ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
QUANTIAS MONETÁRIAS APREENDIDAS
RESTITUIÇÃO
PROPRIETÁRIO
Sumário

O Estado, como detentor provisório das “coisas e objetos” apreendidos tem, como nos parece lídimo, de averiguar com um grau consistente de certeza a quem vai devolver tais coisas / objetos, certificando-se de que é ao seu proprietário, até sob pena de posteriormente vir a ser demandado por este, caso não se certifique devidamente dessa propriedade e devolva os mesmos a quem não é, efetivamente, seu proprietário.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo Central Cível e Criminal de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum coletivo n.º 21/20.7PJOER, onde foi proferido despacho onde foi indeferido o pedido de restituição (formulado por AA) de quantias monetárias apreendidas nos autos e, em consequência, foram tais quantias declaradas perdidas a favor do Estado.

Inconformado com tal despacho, dele recorreu AA, terminando a motivação do recurso com as seguintes (transcritas) conclusões:

“1º - O recorrente foi arguido no processo, na fase de inquérito, tendo-lhe sido apreendida quantia pecuniária.

2º - Não foi acusado pelo detentor da ação penal, deixou de ser suspeito e arguido.

3º - Pelo que a consequência do arquivamento do processo quanto a si mesmo, ao não ser acusado, nesse segmento, é a devolução da quantia mencionada que inequivocamente lhe foi apreendida, pois se a quantia tivesse proveniência ilícita existiriam indícios suficientes da prática de ilícito e teria sido acusado, como teria sido refletido na acusação que tal quantia por implicada em atos ilícitos deveria ser declarada perdida a favor do Estado.

4º - É o facto de não ter sido acusado que determina a devolução do seu dinheiro, através da restituição respetiva e direta, sem necessidade de qualquer outra justificação; naquele momento de encerramento do inquérito, na instrução e no julgamento; tendo sido já declarado que não existiu e nem existe trânsito em julgado da decisão proferida quanto a si próprio, renova-se o assunto e a pretensão para que seja superiormente analisado e decidido.

5º - Pelo que quando o despacho agora recorrido indefere a restituição desta feita pelo motivo de dever devolver a “quem de direito”, esse a “quem de direito” é o recorrente e não qualquer outra pessoa, era o proprietário, o possuidor, o visado no auto de busca e na apreensão feita no seu quarto / dormitório, que ilucida a situação e não deixa margem de dúvidas algumas quanto a isso.

6º - Aliás, com as vicissitudes processuais anteriores que têm levado à não restituição das quantias a que o recorrente tem direito, nunca tal questão se suscitou, antes tratou-se de entender existir caso julgado para todos (mesmo para quem nunca foi notificado de nada), ser o recurso extemporâneo e tratar-se de ato de mero expediente, o que veio a ser alterado por Ac. TRE a que acima se aludiu.

7º - Essa particular questão não tem cabimento legal, não existe norma legal que a viabilize, nada do lado subjetivo do recorrente ou objetivo da quantia pecuniária permite que não seja devolvida e alternativamente ser o Estado a locupletar-se com a mesma.

8º - Não existe norma ou nomenclatura legal para declarar perdidas verbas apreendidas a favor do Estado, que sejam pertença e apreendidas a quem foi arguido ou meramente suspeito, mas nem sequer veio a ser acusado, nem sequer presente a JIC quando transportado à PJ, pelo que sempre seria injustificado que o Estado fizesse suas tais quantias, locupletando-se com as mesmas.

9º - São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionadas com a prática de um facto ilícito típico, nos termos do artº 178º do CPP e os mesmos são restituídos nos termos do artº186º do CPP, norma reiteradamente violada ao longo dos autos e pela decisão recorrida.

10º - Nem sequer, injustificadamente, no quadro de aplicação das normas do dl. 15/93 de 22/1 existe fundamento algum para que as quantias monetárias apreendidas ao recorrente lhe não sejam devolvidas e sejam declaradas perdidas a favor do Estado, por para isso não existir cabimento.

11º - Basta atentar no auto da busca e de apreensão inerente às quantias e ao recorrente para se antolhar não assistir razão alguma no entendimento recorrido, salvaguardando-se o devido respeito.”

Pugnando, em síntese:

“Pelo que deverá ser decidido nessa conformidade, como é de justiça e de lei.”

O recurso foi admitido.

Em resposta, o MP em 1.ª instância concluiu que (transcrição):

“1 - AA, ora recorrente interpôs recurso da decisão judicial que indeferiu a devolução do dinheiro apreendido porquanto o recorrente não logrou provar a sua proveniência lícita.

2 - Cremos, salvo o devido respeito, que não assiste razão ao recorrente, não merecendo censura a douta decisão judicial, e, consequentemente, o recurso está condenado à improcedência.

3 - Dos autos, verifica-se que: Em cumprimento de mandados de busca à residência, a Polícia Judiciária procedeu a buscas em propriedade sita na localidade de …, …vide mandado de fls. 3260, com vista à obtenção de indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes por parte do arguido, BB, que foi condenado.

Nessa diligência, foram quatro indivíduos identificados, entre eles, o recorrente.

A busca foi acompanhada do Ilustre Causídico do recorrente,

Nos armazéns e veículos objetos da busca ordenada, foram apreendidos produto estupefaciente, diversos equipamentos náuticos comumente associados ao tráfico de estupefaciente efetuado pelo mar – vide auto de busca e apreensão de fls. 3262 e ss,

Nos armazéns “buscados” existiam dois dormitórios, um deles eventualmente utilizado pelo recorrente.

No dormitório utilizado pelo recorrente, foram apreendidos €360,00 no interior de uma bolsa preta, €120,00 no interior da carteira do recorrente e, €10 000,00 no interior de um envelope – vide fls. 3270 e ss.

O recorrente foi constituído arguido, e,

Em sede de despacho de encerramento de inquérito, relativamente ao recorrente, decidiu-se proferir despacho de arquivamento nos termos do disposto no artigo 277º/2 do Código de Processo Penal, porquanto, relativamente a este, a indiciação era insuficiente.

4 - Não consta dos autos que:

- O local onde foi encontrado o dinheiro ora reclamado era residência do recorrente, apesar de aí pernoitar,

- O dinheiro reclamado estivesse guardado em lugar só acessível ao recorrente,

5 - Mais se dirá que o dinheiro apreendido é composto essencialmente de notas do BCE de €10,00, notas de BCE frequentemente utilizadas nas transações no âmbito do tráfico de estupefaciente , e,

6 - O recorrente não provou ou indiciou qual quer relação laboral que pudesse justificar aquelas “economias”.

7 – Pelo que a explicação dada pelo recorrente não nos parece credível.

8 - Ora, estabelece o número 1 do artigo 186º do Código de Processo Penal, que “logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os animais, as coisas ou os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito ou, no caso dos animais, a quem tenha sido nomeado seu fiel depositário,” e estabelece o número 2 do mesmo artigo: “logo que transitar em julgado a sentença, os animais, as coisas ou os objetos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.(..)”

9 - Pelo que, não tendo o recorrente lograr a origem do dinheiro apreendido – à exceção do dinheiro apreendido na sua carteira – objeto pessoal, a sua pretensão teve que ser indeferida, declarando o dinheiro perdido a favor do Estado, o que o Tribunal a quo fez.

10 - Pelo que não merecendo quaisquer reparos deverá, pois, ser mantida, nos seus precisos termos, a decisão judicial agora posta em crise.”

Pugnando, em síntese, pelo seguinte:

“Termos em que, em nosso entender, deverá ser negado provimento ao recurso e confirmada a Douta Decisão Judicial recorrida nos seus precisos termos.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer, defendendo, em síntese, que, “admitindo-se, como parece admitir o recorrente de que o acórdão da 1ª instância transitou em julgado, mesmo relativamente a si, é manifesta a sua total e absoluta falta de razão relativamente à questão do perdimento do dinheiro e, principalmente relativamente ao teor do despacho de 19.04.2023” pelo que ao recurso interposto não deve ser concedido provimento.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1), tendo o recorrente, em síntese, respondido o seguinte:

“É evidente que o recurso não é extemporâneo, muito menos pelos razões que o MP agora se lembrou de convocar; aliás, também essa mesma questão já foi tratada por essa mesma 2ª Instância, através de acórdão proferido no seguimento daquela mesma Reclamação.

E, salvo o devido respeito, não tem cabimento algum igualmente tal argumento de que o recurso seja intempestivo ou o arguido se tenha conformado com o que quer que fosse.

A leitura do acórdão proferido, que motivou a baixa do processo, é o que diz e até explica…”

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Na sequência de recurso interposto pelo Requerente AA, pelo Tribunal da Relação de Évora foi decidido que este tribunal se pronunciasse sobre o pedido de restituição da quantia monetária apreendida.

Em cumprimento do decidido, este tribunal decidiu desde logo ordenar a restituição ao requerente da quantia que lhe foi apreendida na carteira, por não haver dúvidas quanto à sua titularidade.

Quanto ao mais (€360,00 encontrados no interior de uma bolsa preta, €10.000,00 encontrados no interior de um envelope), determinou-se a notificação do requerente para justificar propriedade e proveniência do dinheiro apreendido, para tanto juntando documentação que seja pertinente para o efeito.

Em resposta AA veio alegar que:

- As quantias apreendidas são suas pertenças.

- Só recentemente o mesmo dispõe de conta bancária;

- À data guardou as economias dos anos sucessivos de trabalho em seu poder, sendo isso comum em diversos sectores da sociedade,

ou porque podem ser visados por exemplo pelo fisco ou credores, ou até que não acreditam no sistema bancário;

- Esta quantia estava no espaço onde dormia;

- Nunca nos autos se questionou a propriedade de tais quantias monetárias.

O MP pronunciou-se no sentido de ser indeferida a pretensão do requerente.

Cumpre apreciar.

Com relevo importa considerar a seguinte factualidade:

1. Em cumprimento de mandados judicialmente emitidos, no dia 23 de Junho de 2021 a PJ realizou buscas num Terreno/Armazém na localidade de …, …, melhor identificado através de coordenadas de GPS (cf. mandado de fls. 3260), visando apurar indícios da prática do crime de tráfico de estupefacientes por parte do arguido (entretanto condenado) BB;

2. No início da diligência foram identificados quatro indivíduos que se encontravam no local, entre eles o requerente AA, apurando-se que aquele terreno e armazéns estavam afectos à actividade da empresa “…” (cf. auto de diligência de fls. 3256 a 3258);

3. A busca foi acompanhada pelo mandatário do aqui requerente (idem);

4. Nos vários armazéns e veículos aí parqueados foi apreendido produto estupefaciente e diversos equipamentos náuticos comummente associados ao tráfico marítimo desses produtos (auto de busca e apreensão de fls. 3262 e sgs.);

5. Num dos armazéns existiam dois dormitórios, identificando-se um deles com sendo utilizado pelo ora requerente, e onde se encontravam €360,00 no interior de uma bolsa preta, €120,00 no interior da sua carteira, e €10.000,00 no interior de um envelope (idem e registo fotográfico de fls. 3270).

Estabelece o art. 186º do CPP que:

1 - Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os animais, as coisas ou os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito ou, no caso dos animais, a quem tenha sido nomeado seu fiel depositário.

2 - Logo que transitar em julgado a sentença, os animais as coisas ou os objetos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.(…)

Como resulta dos factos elencados, o local onde foi encontrado o dinheiro reclamado não era residência própria do requerente, ainda que ele ali pudesse pernoitar, nem estava guardado em qualquer local em que apenas o requerente tivesse acesso, como ocorreu em relação à quantia encontrada na sua carteira. Por outro lado, não é verosímil que guardasse naquele local as “economias de anos sucessivos de trabalho”, para mais repartidas, parte numa bolsa, outra parte num envelope de papel, sendo o volume do dinheiro apreendido constituído maioritariamente por notas de €10, como se pode verificar no registo fotográfico, o que também não “encaixa” na explicação que avançou.

Sendo certo que podia ter feito juntar aos autos contrato de trabalho/recibos de vencimento/declaração da entidade patronal que, de alguma forma, atribuísse verosimilhança quer quanto à proveniência daquela quantia, quer quanto à sua titularidade.

Ora, nos termos da disposição legal supra citada, o tribunal tem de restituir os bens cuja perda não haja sido determinada a “quem de direito”, ou seja, a quem demonstre ser o seu proprietário caso se suscitem dúvidas fundadas a esse respeito, como é o caso.

Donde, não tendo o requerente demonstrado a posse, muito menos titulada (arts. 1251º e 1259º nºs. 1 e 2 do Cód. Civil), daquelas quantias, indefiro ao pedido de restituição e, em consequência, declaro tais quantias perdidas a favor do Estado.”

Anteriormente, foi proferido nos presentes autos, em 23.01.2024, o seguinte despacho:

“Tendo este tribunal de se pronunciar quanto ao destino do dinheiro reclamado por AA, conforme decidido pelo Tribunal da Relação de Évora, determino:

- que se restitua ao requerente a quantia de €120,00 encontrada no interior da carteira pessoal;

- quanto às demais quantias (€360,00 encontrados no interior de uma bolsa preta, €10.000,00 encontrados no interior de um envelope), notifique o requerente para, em 10 dias justificar propriedade e proveniência do dinheiro apreendido, para tanto juntando documentação que seja pertinente para o efeito.”

Notificado o despacho anterior ao ora recorrente, veio o mesmo apresentar o seguinte requerimento:

“As quantias apreendidas são suas pertenças.

Na verdade, só recentemente o mesmo dispõe de conta bancária, pois inclusivamente o IBAN anteriormente fornecido é de uma conta bancária de sua irmã.

Porque não dispunha de conta bancária guardou as suas economias dos anos sucessivos de trabalho em seu poder, sendo isso comum em diversos setores da sociedade, ou porque podem ser visados por exemplo pelo fisco ou credores ou até que não acreditam no sistema bancário em face da implosão de alguns bancos conhecidos num passado mais ou menos recente, sendo do conhecimento público a existência dos lesados, por exemplo, pelo Banco ….

Aliás, estava a quantia, além da existente na carteira pessoal de uso diário, precisamente no espaço onde dormia.

De resto, o próprio aresto anteriormente proferido, assim como o curso dos autos, nunca colocaram em causa a questão da propriedade de tais quantias monetárias, que, convenhamos e salvo o devido respeito, deveriam ter sido restituídas logo assim que não foi deduzida acusação contra o arguido e o mesmo deixou de ter essa qualidade processual.

Assim, impetra-se para que V. Excelência defira a restituição da verba global que pertence ao requerente, sendo que o mesmo não dispõe de qualquer documentação sobre a mesma, trata-se de valor acumulado de poupanças que nos sobreditos termos lhe pertencia e pertence.

Para o efeito e visando-se a procedência da restituição, indica-se o IBAN relativo a conta aberta no banco … ….”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

1.ª questão – A decisão de perdimento do dinheiro (constante do acórdão em 1.ª instância) transitou em julgado?

2.ª questão – A não entrega ao ora recorrente do dinheiro apreendido mostra-se (ou não) fundada de facto e de direito?

B. Decidindo.

1.ª questão – A decisão de perdimento do dinheiro (constante do acórdão em 1.ª instância) transitou em julgado?

Sobre esta questão (suscitada no parecer do Digno PGA junto deste TRE) já se pronunciou o Acórdão proferido nos autos (apenso “G”), que concedeu provimento ao recurso interposto pelo ora recorrente, revogando a decisão recorrida e determinando que deveria “o tribunal recorrido pronunciar-se sobre o pedido de restituição da quantia monetária global apreendida ao recorrente nos autos tendo em conta que a decisão do seu perdimento a favor do Estado não transitou em julgado quanto ao mesmo”.

Assim, e considerando que não se vislumbra que, posteriormente àquela decisão tenha ocorrido a citada notificação e na sequência da pronúncia do tribunal a quo proferida na sequência do determinado naquele aresto, mostra-se ultrapassada a questão do (eventual) trânsito em julgado da decisão de perdimento constante do acórdão de 1.ª instância de 13.07.2022, restando a necessidade de conhecimento da 2.ª questão suscitada, o que de seguida se levará a efeito.

2.ª questão – A não entrega ao ora recorrente do dinheiro apreendido mostra-se (ou não) fundada de facto e de direito?

Rege, sobre esta questão, o art.º 186.º, determinando-se no n.º 1 que “logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova (…) as coisas ou os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito”, também determinando o n.º 2 que “logo que transitar em julgado a sentença, os animais, as coisas ou os objetos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.”

Segundo o recorrente “nunca esteve em causa de quem era o dinheiro apreendido, passou agora a estar em causa”.

Concordamos.

Porém, talvez não com o exato sentido que o ora recorrente pretende conferir à expressão estar em causa.

De facto e de direito, nunca até agora esteve “em causa” a propriedade do dinheiro apreendido porque, circunstância que o ora recorrente aparenta olvidar, estamos no âmbito de um processo criminal, com o evidente escopo de averiguar da prática de ilícitos criminais e dos respetivos efeitos.

Assim, não esteve em causa, até este momento, a propriedade do dinheiro apreendido, sendo este, como decorre da disposição legal acima mencionada, o momento legalmente previsto para decidir do respetivo destino.

O ora recorrente vem fazer referência expressa ao teor das decisões deste TRE (o citado Acórdão de 24.10.2023 e a decisão do Exm.º Presidente na reclamação da não admissão de recurso de 03.05.2023) para fundamentar a sua pretensão, com a alusão a expressões ali utilizadas [tais como a quantia que “lhe foi (ao ora recorrente) apreendida” ou “um terceiro juridicamente prejudicado”].

Porém, em tais decisões não foi, de todo, decidido a destino a dar ao dinheiro apreendido nos autos, nem era esse o escopo das mesmas.

Como é meridianamente claro, tais decisões conheceram, uma a legalidade da rejeição do recurso e a outra, se a decisão do perdimento do mencionado dinheiro constante do acórdão 13.07.2022 havia ou não transitado em julgado e, na negativa, qual o procedimento a seguir.

Decorre daqui que a questão do destino do dinheiro apreendido ainda não foi decidida (expressa ou implicitamente), não constituindo aquelas referências a ratio decidendi das mencionadas decisões, traduzindo um, irrelevante nesta sede, mero obiter dictum, ou seja, como refere a jurisprudência do STA, “uma excrescência em relação ao silogismo judiciário que motivou e estruturou a decisão”.

Desde logo, é de afirmar sem quaisquer dúvidas que a questão do eventual relacionamento das aludidas quantias com os crimes em causa não está minimamente em causa, estando completamente ultrapassada com o teor do acórdão proferido na 1.ª instância, sendo inconsequentes e desnecessárias as referências no recurso a tal vertente.

Por outro lado, quanto ao momento da apreciação (acusação, decisão instrutória ou sentença), também tal questão se mostra ultrapassada, pois este, como vimos, é o momento legalmente indicado para essa mesma apreciação

Como contraponto significativo a tal essencial irrelevância, é de sublinhar que, segundo o nosso entendimento, o recorrente olvidou o essencial, ou seja, justificar a propriedade e proveniência do dinheiro apreendido, nos exatos termos da notificação que lhe foi feita.

Segundo o recorrente, o mesmo “nem sequer teve oportunidade alguma de poder justificar a proveniência inteiramente lícita do dinheiro nesse mesmo julgamento ocorrido”.

É verdade.

Porém, foi oportunamente notificado para justificar a propriedade e proveniência do dinheiro apreendido.

O recorrente, porém, salvo o devido respeito, confunde uma eventual ligação do dinheiro apreendido aos factos penalmente relevantes dados como provados (ligação que, como vimos, não foi provada e não está, consequentemente, em causa) com a necessidade (legal) de se comprovar a quem “de direito” pertencem as coisas e os objetos apreendidos.

O Estado, como detentor provisório das “coisas e objetos” apreendidos tem, como nos parece lídimo, de averiguar com um grau consistente de certeza a quem vai devolver tais coisas / objetos, certificando-se de que é ao seu proprietário, até sob pena de posteriormente vir a ser demandado por este, caso não se certifique devidamente dessa propriedade e devolva os mesmos a quem não é, efetivamente, seu proprietário.

O recorrente, notificado para tal, limitou-se a afirmar tal propriedade, nada comprovando e alegando teses (com alto grau de inverosimilhança (2)) que, independentemente da sua credibilidade, sempre teriam de ser devidamente comprovadas, o que, como justamente se assinala na decisão recorrida (3), não foi feito.

O recorrente faz também apelo ao teor do auto de apreensão, desconhecendo-se, na ausência de qualquer presunção registral de propriedade (trata-se de dinheiro), como poderá tal auto, por si só, comprovar a propriedade do dinheiro apreendido.

Em síntese, não só não está “mais do que demonstrado que o recorrente era e é o proprietário de tais quantias”, como o mesmo, como lhe competia, não fez a mínima prova de que tais quantias eram suas “de facto e de direito”, limitando-se a invocar uma mera petição de princípio.

Pelo exposto, a decisão recorrida mostra-se solidamente escorada de facto e de direito, improcedendo, consequentemente, o recurso.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, mantendo o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

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1 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.

2 Serem as quantias apreendidas fruto de anos sucessivos de trabalho e desconfiança no sistema bancário.

3 Concretamente, através, por exemplo, da junção aos autos de “contrato de trabalho/recibos de vencimento/declaração da entidade patronal que, de alguma forma, atribuísse verosimilhança quer quanto à proveniência daquela quantia, quer quanto à sua titularidade”.