 do Código Civil;
u) Em consequência, contrariamente ao pretendido pela Recorrida, não está preenchido o requisito a que alude o artigo 1083.º n.º 3, do Código Civil;
v) A resolução operada pela carta datada de 14/07/2023, é, assim, nula, não produzindo quaisquer efeitos;
x) Por outro lado, como atrás vem referido, a comunicação da resolução foi enviada com data de 14/07/2023;
w) Como se pode ver do requerimento de despejo, o mesmo deu entrada no Balcão Nacional de Arrendamento no dia 8 de agosto de 2023;
y) Entre a comunicação e o requerimento decorreram 25 dias;
z) Dispõe o número 3 do artigo 1084.º do Código Civil que:
“A resolução pelo senhorio, quando opere por comunicação á outra parte e se funde na falta de pagamento da renda, …, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de um mês;
aa) Pelo que, também por este motivo, o requerimento é intempestivo; O que gera a nulidade do processo; E, consequentemente, a absolvição da Recorrente;
Acresce,
ab) No prazo de trinta dias após o envio da comunicação, a Recorrente pôs termo à mora;
Pois, a Recorrida fez os seguintes pagamentos:
- 19/07/2023 - € 150,00;
- 31/07/2023 - € 150,00;
- 29/08/2023 - € 150,00;
No valor total de € 450,00;
Pelo que, também por este fundamento, a Recorrente deve ser absolvida;
Sem prescindir,
ac) O segundo fundamento apresentado pela Recorrida consiste na alegada:
- Mora superior a 8 (oito) dias no pagamento das rendas, por mais de 4 (quatro) meses, durante o período de um ano;
Porém, também aqui não existe mora da Recorrente;
ad) Aquando da comunicação de 14/07/2023, a Requerida, agora Recorrente, tinha entregue à Requerente, aqui Recorrida, as seguintes quantias:
- 28/04/2023 - € 150,00;
- 10/07/2023 - € 150,00;
No total de € 300,00;
Pelo que, a renda relativa ao mês Maio estava paga;
ae) A renda relativa ao mês de agosto de 2023 não estava em mora aquando do envio da carta a 14 de julho de 2023;
af) A renda é devida até a oitavo mês dia do mês anterior a que diz respeito (facto provado número 5);
ag) A renda do mês de agosto deveria ter sido paga até ao dia 8 do julho de 2023;
ah) A partir desta data, a Recorrente tinha oito dias para fazer cessar a mora, conforme o disposto no artigo 1041.º n.º 2 do Código Civil;
ai) Ou seja, a Recorrente tinha até ao dia 16 de julho de 2023 para fazer cessar a mora;
aj) Como atrás vem alegado e considerado provado, a Recorrida enviou a carta a comunicar a resolução do contrato de arrendamento a 14 de julho de 2023;
ak) Isto é, dois dias antes do termo do prazo concedido por lei à Recorrente para por fim à mora;
al) Pelo que, o envio da carta a resolver o contrato foi intempestivo; Não respeitou o prazo devido, em clara violação do artigo 1041.º n.º 2 do Código Civil;
am) Em consequência, contrariamente ao pretendido pela Recorrida, não está preenchido o requisito a que alude o artigo 1083.º n.º 4 do Código Civil;
A resolução operada pela carta datada de 14707/2023, é, assim, nula, não produzindo quaisquer efeitos;
na) A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 1041.º n.º 2, 1083.º n.º 3 e 4, e 1084.º n.º 2 e 3;, todos do código Civil;
Nestes termos deve ser julgado procedente e provado o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente, absolvendo-se a Recorrente;
E, assim, se fará justiça;”
vi- Foram apresentadas contra-alegações pela requerente, a final tendo concluído nos seguintes termos:
A. O recurso interposto pela requerida não pode ser admitido, dada a irrecorribilidade da decisão.
B. O art. 15.º-Q do NRAU determina que independentemente do valor da causa e da sucumbência, da decisão judicial para desocupação do locado cabe sempre recurso de apelação, nos termos do Código de Processo Civil, o qual tem sempre efeito meramente devolutivo.
C. O n.º 5 do Art. 678.º do CPC determina que independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação nas ações em que se aprecie a validade, a subsistência ou a cessação de contratos de arrendamento, com exceção dos arrendamentos para habitação não permanente ou para fins especiais transitórios.
D. No presente caso, estamos perante um contrato para fins não habitacionais.
E. Face ao exposto, e nos temos das disposições conjugadas do art. 15.º-Q do NRAU e do n.º 5 do Art. 678.º do CPC, o recurso ora interposto é inadmissível, devendo ser liminarmente rejeitado.
SEGUNDA
F. No recurso interposto, a recorrente vem invocar questões novas sobre as quais a recorrida não teve oportunidade de exercer o competente contraditório, e, do mesmo modo, o Tribunal a quo não teve oportunidade de as apreciar, desde logo porque não foram suscitadas.
G. Na oposição deduzida pela requerida, esta invoca apenas o pagamento das rendas e a inexistência de mora. Nada mais.
H. Nada disse quanto à resolução do contrato, a forma como foi feita, o seu tempo ou os fundamentos legais.
I. Quanto ao requerimento de despejo, nada disse sobre o pedido principal e o pedido subsidiário.
J. Mesmo assim, todo os fundamentos invocados na oposição (o pagamento e a inexistência de mora, apenas) foram julgados totalmente improcedentes.
K. Os recursos destinam-se a apreciar as decisões recorridas e não a conhecer “questões novas” não apreciadas nas decisões recorridas – arts. 627º nº 1, 635º nºs 2 e 3 e 639º nº 1 do CPC.
L. Decorre do disposto no artº 635 do CPC. que a atuação do tribunal ad quem está delimitada objetivamente pelas questões que tenham sido objeto de discussão e decisão pelo tribunal recorrido, desfavoráveis ao recorrente e por ele impugnadas, estando-lhe vedado conhecer de questões novas, ou seja, nunca antes invocadas pela parte vencida nem decididas pelo tribunal recorrido.
M. O princípio da preclusão dos meios de defesa impõe aos requeridos o ónus de deduzirem todos os meios de defesa por meio de oposição ao despejo, sob pena de não o poderem mais fazer, quer por via de nova ação quer por via do recurso interposto da decisão proferida na oposição ao requerimento de despejo.
N. Da conjugação do n.º 1 do artigo 627.º e do n. º 1 do art.º 639.º, ambos do Código de Processo Civil, o tribunal de recurso está impedido de conhecer questões novas, ou seja, questões que não tenham sido anteriormente alegadas pelas partes.
O. Face ao exposto, o recurso interposto tem de improceder, in totum, uma vez que versa sobre questões que a requerida/recorrente, nunca invocou, nem em sede de oposição ao despejo, nem em sede de audiência de discussão e julgamento.
TERCEIRA
P. Compulsado o recurso interposto pela requerida torna-se claro que a mesma não impugnou um único facto dado como provado (ou não provada) pelo Tribunal a quo.
Q. Desta feita, qualquer “consideração” sobre a matéria de facto invocada pela requerida é inócua e não é apta a produzir qualquer efeito no sentido da decisão tomada pelo Tribunal a quo.
R. Com o recurso interposto a requerida ainda afiança mais o seu egrégio incumprimento e as manobras dilatórias que adota para continuar no locado sem cumprir as suas obrigações mais básicas.
S. Face aos factos dados como provados, o incumprimento contratual da requerida está mais que demonstrado, e não tendo sido os factos dados como provados impugnados, está assente e aceite esse incumprimento pela requerida, devendo manter-se a douta decisão proferida, o que desde já se requer.
QUARTA
T. O recurso interposto pela requerida serve apenas o propósito de perpetuar o seu incumprimento e a ocupação do locado, sem cumprir as obrigações mais básicas, como o pagamento da renda.
U. No momento da interpelação por parte da recorrida, para resolução do contrato, ou ainda no momento em que foi instaurado o requerimento de despejo, a recorrente estava em mora igual ou superior a 3 (três) meses.
V. Do mesmo modo, a requerida/recorrente, no momento da instauração do requerimento de despejo já tinha incorrido em mora, superior a 8 (oito) dias, de forma seguida ou interpolada, num prazo de 12 (doze) meses, nos termos do disposto no n.º 4 do art. 1083.º do Código Civil, algo que a mesma nem sequer colocou em causa.
W. Nunca a recorrente fez cessar a mora, em qualquer momento que fosse, usando a possibilidade que lhe era conferida pelos n.ºs 1, 2 e 4 do art. 1041.º, n.º 1 do art. 1042.º, n.º 1 do art. 1048.º e n.º 3 do art. 1084.º do Código Civil.
X. Ao interpor o recurso em apreço, a requerida/recorrente olvida que nunca, por uma vez, fez cessar a mora, nos termos legais, contradizendo claramente os factos dados como provados, numa atitude de clara má fé.
Y. Para fazer cessar a mora, antes da interpelação em julho de 2024 ou antes da instauração do requerimento de despejo em agosto de 2024, a requerida/recorrente tinha de ter procedido conforme determinam os arts. 1, 2 e 4 do art. 1041.º, n.º 1 do art. 1042.º, n.º 1 do art. 1048.º e n.º 3 do art. 1084.º do Código Civil, purgando a mora, o que nunca fez.
Z. Está confessado, pela própria requerente/recorrente que já em abril de 2024 (pagou a renda que seria devida ao dia 08-04-2024, ao dia 28-04-2024!), estava em mora, manifestando até desconhecer os termos do contrato, conforme se fez consignar na douta sentença recorrida.
AA. Isto significa que no dia 14-07-2024, data em que foi comunicada a resolução do contrato, a requerida/recorrente estava em mora igual ou superior a 3 (três) meses, sem que alguma vez tenha esboçado qualquer tentativa de purgar a mora, nem mesmo com a dedução de oposição.
BB. Todos os argumentos expendidos pela requerida/recorrente referentes a intempestividade da resolução, dos efeitos “repristinatórios” de sentenças e do efeito suspensivo das férias judiciais (pasme-se, em processos urgentes) são espúrios e exangues de qualquer fundamento credível ou atendível, devendo ser rejeitados.
CC. O Tribunal a quo fez uma correta aplicação do direito aos factos, tendo procedido a uma correta interpretação e aplicação do disposto no 1, 2 e 4 do art. 1041.º, n.º 1 do art. 1042.º, n.º 1 do art. 1048.º e n.º 3 e 4 do art. 1084.º do Código Civil.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ O RECURSO INTERPOSTO PELA REQUERIDA SER LIMINARMENTE REJEITADO POR INADMISSÍVEL, OU SER JULGADO TOTALMENTE IMPROCEDENTE, CONFIRMANDO-SE A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO.”
***
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC [Código de Processo Civil] – resulta das formuladas pela apelante apreciar se ocorreu erro na subsunção jurídica dos factos ao direito.
O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
“1. Por acordo escrito denominado “Contrato de Arrendamento”, celebrado a 15 de junho de 2020, a Requerente deu de arrendamento à Requerida a fração G do prédio urbano constituído por lojas, escritórios e habitações, descrito na matriz com o nº ..., com o alvará de licença de utilização nº ... emitido pela Camara Municipal ..., sito na Praça ..., e Rua ..., na ..., concelho ....
2. O acordo aludido no ponto anterior assumiu a forma escrita de contrato de arrendamento urbano, para fins não habitacionais, com prazo certo, tendo aí a requerente assumido a posição de senhoria e a requerida a posição de arrendatária.
3. O contrato de arrendamento supra referenciado foi registado junto da Repartição de Finanças, tendo sido pago o respetivo imposto de selo.
4. O arrendamento foi celebrado com prazo certo, com duração de 1 (um) ano, iniciando-se no dia 1 de julho de 2020 e renovando-se automaticamente no seu termo por iguais e sucessivos períodos de tempo.
5. A renda anual estipulada e ajustada pelas partes foi de €1.800,00 (mil e oitocentos euros), pagável em duodécimos mensais, no valor de €150,00, a pagar pela requerida até ao oitavo dia do mês anterior aquele que diz respeito.
6. A requerida tem vindo a incumprir reiteradamente o contrato de arrendamento, em especial, no que toca ao pontual pagamento das rendas.
7. Por carta registada com aviso de receção, datada de 14-07-2023, a Requerente comunicou à Requerida, para a morada indicada por esta no contrato para efeitos de comunicações atinentes ao contrato, a resolução do contrato de arrendamento, com efeitos imediatos, dado que esta se mantinha em mora igual ou superior a 3 (três meses) de renda, instando-a a deixar o locado livre e devoluto de pessoas e bens no prazo de 5 (cinco) dias.
8. Com efeito, à altura da comunicação datada de 14-07-2023, a requerida estava em dívida quanto às rendas referentes aos meses de maio, junho, julho e agosto de 2023, no valor total de €450,00, a que acresciam os respetivos juros no valor de €2,56.
9. Na mesma comunicação referida em 7. a requerente advertiu a requerida que, por não ter pago as rendas no prazo devido, com atraso superior a 8 (oito) dias, por 9 (nove) vezes no último ano, subsidiariamente pretendia resolver o contrato de arrendamento com esse fundamento.
10. No dia 28 de abril de 2023 a Requerida transferiu para a conta da Requerente o montante de €150,00.
11. No dia 10 de julho de 2023 a Requerida transferiu para a conta da Requerente o montante de €150,00.
12. No dia 19 de julho de 2023 a Requerida transferiu para a conta da Requerente o montante de €150,00.
13. No dia 31 de julho de 2023 a Requerida procedeu ao depósito em conta da Requerente do montante de €150,00.
14. No dia 29 de agosto de 2023 a Requerida procedeu ao depósito em conta do montante de €150,00.
15. No dia 11 de setembro de 2023 a Requerida procedeu ao depósito em conta do montante de €150,00.
16. No dia 10 de outubro de 2023 a Requerida transferiu para a conta da Requerente o montante de €150,00.”
E não provados, os seguintes factos:
“1. Aquando da apresentação do requerimento inicial a Requerida não tinha quaisquer rendas em atraso.”
Em função do acima enunciado cumpre apreciar de direito, tendo presente que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, não obstante e sem prejuízo do limite imposto pelo artigo 609º quanto ao objeto e quantidade do pedido, não estar o tribunal vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito [vide artigo 5º nº 3 do CPC].
Os presentes autos foram instaurados enquanto procedimento especial de despejo regulado pelo NRAU, artigos 15º e segs., tendo após a dedução de oposição seguido a fase contenciosa com a consequente remessa do procedimento à distribuição junto do tribunal competente. Momento em que assumiu a natureza de processo judicial, nos termos dos artigos 15H e 15I do NRAU.
Tal qual resulta do relatório acima elaborado, a A. peticionou a declaração de resolução contratual do contrato entre as partes celebrado, com a consequente entrega do locado e pagamento dos valores em dívida.
Resolução que fundou no incumprimento contratual, nomeadamente no não pagamento tempestivo das rendas devidas, por referência ao previsto no artigo 1083º nº 4 do CC.
Subsidiariamente, pelo não pagamento de rendas vencidas nos termos do previsto no artigo 1083º nº 3 do CC.
O tribunal a quo julgou procedente a pretensão formulada com fundamento em ambas as disposições legais – artigo 1083º nºs 3 e 4 do CC.
Insurge-se a recorrente quanto ao assim decidido, sem que, importa dizer, tenha deduzido qualquer impugnação à decisão de facto que como tal se tem por definitivamente assente entre as partes.
Partindo, portanto, da factualidade julgada provada e, analisada esta de forma conjugada com as pretensões formuladas pelas partes que conformaram o objeto processual – entenda-se pedido e causa de pedir de um lado, bem como e de outro exceções invocadas pela contraparte – importa apreciar se a pretensão formulada pela recorrente merece acolhimento.
Analisadas as conclusões, das mesmas se extrai que a primeira argumentação – vide conclusões a) a f) – se traduz numa questão só em sede de recurso suscitada e antes não submetida à apreciação do tribunal a quo, implicando não poder a mesma ser por este tribunal de recurso apreciada.
Com efeito, em respeito ao previsto no artigo 608º nº 2 do CPC, o tribunal a quo está limitado na sua atuação às questões que lhe são suscitadas pelas partes, salvo se em causa estiver questão cujo conhecimento a lei lhe permita ou impuser o conhecimento oficioso.
Competindo ao tribunal de recurso reapreciar a pretensão dos recorrentes, por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado e antes já submetido à apreciação do tribunal recorrido, bem se compreende que ao tribunal de recurso não possa ser submetida a apreciação de questão novas, salvo se de conhecimento oficioso.
Tal como é entendimento pacífico da nossa jurisprudência.
Como tal, a questão suscitada nas conclusões a) a f) não é conhecida, por se configurar questão nova, antes não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Em segundo lugar invoca a recorrente a incompatibilidade dos fundamentos de resolução previstos nos nºs 3 e 4 do artigo 1083º do CC.
Dispõe este artigo, sob a epígrafe “Fundamento de Resolução”
“3 - É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo seguinte.
4 - É ainda inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento no caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, com referência a cada contrato, não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo seguinte.”
Tal qual resulta da leitura das disposições legais contidas nos nºs 3 e 4 do artigo 1083º do CC, preveem as mesmas duas realidades diversas como fundamento resolutivo do contrato de arrendamento entre as partes celebrado.
Ambas tendo como pressuposto a mora.
A primeira relacionada com o não pagamento de rendas por período igual ou superior a 3 meses. A segunda relacionada com a mora no pagamento das rendas por prazo superior a 8 dias por mais de 4 vezes seguidas ou interpoladas num período de 12 meses.
As duas situações factuais podem coincidir e como tal não são entre si incompatíveis.
Ademais, a recorrida formulou a sua pretensão a título subsidiário, dando assim preferência ao fundamento previsto no nº 3 do artigo 1083º.
Estando na sua disponibilidade deduzir o pedido a título subsidiário, tal como o permite o artigo 554º do CPC.
Motivo por que esta objeção em nada afeta a pretensão da recorrida.
Em terceiro lugar, questionou a recorrente o reconhecido fundamento de resolução contratual, ao abrigo do disposto no artigo 1083º nºs 3 e 4 do CC.
Alega que à data em que lhe foi comunicada a resolução contratual, datada de 14/07/2023 e porquanto procedeu a um posterior pagamento de € 150,00 em 19/07, apenas estava em mora relativamente a 3 meses (vide conclusão K).
Mais alega que a renda de agosto de 2023 não estava em mora aquando do envio da carta de 14/07/2023, pois deveria ter sido paga até 08/07/23, após o que tinha ainda o prazo de 8 dias para fazer cessar a mora nos termos do artigo 1042º nº 2 do CC, ou seja até 16/07/2023.
Pelo que a comunicação de 14/07/2023 foi intempestiva.
Para a apreciação desta questão importa relembra o que está provado e não vem impugnado.
E o que está provado é que à data de 14/07/2023 estavam em dívida as rendas referentes aos meses de maio, junho, julho e agosto de 2023 [as quais deveriam ter sido pagas até ao dia 8 dos meses de abril, maio, junho e julho – vide fp 5].
Ou seja, não vem provado que maio estivesse pago, ao contrário do que alega a recorrente [vide conclusão ad)].
E tendo a requerida procedido [após a comunicação de 14/07/23] ao pagamento de 150 euros no dia 19/07, mesmo a considerar que tal valor pagou o mês de agosto, como o defende a recorrente dentro do prazo dos subsequentes 8 dias [note-se que não vem provado que renda visou tal valor pagar nos termos e para os efeitos do artigo 784º do CC, incumbindo à R. tal alegar e provar, o que não fez] tornando então juridicamente irrelevante a mora relativa ao mês de agosto[1], sempre estariam então 3 rendas em dívida de maio a julho, verificando-se mora superior a 3 meses à data de 14/07/2023, considerada a renda mais antiga em dívida relativa a maio e que deveria ter sido paga até 8 de abril.
Sendo como tal causa de fundamento resolutivo, já que a R. não demonstrou que tivesse feito uso do previsto nos artigos 1084º nº 3 e 1042º do CC.
Ainda que assim se não entendesse, a factualidade provada – vide em concreto fp´s 5, 6 e 9 – sempre permitiria confirmar a resolução contratual com fundamento no previsto no nº 4 do artigo 1084º do CC. Tal como igualmente o tribunal a quo o reconheceu.
Motivo por que, em qualquer um destes cenários, improcede a argumentação da recorrente quanto à irregularidade da comunicação resolutiva datada de 14/07/23.
Em suma, nenhuma censura merece o decidido pelo tribunal a quo, cuja decisão assim se mantém.
Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente o recurso interposto, consequentemente se mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Porto, 2024-09-09.
Fátima Andrade
Teresa Fonseca
Anabela Morais
______________
[1] Cfr. sobre este tema, Ac. TRL de 24-04-2019, nº de processo 1901/18.5YLPRT.L1-2 in www.dgsi.pt