CONTRATO DE ESTÁGIO PROFISSIONAL
PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
CONTRIBUIÇÃO PARA A SEGURANÇA SOCIAL
COMPENSAÇÃO
Sumário

1 - Não estando verificados os pressupostos de aplicação da presunção estabelecida pelo art.º 12.º do Código do Trabalho, não estando demonstrados indícios da existência de subordinação jurídica, mantendo-se sem alterações a execução do contrato como contrato de formação, que se distingue do contrato de trabalho por apelo ao critério remuneratório, ao critério funcional e ao critério disciplinar não pode o mesmo ser qualificado como contrato de trabalho, ainda que seja ultrapassado o limite máximo da sua duração.
2 – Sendo no âmbito do contrato de formação devidas à segurança social contribuições e quotizações, tendo as mesmas sido pagas pelo recorrido, é legítimo o desconto do valor das quotizações na bolsa mensal paga à recorrente, que o aceitou, bem como a compensação do remanescente em dívida à data da cessação do contrato com o valor da dita bolsa.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam os juízes da 4.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório
AA intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Instituto Nacional da Propriedade Industrial, I.P., pedindo que:
a) se declare a existência de Contrato de Trabalho com Termo Certo, entre a A. e o R., desde 01 de novembro de 2020 até 01 de agosto de 2022;
b) se condene o réu no pagamento à A. do subsidio de férias não pago, referente aos anos de 2020 a 2022, no montante global de € 2.570,00, acrescido de juros de mora calculados, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;
c) se condene o réu no pagamento à A. do subsidio de Natal não pago, referente aos anos de 2020 a 2022, no montante global de € 2.447,12, acrescido de juros de mora calculados, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;
d) se condene o réu a ressarcir a A. dos montantes indevidamente descontados nos seus vencimentos de abril a agosto de 2021 e abril a julho de 2022, no valor global de € 2.016,60, ou, caso assim não se entenda, no montante indevidamente descontado no mês de julho de 2022 de 933,33, em ambos os casos, acrescidos de juros de mora calculados, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;
e) se condene o réu no pagamento à A. de uma indemnização em montante não inferior a € 3.000,00 a fixar de acordo com a equidade, acrescido de juros de mora calculados, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que foi admitida ao serviço do réu mediante outorga de um escrito intitulado “Contrato de Formação em Posto de Trabalho” que se desenvolveu de 1 de novembro de 2019 a 1 de agosto de 2022. Auferia quantia que configurava remuneração de trabalho, desenvolvia atividade nas instalações do réu, com materiais do réu e obedecia a ordens, deixando de ser acompanhada em estágio.
Foram-lhe indevidamente descontadas quantias, pelo montante das contribuições para a Segurança Social.
Face aos descontos, à sua situação económica e porque durante um período de grande fragilidade, ligado a situação de maternidade, o réu não se absteve de constantemente a importunar e contactar, pôs termo à relação que com o mesmo mantinha. Sofreu ansiedade e frustração.
Frustrada a conciliação em sede de audiência de partes, o réu apresentou contestação, concluindo pela improcedência da ação e deduzindo reconvenção.
Invocou a incompetência material do tribunal, a impossibilidade legal de requalificação do vínculo e subsidiariamente, a nulidade do pretenso contrato de trabalho, a ineptidão parcial da petição inicial por contradição entre o pedido e a causa de pedir, que o contrato existente entre as partes era um contrato de formação não conferindo à autora o direito aos créditos salariais que reclama, após uma auditoria foi-lhe recomendado que procedesse a descontos nos contratos de estágio, como era o da autora, o que fez, tendo descontado a parte (11%) que incumbia à autora, por força de lei, a qual pôs termos à relação que tinha com o réu. Alegou ainda que pagou à autora as quantias devidas e que nunca importunou a autora durante a baixa/licença de parentalidade.
Formulou pedido reconvencional.
O autor respondeu às exceções.
Foi dispensada a realização de audiência de partes e o tribunal absteve-se de proferir o despacho a que se refere o art.º 596º do Código de Processo Civil, nos art.º 49º nº 3 do Código de Processo do Trabalho.
Foi proferido despacho saneador, no qual não se admitiu a reconvenção e foi julgada improcedente a exceção da incompetência material do tribunal, julgando-se a instância válida e regular quanto ao mais.
Procedeu-se a julgamento, sequência do qual foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente absolvendo o réu do pedido.
Inconformada a autora interpôs o presente recurso, com impugnação da decisão da matéria de facto, concluindo nos seguintes termos:
«1.ª Em 04 de Novembro de 2019, as partes outorgaram o contrato sub judice, que previa como período de sua execução 01 de novembro de 2019 a 01 de novembro de 2022 [Cfr. Doc. n.º 3, junto à PI];
2.ª Ademais, determinava também que a execução do mesmo ocorreria em estabelecimento do R./Apelado, nomeadamente, nas instalações do INPI, no Campo das Cebolas 1149-035 Lisboa, decorrendo na Direção de Marcas e Patentes (DMP)” (n.º 1, da cláusula 3.ª do cit. Doc. n.°3).
3.ª Mediante denúncia do mesmo, junta aos autos como Doc. n.º 9, a A./Apelante veio determinar a cessação dos efeitos do referido contrato em agosto de 2022 [Facto Provado n.º 29].
4.ª Não obstante, o Tribunal a quo, incorrendo em erro de julgamento, veio a concluir que o contrato cessara os seus efeitos em março de 2022 e, adicionalmente, que a atividade prestada pela Apelante, na sequência do primeiro ano do contrato, não fora executada no estabelecimento do R./Apelado. 
5.ª Pelo que se deverá declarar como não provado o Facto Provado n.º 7 e, consequentemente, deverá alterar-se o mesmo, considerando-se como provado o seguinte:
- “ 7. E, de novembro de 2019 a agosto de 2022, nas instalações do réu.
6.ª Ademais, tem se que o apoio prestado pela orientadora de estágio não infirma a existência de contrato de trabalho, tanto que se demonstrou em julgamento que aos trabalhadores subordinados da Apelante é conferido o mesmo tratamento;
7.ª Com efeito, como resultou da prova produzida, na sequência do primeiro ano de estágio é atribuído aos estagiários da Apelada um maior nível de responsabilidade e independência laboral [e técnica] igual ao conferido a qualquer trabalhador subordinado, sendo a estrutura funcional da Apelada, para com os seus estagiários, reveladora de uma normal estrutura laboral;
8.ª Não obstante, na sequência do primeiro ano do contrato se identifica que a Apelante passou a exercer a sua atividade independentemente do aval da sua “orientadora de estágio”, obedecendo meramente a ordens dos seus superiores hierárquicos.
9.ª Ademais, tal qual como demonstrado, sendo a atividade da Apelante remunerada [Facto Provado n.º 3, e)] e seja prestada em local pertencente ou determinado pelo R./Apelado, então determina-se estar preenchida a presunção de laboralidade presente no artigo 12.° CT.
10.ª Nestes termos, a prova da factualidade em apreço resulta de erro de julgamento quanto aos factos em causa, pelo que, tendo em conta a prova produzida, mormente o depoimento das testemunhas BB e CC e as declarações de parte da Apelante - para tanto reapreciando-se a prova gravada -, sempre deverá considerar-se como não provada a factualidade vertida no 8.°, 9.°, 10.° e 12.° do elenco factual provado, substituindo-se alguns, por outros, que retratem a realidade dos factos. E os artigos 15.°, 16.° e 17.° da P.I deverão ser dados como provados. Tudo nos seguintes termos:
9. No primeiro ano (de estágio), o estagiário vai ganhando experiência e conhecimento, sendo, nesse período, toda a atividade efetuada revista pelo  orientador, revisão essa que culmina na assinatura conjunta dos relatórios e notificações enviados aos requerentes;
12. As propostas de decisão de concessão e recusa de pedidos de patente foram sempre assinados pela chefe do departamento de patentes e modelos de utilidade.
- “Após o primeiro ano, a A. passou a cumprir toda e qualquer ordem e instrução dirigida pelo R. sem depender do aval final da orientadora de estágio (art. 15. ° da P.I.);
- A A. assinava trabalhos por si só, sem a intervenção de qualquer orientador (art. 16.° da P.I.);
- A. A., por inúmeras vezes, viu-se deparada com a realização quase exclusiva das suas tarefas, sem intervenção de qualquer outro colaborador do R., nem muito menos de um suposto “orientador de estágio”, limitando-se a seguir as ordens e instruções dos seus superiores (art 17.° da P.I.);
11.ª Se verifica que a atuação do R./Apelado produziu danos na esfera da Apelante, nomeadamente quanto ao decréscimo do seu património líquido no mês de julho, que a obrigou a recorrer aos seus pais para poder saldar as obrigações que teria contraído.
12.ª Consentaneamente, à data da prática do facto, a A./Apelante era mãe de duas crianças, cujas quais dependiam da mesma e viram a sua condição financeira afetada por atuação do R./Apelado.
13.ª Com fundamento no vertido em Factos Provados n.ºs 30, 31 e 36, e tendo em conta a prova produzida, mormente o depoimento da testemunha BB e as declarações de parte da Apelante - para tanto reapreciando-se a prova gravada -, se deverá considerar provada a factualidade vertida nos artigos 57.°, 57.° e 134.° da PI.
14.ª Ademais, a declaração junta à PI como Doc. 9 não infirma o entendimento de que a Apelante não autorizou as retenções a título de contribuições para a segurança social, tão somente significa que a mesma transferiu o ónus de informação para a contraparte, tanto que a matéria sobre a existência de enquadramento legal se consubstanciar numa das questões a resolver.
15.ª Destarte, não poderia o Tribunal a quo ter concluído, sem mais, que a Apelante autorizou a dedução das contribuições em dívida para com a segurança social.
16.ª Pelo que, incorrendo o Tribunal a quo em erro de julgamento, sempre se deverá considerar como não provado o Facto Provado n.º 22 e, consequentemente, o substituindo por “A A. nunca assinou a mencionada declaração, nem muito menos se entendeu como devedora das contribuições à Segurança Social que não lhe haviam sido descontadas da bolsa pelo R.
17.ª Ao as partes relegarem a matéria contratual para regulação presente em legislação laboral, estarão, necessariamente, a conformar a aplicabilidade do Decreto-Lei 66/2011 para a situação sub judice.
18.ª Porquanto, cessado o contrato de estágio, por extravasado o prazo legal imperativo admissível, o mesmo se converterá ope legis, em contrato de trabalho a termo.
19.ª Não obstante, na presente lide, também se identifica o preenchimento dos requisitos da presunção de laboralidade e, consequentemente, a existência de contrato de trabalho.
20.ª Porquanto, por erro de julgamento quanto à qualificação jurídica, não poderia o Tribunal a quo ter concluído pela não existência de contrato de trabalho.
21.ª Mesmo que o Tribunal decida pela nulidade do supra referido contrato, tal não pode determinar automaticamente a sua não produção de efeitos, dado que a mesma opera, durante o tempo de execução do contrato, isto é, desde novembro de 2019 a agosto de 2022;
22.ª Nestes termos, e produzindo efeitos do contrato de trabalho, mesmo que nulo, permanece na esfera da Apelante, nos termos da CRP e do CT, o direito a ser ressarcida pelos créditos laborais, a título dos subsídios de férias e Natal, durante o período de vigência do contrato.
23.ª A Apelante somente comportava responsabilidade subsidiária pelos montantes devidos a título de contribuições para a segurança social, pelo que, a retenção dos mesmos, por parte da Apelada não se enquadra como legítima, incorrendo esta na preterição do devido processo de restituição [voluntária ou judicial] dos créditos, pela Apelante.
24.ª Consentaneamente com o entendimento da jurisprudência, a retenção de montantes por créditos laborais, não poderá ser executada durante o decurso do contrato.
25.ª As atuações da Apelada, devido às condições psicológicas da Apelante, cumulada com a intencionalidade das mesmas, são aptas à produção de danos morais que, de acordo com o prescrito para responsabilidade civil, importam a indemnização da Apelante
26.ª Termos em que deverá revogar-se a douta sentença recorrida e substituir- se a mesma por douta decisão que julgue a presente ação totalmente procedente e condene a R./Apelada no pedido.»
O réu apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência total do recurso.
O recurso foi admitido na forma, regime de subida e efeito adequados.
Neste tribunal o Ministério Público emitiu parecer no sentido da confirmação da sentença recorrida, sem que qualquer das partes se tivesse pronunciado.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Delimitação do objeto do recurso
Resulta das disposições conjugadas dos arts. 639.º, nº 1, 635.º e 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do disposto pelo art.º 1.º, n.º 1 e 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho, que as conclusões delimitam objetivamente o âmbito do recurso, no sentido de que o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas pelas partes (delimitação positiva) e, com exceção das questões do conhecimento oficioso, apenas sobre essas questões (delimitação negativa).
Assim, são as seguintes as questões a decidir:
1 – impugnação da decisão da matéria de facto;
2 – se o contrato celebrado entre as partes deve ser considerado um contrato de trabalho desde 01 de novembro de 2020 até 01 de agosto de 2022;
3 – se são devidos à autora os créditos que peticiona, incluindo os valores descontado pelo réu a título de contribuições para a Segurança Social desde de abril a agosto de 2021 e abril a julho de 2022, no valor global de € 2.016,60;
4 – se é devida indemnização por danos não patrimoniais.
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Fundamentação de facto
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
« 1. A autora é licenciada em química aplicada, mestre em bio orgânica e doutorada em Photocatalysis (Ciência dos Materiais);
2. O réu é um Instituto de Direito Público, dotado de autonomia financeira, que promove a inovação, a competitividade, o combate à contrafação e à concorrência desleal em matéria de propriedade industrial;
3. As partes outorgaram o escrito de fls. 21-v a 24 cujo teor se dá por reproduzido designadamente "que se rege pelo Disposto no Regulamento de Estágios Profissionais do INPI"; em que:
a. o réu se "compromete a proporcionar à autora um estágio profissional em contexto real de trabalho" (cláusula l.ª);
b. "o presente contrato tem inicio a 1 de novembro de 2019 e uma duração de 3 anos" (cláusula 2.ª);
c. "a atividade desenvolvida no estágio em regime de horário flexível, de acordo com o disposto na Lei Geral de Trabalho em Funções Publicas, aprovada pela Lei 35/2014, de 20 de junho";
d. "o estágio desenvolve-se num plano individual (...) supervisionado e avaliado pelo orientador de estágio" (cláusula 4.ª);
e. A segunda outorgante terá direito a receber (...) uma bolsa mensal no valor de 1400,00 euros; subsidio de refeição de € 5/dia (...) não inclui subsidio de férias e subsidio de Natal";
4. A chefe de recursos humanos emitiu a declaração de fls. 46 cujo teor aqui se dá por reproduzido, designadamente em que a autora: «frequentou o programa de estágios profissionais (...de) 1 de novembro de 2019 e 1 de agosto de 2022, não tendo concluído o período inicial de 3 anos (...) ;
Desempenhou as seguintes atividades:
a) Executar o exame formal de pedidos de patente e de modelo de utilidade, analisando documentação e informação que consta em cada processo, garantindo que são cumpridas as especificações legais e respeitando o sistema de classificação internacional;
b) Elaborar pesquisas ao estado da técnica, no âmbito de pedidos provisórios de patente;
c) Elaborar relatórios de pesquisa com opinião escrita, em pedidos de patente e de modelo de utilidade;
d) Efetuar o exame de fundo de pedidos de patente e de modelo de utilidade, pesquisando nas bases de dados disponíveis, comparando e analisando diferentes conteúdos, de forma a verificar se todos os requisitos previstos na legislação da propriedade industrial são cumpridos;
e) Elaborar e enviar notificações e ofícios para os requerentes ou outras partes envolvidas no processo;
f) Assegurar a inserção, atualização e correção da informação, nas diferentes fases de cada processo, no sistema de informação do R.;
g) Garantir que os despachos relativos a cada processo são enviados para publicação no Boletim da Propriedade Industrial;
h) Prestar esclarecimentos necessários acerca do sistema de propriedade industrial ou acerca do estado dos processos, por telefone, por e-mail ou presencialmente, sempre que solicitados;
i) Participar em reuniões de equipa de departamento e direção;
j) Representar o R. em formações, reuniões, conferências e seminários nacionais, europeus e internacionais, preparando e realizando apresentações e exposições, acerca dos temas que lhe são propostos;
k) Dar apoio técnico de análise em projetos em que o R. participa»;
5. A autora levou a cabo as atividades referidas na declaração referida em 4.;
6. Durante o primeiro ano a atividade da autora foi desenvolvida sob a égide de um orientador;
7. E, de novembro de 2019 a março de 2022, nas instalações do réu;
8. O que se manteve após o primeiro ano (novembro de 2020), ao longo da atividade da autora com o réu, sendo objeto de relatórios (supre-se a incompletude que se verificava e que não ermais do que um lapso evidenciado pelo confronto com os documentos mencionados) semestrais de acompanhamento de estágio conforme relatórios de fls. 79-v a 83-v;
9. No primeiro ano (de estágio), o estagiário vai ganhando experiência e conhecimento, mas toda a atividade efetuada é revista pelo orientador, revisão essa que culmina na assinatura conjunta dos relatórios e notificações enviados aos requerentes;
10. O objetivo da formação é a progressiva autonomia do estagiário, pelo que o mesmo pode passar a desempenhar algumas tarefas, designadamente a assinatura de relatórios e notificações, sem a intervenção aparente do orientador;
11. Sendo a sua atividade avaliada;
12. As propostas de decisão de concessão e recusa de pedidos de patente foram sempre revistos e validados pela chefe do departamento de patentes e modelos de utilidade, que esteve também sempre disponível para todas as questões que pudessem surgir
13. A autora preencheu e assinou, com data de 27 de outubro de 2021, o formulário para identificação e alteração de dados de funcionário de fls. 47-49;
14 ... porque no réu não há uma ficha especifica para os estagiários para recolha de dados pessoais para processamento das respetivas bolsas de estágio;
15. No final de 2020, o réu foi auditado pela Inspeção Geral dos Serviços de Justiça;
16. No âmbito da referida auditoria foi produzido um relatório nos termos do qual foi recomendado ao réu diligenciasse junto da Segurança Social o esclarecimento da situação dos estagiários, promovendo, sendo o caso, a sua inscrição e pagamento de contribuições, quer do estagiário, quer do INPI;
17. Na sequência da referida auditoria o réu indagou junto da Segurança Social qual o enquadramento adequado dos estagiários, tendo este organismo concluído que os mesmos deveriam ser enquadrados no regime geral;
18. ... E procedeu à inscrição dos estagiários na segurança social e ao pagamento das contribuições e quotizações (49.° contestação e 41.° Pi)
19. Quotizações que no caso da autora ascenderam a € 2008,26;
20. A 30 de outubro de 2020 o réu informou a autora que as bolsas de estágio estavam sujeitas a desconto para a Segurança Social;
21. Depois de efetuado o pagamento, o réu elaborou a «autorização para regularização de dívida relativa à Segurança Social» constante de fls. 53-v, segundo o qual, "relativamente às quotizações mensais que me caberia suportar, calculadas à taxa de 11% sobre o valor auferido a título de bolsa de estágio", a autora se declarava "informada que o pagamento das quotizações que me deveriam ter sido deduzidas pelo INPI, corresponde a € 2008,26";
22. Declaração que a autora não assinou;
23. E remeteu email de fls. 53, datado de 8 de abril de 2021, segundo o qual, designadamente: "não vejo necessidade de assinar essa declaração. Se o pagamento tiver enquadramento legal podem proceder em conformidade";
24. A autora esteve de baixa médica e licença de maternidade de 2 de agosto de 2021 a março de 2022;
25. A autora remeteu ao réu a mensagem de correio eletrónico de fls. 88 nos termos do qual informa que "vou entrar de baixa médica já em Agosto" e "vou estar contactável por email e por telefone";
26. A autora foi contatada pelo réu para com o pedido de documentos relativos ao nascimento do seu filho e indicação dos períodos de licença parental que iria gozar;
27. O réu descontou (45.°, 46.°, 48.°, 49.°) na bolsa da autora as contribuições relativas à taxa social única, pelo valor mensal de € 77,20 (setenta e sete euros e vinte cêntimos) entre os meses de abril e agosto de 2021;
28. A autora tentou fazer os descontos voluntários para a Segurança Social, tendo lhe sido comunicado por aquele organismo não ser possível efetuar os mesmos (descontos);
29. A autora outorgou e remeteu à ré carta de «denúncia do contrato de formação», cf. fls. 54, cessando o contrato com efeitos a 1 de agosto de 2022;
30. O marido da autora estava a trabalhar, tendo o agregado da autora ficado limitado aos rendimentos desse trabalho;
31. A autora tinha dois filhos;
32. A mandatária da autora remeteu à ré a carta de fls. 55-v a 58 (doc. 12), datado de 4 de novembro de 2022, cujo teor se dá por reproduzido
33. Que o réu recebeu a 07-11-2022;
34. E respondeu conforme escrito de fls. 59-v a 60-v;
35. O réu nunca pagou à autora subsidio de férias e de Natal;
36. O réu informou a autora que «no seguimento de rescisão com efeito a 1 de agosto (...) face à divida relativa à Segurança Social" iria "proceder ao desconto de € 1061,85", conforme mensagem de correio eletrónico de fls. 54-v, que aqui se dá por reproduzido;
37. E pagou € 46,67 de um dia de agosto de 2022, descontando a TSU no montante de € 5,13 e compensado os remanescentes € 41,54 com o crédito que detinha sobre a A., como mencionou na mensagem referida em 36.;
38. O réu pagou à autora as quantias dos recibos de fls. 25 a 40-v dos autos.»
Quanto à matéria de facto não provada o tribunal consignou o seguinte:
«O mais invocado nos articulados ou não se provou - designadamente que a autora não foi acompanhada por um orientador de estágios após o primeiro ano; sofreu danos não patrimoniais ou que ficou em situação de fragilidade, emocional ou financeira por conduta do réu; que a autora não autorizou quaisquer descontos atinentes às contribuições à Segurança Social - ou trata-se de matéria de direito ou conclusiva (a que não se responde), ou é contrário ao apurado, ou não tem relevância para as soluções possíveis de direito (designadamente as atividades que a autora desenvolveu fora do réu).»
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Apreciação
Conheceremos as questões que se suscitam nos autos, pela ordem enunciada na delimitação do objeto do recurso, que consideramos que corresponde à ordem imposta pela da sua precedência lógica (art.º 608.º, n.º 2 do CPC).
Nessa medida a 1.ª questão a resolver é a relativa à impugnação da matéria de facto.
Nos termos do disposto pelo art.º 662.º, n.º 1 CPC «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
A Relação tem efetivamente poderes de reapreciação da decisão da matéria de facto decidida pela 1ª instância, impondo-se-lhe, não apenas a (re)análise dos meios de prova produzidos em 1ª instância, mas também a consideração da matéria de facto que se encontre plenamente provada por acordo das partes nos articulados, por documentos ou por confissão reduzida a escrito nos termos do art.º 607º, nº 4 CPC, desde que relevantes para a decisão a proferir atentas todas as soluções jurídicas possíveis.
Estando em causa meios de prova subtraídos à livre apreciação do julgador, a impugnação da matéria de facto com esse fundamento não está sujeita aos ónus a que se refere o art.º 640.º CPC.
Estando em causa meios de prova não subtraídos à livre apreciação do julgador, a apreciação da impugnação está sujeita ao cumprimento dos ónus a que se refere o art.º 640.º do Código de Processo Civil, a propósito dos quais refere António Santos Abrantes Geraldes :
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
A recorrente cumpriu suficientemente aqueles ónus, pelo que importa apreciar a impugnação que deduziu relativa à decisão da matéria de facto.
A impugnação dirige-se aos factos provados 7., 8., 9., 10., 12. e 22. e quanto aos factos alegados nos arts.15.º, 16.º, 17.º, 43.º, 57.º, 58.º, e 134.º da petição inicial, que a recorrente pretende que devem ser incluídos na matéria de facto provada.
O tribunal, considerando provado que «6.Durante o primeiro ano a atividade da autora foi desenvolvida sob a égide de um orientador», acrescentou como provado em 7., o seguinte: «E, de novembro de 2019 a março de 2022, nas instalações do réu».
A recorrente pretende que este facto passe a ter a seguinte redação:
« E, de novembro de 2019 a agosto de 2022, nas instalações do réu».
Invoca em abono desta sua pretensão o contrato escrito celebrado entre as partes, o documento 6 da petição inicial, e o facto provado em 29.
O recorrido discorda, afirmando que, se algum erro houve do tribunal foi por excesso, já que da prova produzida, nomeadamente do depoimento da testemunha BB, resulta que a recorrente apenas executou funções nas instalações do réu até ao início do Covid 19.
A pretensão da recorrente não pode proceder por vários motivos.
Antes de mais, importa ter em consideração que como se pode ler no sumário do Ac. do STJ de 03/11/2023 “III - Nos recursos apenas se impõe tomar posição sobre as questões que sejam processualmente pertinentes/relevantes (suscetíveis de influir na decisão da causa), nomeadamente no âmbito da matéria de facto.
IV- De acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte.
V- Deste modo, o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio.”
Ora, tal como resultará do que infra exporemos a propósito das apreciação relativa à qualificação do contrato, a prestação de atividade pela recorrente nas instalações do recorrido, é absolutamente irrelevante, no sentido em que, a decisão não será diferente se ela tiver ocorrido ao longo de todo ou apenas de parte do contrato.
Nessa medida, a apreciação da impugnação será inútil.
Mesmo que assim, não se entenda, a impugnação não poderia proceder.
De facto, a recorrente parece confundir o desenvolvimento da atividade nas instalações do réu e a cessação de efeitos do contrato. Isso mesmo resulta expresso na conclusão 4.ª. E os elementos em que funda a impugnação, designadamente o contrato celebrado, a declaração dos recursos humanos relativa às funções que exerceu como consta do ponto provado 4. e o facto provado sob o ponto 29., o que permitem demonstrar é que o contrato foi celebrado com a duração de três anos para ser executado nas instalações do recorrido e que o contrato, tal como foi considerado pelo tribunal “a quo” cessou em 1 de agosto de 2022, não que durante todo o tempo de execução do contrato a autora executou a atividade nas ditas instalações. Na verdade pode ter sido convencionado e não ser executado dessa maneira.
Finalmente, se existe alguma incorreção quanto à data até à qual a autora desenvolveu a atividade nas instalações da ré, atrevemo-nos a dizer que ela poderá ter resultado de um lapso do tribunal que querendo referir-se a março de 2020, terá escrito março de 2022.
Aquela data de março de 2020 é a que corresponde à cronologia dos factos provados em 6., 7., e 8.; é a que corresponde às declarações da testemunha BB, ao referir que após 15 de Março de 2020 (início do 1.º confinamento devido ao Covid 19), passaram a estar em teletrabalho; e a que permite perceber a afirmação do tribunal na fundamentação da sentença no sentido de que “Não podendo o estágio superar um ano não se apurou que após tal período (redução do negócio), a autora tivesse desempenhado a sua atividade num local do réu».
Afigura-se, contudo, que, na falta de fundamentação expressa da decisão relativa ao ponto 7., e que só não determina o uso pelo tribunal da faculdade prevista pelo art.º 662.º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Civil, dado que o facto em causa não é essencial para o julgamento da causa, também não é possível afirmar com a imprescindível certeza que se tratou de um lapso de escrita manifesto, ou seja que se revele no contexto da sentença e que pudesse ser retificado.
Improcede, pois, a impugnação quanto ao ponto 7.
No que respeita aos factos provados 8., 9., 10. e 12. que a recorrente pretende que devem ser eliminados do acervo dos factos provados e substituídos pelo alegado nos arts. 15.º, 16.º e 17.º da petição inicial, vejamos o que está em causa, reproduzindo o teor daqueles.
Foi considerado provado o seguinte:
«8. O que se manteve após o primeiro ano (novembro de 2020), ao longo da atividade da autora com o réu, sendo objeto de semestrais de acompanhamento de estágio conforme relatórios de fls. 79-v a 83-v;
9. No primeiro ano (de estágio), o estagiário vai ganhando experiência e conhecimento, mas toda a atividade efetuada é revista pelo orientador, revisão essa que culmina na assinatura conjunta dos relatórios e notificações enviados aos requerentes;
10. O objetivo da formação é a progressiva autonomia do estagiário, pelo que o mesmo pode passar a desempenhar algumas tarefas, designadamente a assinatura de relatórios e notificações, sem a intervenção aparente do orientador;
12. As propostas de decisão de concessão e recusa de pedidos de patente foram sempre revistos e validados pela chefe do departamento de patentes e modelos de utilidade, que esteve também sempre disponível para todas as questões que pudessem surgir».
E dos referidos arts. da petição inicial consta:
«15.º
Portanto, a partir desse momento, a A. cumpriu toda e qualquer ordem e instrução dirigida pelo R. sem depender do aval final da orientadora de estágio.
16.º
Mais, a A. assinava trabalhos e pareceres por si só, sem intervenção de qualquer orientador.
17.º
Com isto conclui-se que a A., por inúmeras vezes, viu-se deparada com a realização quase exclusiva das suas tarefas, sem intervenção de qualquer outro colaborador do R., nem muito menos de um suposto “orientador de estágio”, limitando-se a seguir as ordens e instruções dos seus superiores.»
A recorrente, para sustentar a sua pretensão, invoca as declarações de parte da autora e os depoimentos das testemunhas BB e CC, declarações e depoimentos que ouvimos na totalidade para evitar uma perceção truncada ou descontextualizada dos seus teores.
As declarações de parte da autora são, salvo o devido respeito, absolutamente inúteis, sendo exemplo acabado da crítica que muitos fazem a este meio de prova, no sentido de que se trata de uma mera reprodução do alegado nos articulados.
Na verdade, a autora/recorrente, limitou-se a reproduzir, algumas vezes com as mesmas exatas palavras, o teor da petição inicial, que de resto, tal como resulta da gravação, tinha consigo, e foi reproduzindo em resposta às instâncias do tribunal (que, de resto, até chegou a indicar à autora qual era o artigo da petição inicial em que estava a matéria da questão que lhe estava colocar!!).
Na fundamentação da decisão da matéria de facto o tribunal escreveu o seguinte, com relevo, nesta parte:
«Quanto ao depoimento das testemunhas foram ponderados os de BB, que foi colega da autora, desde 2 de março de 2020, mencionando que deixou de acompanhar a atividade desta com as restrições e imposição de teletrabalho em março de 2020 (COVID). Mencionou que havia sempre acompanhamento e que o estágio pressupunha uma progressiva autonomia do estagiário; e os de DD e CC, que foram orientadoras da autora.»
O referido BB foi estagiário no réu desde o início de março de 2020 até 09/06/2021, referiu apenas sua própria experiência, até porque a partir de 15/03/2020 até Junho ou Julho de 2020 passou a trabalhar à distância, e daí em diante ia às instalações do recorrido uma vez por semana de 15 em 15 dias, nem sempre se cruzando com as mesmas pessoas. Por isso, pouco de útil, se pode extrair do seu depoimento no que respeita às concretas condições em que a recorrente executava as suas atribuições, dizendo, embora, sem confirmação por qualquer outro meio de prova, que especulava que as condições da autora fossem iguais às suas.
A testemunha CC, era chefe do departamento em que a autora estava integrada e foi simultaneamente sua orientadora no período em que a orientadora original, a testemunha DD, esteve de baixa médica, ou seja, de 30/09/2021 a final de Junho de 2022. As declarações da dita CC foram claras, coerentes, incluindo como afirmado pela testemunha BB quanto à sua própria situação, relativamente ao facto de a intervenção dos orientadores ir diminuindo progressivamente ao longo do desenvolvimento do estágio, de acordo como o objetivo do próprio estágio, descrevendo, com evidente conhecimento decorrente da sua própria atuação, todas as etapas que ficaram descritas nos pontos da matéria de facto provada em causa, incluindo quanto à avaliação semestral dos estagiários.
Não se descortina, pois, qualquer motivo para divergir do juízo probatório expresso pelo tribunal “a quo”, sendo a impugnação improcedente.
Pretende também a recorrente que com fundamento nos factos provados n.ºs 30., 31. e 36., no depoimento da testemunha BB e nas declarações de parte da apelante deverá considerar-se provada a factualidade vertida nos artigos 57.°, 58.° (na conclusão 13.ª, só por mero lapso, como resulta do confronto com as alegações a recorrente refere-se novamente ao art.º 57.º) e 134.° da PI.
É o seguinte o teor dos mencionados arts. da petição inicial:
«57.º
Isto é, durante um período de especial vulnerabilidade da A., o R. deixou-a sem rendimentos, não assegurando, com isso, as condições mínimas de uma existência condigna.
58.º
Em especial, bem sabia o R. que a A. é mãe de dois filhos menores, necessitando dos rendimentos auferidos para, assim, garantir a sua subsistência e do seu agregado familiar.
134.º
Os constantes contactos do R., para além de gerarem na A. um elevado sentimento de ansiedade e frustração, impossibilitaram-na de obter o descanso que necessitava e de organizar devidamente a sua vida.»
A recorrente não tem razão.
O teor dos factos provados, 30., 31. e 36. é o seguinte:
«30. O marido da autora estava a trabalhar, tendo o agregado da autora ficado limitado aos rendimentos desse trabalho;
31. A autora tinha dois filhos;
36. O réu informou a autora que «no seguimento de rescisão com efeito a 1 de agosto (...) face à divida relativa à Segurança Social" iria "proceder ao desconto de € 1061,85", conforme mensagem de correio eletrónico de fls. 54-v, que aqui se dá por reproduzido;»
Ora, o alegado no art.º 57.º da petição inicial é manifestamente conclusivo, pelo que, nenhum reparo há a fazer à decisão do tribunal “a quo”.
Do alegado em 58.º importa referir que ficou provado em 31. que a autora é mãe de dois filhos e que, o mais, apenas conclusivamente alegado pela autora, foi, ainda assim, concretizado em 30. dos factos provados, com base nas declarações de parte da autora.
Quanto à matéria do art.º 134.º, nenhuma utilidade têm os factos provados em 30., 31. e 36., sendo de salientar que a informação referida em 36., nem sequer ocorre no período a que se reporta a alegação em causa na petição inicial.
Não se vislumbra também, no depoimento da testemunha BB qualquer afirmação relevante quanto à situação da recorrente a que se reportam os artigos da petição inicial aqui em causa.
Finalmente não há outros meios de prova que permitam sustentar uma decisão diversa da do tribunal, pois, as declarações da autora quanto aos “constantes contactos”, por um lado, foram equívocas, não logrando esclarecer a que contacto se referia, por outro lado, foram insuficientes, pois, apesar de afirmar que os contactos foram sobretudo feitos por email, não constam dos autos elementos, designadamente, os ditos emails, que a existirem, a autora poderia facilmente juntar, tendo apenas sido junto o email que constitui o doc. 9 da contestação e que, se afigura inócuo para o efeito pretendido, e ainda por outro, foram infirmadas pelo depoimento da testemunha CC, orientadora da autora no período em que a esta esteve de “baixa” e em licença de maternidade e que referiu que, durante esse lapso de tempo, nunca contactou a autora a propósito de questões de trabalho, confirmando apenas ter recebido o email da autora que constitui o doc. 8 da contestação no qual a autora se mostra até disponível para ser contactada por telefone ou por email.
Não se encontra, pois, fundamento para a procedência da impugnação.
Por fim, a recorrente pugna pela alteração da redação do ponto 22. dos factos provados, pretendendo que lhe seja aditada a matéria alegada no ponto 43.º da petição inicial, ou seja que a autora nunca se entendeu como devedora das contribuições à Segurança Social que não lhe haviam sido descontadas da bolsa pelo R.
A recorrente fundamenta a sua pretensão alegando que o tribunal não poderia ter concluído, sem mais, que aquela autorizou a dedução das contribuições em dívida para com a segurança social, que o facto de a declaração junta à petição inicial como doc. 9 não infirmar o entendimento de que a apelante não autorizou as retenções a título de contribuições para a segurança social tão somente significa que a mesma transferiu o ónus de informação para a contraparte, tanto que a matéria sobre a existência de enquadramento legal se consubstanciar numa das questões a resolver. Invoca ainda o depoimento da testemunha BB.
Não se pode deixar de salientar que o tribunal considerou como não provado “que a autora não autorizou quaisquer descontos atinentes às contribuições à Segurança Social”, o que não permite a afirmação de que foi considerado provado o contrário, ou seja, que a autora autorizou os descontos.
O que o tribunal fez foi dar como provado o teor dos pontos 20. a 23., que reproduz as posições assumidas pelas partes a este propósito para, na fundamentação da decisão relativa ao pedido de restituição das contribuições descontadas, considerar que daquela troca de emails resultava a autorização da autora.
Ora, as conclusões que o tribunal na fundamentação de direito possa tirar dos factos provados, não são impugnáveis por esta via, mas antes pela invocação de eventual erro de julgamento quanto ao direito aplicável.
Finalmente, resulta do depoimento da testemunha BB que ele e a autora foram os únicos que não assinaram a declaração referida em 21. dos factos provados porque não aceitavam a dívida passada. Por si só, tal declaração não é bastante para que se possa considerar provado que a autora não se considerava como devedora das contribuições à Segurança Social que não lhe haviam sido descontadas da bolsa pelo réu, não só porque se trata de declaração que não foi corroborada por qualquer outro meio de prova, como porque é contrária à declaração da própria autora, provada em 23, através da qual a autora, como bem refere nas alegações, transferiu o ónus da decisão para a ré, ao afirmar que “Se o pagamento tiver enquadramento legal podem proceder em conformidade”. Ou seja, sem se querer vincular, o que disse foi, eu não sei se é legal, se o INPI achar que sim, então proceda aos descontos mensais. E foi o que aconteceu nos meses seguintes, sem que resulte que a autora discordasse desse procedimento, o que não teria deixado de fazer se efetivamente não se considerasse devedora dos valores descontados.
Improcede, a pretensão da recorrente e, consequentemente, a totalidade da impugnação da matéria de facto, nada se alterando na decisão proferida pelo tribunal “a quo”.
*
A segunda questão a resolver é a relativa à qualificação como contrato de trabalho do vínculo que existiu entre as partes no período de 01 de novembro de 2020 a 01 de agosto de 2022.
Em suma, a recorrente considera que, tendo celebrado com a recorrida, em 1 de novembro de 2019 um contrato de formação em posto de trabalho, com a duração de três anos, ao fim do primeiro ano de execução o contrato se transformou em contrato de trabalho, em virtude das modificações que se verificaram no modo da sua execução.
Nos termos do art.º 11º do Código do Trabalho, “Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas”.
A relação jurídica laboral caracteriza-se, pois, essencialmente, pela existência de subordinação jurídica, a qual se reconduz à possibilidade de determinação da atividade do trabalhador, mediante ordens, diretivas e instruções e ao dever de obediência deste no que concerne à execução e disciplina da prestação de trabalho fixadas pelo empregador, titular do poder diretivo e disciplinador dessa prestação.
O que distingue verdadeiramente o contrato de trabalho é o estado de sujeição do trabalhador relativamente ao empregador, consubstanciado na possibilidade de aquele, a cada momento, poder ver ser concretizada por este a sua prestação em determinado sentido1.
Reconhecendo-se a dificuldade de, em concreto, traçar uma fronteira completamente definida entre o contrato de trabalho e algumas das figuras que lhe são afins, tem-se optado pelo recurso à verificação, em cada caso, de um conjunto de indícios da existência ou inexistência de subordinação jurídica.
Com efeito, a distinção deverá, afinal, ser feita em função do modo concreto de execução da prestação.
Os indícios normalmente apontados no sentido da existência de subordinação são o de o lugar do trabalho pertencer ao empregador ou ser por ele determinado, o horário de trabalho ser o definido pelo empregador, a existência de poder disciplinar, a organização do trabalho depender estritamente da vontade o empregador, serem os instrumentos de trabalho pertencentes ao empregador, a existência de outros trabalhadores subordinados no exercício da mesma atividade, a opção pela modalidade de retribuição certa, o aumento periódico da retribuição, o pagamento de subsídios de férias e de Natal, a exclusividade da atividade laboral por conta do empregador, a sindicalização e a observância do regime fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem.
As dificuldades que se colocam na prova dos indícios relevantes e o uso abusivo da figura do contrato de prestação de serviços, em diferentes modalidades, para evitar os encargos que para o empregador resultam da celebração dos contratos de trabalho, levaram o legislador a consagrar, presunções de contrato de trabalho que oneram a entidade empregadora com o esforço da prova da inexistência de contrato de trabalho
Assim, de acordo com o art.º 12º nº 1 do C.T. “Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características: a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado; b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade; c) O prestador da actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma; d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma; e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou de chefia na estrutura orgânica da empresa”.
Com a estatuição desta presunção, trata-se afinal, como refere João Leal Amado2, de “(…) uma simplificação do método indiciário tradicional, visto que, como ponto de partida, ela dispensa o intérprete de proceder a uma valoração global de todas as características pertinentes para a formulação de um juízo conclusivo sobre a subordinação”.
Existindo tal presunção legal de contrato de trabalho, face ao disposto pelos arts. 344º, nº 1 e 350º, do Código Civil, ao autor compete o ónus da prova das condições da presunção e não já o ónus da prova dos factos constitutivos do direito invocado, impendendo sobre o réu o ónus de provar os factos demonstrativos da inexistência do contrato de trabalho, com vista a ilidir da presunção.
De realçar porém, que ainda que num determinado caso concreto não seja possível concluir pela verificação dos pressupostos de tal presunção, tal não exclui a possibilidade de qualificar um determinado vínculo como de trabalho subordinado, desde que estejam reunidos todos os seus requisitos à luz da mencionada noção legal de contrato de trabalho3.
Ora, é inquestionável que entre o contrato de formação tal como se encontra legalmente configurado e o contrato de trabalho existem grandes afinidades, pois, a formação pode envolver a prestação de uma atividade de trabalho (arts. 1.º, n.º 2, 11.º, n.º 1 e 12.º, n.º 1 do DL 18/2010, o aplicável no caso nos termos do seu art.º 2.º, já que o réu é um Instituto de Direito Público, dotado de autonomia financeira), o formando tem deveres semelhantes aos do trabalhador subordinado (cfr. cláusula 7.ª, em especial as alíneas b), c), e) e f) do contrato), existe também a vinculação ao cumprimento de um período semanal de trabalho e de um horário, no caso flexível (cláusula 2.ª, n.º 2 do contrato), estando o formando sujeito ao controlo de assiduidade e pontualidade (art. 15.º, n.º 2, al. d) do DL 18/2010), e sendo aplicável o regime de faltas e de descanso diário e semanal dos trabalhadores vinculados por contrato de trabalho em funções públicas (art.º 15.º, n.º 3 do DL 18/2010).
Ainda assim, nas palavras de Maria do Rosário Palma Ramalho4, a propósito do contrato de aprendizagem regulado pelo DL 396/2007 de 31/12 e pela Portaria 1497/2008 de 19/12, entretanto revogada pela Portaria n.º 70/22, de 02/02, mas que têm integral aplicação relativamente ao contrato de formação em posto de trabalho regulado pelo citado DL 18/2010, “o contrato de formação e o contrato de trabalho podem distinguir-se com recurso a três critérios:
- um critério remuneratório: no contrato de formação não há lugar a uma retribuição como contrapartida do trabalho prestado e a cargo da entidade de apoio à alternância;
- um critério funcional: o objeto nuclear do contrato de formação é, como o nome indica, a formação do jovem e não a prestação de uma actividade laboral remunerada, como sucede no contrato de trabalho; este objecto não é desvirtuado pelo facto de a formação passar, em parte, pelo desenvolvimento de uma actividade laborativa;
- um critério disciplinar: embora o formando tenha deveres parcialmente semelhantes aos do trabalhador subordinado, não se sujeita ao poder disciplinar; em caso de dúvida, este factor poderá, assim, ser decisivo para a qualificação do contrato.”
Está demonstrado que as partes outorgaram um documento escrito, que intitularam “contrato de formação em posto de trabalho” no qual consignaram que o mesmo "se rege pelo Disposto no Regulamento de Estágios Profissionais do INPI" e que:
a. o réu se "compromete a proporcionar à autora um estágio profissional em contexto real de trabalho" (cláusula 1.ª);
b. "o presente contrato tem inicio a 1 de novembro de 2019 e uma duração de 3 anos" (cláusula 2.ª);
c. "a atividade desenvolvida no estágio em regime de horário flexível, de acordo com o disposto na Lei Geral de Trabalho em Funções Publicas, aprovada pela Lei 35/2014, de 20 de junho";
d. "o estágio desenvolve-se num plano individual (...) supervisionado e avaliado pelo orientador de estágio" (cláusula 4.ª);
e. a segunda outorgante terá direito a receber (...) uma bolsa mensal no valor de 1400,00 euros; subsidio de refeição de € 5/dia (...) não inclui subsidio de férias e subsidio de Natal".
Mais resulta do dito contrato, com relevo, que o estágio tinha lugar em instalações do réu, concretamente na Direção de Marcas e Patentes, e que a violação pelo formando dos deveres a que se obrigou conferia ao recorrido a possibilidade de cessar o estágio antecipadamente e de rescindir o contrato.
Não foi questionada a vontade das partes, expressa no contrato, de se vincularem através de um verdadeiro contrato de formação, com a duração convencionada de três anos.
E também não foi questionado que, durante o primeiro ano, o contrato foi executado em conformidade com o convencionado e com a sobredita vontade, estando a recorrente obrigada ao cumprimento dos deveres contratualmente estipulados, ao desenvolvimento da atividade sob a égide de um orientador, sujeita a um período normal de trabalho semanal e a um horário, ainda que flexível, cumprindo o programa de estágio nas instalações do réu e recebendo uma bolsa, reconhecendo a recorrente que durante esse período tal como foi convencionado e executado o vínculo existente se reconduzia a um contrato de formação em posto de trabalho.
Daí em diante, porém, a recorrente considera que o modo de execução do contrato passou a corresponder à de um contrato de trabalho e já não a um contrato de formação, invocando em abono da sua tese, além do mais, a presunção consagrada no citado art.º 12.º do Código do Trabalho, importando, pois, perceber se ocorreram alterações e se as mesmas evidenciam a modificação da natureza do vínculo.
A este respeito há, desde logo, que salientar que da matéria de facto provada não resulta que tenha ocorrido qualquer modificação das condições de execução do contrato que permita subsumir a situação da recorrente às condições da dita presunção.
Na verdade, desde o início do contrato, a formação ocorria nas instalações do recorrido, a recorrente estava sujeita ao período semanal de trabalho com horário flexível, e recebia mensalmente uma quantia certa, nada se tendo modificado a este título que justifique a atuação da invocada presunção.
Por outro lado, importa salientar que a quantia que a recorrente recebia mensalmente não constituía contrapartida da execução da atividade, mas uma bolsa, pelo que sempre seria irrelevante enquanto indício da presunção, não se subsumindo ao disposto pelo art.º 12.º, n.º 1, al. d) do Código do Trabalho.
A sujeição do formando a um horário constitui uma característica própria do contrato de formação como resulta do art.º 15.º do DL 18/2010, pelo que, no caso concreto, é também irrelevante enquanto indício da presunção, não se subsumindo ao disposto pelo art.º 12.º, n.º 1, al. c) do Código do Trabalho.
Resta a prestação da atividade nas instalações do recorrido, que, por si só, não é bastante para a aplicação da presunção em causa5. De facto, contendo o art.º 12.º do Código do Trabalho uma enunciação exemplificativa dos indícios que constituem a base da presunção, e não sendo tais indícios cumulativos como acontecia na redação anterior do art.º 12.º do Código do Trabalho, é necessária a verificação de pelo menos dois de tais indícios para que possa ser presumida a existência de um contrato de trabalho6.
De resto, o facto de a formação decorrer nas instalações do recorrido, corresponde a uma condição contratualmente estabelecida, e provém, não do exercício de um poder de direção do beneficiário da atividade, mas do consenso das partes7.
Assim, não se podem considerar verificadas quaisquer das condições base da presunção de laboralidade consagrada no art.º 12.º do Código do Trabalho.
Ainda assim, como resulta do supra exposto importa determinar se, por aplicação do método indiciário, a partir do primeiro ano de execução do contrato de formação em diante, o vínculo existente entre as partes deve ser qualificado como contrato de trabalho.
Cremos que não.
Na verdade, nesse período de tempo, não se apurou qualquer modificação na execução do vínculo existente para além das próprias da evolução do contrato de formação.
Como ficou provado, durante o primeiro ano a atividade da recorrente foi desenvolvida sob a égide de um orientador, o que se manteve no período posterior, sendo a atividade da recorrente objeto de avaliações semestrais de acompanhamento do estágio. No primeiro ano o estagiário vai ganhando experiência e conhecimento, mas toda a atividade efetuada é revista pelo orientador, o que culmina na assinatura conjunta dos relatórios e notificações enviadas aos requerentes. Sendo o objetivo da formação a progressiva autonomia do estagiário, o mesmo pode passar a desempenhar algumas tarefas, designadamente a assinatura de relatórios e notificações, sem a intervenção aparente do orientador, mas a sua atividade continua a ser avaliada e as propostas de decisão de concessão e recusa de pedidos de patente são revistos e validados pela chefe do departamento de patentes e modelos de utilidade.
Não se demonstrou também que a recorrente tenha passado a receber quaisquer ordens ou instruções para além das imprescindíveis às tarefas de formação.
A recorrente continuou a receber a mesma bolsa que, como resulta do que afirmamos acima, não constitui retribuição, já que não constitui contrapartida da atividade prestada.
A recorrente nunca recebeu subsídio de férias ou de Natal.
A inscrição da recorrente na Segurança Social, com o consequente pagamento das contribuições constitui obrigação própria do contrato de formação como resulta do art.º 14.º-A do DL 18/2010, segundo o qual «A relação jurídica decorrente da celebração de um contrato de estágio ao abrigo do presente decreto-lei é equiparada, para efeitos de segurança social, a trabalho por conta de outrem, observando-se ainda o disposto no Código do Imposto sobre o Rendimentos das Pessoas Singulares.»
Acrescenta-se ainda que não resulta da matéria de facto provada que a recorrente estivesse sujeita ao poder disciplinar do réu, sendo que, em última instância, o poder disciplinar é o que diferencia verdadeiramente o contrato de trabalho do contrato de prestação de serviços.
De resto, nos termos do contrato, a violação pelo formando dos deveres a que se obrigou apenas conferia ao recorrido a possibilidade de cessar o estágio antecipadamente e de rescindir o contrato, o que não se confunde com o exercício do poder disciplinar do empregador, designadamente, na sua faceta de poder sancionatório ou punitivo.
Nesta medida, seja porque não estão verificados os pressupostos de aplicação da presunção estabelecida pelo art.º 12.º do Código do Trabalho, seja porque, por aplicação do método indiciário, não estão demonstrados indícios da existência de subordinação jurídica, seja, finalmente, por apelo aos suprarreferidos três critérios de distinção entre o contrato de formação e o contrato de trabalho propostos por Maria do Rosário Palma Ramalho (critério remuneratório, citério funcional e critério disciplinar)8, impõe-se a conclusão de que o vínculo existente entre a recorrente e o recorrido no período de 1 de novembro de 2020 até 1 de agosto de 2022 não pode ser qualificado como contrato de trabalho.
Não podemos deixar de referir que a circunstância de o contrato ter ultrapassado o período máximo de duração do contrato de formação fixado em 12 meses pelo art.º 13.º do DL 18/2010, na falta de previsão legal para tanto e na ausência de condições de execução do contrato subsumíveis a uma relação laboral, não determina a sua conversão em contrato de trabalho9. Essa conversão pode mesmo considerar-se afastada pelo disposto pelo art.º 18.º, n.º 2 do DL 18/2010.
Consequentemente, o recurso improcede, nesta parte.
*
A terceira questão que constitui objeto do recurso prende-se com a existência dos créditos que a recorrente peticionou.
Estão em causa subsídios de férias e de Natal referentes aos anos de 2020 a 2022.
Ora, tratando-se de prestações que só são devidas no âmbito de uma relação de trabalho subordinada, a improcedência do recurso quanto à pretendida qualificação do vínculo como contrato de trabalho, determina sem necessidade de mais considerações, a improcedência também desta pretensão da recorrente.
Estão também em causa os valores descontados pelo recorrido a título de contribuições para a Segurança Social desde de abril a agosto de 2021 e abril a julho de 2022, no valor global de € 2.016,60 ou, caso assim não se entenda, no montante descontado no mês de julho de 2022 de 933,33.
Resulta das conclusões do recurso que a recorrente considera que apenas era subsidiariamente responsável pelo pagamento dos montantes devidos a título de contribuições para a segurança social, pelo que, o recorrido não poderia ter procedido ao desconto de qualquer quantia relativa às contribuições devidas desde o início do contrato, considerando ainda que, nos termos do art.º 279.º do Código do Trabalho, não pode haver lugar à retenção de montantes nos créditos laborais durante o decurso do contrato.
A propósito desta matéria ficou provado o seguinte:
«15. No final de 2020, o réu foi auditado pela Inspeção Geral dos Serviços de Justiça;
16. No âmbito da referida auditoria foi produzido um relatório nos termos do qual foi recomendado ao réu diligenciasse junto da Segurança Social o esclarecimento da situação dos estagiários, promovendo, sendo o caso, a sua inscrição e pagamento de contribuições, quer do estagiário, quer do INPI;
17. Na sequência da referida auditoria o réu indagou junto da Segurança Social qual o enquadramento adequado dos estagiários, tendo este organismo concluído que os mesmos deveriam ser enquadrados no regime geral;
18. ... E procedeu à inscrição dos estagiários na segurança social e ao pagamento das contribuições e quotizações;
19. Quotizações que no caso da autora ascenderam a € 2008,26;
20. A 30 de outubro de 2020 o réu informou a autora que as bolsas de estágio estavam sujeitas a desconto para a Segurança Social;
21. Depois de efetuado o pagamento, o réu elaborou a «autorização para regularização de dívida relativa à Segurança Social» constante de fls. 53-v, segundo o qual, "relativamente às quotizações mensais que me caberia suportar, calculadas à taxa de 11% sobre o valor auferido a título de bolsa de estágio", a autora se declarava "informada que o pagamento das quotizações que me deveriam ter sido deduzidas pelo INPI, corresponde a € 2008,26";
22. Declaração que a autora não assinou;
23. E remeteu email de fls. 53, datado de 8 de abril de 2021, segundo o qual, designadamente: "não vejo necessidade de assinar essa declaração. Se o pagamento tiver enquadramento legal podem proceder em conformidade";»
O tribunal “a quo” absolveu o réu do pedido com a seguinte fundamentação:
“Nos termos do artigo 14.° do DL n.º 18/2010, de 19 de março, sob a epigrafe concessão das bolsas de estágio e outros apoios, aos estagiários é concedida, por cada um dos 12 meses de duração do estágio, uma bolsa de estágio de montante correspondente a duas vezes o indexante de apoios sociais (IAS) (n.°1); aos estagiários são ainda concedidos os seguintes apoios: a) Subsidio de refeição de valor correspondente ao praticado para a generalidade dos trabalhadores que exercem funções públicas; b) Seguro que cubra os riscos de eventualidades que possam ocorrer durante e por causa das atividades correspondentes ao estágio profissional, bem como nas deslocações entre a residência e o local de estágio (n.º 3).
O réu comportou-se em conformidade com a redação originária do preceito, cujo n.º 2 prescrevia que «o estagiário não está abrangido por qualquer regime obrigatório de segurança social».
Desde 29-09-2012, não obstante, encontravam-se em vigor alterações ao diploma, introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 214/2012, de 28 de setembro, nos termos do qual, segundo o artigo 14.°-A, «a relação jurídica decorrente da celebração de um contrato de estágio ao abrigo do presente decreto-lei é equiparada, para efeitos de segurança social, a trabalho por conta de outrem, observando-se ainda o disposto no Código do Imposto sobre o Rendimentos das Pessoas Singulares» (sublinhado nosso).
Nos termos do artigo 279.° do CT, na pendência de contrato de trabalho, o empregador não pode compensar a retribuição em divida com crédito que tenha sobre o trabalhador, nem fazer desconto ou dedução no montante daquela, proibição que não se aplica a desconto a favor do Estado, da segurança social ou outra entidade, ordenado por lei, decisão judicial transitada em julgado ou auto de conciliação, quando o empregador tenha sido notificado da decisão ou do auto.
No caso dos autos, não se discute a relação com a autoridade tributária/Segurança Social, o que aliás a autora deixou bem explicito na resposta à competência material deste tribunal, mas o desconto de quantia que a mesma não coloca em questão tratar-se dos 11% que lhe incumbia suportar nos descontos à Segurança Social.
A autora remeteu ao réu email consignado que «não vejo necessidade de assinar essa declaração. Se o pagamento tiver enquadramento legal podem proceder em conformidade».
Sendo o sistema previdencial um pilar estruturante da valência de uma relação laboral, a autora peticiona, a par, o reconhecimento desta ultima, e a restituição da quantia que lhe devia, por Lei, como decorre da exceção do desconto, ter sido descontada e no fundo o foi, mas num momento ulterior.
Com improcedência do pedido de restituição do que não era indevido, e foi autorizado (artigo 334.° do CC) .
(…)
E ainda os € 933,33, já que em agosto a relação da autora apenas abrangeu o dia 1 e o réu informou a autora que «no seguimento de rescisão com efeito a 1 de agosto (...) face à dívida relativa à Segurança Social" iria "proceder ao desconto de 1061,85", conforme mensagem de correio eletrónico de fls. 54-v; pagou-lhe € 46, 67 de um dia de agosto de 2022, descontando a TSU no montante de € 5,13 e compensado os remanescentes € 41,54 com o crédito que detinha sobre a A., como mencionou na mensagem EM que «no seguimento de rescisão com efeito a 1 de agosto (...) face à dívida relativa à Segurança Social" iria "proceder ao desconto de € 1061,85", conforme mensagem de correio eletrónico de fls. 54-v, que aqui se dá por reproduzido».
Concordamos com a improcedência do pedido formulado pela autora e reiterado em sede de recurso, por quatro ordens de razão.
Primeiro, não estando em causa nos autos um contrato de trabalho, não é aplicável o disposto pelo art.º 279.º do Código do Trabalho, que limita e regula a possibilidade de o empregador compensar a retribuição em dívida com crédito que tenha sobre o trabalhador, e a possibilidade de fazer descontos ou deduções no montante daquela.
Segundo, o que está em causa nos autos não é a responsabilidade da recorrente perante a Segurança Social pelo pagamento das quantias devidas a título de quotizações, mas a sua responsabilidade perante o recorrido, não sendo pois, aplicáveis as disposições por aquela invocadas do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social e da Lei Geral Tributária.
Terceiro, é inquestionável que face ao disposto pelo art.º 14.º-A do DL 18/2010, na redação vigente à data quer da constituição, quer da cessação do contrato de formação, eram devidas à Segurança Social as contribuições e quotizações decorrentes da inscrição obrigatória da recorrente na Segurança Social. O recorrido, só após a o relatório da Inspeção Geral dos Serviços de Justiça, em finais de 2020, inscreveu a recorrente na Segurança Social. E procedeu ao pagamento quer das contribuições (parte respeitante ao beneficiário do trabalho), quer das quotizações (parte respeitante ao beneficiários das prestações sociais) em dívida até à data.
O facto de a responsabilidade do pagamento à Segurança Social quer das contribuições, quer das quotizações, ser da entidade beneficiária (art.º 42.º, n.º 1 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social), não significa que o beneficiário das prestações sociais, não seja responsável pelas quotizações. Tal responsabilidade efetiva-se através do desconto da percentagem que lhe corresponde na sua retribuição. A responsabilidade mencionada no art.º 28.º da Lei Geral Tributária apenas se refere à responsabilidade perante a Segurança Social, não à responsabilidade do “trabalhador” perante o “empregador” que cumpriu a obrigação de pagamento à Segurança Social, substituindo-se àquele conforme imposição legal (art.º 42.º do Código Contributivo e art.º 20.º la Lei Geral Tributária).
Por isso, tendo o recorrido procedido ao pagamento à Segurança Social das quotizações que sendo da responsabilidade da recorrente, deveria ter descontado mensalmente no montante pago a título de bolsa, não se vislumbra qualquer obstáculo à conclusão de que o recorrido se constituiu credor da recorrente pelo montante que pagou à Segurança Social. Nessa medida, não existe fundamento para a obrigação de restituição das quantias retidas pelo réu, pois as mesmas correspondem a quantias efetivamente devidas.
Quarto, o que resulta da matéria de facto provada é que, depois de ter efetuado o pagamento das quotizações no valor de € 2 008,26, o recorrido elaborou, com vista à sua assinatura pela recorrente, um documento que continha uma declaração de reconhecimento da obrigação de pagar ao recorrido o referido montante e um pedido de pagamento de tal quantia em 26 prestações. A autora não assinou tal documento, mas respondeu dizendo que “Se o pagamento tiver enquadramento legal podem proceder em conformidade”.
Não se provou que a recorrente não autorizou quaisquer descontos atinentes às contribuições de Segurança Social, o que, não equivale, sem mais, à prova de que tenha sido dada a referida autorização. Mas, como a recorrente bem refere nas alegações, com aquela declaração mais não fez do que transferir o ónus da decisão para a ré, sendo que aquela declaração da recorrente não pode deixar de ser interpretada, segundo os critérios do art.º 236.º do Código Civil, no sentido de que o que a recorrente disse foi “eu não sei se é legal, mas se o INPI achar que sim, então proceda aos descontos mensais”. E foi o que aconteceu nos meses seguintes, sem que resulte que a autora discordasse desse procedimento, o que não teria deixado de fazer se efetivamente não se considerasse devedora dos valores descontados.
Ora, não existindo qualquer limitação legal ao desconto proposto, já que não é aplicável o art.º 279.º do Código do Trabalho e sendo o recorrido detentor do crédito, o pedido de pagamento dirigido à recorrente era legítimo, pelo que a declaração feita pela autora constitui verdadeira aceitação do pagamento da quantia em dívida em prestações mensais.
Quanto ao desconto efetuado na bolsa de julho de 2022 cuja restituição a recorrente peticionou para o caso de improceder o pedido relativo à restituição do valor descontado de abril a agosto de 2021 e de abril a julho de 2022, o recorrido mais não fez do que operar a compensação de créditos, com enquadramento legal no art.º 847.º e segs. do Código Civil, sendo a declaração a que se refere o art.º 848.º do mesmo código corporizada pelo email de 18/07/2022 (ponto 36. dos factos provados) através do qual o recorrido comunicou à recorrente que no seguimento da rescisão com efeito a 1 de agosto, face à dívida relativa à Segurança Social iria proceder ao desconto de € 1 061,85 por forma a compensar a referida divida.
Uma última nota para dizer que não acompanhamos a sentença recorrida no que respeita ao abuso de direito enquanto fundamento para a improcedência do pedido em análise. Se bem entendemos, foi considerado pelo tribunal “a quo” que havia abuso de direito porque a recorrente, por um lado pedia o reconhecimento de um contato de trabalho, que implica a obrigação de pagamento das quotizações para a segurança social, sendo descontadas na retribuição do trabalhador e, por outro lado, tendo tal desconto sido efetuado, ainda que em momento posterior ao devido, não o aceitando, pediu a restituição do correspondente valor.
Ora, do nosso ponto de vista, a contradição assinalada não se subsume a qualquer das modalidades de abuso de direito, mas se existisse, o que não cremos, configuraria antes uma contradição substancial entre pedidos a determinar a ineptidão da petição inicial nos termos do art.º 186.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Civil.
E não existe contradição, na medida em que analisada a petição inicial se verifica que aquele pedido foi formulado independentemente da qualificação do vínculo como contrato de formação ou como contrato de trabalho, o que bem se compreende já que, como resulta do exposto, a obrigação de inscrição na Segurança Social e de pagamento de contribuições e quotizações existe quer num quer no outro tipo de contrato.
Acresce que como é sabido o abuso de direito pressupõe sempre a existência do direito e no caso, o direito invocado pela recorrente não lhe foi reconhecido.
Em conclusão, ainda que não exista abuso de direito, o pretensão da recorrente não pode senão improceder.
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A quarta e última questão a decidir é se é devida à recorrente indemnização por danos não patrimoniais.
O pedido foi julgado improcedente e a decisão não merece nenhum reparo, porquanto, atento o disposto pelo arts. 483.º e 496.º do Código Civil, constituem pressupostos do direito a indemnização por danos não patrimoniais, um facto ilícito e culposo gerador de danos na esfera jurídica do lesado que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito e da matéria de facto provada não resulta demonstrada a verificação de qualquer daqueles pressupostos.
Improcede, pois, a pretensão da recorrente e consequentemente, improcede o recurso na íntegra.
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Decisão
Por todo o exposto acorda-se:
I – julgar totalmente improcedente a impugnação da decisão da matéria de facto;
II – julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
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Custas pela recorrente – art.º 527.º do Código de Processo Civil.
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Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão.
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Notifique.
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Lisboa, 03/07/2024
Maria Luzia Carvalho
Paula Santos
Paula Penha
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1. A. Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, pág. 535.↩︎
2. Contrato de Trabalho, à Luz do novo Código do Trabalho, 2009, pág. 76 e 77↩︎
3. Albino Mendes Baptista, Estudos sobre o Código do Trabalho, Coimbra editora, pág., 71 e Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 2ª ed., pág. 49 e na jurisprudência o Ac. RL de 12/09/2007 reportando à presunção prevista pelo Código do Trabalho de 2003↩︎
4. Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, pág. 100.↩︎
5. Daí a irrelevância da alteração do ponto 7 da matéria de facto provada, como referimos a propósito da impugnação da matéria de facto provada deduzida pela recorrente.↩︎
6. Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., pág. 56/57; João Leal Amado, Contrato de Trabalho, 4.ª ed., pág. 89.↩︎
7. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 14.ª ed., pág. 145.↩︎
8. Com acolhimento da jurisprudência, de que são exemplo o Ac. RP de 06/11/2006, o Ac. RE de 14/09/20203, citado no douto parecer do Ministério Público, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.↩︎
9. A este propósito veja-se o Ac. RL de 08/06/2011, acessível em www.dgsi.pt, que mantém atualidade quando aplicado ao contrato de formação em posto de trabalho, como é o dos autos.↩︎