REJEIÇÃO DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
ARQUIVAMENTO
Sumário

I - Deve ser rejeitado o recurso da impugnação da matéria de facto quando o recorrente, nem nas conclusões nem na motivação, indica a decisão alternativa sobre os pontos objeto de impugnação [cf. artigo 640.º nº 1 al. c) do CPCivil].
II - Deve o processo de promoção e proteção ser arquivado (cfr. artigo 111.º da LPCJP) quando os comportamentos menos adequados por parte do progenitor a que os menores estariam sujeitos, em regime de guarda alternada se encontram ultrapassados pela decisão provisória proferida em sede tutelar cível, em que as crianças ficam a residir com a mãe, e apenas estarão com o progenitor ao sábado ou ao domingo, desde as 10 às 21:30 horas, sendo tais convívios acompanhados pelo I.S.S., e sujeitos a reavaliação periódica a fim de se ir monitorizando a situação e avaliando a sua adequação, sem prejuízo de o processo poder ser reaberto se ocorrerem factos que o justifiquem a aplicação de uma medida de promoção e proteção.

Texto Integral

Processo nº 9770/22.4T8PRT-F.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Família e Menores do Porto -...



Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Drª Maria Fernandes de Almeida
2º Adjunto Des. Dr. José Eusébio Almeida





Sumário:
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I - RELATÓRIO



Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


Os presentes autos de promoção e proteção referentes aos menores AA, nascido a ../../2011, e BB, nascida a ../../2014 foram remetidos pela CPCJ a solicitação do tribunal, ao abrigo do disposto nos arts. 11º nº 1 do RGPTC e 81º nº 1 da LPCJP para apensação ao processo tutelar cível de alteração das responsabilidades parentais pendente.
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Recebidos os autos em tribunal foi declarada aberta a instrução e solicitado ao ISS a elaboração de inquérito com avaliação da situação, o que foi efetuado, pronunciando-se tal entidade pela desnecessidade de intervenção em sede de promoção e proteção.
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Cumprido o disposto no art. 85.º da LPCJP veio o progenitor pronunciar-se em sentido concordante ao arquivamento dos autos e a progenitora defendendo a prossecução do processo e aplicação de medida de promoção e proteção.
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O Ministério Público pronunciou-se inicialmente no sentido de os autos aguardarem a realização de diligência que se encontrava designada no apenso de alteração das responsabilidades parentais e, após realização de tal diligência e tendo em conta a decisão aí proferida (ainda que provisória), no sentido do arquivamento dos presentes autos.
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Conclusos os autos foi proferido despacho que determinou o arquivamento dos autos.
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Não se conformando com o assim decidido veio a progenitora interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:
1 - Depois da progenitora e das crianças terem assistido impotentes a uma completa inação por parte da CPCJ ... às queixas, apresentadas no início de agosto e finais de novembro de 2023, sobre os maus tratos físicos e psíquicos praticadas pelo progenitor sobre os seus filhos,
2- A progenitora foi ainda surpreendida com um relatório do ISS que propôs o arquivamento do processo de promoção e proteção, não obstante o AA e a BB terem, de modo espontâneo, autónomo e livre, sido unânimes em dizer aos técnicos que o pai lhes batia e, no caso do AA, gritava e gozava com ele (página 6), sendo, de resto, isso que explica que venha referido no relatório (página 8) que o AA se recusou a participar nos convívios com o pai.
3- Não obstante aquele relato translúcido e sofrido das crianças, o ISS, leviana e impunemente, desconsiderou o superior interesse das crianças, chegando ao ponto de apelidar os episódios de agressão paternal como de «correção» (página 5), como que concordando que o pai pode e deve bater nos filhos sempre que entenda por adequado.
4- Por tudo isso, a progenitora pronunciou-se, por requerimento de 23-04-2024, ao dito relatório do ISS, pondo legítima e fundamentadamente em causa a competência e idoneidade dos técnicos do ISS subscritores do relatório, nomeadamente por: (1) negligenciar os conhecimentos da Dra. CC a quem a BB relatou episódios tresloucados do progenitor e medo de abordar determinadas questões com o pai por ter receio da reação do mesmo; (2) negligenciar os conhecimentos dos psicólogos do Hospital ... que estiveram com o AA no dia dos factos ocorridos em Novembro de 2023; (3) omitir que o AA tenha expressado várias vezes não querer ir mais para casa do pai por ter medo dele; (4) omitir que o AA lhes relatou as agressões de que é vítima do pai desde a infância; (5) omitir e deturpar todo o relato circunstanciado da progenitora.
5- Impugnando o relatório e defendendo o prosseguimento do processo de promoção e proteção por se encontrar perfeitamente evidenciada uma situação de perigo para as crianças, defendendo até a produção de prova testemunhal a esse respeito.
6- O tribunal não foi dessa opinião. A nosso ver mal, muito mal.
7- O tribunal recorrido para fundamentar a sua decisão de arquivamento considerou demonstrados, entre outros, os seguintes factos:
1- Os progenitores têm estilos educativos muito díspares, sendo a progenitora mais compreensiva e permissiva e o progenitor mais exigente no cumprimento de regras ao ponto de considerar legitima a punição física quando entende necessária;
2- Ambos os menores verbalizam situações de agressões físicas por parte do pai e não pretendem retomar o regime de guarda alternada, embora não excluam em absoluto manter com este alguns convívios.
8- Relativamente ao predito ponto 1, mais do que o desconhecimento sobre o significado da expressão «permissiva» imputada à progenitora (pois o tribunal não fundamenta tal asserção), dizer-se que o progenitor é mais exigente (o tribunal não fundamenta tal consideração) no cumprimento das regras mais parece uma espécie de uma legitimação do seu comportamento nefasto.
9- Quanto ao ponto 2, o tribunal a quo não dimensiona em toda a sua plenitude aquilo que resultou cristalino da diligência de conferência de pais realizada a 6-05-2024.
10- De facto, da ata da conferência de pais (cuja junção neste recurso como Doc. 1 se justifica à luz do art. 651.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC) consta que a BB terá dito à Exma. Senhora Juiz, à Exma. Senhora Procuradora da República e ao técnico do ISS que: «Já não vai uma semana para casa do pai porque ele lhe bate a ela e ao seu irmão muitas vezes. Quando se encontrava a ser acompanhada pela Drª. DD o pai já lhe batia mas não disse porque tinha medo que o pai lhe batesse. O pai já lhe deu bofetadas e dá-lhe palmadas e bateu-lhe quando estava a pentear os cabelos…Houve uma vez que o pai lhe deu dez palmadas…A EE inicialmente protegi-a do pai mas agora não», chegando ao ponto de dizer que «Sente-se sozinha quando está com o pai. Ele não brinca com ela», o que é revelador de uma completa falta de afeto, carinho e atenção para com as crianças.
11- Quanto ao AA, terá dito que: «Deixou de ir ao pai porque ele lhe batia. O pai bate-lhe desde criança. Está sempre a gritar com ele. Uma ocasião o pai deu-lhe uma cabeçada e atirou-lhe a mochila pela porta fora e gritou com ele. O pai bate-lhe muitas vezes…O pai bate-lhe na cara, nas costas e nos braços….No início a EE defendia-os mas agora ela diz que quando era criança também levava…Não tem saudades do pai…Tem muito medo do pai. Sempre teve medo dele».
12- O próprio progenitor admitiu por várias vezes nessa diligência processual que bate nas crianças (cfr. ata) e que continuará a bater sempre que julgue necessário, que é assim que se educa e que não sabe outra forma de educar, chegando ao ponto de interpelar por mais do que uma vez a Meritíssima Senhora Juiz para lhe dissesse como é que deveria então educar (factualidade que estranhamente não consta da ata mas que foi objeto de um requerimento da progenitora para correção da mesma, cuja junção neste recurso como Doc. 2 se justifica à luz do art. 651.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC).
13- E, por isso, não é pelo facto de as crianças estarem agora com o pai apenas um dia por semana (é apenas um dia, porque no próprio dia da conferência de pais o progenitor enviou um email à aqui recorrente a informar não poder estar com as crianças às quartas-feiras) que a situação de perigo está eliminada.
14- Quem admite bater e querer continuar a bater nas crianças, tanto bate nos convívios no regime de residência alternada como no regime de dia único de visita.
15- E isso é quanto basta para não ser ordenado o arquivamento dos presentes autos.
16- De facto, o arquivamento do processo previsto no art. 111.º da LPCJP só é legítimo nos casos em que é ostensiva a desnecessidade de aplicação da lei de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo.
17- Não é manifestamente esse o caso, pois in casu as crianças sofrem maus tratos físicos ou psíquicos; não recebem os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal e estão sujeitos a comportamentos que afetam gravemente a sua segurança e o seu equilíbrio emocional.
18- Essa situação de perigo não está afastada pelo facto de as crianças só estarem agora com o pai uma vez por semana, pois para que a situação de perigo prevista no art. 3.º da LPCJP ocorra não se torna necessário que tenha havido lugar a uma efetiva lesão de alguns dos “bens ou valores” ali referidos, bastando tão só que esteja criada uma situação de facto que seja realmente potenciadora desse perigo de lesão, ou seja, tal normativo basta-se com a criação de um real ou muito provável perigo, ainda longe de dano sério (cfr. Tomé de Almeida Ramião, in Lei de Proteção de Crianças e Jovens e Perigo, Comentada e anotada, 6ª. ed., Quid Juris, pág. 27).
19- As crianças têm medo do pai e essa verdade é irrefutável e inegociável.
20- De modo que é um imperativo a revogação do despacho em crise e o prosseguimento da instrução do processo de promoção e proteção, nomeadamente para audição de todas as pessoas envolvidas no processo educativo, familiar e em contexto psicológico.
21- E porque está consagrado na atual redação da LPCJP a possibilidade de aproveitamento, para efeitos tutelares cíveis, dos resultados proporcionados pelos processos de promoção e proteção, designadamente a obtenção de acordo tutelar cível, o que racionaliza e simplifica procedimentos, reduzindo significativamente a morosidade da justiça tutelar cível (cfr. ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/01/2019-relator: Oliveira Abreu).
22- O Tribunal recorrido subverte o procedimento consagrado na LPCJP ao ordenar o arquivamento do processo urgente de promoção e proteção em benefício de decisões tomadas e/ou a tomar num processo não urgente de alteração às responsabilidades parentais.
23- Assim, deve a revogação da sentença recorrida ser ainda acompanhada da decisão de suspensão e/ou arquivamento da ação de alteração das responsabilidades parentais.
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Devidamente notificado contra-alegou o Ministério Público concluindo pelo não provimento do recurso.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P. Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar:

a)- saber se tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- saber se havia, ou não, fundamento, para ser ordenado o arquivamento do presente processo de promoção e proteção.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a factualidade que vem dada como provada pelo tribunal recorrido:
1º)- Por decisão proferida a 12-04-2023 nos autos de regulação das responsabilidades parentais (apenso A) e que homologou o acordo dos progenitores foram reguladas as responsabilidades parentais referentes aos menores acordando os progenitores num regime de guarda alternada semanal;
2º)- Não obstante, o relacionamento entre os progenitores manteve-se sempre conflituoso, o que resulta dos apensos B (incumprimento suscitado pela progenitora a 10 de maio de 2023 e objeto de sentença de indeferimento proferida a 07-07-2023); C (processo tutelar cível visando decisão judicial face ao desacordo dos progenitores quanto a questão de particular importância e suscitado pela progenitora a 06-06-2023, tendo sido obtido acordo a 10-07-2023) e D (processo tutelar cível visando decisão judicial face ao desacordo dos progenitores quanto a questão de particular importância e suscitado pela progenitora a 21-12-2023, tendo sido extinto por inutilidade superveniente da lide a 28-02-2024);
3º)- Em agosto de 2023 a progenitora efetuou queixa crime contra o progenitor por alegados maus tratos aos filhos;
4º)- Ambos os menores frequentam a escolaridade com assiduidade e sem problemas de comportamento, têm garantidos os cuidados médicos de que necessitam e beneficiam de acompanhamento psicológico;
5º)- Os progenitores têm estilos educativos muito díspares, sendo a progenitora mais compreensiva e permissiva e o progenitor mais exigente no cumprimento de regras ao ponto de considerar legitima a punição física quando entende necessária
6º)- A partir de finais de novembro de 2023 os menores passaram a permanecer, de facto, apenas com a mãe, recusando convívios com o progenitor;
7º)- Ambos os menores verbalizam situações de agressões físicas por parte do pai e não pretendem retomar o regime de guarda alternada, embora não excluam em absoluto manter com este alguns convívios;
8º)- A 06-05-2024 em conferência realizada nos autos de alteração das responsabilidades parentais, após audição das crianças, foi obtido acordo em alterar provisoriamente o regime ficando a residência dos menores fixada junto da mãe e previstos convívios dois dias por semana, sem pernoita e com acompanhamento por parte do ISS, estando designada nova diligência para 03-07 a fim de avaliar a situação;
A estes factos importa aditar o seguinte:
9º)- Na ata de conferência de progenitores ocorrida em 03/07, no âmbito da alteração da regulação das responsabilidades parentais de que estes autos são apenso, ficou a constar o seguinte:
“Aberta a presente diligência ás 11:43 horas, pela Mm. ª Juiz Direito, passou-se a ouvir em declarações os menores, AA e BB, na presença do técnico do ISS, Dr. FF, da forma que se segue:
Pelos depoentes foi referido que transitaram de ano, sendo que, a BB vai para o 5º ano e o AA vai para o 8º ano.
Referem que o dia de fim-de-semana com o pai, tem corrido bem.
A BB relatou apenas uma situação em que o pai ralhou porque ela se atrasou a ir para a mesa porque estava a arrumar os legos, mas a EE “fez uns olhos” ao pai.
Acrescenta ainda o AA que, houve uma vez que não quis ir com o pai porque, tinha uma festa de anos do seu melhor amigo e perguntou ao pai se o levava á festa e o pai não lhe respondeu, dizendo que, em casa conversavam e, nesse sentido o depoente teve receio que o pai não o levasse, pois isso já tinha acontecido antes, e ficou com a mãe nesse fim de semana.
No último fim-de-semana foram a um casamento com o pai e gostaram muito porque brincaram com os primos
Esclarecem por fim que, as coisas estão bem assim, não pretendendo para já mais alterações.
E mais não disseram.
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De seguida, a Mm.ª Juiz, transmitiu aos progenitores o que sentiu e as conclusões que retirou da conversa com as crianças e, dada a palavra á progenitora, por esta foi referido que, globalmente, o regime provisório fixado tem corrido bem, ressalvando que, no sábado passado o pai foi entregar as crianças e sua casa e a BB vinha de cuecas, sem o vestido e apenas com uma camisola do irmão que lhe tapava o rabo, o que a depoente não acha bem e adequado.
Pelo progenitor foi referido que, relativamente ao regime provisório as coisas estão a correr bem, embora não consiga cumprir o fixado quanto às 4ª feiras
Relativamente ao referido pela mãe, esclarece que, tirou o vestido da BB, porque ela se tinha sujado a comer mousse de chocolate e para que pudesse lavar o vestido, tirou-lho e a menor vestiu uma camisola do irmão que lhe dava até meio da cocha e um casaco por cima.
Acrescenta ainda o progenitor que, relativamente ao acompanhamento psicológico, irá ter a primeira consulta no dia 02 de agosto”.[1]
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III. O DIREITO

Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir nos presentes autos prende-se com:
a)- saber se tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Nas conclusões 7ª a 12ª a apelante faz referência aos pontos 5º) e 7º) da fundamentação factual atrás transcrita tecendo um conjunto de considerações, mas sem que, em retas contas, impugne essa factualidade nos termos que constam do artigo 640.º do CPCivil e, concretamente, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os citados pontos factuais [cfr. al. c) do citado normativo].

Com efeito, o recorrente que pretenda impugnar, com sucesso, a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de cumprir (“sob pena de rejeição”)[2] vários ónus de especificação que podem ser assim enunciados[3] (artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil):

-especificação dos concretos pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados pelo tribunal recorrido, obrigação que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida;[4]

-indicação das concretas provas (constantes do processo ou que nele tenham sido registadas) que impõem decisão diversa da recorrida, ónus que se cumpre com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe outra decisão;[5]

- indicação da decisão (diversa da recorrida) que, no seu juízo, se impõe quanto a cada um dos pontos de facto que considera mal julgados.

E decorrente da imposição de tais ónus, tendo hoje a consolidar-se e a tornar-se pacífico o entendimento de que a rejeição do recurso que impugna a decisão sobre matéria de facto só se justifica verificada alguma destas situações:

- falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto [artigos 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b), de CPCivil];

- falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados [artigo 640.º, n.º 1, al. a), do CPCivil], pela importante função delimitadora do objeto do recurso que essa especificação desempenha;[6]

- falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados;

- falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;

- falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.[7]
É verdade que nos termos decididos no AUJ nº 12/2023[8] o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa, todavia a mesma deve resultar, como aí se afirma, de forma inequívoca, das alegações.
Ora, do corpo alegatório também tal decisão alternativa se não extrai, aliás, as conclusões nada mais são do que a reprodução, com alterações pontuais, da motivação do recurso.

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Daí que, nestas circunstâncias e em conformidade com o entendimento acima perfilhado se considere que a recorrente incumpriu os referidos ónus, impondo-se, assim, a rejeição da impugnação da matéria de facto e por lógica implicância das conclusões 7ª a 12ª formuladas pela apelante.
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A segunda questão que importa apreciar e decidir consiste em:
b)- saber se havia, ou não, fundamento, para ser ordenado o arquivamento do presente processo de promoção e proteção.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento de que não havia necessidade de aplicação de qualquer medida de promoção e proteção, em virtude de a eventual situação de comportamentos menos adequados por parte do pai a que os menores estariam sujeitos, quando em regime de guarda alternada, se encontrar ultrapassada, pela decisão provisória proferida em sede tutelar cível.
Desta decisão discorda a apelante alegando em resumo que não é pelo facto de as crianças estarem agora com o pai apenas um dia por semana[9] que a situação de perigo está eliminada.
Que dizer?
Preceitua o artigo 27.º, n.º 1, do RGPTC que “as decisões que apliquem medidas tutelares cíveis e de promoção e proteção, ainda que provisórias, devem conjugar-se e harmonizar-se entre si, tendo em conta o superior interesse da criança”.
Extrai-se da factualidade acima descrita que 06/05/2024 em conferência realizada nos autos de alteração das responsabilidades parentais, após audição das crianças, foi obtido acordo em alterar provisoriamente o regime ficando a residência dos menores fixada junto da mãe e previstos convívios dois dias por semana, sem pernoita e com acompanhamento por parte do ISS [cfr. ponto 8º) da fundamentação factual].
Efetivamente, no âmbito do referido processo foi exarado, provisoriamente, o seguinte acordo quanto ao regime de residência e visitas:
“1. As crianças ficam a residir com a mãe, ficando o exercício das responsabilidades parentais, nas questões de particular importância, atribuído a ambos os pais.
2. As crianças estarão com o pai às quartas-feiras, desde o final das atividades, inclusive a atividade da BB que se encontra no ATL, devendo o pai procurar as crianças no estabelecimento de ensino e entrega-los em casa da mãe até às 21:30 horas;
3. As crianças estarão ainda com o pai ao sábado ou ao domingo, desde as 10 às 21:30 horas, iniciando-se no próximo domingo, dia 12-05-2024.
4. Os convívios serão acompanhados pelo I.S.S., através do Sr. Dr. GG”.
Ora, perante o referido acordo, ainda que provisório, tal como bem se refere na decisão recorrida, comportamentos menos adequados por parte do progenitor a que os menores estariam sujeitos e por eles verbalizados [cfr. ponto 7º) da fundamentação factual], quando em regime de guarda alternada encontra-se ultrapassada pela supra referida decisão provisória proferida em sede tutelar cível, sendo que os convívios agora previstos terão acompanhamento por parte do ISS e reavaliação periódica a fim de ir monitorizando a situação e avaliando da sua adequação.
Não se põe em causa que não é pelo facto de as crianças estarem agora com o pai apenas um dia por semana que a situação de perigo está eliminada.
Acontece que, no dia 03/07 na ata de conferência de pais, destinada a avaliar a execução do citado regime provisório, ficou a constar que, quer os progenitores quer os menores, concordam, que os convívios entre pai e filhos, nestas circunstâncias condicionadas, têm corrido bem, embora havendo sempre relato de algumas situações que se tomam por atípicas e desnecessárias, mas cuja correção o progenitor aceita ser efetuada e trabalhada em sede de acompanhamento psicológico, cujo início terá lugar no mês de agosto [cf. ponto 9º) da fundamentação factual].
Como assim, no cumprimento do primado do superior interesse da criança, no que ao caso concreto do AA e da BB diz respeito, a intervenção justifica-se no domínio processual da ação de ARERP, o que vem acontecendo, com a prolação de decisão provisória e a realização das diligências legalmente refletidas do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
Isto dito, interligados os princípios estruturantes e orientadores, do RGPTC e da LPCJP, ambos reguladores de providências tutelares cíveis, que atentam prioritariamente aos interesses e direitos das crianças e dos jovens, pugnando pelo afastamento do perigo ou risco em que se encontrem, não se divisa a necessidade no presente caso de duplicação da intervenção processual.
Na verdade, no âmbito ação de ARERP na qual a prioridade é o restabelecimento da relação dos filhos com o progenitor, no cumprimento da decisão provisória proferida em consonância com o disposto no artigo 28.º do RGPTC, o superior interesse das crianças está a ser cabalmente acautelado, por tais relações familiares estarem a ser acompanhadas ao nível técnico, pelo ISS e no domínio da psicologia.
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Destarte, tal como decidido, não se vê que a intervenção em sede de promoção e proteção seja necessária ou sequer útil, pois que, a situação de fragilidade do relacionamento dos menores com o progenitor está, como acima deixou referido, a ser acompanhada em sede tutelar cível, além de que se encontra pendente inquérito crime que avaliará da efetiva ocorrência e gravidade dos comportamentos punitivos por parte do pai.
Acresce que, nos termos do artigo 111.º da LPCJP, sempre os presentes autos poderão se reabertos se ocorrerem factos que justifiquem a aplicação de uma medida de promoção e proteção em favor dos menores.
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Assim, bem andou o Tribunal a quo ao decidir pelo arquivamento dos autos.
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Improcedem, desta forma, as conclusões 1ª a 6ª e 13ª a 23ª formuladas pela apelante e, com elas, a respectivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 9/9/2024
Dr. Manuel Domingos Fernandes
Drª Maria Fernandes de Almeida (dispensei o visto)
Dr. Eusébio Almeida (dispensei o visto)

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[1] Nestes casos a Relação, limita-se a aplicar as regras vinculativas extraídas do direito probatório, devendo integrar na decisão o facto que considere provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado, pois que, nos termos do artigo 663.º, nº 2 do diploma citado, aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para a elaboração da sentença, entre as quais se insere o artigo 607.º, nº 3 do mesmo diploma legal, norma segunda a qual o juiz, na fundamentação, toma em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
[2] Como se decidiu no Ac. STJ de 30.06.2020 (processo n.º 1008/08.3 TBSI.E1.S1), “III - A cominação para a falta de especificações constantes das als. a), b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC é a rejeição da impugnação da decisão de facto, não havendo lugar a qualquer despacho de aperfeiçoamento nos termos do n.º 3 do art. 639.º do CPC”.
[3] No Ac. STJ de 16.12.2020 (processo n.º 8640/18.5 YIPRT.C1.S1) fala-se em dois ónus que recaem sobre o recorrente que impugna a decisão sobre matéria de facto: “Um ónus principal, consistente na delimitação do objeto da impugnação (indicação dos pontos de facto que considera incorretamente julgados) e na fundamentação desse erro (com indicação dos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação que impunham decisão diversa e o sentido dessa decisão) – Art.º 640º nº 1 do CPC; e
Um ónus secundário, consistente na indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art.º 640º nº 2 al. a) do CPC.”.
[4] Sendo certo que, em casos-limite, a impugnação pode implicar toda a matéria de facto, nem por isso o recorrente está desobrigado de especificar os concretos pontos de facto por cuja alteração se bate (cfr. A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5.ª edição, pág. 163, em nota de pé de página).
Esta especificação serve para delimitar o objeto do recurso e por isso tem de constar das conclusões.
[5] O Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes (ob. cit., pág. 170, nota de pé de página) afirma ser “infundada a rejeição do recurso da matéria de facto com fundamento na falta de indicação, nas conclusões, dos meios probatórios ou dos segmentos da gravação em que o recorrente se funda. O cumprimento desses ónus no segmento da motivação parece suficiente para que a impugnação da decisão da matéria de facto ultrapasse a fase liminar, passando para a apreciação do respetivo mérito”, citando jurisprudência do STJ nesse sentido.
No Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 771, de que é autor em conjunto com Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, precisa-se que “é objeto de debate saber se os requisitos do ónus impugnatório devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões, sob pena de rejeição do recurso” e anota-se que “o Supremo tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm de reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objetividade e de certeza, com os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação”.
[6] Assim, por mais recentes, os Acs. STJ de 19/01/2023 (processo n.º 3160/16.5T8LRS-A.L1-A.S1) e de 27/04/2023 (processo nº 4696/15.0T8BRG.G1.S1).
[7] Cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., na nota 8, págs. 169-169 e o recente acórdão de Uniformização de Jurisprudência datado de 17/10/203-Processo nº 8344/17.6T8STS.E-ASI ainda não transitado em julgado.
[8] Publicado no DR 1ª Série de 14/11/2023. 
[9] O progenitor como declarou em sede de conferência de pais não pode cumprir com acordado às quartas-feiras.