CRIME DE PORNOGRAFIA DE MENORES
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
IDADE DA VÍTIMA
MERA VISUALIZAÇÃO
RASTO DIGITAL
PERÍCIA
ATIPICIDADE
Sumário


I. Não é possível afirmar-se a idade aparente de uma criança num filme/imagem pornográfica sem a devida perícia por parte da PJ que tem de analisar a imagem e, através dos traços morfológicos e anatómicos, mormente (in)existência de pelos púbicos, desenvolvimento dos seios etc. é que conseguirá concluir-se pela idade aparente da criança filmada/fotografada.
II. Não é preciso fazer-se download, nem subsequente armazenamento no respectivo equipamento para se detectar a “visita” a um site pornográfico ou mesmo a um site de outra natureza. O streaming bem como qualquer simples consulta que seja deixa um rasto informático que, tivesse ocorrido no telemóvel do arguido, a perícia tê-la-ia detectado, quer no histórico do aparelho e, mesmo que esse histórico tivesse sido apagado, tal apagamento, por sua vez, também deixaria rasto, pelo que há erro notório na apreciação da prova quando o Tribunal a quo dá por provado determinado facto com base na assumpção de que a visualização de conteúdo pornográfico não deixa rasto digital no respectivo equipamento e quando afirma que o conteúdo visionado pelo menor continha imagens de actos sexuais com/entre crianças com idade aparente de 10 anos pois tal só pode ser aferido com a visualização do respectivo conteúdo submetido a perícia especifica para determinar a idade das crianças.
III. O artº 176º nº 1 do Código Penal não pune quem exibe perante um menor “simples” material pornográfico, entenda-se, material revelador de actos sexuais entre adultos e sem qualquer envolvimento de crianças, por eticamente censurável que isso seja.

Texto Integral


ACÓRDÃO

Acordam, em audiência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. A) No âmbito de processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, que corre termos pelo Juiz ... do Juízo Central Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., sob o nº 244/17...., foi proferido acórdão em 04-12-2019 com a refª ...86, através do qual o arguido AA foi condenado nos seguintes termos:

“1. ABSOLVER arguido AA pela prática, de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal de que vinha acusado;
2. CONDENAR o arguido AA pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de:
i. 1 (um) crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão;
ii. 1 (um) crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão;
iii. 1 (um) crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos arts. 176.º, n.º 1, al. c) e 177.º, n.º 7, ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;
iv. em cúmulo jurídico, vai condenado na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.
v. na pena acessória de proibição de exercer funções ou actividades públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do art. 69.º-B do Código Penal.
(...)”.

B) Inconformado com tal decisão, dela recorreu oportunamente para este Tribunal da Relação de Guimarães o arguido AA, invocando, em síntese:
- Violação do direito ao contraditório, pelo menos de forma plena, pois, não obstante saber a identificação do sujeito investigado, optou a investigação por produzir declarações para memória futura, sem sequer ter constituído o aqui condenado, como arguido;
- Erro de julgamento (o facto provado nº 5 deve ser tido como não provado; devem ser acrescentados aos factos provados excertos do relatório social relativos à personalidade do arguido);
- Absolvição quanto ao crime de pornografia de menores agravado;
- Aplicação da figura do crime continuado;
- Aplicação do regime penal especial para jovens delinquentes;
- Redução da medida das penas (única e parcelares), por serem excessivas;
- Suspensão da execução da pena.

C) Apreciado tal recurso, esta Relação de Guimarães proferiu acórdão em 28-09-2020, com a refª ...17, constante de fls. 461/478, através do qual entendeu-se “julgar verificado o vício decisório de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410º, nº 2, al. a), do CPP” e, concomitantemente, “decretar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos expostos, em conformidade com o disposto nos artigos 426º, nº 1 e 426º-A, nº 1, do CPP.”.

D) Baixado os autos à 1ª instância, foi dado cumprimento ao ordenado e, em consequência, foi proferida novo acórdão em 20-12-2023 com a refª ...96, constante de fls. 729 e ss que condenou o arguido nos seguintes termos:
           
“Pelo exposto, decide-se:
a) Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, na forma consumada, em concurso efectivo, real e heterogéneo, de:
- 2 crimes de abuso sexual de crianças: [i] em dia indeterminado de Junho de 2016, p. e p. pelos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº1, 26º, 1ª proposição, e 171º, nºs1 e 2, do CP, na pena parcelar de 2 anos e 3 meses de prisão; e [ii] em dia indeterminado de ../../2017, p. e p. pelos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº1, 26º, 1ª proposição, e 171º, nº1, do mesmo diploma legal, na pena parcelar de 1 ano e 2 meses de prisão; e
- 1 crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº1, 26º, 1ª proposição, 176º, nº1, alínea c) e 177º, nº7, do CP, na pena parcelar de 10 meses de prisão.
b) Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, na forma consumada, em concurso efectivo, real e heterogéneo, de 2 crimes de abuso sexual de crianças e de 1 crime de pornografia de menores agravado, descritos em a), nas penas acessórias previstas nos artigos 69º-B, nº2 e 69º-C, nº2, do CP, determinando-se para cada um desses crimes:
- a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de: [i] 5 anos e 4 meses, quanto ao crime de pornografia de menores (agravado); [ii] 5 anos e 8 meses, quanto ao crime de abuso sexual de crianças praticado em ../../2017; e [iii] 6 anos e 2 meses, quanto ao crime de abuso sexual de crianças praticado em Junho de 2016; e
- a proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, (também) por um período de: [i] 5 anos e 4 meses, quanto ao crime de pornografia de menores (agravado); [ii] 5 anos e 8 meses, quanto ao crime de abuso sexual de crianças praticado em ../../2017; e [iii] 6 anos e 2 meses, quanto ao crime de abuso sexual de crianças praticado em Junho de 2016.
c) Condenar o arguido AA em cúmulo jurídico, ao abrigo do vertido no artigo 77º, nºs1 e 2, do CP, na:
[i] pena única de 3 anos de prisão;
[ii] pena acessória única de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 5 anos e 10 meses; e
[iii] pena acessória única de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 5 anos e 10 meses.
c) Suspender na sua execução e pelo período de 3 anos, a pena de prisão aplicada ao arguido AA, nos termos do disposto no artigo 50º, do CP, ficando essa suspensão condicionada a regime de prova, ao abrigo do disposto nos artigos 53º e 54º, ambos do CP, que assentará num plano de reinserção social executado com vigilância e apoio da DGRSP, a incidir nas vertentes mais convenientes para a ressocialização do arguido, tendo em vista alcançar os seguintes objectivos, entre outros que, porventura, forem delineados:
[i] confronto do arguido com as suas acções e tomada de consciência das suas condicionantes e consequências em ordem a prevenir o cometimento no futuro de factos de idêntica natureza; e
[ii] adequação de comportamentos atinentes a uma sexualidade concordante com o normativo jurídico-penal e respeitadora da autodeterminação sexual, com a frequência, se revelar-se conveniente, de programa(s) vocacionado(s) para ofensores/agressores sexuais de crianças e jovens
c) Condenar o arguido AA no pagamento das custas criminais, fixando-se em 4 UCs a taxa de justiça devida (cfr. artigos 513º e 514º, do CPP, e artigos 3º, nº1 e 8º, nº9, estes do Regulamento das Custas Processuais (doravante, abreviadamente, RCP), por referência à Tabela III, anexa ao mesmo diploma legal), sem prejuízo do direito a protecção jurídica de que (eventualmente) beneficie.
(…)”.

II. Inconformado, veio, então, o arguido interpor recurso em 01-02-2024 com a refª ...62 através do qual oferece as seguintes conclusões:

“1. Salvo o devido respeito, o Douto Acórdão é nulo por falta de fundamentação e de exame critico da prova e por omissão de pronuncia.
2. Apesar de na perícia realizada ao smartphone do arguido, efetuada pelo Serviço de Telecomunicações e Informática, do Departamento de Investigação Criminal de ..., da Polícia Judiciária concluir que não foram encontrados ficheiros de interesse – ou seja, vídeos com conteúdo de pornografia infantil - o Tribunal a quo considerou que a inexistência de ficheiros relacionados com pornografia não significa, porém, que não possam ter sido visualizados vídeos de cariz pornográfico no referido smartphone, atenta a possibilidade de serem transmitidos em “streaming”.
3. Como é de conhecimento geral, cada indivíduo, no século XXI deixa uma pegada digital, no sentido em que não existem, praticamente, forma de dissimular ou apagar permanentemente os dados dos acessos a websites. Caso existisse qualquer conteúdo pornográfico no telemóvel do arguido – mormente, de pornografia infantil e/ou pornografia entre adultos – existiriam vestígios nas pesquisas feitas nos motores de busca, mesmo que o arguido as tivesse apagado.
4. A motivação do Tribunal a quo alicerçou-se – além das referidas perícias – nas declarações para memória futura prestadas pelo menor/ofendido e do depoimento das testemunhas BB e CC – seus progenitores -, DD, EE e DD – tias do arguido - FF – namorada do arguido -, GG – amiga de uma tia do arguido – e HH – que, à data dos factos sob discussão, era casa com o progenitor do ofendido, sendo prima do arguido.
5. Não se consegue entender ou aceitar como é que o Tribunal a quo valorou, em absoluto, as declarações para memória futura do ofendido, quando as mesmas estão cheias de imprecisões, contradições e confusões – de situar no tempo e no espaço.
6. O ofendido, mesmo com apenas 11 anos e tendo problemas cognitivos a nível de discurso e aprendizagem, tem obrigação de, num contexto tão sério e gravoso, de ser mais concreto e preciso nas declarações que prestou.
7. Verificam-se várias incongruências nas declarações para memória futura do ofendido, nomeadamente quanto o número de vezes que ocorreram os supostos abusos – o ofendido nunca consegue concretizar o número de vezes em que ocorreram os supostos abusos, só conseguindo localizar, concretamente, três ocasiões - bem como os locais, datas e modus operandi dos supostos abusos – as primeiras declarações que prestou apenas faziam referência ao facto do arguido ter feito sexo oral com o ofendido, sendo que em declarações para memória futura disse que os abusos consistiam, também, em sexo anal.
8. O ofendido referiu à Sr.ª Perita, no relatório pericial e com as declarações que prestou para memória futura, quando diz, referido relatório pericial, que “eu deitava-me e ele deitava-se em cima de mim e fazia-me aquilo…dava-me beijinhos na boca, fazia a pinagem…metia a pila no cu…saia um líquido branco para cima de mim, eu limpava com toalhetes…”, sendo que, nas declarações para memória futura, quando questionado pelo senhor juiz de instrução ─ ao minuto 19:14 da segunda parte das declarações ─ sobre se, em alguma das vezes, saiu alguma coisa da pilinha, o ofendido respondeu que não, que não viu. Ora tais incongruências foram ignoradas pelo Tribunal a quo.
9. O próprio pai do ofendido demonstra as incongruências e as dificuldades em situar temporal e espacialmente por parte do ofendido, sendo que, durante o seu depoimento, prestado perante o Tribunal a quo, a referida testemunha demonstrou que, ainda hoje, tinha algumas dúvidas de que os abusos tivessem, de facto, ocorrido – sendo tal desvalorizado pelo Tribunal a quo.
10. As testemunhas DD, GG e HH depuseram no sentido de que o ofendido era uma criança com comportamentos e linguagem bastante sexualizada – mais evidente, em setembro de 2015, a testemunha GG observou o ofendido II: “a levantar a saia a uma miúda ou a tirar-lhe a camisola, bem como a encostar-se a uma outra a simular a cópula.”, verificando-se um padrão – anteriormente às datas dos supostos abusos – de hipersexualização comportamental e verbal por parte do ofendido.
11. Face a tais depoimentos totalmente demonstrativos da hipersexualização e comportamentos fora do padrão por parte do ofendido, o Tribunal a quo preferiu ignorar os mesmos.
12. Em suma, padece o Douto Acórdão de que ora se recorre de nulidade por falta de fundamentação, violando os artigos 97.º, n.º4, 374° n° 2, 379º, n.º 1, alínea a), b) e c) do CPP, bem como artigo 202.º e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o que deverá ser declarado com as legais consequências.
13. Arguindo-se, ainda, a inconstitucionalidade da interpretação do art.º 71.º, conjugado com o art.º 129.º, ambos do CPP e a inconstitucionalidade dos art.º 374º, n.º 2 e art.º 379, n.º 1 n.º 1 a), do C.P.P, quando interpretados no sentido de não ser necessário fundamentar de facto e de direito o Douto Acórdão, bastando apenas fazer referências aos elementos de prova e uma referência ao exame crítico efetuado, bem como da interpretação em como é possível ao juiz, em sede de recurso, não explicar o raciocínio lógico para chegar a determinada decisão, designadamente não indicando os motivos que determinaram que o tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido aceitando um e afastando outro, não explicando o porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substrato lógico-racional da decisão, por violação dos artºs 97.º, n.º4, 374° n° 2, 379º, n.º 1, alínea a), b) e c) do CPP bem como artigo 202.º, 204º e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
14. Considera o recorrente que a matéria constante dos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 12 dos factos provados, que deverão ser dados como não provados, impugnando-se a matéria de facto.
15. Para assentar como provados estes factos, recorreu o Tribunal a quo, maioritariamente, às declarações prestadas pelo ofendido, prestadas perante o Sr. Juiz de Instrução em declarações para memória futura – sem a presença do arguido ou do seu defensor (escolhido por si).
16. Conforme já exposto nas presentes conclusões, o ofendido apresenta várias incongruências nas suas declarações para memória futura, bem como apresenta um discurso sexualizado e brejeiro – nomeadamente, os termos que utiliza para descrever o ato sexual, bem como os órgãos sexuais (“pinagem”; “grila, passaroca”).
17. O pai do ofendido, a testemunha CC, não se demonstrou totalmente convencido que os referidos abusos tenham ocorrido, sendo que perante Magistrado do Ministério Público ainda confirma as confusões espácio-temporais presentes nas declarações para memória futura, prestadas pelo ofendido.
18. As testemunhas DD, GG e HH vieram confirmar a personalidade hipersexual e, ligeiramente, problemática do ofendido, anteriormente a terem ocorrido os alegados abusos.
19. Perante este quadro – incongruências das declarações para memória futura, prestadas pelo ofendido, da desconfiança do próprio pai da veracidade das acusações e declarações de 3 testemunhas diferentes dos comportamentos hipersexualizados do ofendido, inclusive, o relato de uma situação que ocorreu em setembro de 2015 em que o ofendido simulou a cópula com outra menina – o Tribunal a quo, mesmo assim decidiu dar por provado os factos 4, 6, 7, 8, 9, 10 e 12, o que não pode suceder.
20. No que aos vídeos respeita, quando ouvido pelo MM Juiz, referiu o ofendido – vide transcrição de fls. 138 – que os vídeos tinham sido mostrados no Youtube. Tal referência a essa plataforma partiu do menor, sem que, nisso tivesse sido influenciado por ninguém, sendo que no conteúdo dos vídeos foi alternando com a presença de mulheres/homens, com crianças com crianças, para voltar a mulheres
21. É consabido que, as plataformas legais que se localizam na internet, bloqueiam automaticamente conteúdos de natureza sexual. – cfr. ....
22. A própria mãe do ofendido, a testemunha JJ, referiu que o filho lhe disse que os referidos vídeos lhe tinham sido mostrados no Youtube, o que, conforme ficou provado, era absolutamente impossível.
23. A peritagem efetuada ao telemóvel do ofendido atestou, sem dúvidas, que não existiam vídeos com pornografia infantil, nem vestígios dos mesmos, pelo que o facto 5 dado como provado, deve ser dado como não provado.
24. Na procedência deste recurso e sempre com devido respeito, crê o arguido que, a factualidade constante dos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 12 dos factos provados, devem ser dados como não provados e por via disso ser o arguido absolvido da prática de 2 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. artigos 13.º, 1.ª parte, 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª proposição, e 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal e 1 crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos arts. 176.º, n.º 1, al. c) e 177.º, n.º 7, ambos do Código Penal, bem como da sanção acessória.
25. O Venerando Tribunal da Relação de Guimarães considerou ser necessária a realização de nova perícia, porquanto considerou ser necessário colmatar a perícia psicológica forense, na medida em que, tendo como objetivo aferir se o ofendido/vítima II tinha ou não capacidade para testemunhar, por ter aptidão para memorizar e narrar factos em que participou ou visualizou, não tomou em consideração o processo de acompanhamento clínico a que este ofendido/vítima vinha sendo sujeito (seria uma criança com deficit de atenção, encontrando-se medicada para o efeito e sendo seguida em consulta de psicologia (Dr.ª KK) e pedopsiquiatria (Dr.ª LL), no Hospital ...).
26. O Tribunal a quo considera que foi impossível realizar a perícia pedopsiquiátrica do ofendido II, porquanto o mesmo se recusou a fazer a mesma, recusando-se a responder às perguntas que lhe foram feitas sobre os pretensos abusos, sendo que posteriormente, o próprio pai do ofendido se recusou a que o filho estivesse, sequer, presente na referida perícia, tendo o Tribunal a quo decidido suprir a autorização do pai, pelo carater sério e urgente dos presentes autos.
27. Ou seja dos autos resulta que não foi possível realizar-se a referida perícia, o que não pode ser imputado ao arguido.
28. O Tribunal a quo, num atropelo hierárquico absoluto, decidiu que não era necessária ser realizada uma segunda perícia, nos moldes definidos pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, optando por considerar que a 2.ª perícia se tinha realizado na breve conversa – no sentido em que o Sr. Perito apenas lhe perguntou perguntas do seu quotidiano, pois o ofendido recusou a responder qualquer pergunta quanto aos alegados abusos – e que a restante informação necessária foi, na óptica do tribunal, colmatada pelas declarações da Sr.ª Perita MM que elaborou o 1.º relatório pericial, que relembre-se, foi considerado insuficientemente elaborado pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães e nas declarações nas testemunhas NN – que, entre 2016 e 2018, acompanhou o ofendido em consultas de pedopsiquiatria no Hospital ... – e KK - que, nessa unidade hospitalar, seguiu o ofendido em consultas de psicologia desde 2016 até 2022.
29. O relatório pericial junto aos autos não aborda a relevância que teve – ou, eventualmente, poderá ter – a confessada mentira do mesmo a propósito da identificação da pessoa, que, alegadamente, lhe ensinou a ver vídeos de cariz pornográfico no tablet – relembre-se, que começou por dizer ao pai que foi a mãe que lhe mostrou, acabando por dizer, depois, que foi o arguido quem lhe ensinou a ver esses vídeos, apesar do mesmo nunca ter partilhado o referido aparelho eletrónico com o ofendido.
30. Mais gravoso, ainda, é o facto de o menor ter declarado à perita “eu deitava-me e ele deitava-se em cima de mim e fazia-me aquilo… dava-me beijinhos na boca, fazia a pinagem… metia a pila no cu… saia um líquido branco para cima de mim, eu limpava com toalhetes…”, mas, nas declarações para memória futura, quando questionado, o ofendido disse que nunca tinha visto nada a sair do pénis do arguido.
31. O erro mais relevante – e para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães – foi a mera menção, no referido relatório, de que: “II frequenta o 4.º ano de escolaridade, tendo sido retido no 2.º e 3.º ano. Usufrui de medidas de ensino especial por dificuldades de aprendizagem, hiperatividade e défices de atenção”, ou seja, para trás, sem menção ou apreço, fica todo um acompanhamento clínico descrito pelo pai, testemunha CC - que resulta do auto de inquirição da Polícia Judiciária, de fls. 52.
32. O Tribunal a quo não respeitou aquilo que foi a decisão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães - que, relembre-se, novamente, implicou o reenvio do processo para novo julgamento.
33. É indiscutível que só com a realização de uma nova perícia, a levar a cabo por um perito diferente, em que se analise, devidamente, a personalidade do ofendido, bem como as incongruências do seu discurso, complementada com todo o seu historial pedopsiquiátrico, é que se poderá aferir, devidamente, se o ofendido tinha ou não capacidade para testemunhar sobre os eventuais abusos, por ter aptidão para memorizar e narrar factos em que participou ou visualizou – independentemente, das declarações da Sr.ª Perita MM e das testemunhas NN e KK, que, não foram inquiridas nos autos na qualidade de peritas.
34. Os tribunais de 1.ª instância devem acatar a decisão do respetivo Tribunal da Relação, por força do disposto no art.º 4.º, n.º 1, da LOSJ, dispositivo fundamental na orgânica judiciária.
35. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada só existe quando o tribunal, podendo fazê-lo, deixou de investigar um ou mais factos com relevância, de tal forma que a matéria de facto dada como provada não permite a adequada decisão de direito – nesse sentido, vide, Ac. do Tribunal da Relação do Porto, datado de 10.12.2003, proc.º n.º 0315303.
36. No caso em concreto, o Tribunal a quo não teve em consideração todo o percurso pedopsiquiátrico do ofendido, bem como não realizou uma nova perícia, com um novo perito, para aferir da capacidade do ofendido em prestar declarações, com precisão, sobre os eventuais abusos, pelo que se verifica a insuficiência no apuramento dos factos, deixando-se, assim, eivado o Douto Acórdão recorrido, com caráter abrangente, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos da al. a), do n.º 2, do art.º 410.º, do Código de Processo Penal.
37. Além do mais não realização da referida perícia, nos moldes indicados pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, no Douto Acórdão que proferiu, constitui uma omissão de diligências fundamentais para a descoberta da verdade material, que leva a que o Douto Acórdão é nulo por omissão de diligências fundamentais para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, por violação do disposto nos artigos 340.º, do Código de Processo Penal e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
38. Mais resulta da globalidade do próprio texto da decisão que o tribunal, apesar da hesitação sobre a prova de determinados factos, decidiu em sentido desfavorável ao arguido, o que viola o princípio in dúbio pro reo.
39. Da decisão resulta que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a factos –sendo o mais flagrante o facto 5 dado como provado - e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido impondo-se ainda essa sindicância, caso não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, naqueles casos em que se possa constatar que a dúvida só não foi reconhecida em virtude da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art.º 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP.
40. A ausência da realização da segunda perícia nos moldes ordenados pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, lança uma dúvida inultrapassável se, de facto, o ofendido tinha capacidade para memorizar e narrar factos em que participou ou visualizou, relativamente aos eventuais abusos – dúvida essa que só poderia ser ultrapassada pela realização da referida perícia com os aludidos parâmetros.
41. Se existe dúvida quanto à capacidade para prestar declarações precisas por parte do ofendido, têm de existir dúvidas ainda maiores quanto à prática dos crimes pelo que o arguido foi condenado, nunca podendo o Tribunal a quo, perante estas dúvidas, condenar o arguido.
42. O tribunal dá como provado que o arguido exibiu ao ofendido vídeos de cariz sexual, não porque haja certeza em face da prova constantes dos autos, mas sim, porque em abstrato pode ser possível a visualizam de tais vídeos em streaming.
43. Considerando a globalidade da prova produzida cremos, sempre com o devido respeito por opinião contrária, que não é segura a convicção de que o arguido tenha exibido tais vídeos, tanto mais que a perícia efetuada ao telemóvel do arguido, não constitui uma simples análise ao histórico de páginas visitadas, mas sim, uma perícia, no sentido de se apurar em que páginas navegou efetivamente, mesmo que, depois tivesse eliminado o histórico, e não podemos olvidar a circunstância surpresa em que o telemóvel do arguido foi aprendido – no momento da sua inquirição sem qualquer pré-aviso.
44. Perante uma dúvida tão impactante para a decisão da causa, o tribunal não pode dar como provado os factos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 12, matéria que deve passar a constar dos factos não provados.
45. Fundamentalmente, o que no Acórdão de que ora se recorre se faz é, porque não tem certeza quanto à prática dos factos por parte do arguido, eliminou todas as provas que constituiriam a «contraprova» - designadamente os depoimentos das testemunhas CC –próprio pai do ofendido que exibiu sempre dúvidas quanto aos abusos - DD, GG e HH – que revelaram o comportamento e discurso sexualizado do ofendido bem antes dos alegados abusos terem ocorrido, o que do ponto de vista do CPP não é admissível por violação do princípio in dubio pro reo.
46. Sem prescindir do até agora alegado, apesar da existência de mais que um ato ilícito típico do crime de abuso sexual de criança, praticados com a mesma pessoa, se verifica no caso concreto, uma condição exterior ao arguido que facilitou a conduta e que existe uma unidade resolutiva com conexão temporal e especial sendo o mesmo o modo de atuação, pelo que ocorre um único crime continuado e não vários crimes.
47. Cada uma das condutas do arguido – cada ato sexual – não é autónoma em relação às outras, sujeita a um juízo de censura único, a uma unidade de resolução, constituindo, assim, um único crime, previsto e punível pelo artigo 171º, nº 1 e 2 do C.P, devendo o arguido ser condenado por um único crime e não por três como ocorreu.
48. Ainda e sem prescindir do que se concluiu supra, entende o recorrente que a medida da pena que lhe foi aplicada peca por exagero, violando o disposto no art.º 70º do CP.
49. Há que ter em devida conta a situação concreta do arguido, pessoa sobre a qual, apesar da ilicitude dos factos, não impende rejeição social, como resulta do relatório social, gozando como se viu de “imagem positiva”, não tendo o tribunal tomado em devida consideração a integração profissional do arguido, que concluiu se encontra em fase final do curso de medicina na Universidade ..., com um percurso profissional e familiar integrado e permanente, com relacionamento amoroso estável com a sua namorada.
50. Bem como não teve em devida conta, designadamente o grau de ilicitude; a situação pessoal; o seu comportamento anterior e posterior à prática do crime – a ausência de antecedentes criminais; a idade do arguido a quando dos factos– 18 anos; o facto de, posteriormente não se ter aproximado do menor vítima, nem de qualquer outro.
51. Igualmente não tomou em devida conta a, relativa e diminuta gravidade dos atos - não obstante o respeito pelo sofrimento da vítima, mas em confronto com outras situações que se colocam à justiça.
52. No caso em concreto, face a todos os fatores sociais, académicos, profissionais, ausência de antecedentes criminais, bem como a sua jovem idade à data da prática dos factos – 18 anos - deveriam de lhe ter sido aplicadas penas parcelares para o mínimo legal previsto: Crime de abuso sexual de crianças: (i) em dia indeterminado de junho de 2016, p. e p. pelos artigos 13.º, 1.ª parte, 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª proposição, e 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, deveria ter sido aplicada a pena parcelar de 7 meses e 9 dias;  (ii) em dia indeterminado de ../../2017, p. e p. pelos artigos 13.º, 1.ª parte, 14.º, n.º 1, 26.º, 1.ª proposição, e 171.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, deveria ter sido aplicada a pena parcelar de 1 mês de prisão; Crime de pornografia de menores agravado: deveria ter sido aplicada a pena parcelar de 1 mês de prisão.
53. Considerando o alegado, somos do entendimento, sem prescindir do que alegamos nos pontos I, II, III, IV e V da motivação, que o quantum aplicado parcelarmente por cada um dos crimes pelos quais foi condenado peca por exagerado, impondo-se a sua redução para o mínimo legal previsto nas normas, devendo a pena única fixar-se em 1 ano e 8 meses, sempre suspensa na sua execução.

DISPOSIÇÕES LEGAIS VIOLADAS
• Art.ºs 97.º, n.º 4, 374° n° 2, 379º, n.º 1, alínea a), b) e c) do CPP bem como artigo 202.º, 204º e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
• Al. a) do n.º 2 do art.º 410º do CPP;
• Art.ºs 340.º, do Código de Processo Penal e 32.º da Constituição da República Portuguesa;
• Art.º 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa;

TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE POR PROVADO E EM CONSEQUÊNCIA SER O, DOUTO ACÓRDÃO, SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE CONTEMPLE AS CONCLUSÕES ATRÁS ADUZIDAS DECIDINDO DESSA FORMA, FARÃO V. EXC.ªS, UM ACTO DE SÃ JUSTIÇA!
COMO SEMPRE!”.

III. O recurso foi admitido por despacho de 06-02-2024, com a refª ...54, tendo sido fixado efeito suspensivo.

IV. Respondeu o MºPº em 14-03-2024, com a refª ...09 pugnando pela improcedência do recurso, tendo rematado com as seguintes conclusões:
           
“A. A decisão ora posta em crise perfila-se como absolutamente correcta e ajustada à matéria de facto dada por verificada no circunstancialismo concreto apurado, inexistindo qualquer reparo a efectuar quanto a se ter considerado como provado o facto constante do ponto 5. dos factos provados, não obstante o resultado do exame pericial ao telemóvel.
B. O douto Acórdão não é nulo por falta de fundamentação.
C. As declarações do ofendido ouvido em declarações para memória futura são credíveis.
D. Não resulta dos autos que o ofendido tenha um discurso hipersexualizado ou comportamentos fora do padrão por parte do ofendido, como se este com a idade de 11 anos fosse de alguma forma responsável pelas acções do arguido.
E. O que pretende o recorrente é que a sua versão dos factos seja valorada em detrimento daquelas do ofendido. O Tribunal a quo explicou o motivo que o levou a acreditar na versão do ofendido.
F. Tendo presentes os concretos factos provados acabados de mencionar dúvidas não restam da efectiva prática pelo recorrente do crime de pornografia de menores agravado, dado que, ao invés do que é por si propalado, resulta de forma cristalina da matéria apurada nos autos que o mesmo exibiu ao menor II, cuja idade inferior a 12 anos conhecia, filmes pornográficos contendo filmes/cenas/imagens de actos sexuais explícitos, inclusive de coito vaginal, não apenas entre adultos mas bem assim entre crianças com idade aparente de dez anos e ainda com menos idade.
G. Falece, assim, sem mais qualquer tentativa de eximir o recorrente da sua responsabilidade criminal pela prática do crime de pornografia de menores agravado, bem tendo andado o tribunal a quo ao considerar preenchido os elementos objectivos e subjectivos do crime, condenando o recorrente em
conformidade.
H. Isto posto, ponderando devidamente toda a prova produzida, necessariamente se impunha ao tribunal a quo considerar como  provados os factos provados sob os pontos n.º 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 12, nos termos em que o fez.
I. Foi justificado o motivo pela não realização segunda perícia, nos moldes definidos pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães.
J. Contrariamente ao alegado pelo arguido, o Tribunal a quo, encetou várias diligências para a realização da perícia e na impossibilidade de lograr fazê-la, colmatou a informação que a perícia aportaria recorrendo ao depoimento de quem acompanhou o ofendido e que conhece bem o seu estado psicológico na altura e as dificuldades que o mesmo tinha.
K. O que o arguido pretende é que o Tribunal a quo acreditasse na sua versão em detrimento da do ofendido alegando que as declarações dele para memória futura não eram credíveis, que o mesmo tinha comportamentos hipersexualizados. Questionou ainda o depoimento das testemunhas e a perícia realizada ao telemóvel do arguido.
L. A versão do arguido, em nada credível, sem qualquer outro elemento que suscite uma dúvida razoável não se revela suficiente para abalar a convicção do Tribunal.
M. Assim, não se vê como é que o tribunal a quo possa ter violado o princípio do in dubio pro reo. Pelo contrário, de todo o processo resulta a observância formal e material deste princípio.
N. Destarte, nenhum reparo pode ser efectuado ao juízo realizado pelo tribunal a quo quanto à efectiva existência de três resoluções criminosas distintas, inexistindo qualquer censura a fazer ao enquadramento em tipologia penal dos factos apurados nos autos e do efectivo integrar dos mesmos no concurso efectivo de crimes.
O. Tendo presentes os concretos factos provados não restam dúvidas da efectiva prática pelo recorrente do crime de pornografia de menores agravado, dado resultar de forma cristalina da matéria apurada que o mesmo exibiu ao menor II, cuja idade inferior a 12 anos conhecia, filmes pornográficos contendo filmes/cenas/imagens de actos sexuais explícitos, inclusive de coito vaginal, não apenas entre adultos mas bem assim entre crianças com idade aparente de dez anos e ainda com menos idade.
P. Nos crimes de índole sexual mostra-se arredada sem mais a possibilidade de se conceber a existência de um crime continuado para efeitos do disposto no art. 30.º, n.º 2 do C.P. atento o estatuído no n.º 3 do mesmo normativo, dado ser indubitável estarem em causa bens eminentemente pessoais.
Q. Atendendo aos concretos factos apurados, resulta de forma límpida serem plúrimas as resoluções criminosas subjacentes à actuação do recorrente, assim o fazendo incurso, conforme apurado, em concurso efectivo, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. nos termos do art. 171.º, n.Os 1 e 2, do C.P., um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. nos termos do art. 171.º, n.º 1, do C.P., e, um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. nos termos dos artigos 176.º, n.º 1, al. b), al. c) e al. d) e 177.º, n.º 7 do C.P.
R. Nenhum reparo pode ser efectuado ao juízo realizado pelo tribunal a quo quanto à efectiva existência de três resoluções criminosas distintas, inexistindo qualquer censura a fazer ao enquadramento em tipologia penal dos factos apurados nos autos e do efectivo integrar dos mesmos no concurso efectivo de crimes.
S. O quantum da pena única concreta fixada – e bem assim antes as penas parcelares –, se apresenta não só ajustado e proporcional como ainda perfeitamente legal e correcto, tendo sido devidamente ponderados os fins e limites das penas no quadro do binómio culpa-ilicitude dos factos, e os princípios da prevenção geral e especial ressocializadora.
U. Não merecendo, assim, o douto acórdão em análise qualquer reparo, deve o mesmo ser plenamente confirmado.
Vossas Excelências no entanto, melhor ponderando, farão como sempre a devida Justiça”.

VII. Foram colhidos os vistos e realizada audiência nos termos do artº 411º nº 5 do Código de Processo Penal.

VIII. No âmbito da audiência, o Exmº Sr. PGA emitiu douto parecer no sentido de absolvição do arguido.

IX. Analisando e decidindo.

O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no artº 410º do CPP e das nulidades previstas no artº 379º do mesmo CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[1]

Das disposições conjugadas dos artºs 368º e 369º, por remissão do artº 424º nº 2, e ainda o disposto no artº 426º, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:
1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, aqui incluindo-se as nulidades previstas no artº 379º e os vícios constantes do artº 410º, ambos do CPP;
2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do artº 412º do CPP;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.

Está em causa decidir nos autos de acordo com a ordem legal estabelecida saber:

I. se o acórdão recorrido é nulo, por falta de fundamentação e de exame crítico das provas nos termos do disposto nos Artºs. 97º, nº 4, 374º, nº 2, 379º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal[2] e Artsº 202º e 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa;
II. se se verifica o vício a que alude o Artº 410º, nº 2, al. a), do Código e Processo Penal, e se houve omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade;
III. se existe erro de julgamento no que tange aos factos dados como assentes sob os pontos nºs 4 a 10 e 12;
IV. se foi violado o princípio in dubio pro reo;
V. se os factos dados como assentes permitem a aplicação da figura do “crime continuado”, nos termos do disposto no Artº 30º do Código Penal; e
VI. se são excessivas as penas parcelares e bem assim a pena única de prisão aplicadas ao arguido.

Antes de entrarmos na análise das questões supra identificadas, olhemos, primeiro, os factos dados por provados e não provados bem como a respectiva motivação.

“Factos Provados:
1. O ofendido II nasceu no dia ../../2006, sendo filho de CC e de BB.
2. O arguido AA nasceu no dia ../../1997 e reside na Rua ..., da freguesia ..., do concelho ... (...) – o que também sucedia à data dos factos sob discussão nos presentes autos –, sendo vizinho de uns tios e dos progenitores de HH que, a essa data, era casada com o mencionado CC.
3. Até ao início do ano de 2017, o aludido II, acompanhado do seu pai e da esposa deste, deslocava-se com frequência a casa dos progenitores da identificada HH e dos familiares seus vizinhos – onde residiam o arguido e a tia OO (“PP”) –, nomeadamente a festas familiares, como casamentos, baptizados e comunhões.
4. Em dia que, em concreto, não foi possível apurar, mas situado no mês de Junho de 2016, na residência do arguido, referida em 2., o mencionado AA acompanhou o ofendido à casa de banho e, uma vez aí, introduziu o órgão sexual deste na sua boca (do arguido), fazendo de seguida movimentos de fricção do pénis no interior da boca, tendo, no final, dito àquele II: “se contas a alguém digo que não fui eu, que a ideia foi tua”.
5. Ainda nesse dia de Junho de 2016, desta vez no sótão da sua residência, o arguido, após fechar a porta dessa divisão, exibiu ao ofendido filmes com imagens/cenas de actos sexuais/relações sexuais explícitos (coito vaginal) praticados por homens com mulheres e crianças com crianças, sendo estas de idade aparente de 10 anos e com menos idade.
6. Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido baixou as calças e as cuecas do aludido II e de seguida baixou as suas calças e cuecas, após o que introduziu o pénis deste na sua boca (do arguido), fazendo de seguida movimentos de fricção do pénis do ofendido.
7. Acto contínuo, o arguido, com a sua mão, segurou a cabeça do ofendido e procurou introduzir o seu pénis (do arguido) na boca deste (do ofendido).
8. Contudo, como o identificado II tinha a boca fechada, o arguido, com a sua mão, abriu-lhe a boca e aí introduziu o seu pénis (do arguido), fazendo de seguida movimentos de fricção do pénis no interior da boca do ofendido.
9. Também nesse dia de Junho de 2016, desta feita na lavandaria da sua residência, o aludido AA introduziu o seu pénis na boca do menor, fazendo de seguida movimentos de fricção do pénis no interior da boca do mencionado II, bem como introduziu o órgão sexual deste na sua boca (do arguido), fazendo de seguida movimentos de fricção do pénis do menor no interior da boca.
10. Em dia que, em concreto, não foi possível apurar, mas situado no mês de ../../2017, o ofendido deslocou-se à residência de um familiar do arguido – e vizinho deste –, sita em ... (...), para celebrar a festa da comunhão de 2 crianças (QQ e OO) da família daquela HH.
11. Nessa festa também estava presente o mencionado AA.
12. Nesse dia, durante tal festa, a hora que, em concreto, não foi possível determinar, o arguido acompanhou o ofendido à casa de banho e, quando aí estavam, o aludido AA baixou as calças e as cuecas que o identificado II trazia vestidos e, de seguida, introduziu o pénis deste (do ofendido) na sua boca, fazendo movimentos de fricção do pénis do ofendido no interior da sua boca (do arguido).
13. O arguido AA conhecia o ofendido II e sabia que o mesmo, à data dos factos que se discutem, era uma criança com idade inferior a 12 anos.
14. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente com vontade, concretizada, de exibir, ao ofendido, filmes pornográficos com cenas de sexo explícito entre adultos e com crianças, e com vontade, concretizada, de introduzir o seu pénis na boca do ofendido e o pénis deste na sua boca, assim mantendo com o menor relações de sexo oral, e, deste modo, satisfazer os seus instintos libidinosos, não obstante saber a idade do mencionado II.
15. O arguido conhecia o carácter proibido e criminalmente punível das suas condutas.
(…)
16. O arguido é estudante universitário.
17. Reside com os progenitores, de quem tem apoio diário.
18. Beneficia também do apoio da namorada FF.
19. Encontra-se familiar e socialmente inserido.
20. É pessoa respeitada e respeitadora.
(…)
21. Do Certificado do Registo Criminal do arguido nada consta.
(…)
22. À data dos factos sob discussão nos presentes autos, o arguido AA contava com 18-19 anos de idade.
23. No período a que se reportam tais factos, o arguido integrava o agregado familiar, composto pelos pais e 2 irmãos mais novos, estudantes, com 19 e 11 anos de idade.
24. Este agregado residia em casa própria, tratando-se de uma vivenda unifamiliar com boas condições de habitabilidade, localizada numa freguesia periférica à cidade ..., de características eminentemente rurais, num contexto sem problemáticas sociais relevantes e com relações de vizinhança de expressiva proximidade relacional, situação que se mantém na actualidade.
25. À data dos factos a sustentabilidade da família era assegurada pelo salário do progenitor, enquanto sócio-gerente de empresa, que auferia um total mensal de cerca de € 1.000,00.
26. As despesas deste agregado alicerçavam-se nesse vencimento, nomeadamente a amortização do empréstimo bancário relativo à aquisição do imóvel (€250,00, por mês) e cerca de €220,00, por mês, relativos ao pagamento de bens e serviços básicos (água, luz, gás, TV).
27. A situação económica da família não se alterou desde então.
28. O agregado do aludido AA mantém disponibilidade para continuar a constituir-se como retaguarda e facultar-lhe todo o apoio.
29. A dinâmica familiar é relacionalmente equilibrada, coesa e solidária entre os vários elementos.
30. O arguido, depois de ter frequentado a licenciatura em Bioquímica, frequenta actualmente o 5º ano da Licenciatura em Medicina, estando a preparar-se para os exames finais.
31. Os seus tempos livres são neste momento muito circunscritos aos fins-de-semana e, tal como sucedia à data dos factos sob discussão, continuam a ser ocupados com actividades da igreja, nomeadamente, como membro do grupo coral, onde também é organista, estabelecendo com os demais elementos um relacionamento adequado.
32. À noite frequenta bares, discotecas e festas académicas com a namorada.
33. O arguido projecta uma imagem social e pessoal positiva, sendo participativo em actividades não só da paróquia, como também da escola.
34. Aquele AA, no ano transacto, foi voluntário em ... no âmbito de um programa de estudantes da Universidade ....
35. Perante as figuras de autoridade assume uma postura de humildade e de respeito e perante os amigos e grupo de jovens assume atitudes de solidariedade e disponibilidade.
36. O mencionado AA não sinaliza anteriores contactos com o sistema de justiça penal.
37. A existência dos presentes autos passa despercebida na localidade de residência do arguido e apenas um conjunto restrito da família alargada – a namorada e os seus familiares directos – conhecem a presente situação jurídico-penal e os factos que estão na origem do processo, perante os quais se manifestam surpreendidos.
38. O arguido mostra-se preocupado pelas consequências deste autos, pelo sofrimento causado aos que lhe são próximos, pelas consequências na interacção social e pelo impacto na sua licenciatura e futuro exercício profissional.
39. Após o surgimento de um estado depressivo, que o levou a ter acompanhamento psicológico, o arguido mantém contactos pontuais com a psicóloga que o acompanha desde ../../2019, pelo facto de continuar a ter algumas crises de ansiedade, principalmente depois de o julgamento ter sido reagendado.
40. Quando confrontado com situações passíveis de integrar a tipologia de crime subjacente aos presentes autos, ainda que em abstracto, mostra-se conhecedor da ilicitude, expressando um discurso socialmente expectável, sem evidenciar dificuldades em percepcionar o impacto e os danos potencialmente causados a vítimas/ofendidos.
41. No caso de vir a ser condenado, quando abordado sobre a eventualidade de sujeição a intervenção psicoterapêutica direccionada a ofensores sexuais, expressa a sua concordância, embora afirmando não ter necessidades de intervenção na área da sexualidade.”.

*
Factos Não Provados:

“a) que na festa referida sob o nº10, dos factos provados, o arguido AA acompanhasse o ofendido II à lavandaria;
b) que, nas circunstâncias de lugar referidas em a), o arguido baixasse as calças e as cuecas que o ofendido trazia vestidos e de seguida introduzisse o pénis deste (do ofendido) na sua boca (do arguido), fazendo movimentos de fricção do pénis do menor no interior da boca;
c) que o arguido tivesse um percurso de vida exemplar;
d) que actualmente fosse finalista do curso superior de Bioquímica na Universidade ...;
e) que o arguido se encontrasse profissionalmente inserido;
f) quaisquer outros factos para além dos descritos em sede de factualidade provada, que com os mesmos estejam em contradição ou que revelem interesse para a decisão a proferir.”.
*
Motivação:
“A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º, do CPP), sempre no confronto com as regras gerais da experiência e da norma do artigo 127º, do mesmo diploma legal, que estabelece o princípio da livre apreciação da prova.
Importa realçar, desde já, que nesta apreciação não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador.
Com efeito, a convicção do tribunal não se funda apenas nos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, linguagem não verbal, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados e coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência dessas mesmas declarações e depoimentos.
Como, aliás, se explicita no Acórdão da Relação de Évora, de 24.05.2018, segundo recentes pesquisas neurolinguísticas, numa situação de comunicação presencial, apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra, sendo que o tom de voz e a fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder – vide Lair Ribeiro, “Comunicação Global”, Lisboa, 1998, pág. 14 (acessível em www.dgsi.pt/jtre, Processo nº266/14.9GAVNO.E1, relator Martinho Cardoso).
A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, funda-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros, mas que não poderá deixar de ser enformada por uma convicção pessoal, que não se confunde, naturalmente, com arbitrariedade.
Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja (...) vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório (vide Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1º Volume, 1986, p.211).
O mesmo autor afirma que a livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores (vide Curso de Processo Penal, reimpressão, Volume II, 1981, p.298).
Trata-se da liberdade de decidir segundo o bom-senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou, nas palavras de Castanheira Neves da liberdade para a objectividade (vide Revista do Ministério Público, 19º-40).
Como nota Germano Marques da Silva, a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão (vide Curso de Processo Penal, Volume II, Editorial Verbo, 2008, p.151).
Ainda a este propósito, afirma Figueiredo Dias que (…) [u]ma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há-de se, em concreto, recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo – sublinhado nosso (vide Direito Processual Penal, Volume I, Coimbra Editora, 1981, p.202).
A motivação de uma convicção deve sempre assentar num processo lógico, que impõe a conjugação de todos os indícios factuais constitutivos do tipo de crime, no sentido da sua conformidade com as regras da lógica, os conhecimentos científicos e as máximas da experiência crítica.
Como se escreve no Acórdão do STJ, de 09.02.2012: (…) IX – A necessidade de controle dos instrumentos através dos quais o juiz adquire a sua convicção sobre a prova visa assegurar que os mesmos se fundamentam em meios racionalmente aptos para proporcionar o conhecimento dos factos e não em meras suspeitas ou intuições ou em formas de averiguação de escassa ou nula fiabilidade. Igualmente se pretende que os elementos que o julgador teve em conta na formação do seu convencimento demonstrem a fidelidade às formalidades legais e às garantias constitucionais. X – As regras da experiência, ou regras de vida, como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtêm mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária. XI – O princípio da normalidade, como fundamento que é de toda a presunção abstracta, concede um conhecimento que não é pleno mas sim provável. Só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno. Só este convencimento alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária – quando é este tipo de prova que está em causa – pode alicerçar a convicção do julgador. XII – Num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer. Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova – sublinhado nosso (acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº233/08.1PBGDM.P3.S1, relator Santos Cabral).
*
Cumpre, também, referir que, como se esclarece no Acórdão da Relação do Porto, de 09.12.2015: (…) [a] lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível (acessível em www.dgsi.pt/jtrp, Processo nº9/14. 7T3ILH.P1, relatora Eduarda Lobo).
E no Acórdão da Relação de Lisboa, de 24.06.2020, salienta-se que (...) [o] exame crítico da prova não exige a exposição descritiva de todas as provas produzidas, nem é necessária uma referência discriminada a cada facto provado e não provado e nem sequer a cada arguido, havendo vários. O que se tem de deixar claro é o porquê da decisão tomada relativamente a cada facto, de modo a permitir aos destinatários da decisão e ao tribunal superior uma valoração do processo lógico-mental que serviu de base ao respectivo conteúdo (acessível em www.dgsi.pt/jtrl, Processo nº3902/13.0JFLSB-3, relator João Lee Ferreira).
*
Tendo em consideração tudo quanto vem de expressar-se, passaremos a apreciar, de forma conjugada e crítica, o acervo probatório produzido em audiência de julgamento, em ordem a averiguar se os factos que se discutem resultaram provados ou, ao invés, não lograram merecer adesão de prova.
*
Mereceram relevância as perícias realizadas nos autos, atenta a idoneidade, isenção e indiscutível conhecimento técnico que se reconhece ao(à)(s) Sr.(s) Perito(a)(s) que subscreveram os competentes relatórios periciais.
Aliás, como se estatui no artigo 163º, nº1, do CPP, o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
É certo que, sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência (assim o nº2, subsequente).
Não é, porém, o que se verifica no caso dos presentes autos.
Deste modo, valorou-se positivamente:
[i]
A perícia a smartphone, efectuada pelo Serviço de Telecomunicações e Informática, do Departamento de Investigação Criminal de ..., da Polícia Judiciária, a fls.159-168.
Com esta perícia relaciona-se o auto de apreensão do telemóvel do arguido AA, a fls.156 (trata-se de um “...”, modelo “...”, de cor ..., com o IMEI ...06, onde funciona o cartão SIM da operadora “EMP01...”, com o número ...20).
Como se consigna no competente relatório: “Após análise de todos os dados extraídos não foram encontrados ficheiros de interesse para a presente perícia, tendo em conta os quesitos solicitados...”.
A inexistência de ficheiros relacionados com pornografia não significa, porém, que não possam ter sido visualizados vídeos de cariz pornográfico nesse “...”, atenta a possibilidade de serem transmitidos em “streaming” (tecnologia de transmissão de conteúdos multimédia através da internet e sem necessidade de fazer download e subsequente armazenamento no equipamento).
[ii]
O relatório de perícia de natureza sexual, datado de 28.03.2018, a fls.119-121, aí se mencionando não terem sido encontrados vestígios de agressão física, nem de agressão sexual (o que se compreende, atentos os concretos actos de natureza sexual que são imputados ao arguido, ocorridos em data indeterminada de Junho de 2016 e ../../2017), formulando-se as seguintes conclusões: “(...) - Analisando a informação relativa ao suspeito evento e a totalidade dos exames efectuados e acima descritos, pode considerar-se que a compatibilidade entre essa informação e os exames efectuados é possível, mas não demonstrável; - Importa assinalar que a ausência de vestígios físicos e/ou psicológicos não significa que o abuso sexual não possa ter ocorrido, uma vez que num grande número destas situações não resultam vestígios”.
[iii]
O relatório de perícia psicológica forense, datado de ../../2018 (o menor/ofendido II tinha, a essa data, 11 anos de idade, tendo a 1ª entrevista sido realizada no dia ../../2018), a fls.75-80, de onde consta, além do mais, que: “(...) A perícia consistiu em entrevistas de observação e recolha de informação, com o menor e com o pai, e avaliação com os testes acima referenciados, para avaliação psicológica do menor (...) Ao longo do processo de avaliação, o menor demonstrou uma atitude cooperante e capacidade para narrar a alegada experiência abusiva. Revelou facilidade de comunicação (...) Recorda a primeira vez em que terá acontecido, embora não os consiga precisar no tempo, relata com pormenor os acontecimentos (...) Do ponto de vista cognitivo o menor apresenta um funcionamento ligeiramente abaixo do esperado para a idade, com comportamentos de hiperactividade e défices de atenção. Evidencia capacidade para narrar de forma inteligível e correcta situações do quotidiano e de responder a questões sobre actividades, pessoas, preferências e desejos para o futuro. É totalmente capaz de narrar sequências de eventos com detalhe e precisão, assim como recordar eventos mais distantes. O menor revela ainda capacidade para corrigir a perita quando esta propositadamente comete lapsos (trocar identidades e locais), assim como se mostra capaz de distinguir fantasia de realidade e compreender a diferença entre verdade e mentira e a necessidade de falar verdade. É um criança muito comunicativa, afectuosa, de fácil contacto, embora imatura do ponto de vista afectivo-emocional, necessitando constantemente de atenção e manifestações de apreço e afecto. Não revela outra sintomatologia do foro psicológico, com significado clínico, à excepção de alguma ansiedade relacionada com o processo em curso. No que diz respeita ao relato dos alegados factos e avaliação da sua validade e veracidade, o seu relato contém referências a locais e a circunstâncias temporais em que os alegados factos ocorreram e inclui pormenores que enriquecem a descrição e lhe conferem credibilidade. Assim, analisando o relato da menor à luz dos indicadores de veracidade das alegações de abuso, verificamos que este apresenta características semelhantes às de um relato verdadeiro. Apresenta espontaneidade na sua organização e estrutura lógica, havendo enquadramento temporal e contextual. É de salientar, ao nível dos conteúdos, a quantidade de pormenores referentes ao contexto, às circunstâncias e à sequência de eventos. Faz ainda referência ao seu estado emocional nesses momentos. É de realçar ainda a presença de dinâmica do segredo (...) Não nos parece que existam neste caso processos que possam contaminar a veracidade do testemunho, nomeadamente a presença de distorções significativas da memória nem indicadores de eventual mentira da autoria da menor induzida por terceiros. O seu relato apresenta ainda grande consistência entre entrevistas. A avaliação permite constatar que o menor apresenta de forma muito evidente comportamentos frequentemente observados em menores vítimas de abuso sexual, conversas de cariz sexual não apropriada à idade, interesse excessivo por esta temática, comportamentos desadequados de cariz sexual com outros adultos e crianças, nomeadamente com a mãe, com as irmãs e com a amiga da escola e mesmo com esta perita, procurado expor o pénis por diversas vezes e pedindo para exemplificar com o acto para que esta percebesse melhor aquilo que tinha acontecido. O menor não é capaz de avaliar a inadequação destes comportamentos, sendo que não os vivenciou de forma negativa. É de realçar que em muitos casos a sintomatologia clínica se manifesta muito mais tarde pelo que será importante manter vigilância sobre a evolução deste caso. CONCLUSÃO (...) a menor revela requisitos para produzir depoimentos credíveis. Da análise da avaliação resulta um parecer positivo quanto à credibilidade do relato da menor, relato que contém um número expressivo de indicadores que apontam no sentido da veracidade. Entre estes o carácter lógico da descrição dos factos, a quantidade de pormenores referentes ao contexto e à sequência da ocorrência, a ambivalência emocional face ao ofensor e a forte consistência entre entrevistas. Não parece que exista neste caso processos que possam contaminar a veracidade do testemunho, nomeadamente a presença de distorções significativas de memória nem indicadores de eventual mentira da menor ou induzida por terceiros. A menor apresenta, como referido, comportamentos com características compatíveis com as dinâmicas usualmente observadas nos casos de abuso sexual continuado” – sublinhado e destacado nossos.
[iv]
O relatório de perícia pedopsiquiatra, datado de 23.04.2023 (o menor/ofendido II tinha, a essa data, 16 anos de idade), a fls.675-676, formulando-se as seguintes conclusões: “(...) O examinando colaborou muito bem na colheita da informação inicial, esteve bem-disposto, sorridente e descreveu o seu dia-a-dia em casa e na escola, nomeadamente o apoio do ensino especial devido às suas dificuldades cognitivas. No entanto, quando foi questionado sobre o motivo da perícia disse desconhecê-lo. O perito foi fazendo sugestões vagas, não dirigidas, e o examinando continuou a dizer que não sabia e que não se lembrava de nenhum evento significativo. Assim, foi necessário ser mais directivo em relação ao objecto da perícia. O examinando disse que já sabia sobre que era o exame, mas que não queria falar sobre o assunto. Apesar das várias tentativas efectuadas o examinando continuou a recusar em abordar o objecto da perícia e permaneceu numa posição opositiva e de não colaboração” – destacado nosso.
Como se menciona no relatório do presente acórdão, o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, no acórdão proferido no dia 28.09.2020, que decretou o reenvio do processo para novo julgamento, sustentou ser necessário colmatar a perícia psicológica forense, na medida em que, tendo como objectivo aferir se o ofendido II tinha ou não capacidade para testemunhar, por ter aptidão para memorizar e narrar factos em que participou ou visualizou, não tomou em consideração o processo de acompanhamento clínico a que vinha sendo sujeito (a este propósito, consigna-se no supra referido relatório de perícia de natureza sexual, a fls.120, que “(...) o menor e os pais referem alterações do comportamento: “Toma Rubifen e risperidona” receitados pela pedopsiquiatria assistente no Hospital ...”).
Devido à apontada omissão, a perícia psicológica não cuidou desse seguimento assistencial e, como tal, não se pronunciou acerca da “(…) caracterização da patologia que lhe foi eventualmente diagnosticada, bem como o tratamento a que é sujeito, tudo isso, (…) de capital importância para, cabalmente e sem esponjosidade, se poder formular um juízo tendencialmente definitivo e seguro quanto à eclosão dos padecimentos, revelações da problemática de natureza sexual, bem como, para além do mais, a aferição da existência, ou não, de razões autónomas para a narrativa abusiva e se o vocabulário utilizado pelo ofendido é já o efeito dos abusos sexuais, como hipotisa a perícia, embora de forma pouco segura, ou se será preexistente e porventura passado oculto ou despercebido na esfera dos progenitores” – sublinhado nosso.
Deste modo, através da perícia pedopsiquiátrica, pretende-se uma (…) caracterização do ofendido nos seus padecimentos, razões dos mesmos, efeitos possíveis deles, sua inserção temporal (…), tendo em vista saber (…) se todos os segmentos comportamentais do ofendido, a que o acórdão [da 1ª instância] se reporta ao descrever os depoimentos e ao aludir à perícia [psicológica forense], ocorreram ou foram potenciados pela patologia que a pedopsiquiatria tenha vindo a observar eventualmente no mesmo e se esta é susceptível de influir na narrativa dos abusos que protagonizou – sublinhado nosso.
Essa perícia teve lugar em 2 ocasiões dos presentes autos.
Sucede que: a 1ª, a que respeita o relatório pericial de fls.534-537, padeceu de irregularidade, por não ter estado presente o consultor técnico designado pelo arguido, razão pela qual por despacho proferido no dia 29.06.2021, transitado em julgado, foi determinada a sua repetição (cfr. fls.547 – referência nº...13); e a 2ª, a que se refere o já identificado relatório pericial de fls.675-676, inviabilizou-se devido à recusa do ofendido em “abordar o objecto da perícia”, não obstante as tentativas que foram efectuadas nesse sentido pelo Sr. Perito.
Atenta a frustração da perícia pedopsiquiátrica, revestiu-se de inegável importância a tomada de declarações à Sra. Perita MM – responsável pela elaboração do supra referido relatório de perícia psicológica forense (cfr. fls.75-80) – e a inquirição das testemunhas NN – que, entre 2016 e 2018, acompanhou o aludido II em consultas de pedopsiquiatria no Hospital ... – e KK – que, nessa unidade hospitalar, seguiu o ofendido em consultas de psicologia desde 2016 até 2022.
O que esclareceram a Sra. Perita e estas testemunhas mereceu total credibilidade por parte do tribunal, atenta a objectividade, clareza, segurança e inequívoca consistência dos respectivos relatos.
A psicóloga KK referiu ter submetido o ofendido a uma avaliação cognitiva, tendo concluído que apresentava: défice cognitivo ligeiro-moderado e hiperactividade, baixas competências sociais e imaturidade.
Por essa razão, encaminhou-o para a consulta da pedopsiquiatra LL.
No entanto, já em momento anterior aquele II era seguido em pedopsiquiatra por médico com quem a testemunha nunca trabalhou, sabendo, porém, que tal seguimento relacionava-se com dificuldades de aprendizagem (por esse motivo, aliás, foi encaminhado para a mencionada KK para realização de avaliação cognitiva), fazendo medicação psico-estimulante, com supervisão e controlo da toma.
Do acompanhamento que fez ao ofendido destacou a sua postura adequada, o respeito pelo espaço dos outros e um discurso oral pobre.
Recorda-se que o progenitor do aludido II solicitou uma consulta com carácter de urgência e que subjacente à mesma estava o relato de uma situação de abuso (sexual) por parte do filho, sendo que a testemunha, até então, não lhe tinha detectado qualquer alteração no seu comportamento.
Depois de ter sido abordada pelo progenitor, falou com o ofendido.
No entanto, além de este ter dificuldades em elaborar, tratava-se de um assunto que lhe gerava desconforto e para o qual não mostrava disponibilidade, o que implicou que deixasse de explorá-lo.
Questionada se estando o ofendido diagnosticado e medicado para défice de atenção e hiperactividade, tal circunstância poderia provocar alguma alteração na sua líbido, respondeu negativamente, garantindo que na sua prática nunca observou nenhum efeito secundário dessa medicação, em termos de afectar a líbido da criança ou torná-la mais desinibida.
Questionada se o mencionado II tinha um discurso ou assumia um comportamento tido como hipersexualizado, respondeu negativamente mais uma vez.
A testemunha LL confirmou que o ofendido foi-lhe encaminhado pela psicóloga KK e que antes era seguido em pedopsiquiatria pelo colega Dr. RR, devido a hiperactividade e défice de atenção.
A 1ª vez que a testemunha teve uma consulta estruturada com o ofendido foi em Abril de 2016, quando este frequentava o 2º ano de escolaridade.
Devido às dificuldades de aprendizagem que evidenciava foi medicado com “metilfenidato” e “risperidona”, tratando-se de medicação que já constava do processo daquele II e indicada para a hiperactividade e défice de atenção (apresentava ainda um outro sintoma, que não fazia parte desse processo: a incontinência urinária).
A avaliação psicológica a que o ofendido foi submetido apontou para a existência de um défice cognitivo ligeiro, mantendo-se esse diagnóstico também em 2017, ainda que menos evidenciado.
Como resultado do apontado défice, o ofendido tinha um discurso oral pobre – ainda que apelativo – e manifestava dificuldades e fragilidades no relacionamento com os colegas.
Porém, esse défice não determinava que o ofendido aportasse efabulações ou fantasias para o seu discurso, nem tampouco seria susceptível de alterar a sua líbido.
Na verdade, como salientou, o défice cognitivo apenas pode determinar um menor juízo moral sobre o que é correcto e incorrecto, não tendo nenhum efeito ao nível do desejo sexual.
Relativamente à situação de um (alegado) abuso, tomou conhecimento pela testemunha KK, não tendo abordado esse assunto com o ofendido uma vez que não o trouxe de forma espontânea para as consultas.
Acrescentou, ainda, que nesse âmbito nunca notou/registou qualquer modificação no comportamento sexual do ofendido, designadamente, exibir o pénis e/ou esfregar-se.
A Sra. Perita MM precisou que no relatório que elaborou limitou-se a dar resposta ao que lhe foi solicitado, em concreto, avaliar a capacidade de testemunhar do ofendido, razão pela qual não verteu nesse relatório tudo quanto foi abordado nas entrevistas que teve com o identificado II.
Assim, na anamnese, questionou-o sobre a sua história de vida, a história familiar, bem como o historial de saúde, sendo que também falou acerca desse historial com o progenitor do ofendido, que fez referência às dificuldades de aprendizagem do filho, ao diagnóstico de défice de atenção (a Sra. Perita, aliás, levou a cabo uma avaliação cognitiva ao ofendido tendo o resultado comprovado esse défice, ligeiramente abaixo do normal), à sua hiperactividade e à toma de medicação para esse efeito.
Simplesmente não fez constar essa patologia e respectivo tratamento do relatório de perícia psicológica forense porque concluiu que em nada interferia com a capacidade de o ofendido relatar as suas próprias vivências.
Com efeito, como sublinhou, a característica principal deste género de diagnósticos é a impulsividade.
Assim, “(...) todo o entorno de assistência médica, de pedopsiquiatria, que vinha sendo prestada ao ofendido”, referido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães no acórdão de 28.09.2020, não foi esquecido pela Sra. Perita na perícia psicológica forense de que foi incumbida.
Pelo contrário, foi abordado no âmbito dessa perícia, embora não tenha sido vertido no relatório pericial de fls.75-80 por a Sra. Perita não ter atribuído nenhuma relevância a esse seguimento assistencial do ofendido no que concerne à sua capacidade de testemunhar.
Por outras palavras, a Sra. Perita entendeu não fazer referência ao processo de acompanhamento clínico do aludido II porque, apesar de ter dele pleno conhecimento, concluiu que em nada afectava a sua capacidade de descrever os acontecimentos em apreço nos presentes autos, tendo, a este propósito, realçou a forma muito espontânea como o ofendido verbalizou o que lhe tinha acontecido, mantendo segurança no seu relato e coerência nas entrevistas efectuadas.
Ainda neste contexto, referiu que o ofendido, durante as entrevistas, descreveu comportamentos relacionados com sexo, usou o termo “pinagem” e verbalizou pretender baixar as calças para mostrar à Sra. Perita o que se tinha passado, sendo que em momento algum denotou que essas atitudes fossem reflexo de uma hipersexualização, mais esclarecendo que é muito frequente neste tipo de situações de abuso (sexual) que os menores tenham comportamentos idênticos aos manifestados pelo ofendido.
Atendeu-se aos documentos que foram juntos aos autos e aos dados objectivos que deles é possível extrair.
Como é sabido, o regime da prova documental encontra-se previsto nos artigos 164ºss, do CPP, contendo uma série de normas ao nível da valoração desta prova.
Uma dessas normas é a do artigo 169º, que constitui um desvio à regra da livre apreciação da prova (consagrada no já referido artigo 127º, do mesmo diploma legal), ao considerar provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa – sublinhado nosso.
Como esclarecem os Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto em anotação a este normativo, a atribuição de uma força probatória especial aos documentos autênticos e autenticados identifica-se com (…) a fé pública de que se encontra revestida a entidade documentadora, incumbida por lei de imprimir certeza e autenticidade a determinados actos, a qual, por sua vez, se baseia nas garantias de veracidade proporcionadas pelo cuidado que é posto na sua nomeação e na fiscalização do exercício das suas funções (…) Como se afigura natura, essa fé pública só pode abranger os factos de que o funcionário foi agente ou testemunha (vide Código de Processo Penal – Comentários e Notas Práticas, Coimbra Editora, 2009, p.435-436).
No caso vertente, a força probatória dos documentos que constam dos presentes autos não foi posta em causa em nenhum momento processual, designadamente, em sede de audiência de julgamento.
Deste modo, não foi feita prova bastante que afaste a genuinidade desses documentos, pelo que relativamente aos documentos autênticos e autenticados aplica-se o disposto no citado artigo 169º, do CPP, e relativamente aos documentos não autênticos o seu teor pode ser valorado livremente pelo tribunal, conjugando os mesmos com a demais prova produzida e as regras de experiência.

Assim, tomou-se em consideração:
- o auto de denúncia, junto da Polícia Judiciária – Directoria do Sul, datado de 10.08.2017, a fls.34-37, sendo denunciante BB (progenitora do ofendido II);
- o assento de nascimento do arguido AA, a fls.220-221;
- a ficha de identificação civil do arguido, a fls.61;
- a ficha do Cartão de Cidadão do arguido, a fls.86/195;
- o assento de nascimento do ofendido, a fls.30-31/623-624, verificando-se que no averbamento nº3, de 25.09.2014, consta que na regulação do exercício das responsabilidades parentais, definida por sentença de 24.06.2014, proferida pelo Tribunal de Família e Menores de Faro, ficou a caber ao progenitor o exercício das responsabilidades parentais relativo aos actos da vida corrente do menor, com quem fica a residir habitualmente;
- a ficha do Cartão de Cidadão do ofendido, a fls.25;
- a ficha de identificação civil do ofendido, a fls.56;
- o assento de nascimento de CC (progenitor do ofendido), a fls.206-207, verificando-se que no averbamento nº1, de 20.09.2011, consta ter casado catolicamente com HH no dia 17.09.2011 (de quem se encontra, actualmente, divorciado, como se apurou em sede de julgamento);
- a ficha do Cartão de Cidadão do progenitor do ofendido, a fls.204-205; e
- a informação retirada do Centro de Ajuda do “YouTube”, a fls.707-725, de onde resulta que, no que respeita à sua política de nudez e conteúdo sexual, não é (...) permitido publicar no YouTube conteúdo explícito com o objectivo de satisfação sexual. A publicação de pornografia pode causar a remoção do vídeo ou o encerramento do canal. Vídeos que apresentem conteúdo fetichista serão removidos ou receberão uma restrição de idade. Na maioria dos casos, é proibido mostrar no YouTube fetiches violentos, explícitos ou humilhantes (...) É proibida a exibição de conteúdo sexualmente explícito com menores e que mostre a exploração sexual de pessoas dessa faixa etária (...), sendo que esta política aplica-se a (...) conteúdos reais, encenados, ilustrados e animados, incluindo cenas de sexo, videogames e música. Não publique conteúdo no YouTube se ele mostrar: representações de genitálias, seios ou nádegas, vestidos ou não, com o propósito de satisfação sexual; pornografia e a representação de actos sexuais ou fetiches com o propósito de satisfação sexual (cfr. fls.715).
Ainda a propósito dos documentos supra enunciados, teve-se em consideração que, como decidiu o STJ, em Acórdão de 31.05.2006: (…) [o]s documentos juntos aos autos não são de leitura obrigatória na audiência, considerando-se nesta produzidos e examinados, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida (acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº06P1412, relator Sousa Fonte; vide, também, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 06.01.2010: (…) [é] permitida, mas não obrigatória, a leitura em audiência de julgamento dos documentos existentes no processo, independentemente dessa leitura, podendo o meio de prova em causa ser objecto de livre apreciação pelo tribunal, sem que resulte ofendida a proibição legal prevista no art. 355.º do Código de Processo Penal (acessível em www.dgsi.pt/jtrc, Processo nº20/05.9TAAGD.C1, relator Alberto Mira)).
Os elementos periciais e documentais supra elencados foram conjugados com a apreciação crítica das declarações para memória futura prestadas pelo menor/ofendido II (como resulta do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº8/2007, de 11 de Outubro de 2017 (publicado no Diário da República, 1ª série, nº224, de 21 de Novembro de 2017), foi fixada a seguinte jurisprudência: «As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código.») – que foi ouvido no dia 16.03.2018 (cfr. fls.106 – referência nº...81), constando a transcrição dessas declarações a fls.123-139 – e do depoimento das testemunhas BB e CC – seus progenitores –, DD, EE e DD – tias do arguido –, FF – namorada do arguido –, GG – amiga de uma tia do arguido – e HH – que, à data dos factos sob discussão, era casada com o progenitor do ofendido, sendo prima do arguido.
O arguido AA, no exercício do direito ao silêncio que lhe assiste, optou por não prestar declarações acerca da factualidade que lhe é imputada (cfr. artigos 61º, nº1, alínea d) e 343º, nº1, 2ª parte, ambos do CPP).
A convicção do tribunal formou-se em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões, parcialidade, coincidências e mais inverosimilhanças que transpareceram em audiência dessas declarações e depoimentos.
Neste domínio da avaliação dos diversos relatos importa ter presente que, como se escreve no Acórdão da Relação de Guimarães, de 23.03.2015: [a] circunstância de alguém, seja por erro de percepção ou por outro motivo, acabar por efectuar declarações inverosímeis ou contraditórias não significa necessariamente que seja falsa toda a sua narrativa, pelo que o tribunal não se encontra adstrito à inutilização de todo um depoimento ou declaração por uma incompletude ou por uma contradição com outros elementos probatórios (acessível em www.dgsi.pt/jtrg, Processo nº159/11.5PAPTL.G1, relator João Lee Ferreira).
Neste aresto explica-se que (…) julgar é precisamente “escolher”, “optar”, “decidir”. A função do julgador não consiste em encontrar a versão que recolhe maior número de testemunhos, mas, sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum, determinar como os factos se passaram: exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade a quem compete julgar depende de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante. A circunstância de uma pessoa produzir declarações inverosímeis ou sabidamente desconformes com a realidade não significa necessariamente que seja falsa toda a sua narrativa, pelo que o tribunal nunca se encontra adstrito à inutilização de todo um depoimento ou declaração por uma incompletude ou por uma contradição com outros elementos probatórios: desde que o raciocínio seja compreensível, o tribunal poderá aceitar como verdadeiros certos segmentos das declarações ou do depoimento e negar fiabilidade a outros, distinguindo o que merece credibilidade do que lhe surge como mera efabulação emocional ou, mesmo, como mero erro de percepção (sublinhado nosso).
Com efeito, mesmo de boa-fé, qualquer depoimento pode conter erros, ou seja, ao lado de dados verdadeiros é possível também incluir dados falsos ou inexactos. Assim, o depoimento não pode considerar-se como um bloco indivisível (vide, neste sentido, Ricardo António da Velha, “Psicologia Judiciária, Do determinismo psicológico à liberdade de decidir”, Sub Júdice, 22/23, Julho/Dezembro de 2001, p.129).
Tal como referiu Enrico Altavilla, (…) qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras (vide Psicologia Judiciária, Volume II, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2003, p.12).
Teve-se igualmente em atenção que, como se elucida no Acórdão da Relação de Guimarães, de 12.04.2010, (…) [é] sabido que em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante (cfr. v.g. Ac. da Rel. do Porto de 6-3-1991, in Col. de Jur., ano XIII, tomo 2, pág. 287, Ac. do STJ de 2-2-2004 apud Ac. da Rel. de Coimbra de 9-3-2005, Col. de Jur. ano XXX, tomo 2, pág. 38 e Ac. da Rel. de Coimbra de 22-4-2009, proc.º n.º 376/04.0GAALB.C1, in www.dgsi.pt), pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais. Em função das especialidades dos crimes sexuais e do especial valor que as declarações do ofendido assumem no âmbito daquela criminalidade, quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, de maior ou menor idade, opostas, em maior ou menor medida, ao do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso. O velho aforismo “testis unus testis nullus”, carece, pois, de eficácia jurídica num sistema como o nosso em a prova já não é tarifada ou legal mas antes livremente apreciada pelo tribunal [sobre aquela regra unus testis, testis nullius, cujas origens remontam a Moisés, as criticas que lhe foram sendo dirigidas ao longo da história (De Arnaud, Blackstone, Bentham, Meyer, Bonnier), a sua abolição e a possibilidade de um único depoimento, nomeadamente as declarações da vítima, poderem ilidir a presunção de inocência e fundamentarem uma condenação, cfr., desenvolvidamente, Aurélia Maria Romero Coloma, Problemática de la prueba testifical en el proceso penal, Madrid, 2000, Cuadernos Civitas, págs. 69 a 91; muito antes, no domínio do processo civil português, Alberto dos Reis afirmara que “No seu critério de livre apreciação o tribunal pode dar como provado um facto certificado pelo testemunho duma única pessoa, embora perante ela tenham deposto várias testemunhas” (Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimp., Coimbra, 1981, pág. 357)]. Esta questão – que não é, naturalmente, privativa do direito português – tem merecido um desenvolvimento assinalável na doutrina e jurisprudência do País vizinho onde se tem vindo reiteradamente a declarar que um único testemunho, ainda que da vítima e inclusivamente de uma criança, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram as seguintes notas: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança: o testemunho há de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória e; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (cfr. v.g. Antonio Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, págs.181-187, Carlos Climent Duran, La prueba penal, Valencia, 1999, págs. 129-156, J.J. Bégué Lezaún, Delitos Contra la Libertad e Indemnidad Sexuales, Barcelona, 1999, pág. 246 e seguintes, Miguel Angel Montañes Pardo, La Presunción de Inocencia-Análisis Doctrinal e Jurisprudencial, Pamplona, 1999, pág.180-182 e José Manuel Alcaide González, Guia Prática de la Prueba en el Processo Penal, Valencia, 1999, pág.133-136, Fernado Gascón Inchausti, El control de la fiabilidad probatoria: ‘Prueba sobre la prueba’ en el proceso penal, Valencia, 1999, págs. 127-128 Andreu Enfedaque i Marco, El desarrolo del juico oral. La prueba en el juicio oral, in La prueba en el proceso penal, Madrid, 2000, pág. 289, M.ª Angels Vila Muntal, La Declaracion del Testigo, in Pedro Martín Garcia y otros, La prueba en el proceso penal, Valencia, 2000, págs. 187-191, Aurélia Maria Romero Coloma, Problemática de la prueba testifical en el proceso penal, Madrid, 2000, Cuadernos Civitas, págs. 69-91, Antonio Pablo Rives Seva, Casos extravagantes de testimonio: el coimputado y la vitima (III) Fevereiro de 2001, in http://noticias.jurídicas.com). Estas regras jurisprudenciais vigentes no país vizinho revelam-se instrumentos úteis na valoração das declarações da vítima, mas não podem ser erigidos em princípios vinculativos na ordem jurídica portuguesa onde vigora o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º do Código de Processo Penal) e onde não se prevê qualquer regra de corroboração necessária (cfr. neste sentido, o Ac. da Rel. de Évora de 24-6-2008, proc.º n.º 437/08-1, rel. António João Latas, in www.dgsi.pt) – sublinhado nosso (acessível em www.dgsi.pt/jtrg, Processo nº42/06.2TAMLG.G1, relator Cruz Bucho).
Como se alcança da leitura da decisão instrutória de pronúncia, os (alegados) comportamentos criminosos empreendidos pelo arguido em relação ao menor/ofendido, ocorreram num espaço privado, numa altura em se mostravam desacompanhados de outras pessoas, razão pela qual não há testemunhas presenciais para além do aludido AA e do mencionado II.
Como se consignou supra, o arguido usou do seu direito ao silêncio.
Ouvido em declarações para memória futura, o menor/ofendido (nesta altura com 11 anos de idade) esclareceu que as situações que de que se cuida nestes autos e que implicam o arguido aconteceram em dias de festa, tendo os festejos decorrido num lugar onde  “... tem lá três casas juntas... separadas com muros... E tem um quintal. É junto de todas”, precisando que uma das habitações pertence aos pais do identificado AA (que conhece por “SS”), outra à mãe da sua, então, madrasta HH e uma outra à tia “PP”.
A 1ª vez, segundo o ofendido, aconteceu no casamento do seu progenitor  CC com aquela HH, descrevendo o sucedido da seguinte forma:
[i]
Porque necessitava de ir à casa-de-banho, dirigiu-se à existente na habitação do arguido, sendo que este, nessa ocasião, “meteu a minha pilinha na boca dele”, tendo-lhe depois dito: “Se contas isto a alguém vais... Não vou ser eu, foi a tua ideia”.
[ii]
Ainda nesse dia, depois de ter ido novamente à casa-de-banho, o arguido disse-lhe “olha, vamos para ali para o sótão” (situado na mesma habitação). Uma vez aí, o aludido AA “... mostrou-me uns vídeos de meninas e de homens e mulheres a fazer essas coisas. Quando se tem um bebé... A fazer aquelas coisas nojentas... A fazer a pinagem... Homens, mulheres, crianças... Crianças com crianças, homens com mulheres... O AA mostrou-me no telemóvel algumas mulheres a fazer”, sendo que os homens e mulheres dos vídeos mexiam “na grila, na pita, na “passaroca”.
Depois de exibir esses vídeos – que o ofendido esclareceu estarem “no YouTube” –, o arguido “... tirou-me as calças e as cuecas. Depois tirou a ele, ele tirou as calças e as cuecas”, ficando despido, com a sua “pilinha” à mostra, tal como sucedia com a do ofendido.
De seguida, o arguido “meteu a minha pila na boca dele”.
Aquele AA também “... queria meter a pilinha dele na minha boca mas eu disse que não”.
No entanto, apesar da recusa do mencionado II, o arguido “uma vez ele conseguiu. Fez força... Segurou aqui e segurou na pila dele”, mais concretamente:
Juiz: “Então aí, então segurou-te pela cabeça. Por trás da cabeça? Pronto, e forçou-te então a... Mas tu estavas com a boca aberta ou com a boca fechada? Como é que ele fez?”
Ofendido: “Com a boca fechada, depois ele abriu-me a boca”
Juiz: “Como é que ele te abriu a boca?”
Ofendido: “Assim”
Juiz: “Com a mão dele? Forçou-te então com a mão dele a abrir-te a boca, é? E conseguiu então pôr a pilinha dele na tua boca, foi isso? Sim senhor....”.
[iii]
Ainda nesse dia, agora na lavandaria daquela habitação, o arguido “... meteu a pilinha dele na minha boca... E depois meteu a minha pilinha na boca dele... fez assim”:
Juiz: “... andou com ela para trás e para a frente é? Mas com a tua pilinha ou com a dele?
Ofendido: “Com a minha e com a dele”
Juiz: “Com as duas”
Ofendido: “Sim”
Juiz: “... e fez isso das três vezes ou foi só da última?”
Ofendido: Muitas vezes.
Juiz: “Em todas as vezes ele andava com a pilinha para trás e para a frente?”
Ofendido: “Sim...”
Deste modo, quanto à 1ª vez:
Juiz: “... No dia do casamento foi uma vez na casa de banho, uma vez no sótão e outra vez na lavandaria, não é?”
Ofendido: “Sim”.
A 2ª vez, de acordo com o menor II, ocorreu numa festa de comunhão da prima QQ, relatando o sucedido da seguinte forma: quando estava na casa de banho da habitação da tia “PP”, o arguido “... abaixou-me as calças e as cuecas, quando eu estava na casa de banho e eu queria fazer xixi... ele não deixou. Ele meteu a minha pilinha na boca dele”, tendo-lhe dito: “Se tu contas isto a alguém, eu digo que não fui eu, que foi a tua ideia”.
Entretanto, numa altura em que foi para o ... de férias (“Eu quando fui para o ... estava muito estranho”), o ofendido contou à sua progenitora BB o que se havia passado (que, por seu turno, em face do que lhe foi contado, decidiu apresentar denúncia junto da Polícia Judiciária – Directoria do Sul, o que teve lugar no dia 10.08.2017 – cfr. fls.34-37).
Sendo este o teor das declarações para memória futura prestadas pelo menor/ofendido, as mesmas assumiram-se cruciais no convencimento do tribunal, sendo certo que, segundo consideramos, partilharam das características apontadas no supra referido relatório de perícia psicológica forense (cfr. fls.75-80).
O ofendido foi, no cômputo geral, espontâneo, sincero, lógico e consistente na explicação dos acontecimentos em que esteve envolvido.
O seu discurso afigurou-se-nos honesto e dotado de genuinidade, sem que nele se denotassem distorções significativas, nem tampouco sugestionabilidade.
Importa, aqui, salientar que as declarações para memória futura iniciaram-se às 14h05 e terminaram às 15h10 (cfr. fls.106), isto é, prolongaram-se por cerca de 1 hora, tendo no seu decurso sido efectuadas inúmeras perguntas acerca dos acontecimentos ora sob apreciação, sem que o ofendido vacilasse, entrasse em contradições, pelo menos, flagrantes, ou deixasse de cooperar, bem pelo contrário, manteve sempre um relato fluente, consistente e dotado de simplicidade, adequado à sua idade e ao défice cognitivo (ligeiro) que lhe estava diagnosticado.
Acompanha-se, assim, a posição sustentada pela Sra. Perita MM, quando, no relatório pericial que elaborou, referindo-se ao identificado II, aludiu à sua “capacidade para narrar de forma inteligível e correcta”, para “narrar sequências de eventos com detalhe e precisão”, para “compreender a diferença entre verdade e mentira e a necessidade de falar verdade” e para “corrigir a perita”, sobressaindo do respectivo relato um “número expressivo de indicadores que apontam no sentido da veracidade”, nomeadamente: as referências a locais e a circunstâncias temporais, a inclusão de pormenores, a organização e estrutura lógica, a espontaneidade, a consistência, a ausência de possíveis elementos contaminadores da veracidade do testemunho e a inexistência de indicadores de eventual mentira de autoria própria ou por influência de terceiros.
Todos estes atributos, segundo entendemos, estão igualmente presentes naquelas declarações para memória futura.
Acresce que não se logrou descortinar que o menor procurasse ampliar os factos sobre que depôs, sendo certo que as declarações que produziu, à luz do que ditam os juízos da experiência comum e da normalidade do acontecer, foram prestadas de modo concordante com a possibilidade de ocorrência de factos da natureza daqueles que descreveu, pelo que assumiram-se verosímeis.
O relato do aludido II não se revelou, por isso, nem tendencioso, nem subjectivo, não se denotando qualquer hostilidade em relação ao arguido.
O mencionado AA não foi, pois, “escolhido” pelo ofendido como um alvo.
Neste âmbito, indaga-se que propósito teria o ofendido em “atingir” o arguido, ainda para mais à custa da exposição de situações relacionadas com a intimidade da sua (do ofendido) esfera sexual?
A resposta é, quanto a nós, clara: nenhum!
Pelo exposto, concluímos que o identificado II quis, tão-só, auxiliar o tribunal na tarefa da descoberta da verdade.
Desta forma, as características que se mostram apontadas ao discurso do menor/ofendido naquela perícia psicológica, mantiveram-se nas suas declarações para memória futura.
Evidenciou, portanto, competências de atenção, memória e capacidade narrativa adequadas à sua condição física e psíquica, sem que sobressaísse qualquer tendência para a sugestionabilidade e/ou artificialidade.
Mostrou-se credível e capaz de reproduzir situações por si vivenciadas, o que fez com verdade, mantendo um relato congruente e sem que dele ressaltassem efabulações.
Em face do exposto, o que elucidou revestiu inegável peso persuasivo.
Além disso, as declarações prestadas pelo ofendido II não se mostraram isoladas, uma vez que encontram apoio no depoimento da sua progenitora, a, aqui, testemunha BB, que referiu ter-se inteirado do que havia acontecido quando o filho veio passar férias ao ... em Agosto de 2017, tendo reparado que adoptava comportamentos que lhe causaram preocupação (mexia no pénis, exibia-o e dizia “olha a minha pilinha”, depois do banho aproximava-se da mãe e das tias e queria esfregar-se, verbalizando que também fazia isso à TT, que é a filha daquela HH), o que a levou mesmo a contactar o progenitor CC, que lhe contou que em sua casa o menor não se comportava desse modo.
Sucede que num determinado dia dessas férias, quando a testemunha deparou-se com o filho totalmente nu, este disse-lhe algo do género: “vem aqui e mexe” ou “vem aqui e chupa” ou “vem-me chupar a pila”.
Assustada, abordou o menor, que, evidenciando medo de falar, acabou por narrar-lhe alguns episódios que envolviam um “menino grande”, que conhecia pelo nome de “SS”, designadamente, que, numa festa, este levou-o para a casa de banho para mexer na “pilinha” (do filho), tendo também pedido que lhe lambesse/chupasse o seu pénis (do arguido).
Já após ter participado estes factos à Polícia Judiciária, o ofendido referiu-lhe que, naquela altura, também viu filmes para adultos (pornográficos) com o “SS”, tendo sido este que o ensinou a vê-los, não podendo garantir se o filho II mencionou que tais vídeos encontravam-se na plataforma “YouTube”.
A este propósito, importa notar que a referência que o menor fez a esta plataforma surge praticamente no final das suas declarações para memória futura, a instâncias do Sr. Procurador, ao pretender saber se viu esses vídeos mais do que uma vez (cfr. fls.137v).
Nessa altura, quando o Sr. Juiz perguntou “Era sempre no telemóvel que ele te mostrava os vídeos, sim?”, o ofendido respondeu “Sim” e “No YouTube” (cfr. fls.138).
Tendo em consideração a política de nudez e conteúdo sexual seguida por esta plataforma, conclui-se ser impossível que os vídeos a que se reportou aquele II fossem visualizados no “YouTube”.
No entanto, tal não significa que não se possa afirmar que lhe tenham sido exibidos vídeos pornográficos pelo arguido.
Estamos convencidos que a referência que aquele II fez ao “YouTube” foi mais genérica que específica, isto é, viu esses vídeos no telemóvel do arguido e, por tratarem-se de vídeos e estarem na internet, associou-os à dita plataforma, conhecida precisamente por permitir o consumo de conteúdos em vídeo via “streaming”.
Será o mesmo que hoje em dia aludirmos à “...” para pretender abarcar através desta menção os demais serviços de “streaming” por subscrição (caso da “...”, “...”, “...”, “...”, etc.) ou referirmo-nos ao “...” para abranger os demais serviços de música digital (caso da “...”, “...”, “...”, etc.).
Por outras palavras, o “YouTube” foi indicado pelo ofendido II não como a plataforma concreta onde visualizou os vídeos que o identificado AA lhe exibiu, mas tão-só para designar a categoria de um determinado serviço: tratavam-se de vídeos (no caso pornográficos) e estavam disponíveis online.
Tratou-se, portanto, de uma associação de ideias: vídeos + online = “YouTube”.
E, precisamente, por tratar-se de um conteúdo via “streaming”, compreende-se que na perícia efectuada ao smartphone do arguido não tenham sido “... encontrados ficheiros de interesse” (cfr. fls.159-168), o que, enfatize-se uma vez mais, não invalida que nesse aparelho tenham sido efectivamente exibidos vídeos pornográficos, como afirmou o ofendido.
A testemunha BB referiu ainda que o filho contou-lhe que o “SS” “disse que ele não poderia contar e que ninguém ia acreditar nele”, tendo acrescentado que o ofendido pediu-lhe que nada dissesse ao pai CC, nem à madrasta HH, por ter medo que o pusessem de castigo.
Por ter acreditado no aludido II (“o meu mundo caiu por completo”) efectuou a denúncia que deu origem aos presentes autos, dando disso conhecimento ao progenitor do menor.
O depoimento da mencionada BB pautou-se por escorreito, honesto, ponderado, linear e dotado de consistência, dele decorrendo, de forma inequívoca, que o menor/ofendido, ao contar-lhe os factos que ora se discutem, fê-lo de um modo credível e verdadeiro, jamais tendo a sua narrativa sido percepcionada como uma qualquer elaboração mental, fantasiosa e destituída de correspondência com a realidade.
Pelo contrário, a testemunha ficou de tal forma impressionada e preocupada que não hesitou em participar o sucedido à Polícia Judiciária.
O mencionado CC confirmou que a progenitora do ofendido – na sua presença – deu-lhe conhecimento que tinha apresentado uma queixa porque este relatou-lhe um abuso sexual por parte de um “SS”, que a testemunha logo associou ao primo da sua, então, esposa HH.
No regresso para casa perguntou ao menor o que se tinha passado, recordando-se que o filho disse-lhe que tivera um contacto com o “SS” na casa de banho e que este lhe tocou, sem que, porém, indicasse em que parte do corpo.
A testemunha expressou não ter já recordação do que, em concreto, lhe foi dito nessa ocasião, adiantando que não explorou o assunto porque o ofendido não queria falar acerca do sucedido, sendo certo que também não quis massacrá-lo.
Uma vez que o aludido CC, em julgamento, evidenciou falhas de memória acerca do que efectivamente lhe foi narrado pelo filho – ainda que pouco –, nomeadamente, que situação/situações envolveu/envolveram o menor e o arguido, em que contexto e sua localização temporal, procedeu-se à leitura dos depoimentos que prestou na fase do inquérito, no dia 13.09.2017 (junto da Polícia Judiciária – Departamento de Investigação Criminal de ...), a fls.50-52, e no dia 13.11.2018 (perante Magistrada do Ministério Público), a fls.211-212.
Assim, no dia 13.09.2017 esclareceu, entre o mais, que: (...) Sobre os factos em investigação nos presentes autos afirma que teve conhecimento dos mesmos um ou dois dias depois da mãe denunciar os factos, quando esta lhe ligou a dizer que II tinha contado uma história ao jantar, que levou a que o transportasse ao hospital e de seguida a denunciar a situação. De acordo com a sua antiga companheira, II tinha contado que “SS” tinha abusado dele, ou seja quando ele ia à casa de banho, “SS” ia sempre atrás dele e mexia-lhe na “pilinha”. Isto teria acontecido em mais do que uma ocasião e numa outra situação, “SS” teria colocado a boca no pénis do menor. Isto já teria acontecido há bastante tempo de acordo com a criança. Na altura ficou extremamente perturbado com a situação e no dia seguinte quando II regressou a sua casa confrontou-o com a informação que lhe tinha sido transmitida pela sua antiga companheira. Na conversa com o menor este disse-lhe que era tudo verdade, relatando as mesmas situações que BB lhe tinha transmitido anteriormente, tendo tudo acontecido na casa das tias e afirmando que “SS” lhe tinha pedido para tocar no pénis e que nessa altura tinha fugido. Na altura questionou o filho porque este não tinha contado nada e este disse-lhe que “SS” tinha dito que se contasse ele diria que era tudo mentira e ninguém ia acreditar nele. Refere que depois esteve a pensar na situação e apenas se recorda de ter ido a casa das tias de II este ano em Junho, durante a comunhão da afilhada da sua esposa e antes disso só em Junho do ano passado (2016). Instado afirma que “SS” é primo direito da sua esposa e chama-se AA, nascido aos ../../1997, sendo actualmente estudante de Bioquímica na Universidade ... (Universidade ...) não tendo conhecimento de nenhuma situação anterior que envolvesse este rapaz (...) A pergunta feita considera esta situação um pouco estranha por vários motivos: primeiro porque II vai à casa de banho sempre nas últimas; depois porque o menor nunca se queixou de nenhuma situação e por fim porque nunca se apercebeu de nenhum comportamento menos correcto por parte de “SS”. Relativamente ao II refere que é uma criança com deficit de atenção, encontrando-se inclusivamente medicado para o efeito sendo seguido em consultas de psicologia (Dra. KK) e pedopsiquiatria (Dra. LL), no Hospital ...” – sublinhado e destacado nossos.
No dia 13.11.2018 elucidou, além do mais, que: (...) Confirma as declarações prestadas a fls. 50 a 52. Instado esclarece que as duas situações que referiu ter ido a casa das tias do II em Junho de 2016 e ../../2017, foram certamente festas familiares uma vez que após o divórcio dos seus sogros os contactos com a família da sua esposa, passaram a ser mais esporádicos, quase motivados por festas. Em ../../2017 estiveram na festa da comunhão da QQ, prima do arguido e da sua esposa, que decorreu como habitualmente acontecia em casa das tias em ..., .... Em Junho de 2016, estiveram também no casamento de uns primos da sua esposa, mas a festa deste casamento não foi em casa das tias mas sim numa quinta de eventos em local concreto que agora não recorda. Na conversa que teve com o II este também lhe relatou que no casamento dos primos dos ..., o SS também tinha ido atrás dele para a casa de banho da quinta onde decorreu a festa de casamento. Instado esclarece que casou com a sua actual esposa a 17 de Setembro de 2011, data em que o II tinha 4 anos e 10 meses, razão pela qual acha pouco possível que os factos tenham ocorrido nesta data, embora acredite naquilo que diz o seu filho como sendo o que efectivamente aconteceu” – sublinhado nosso.
Confrontado com o que afirmou na fase investigatória, a testemunha respondeu: “se eu disse que é, é porque é”.
O relato deste CC, comparativamente com o depoimento da mencionada BB, foi claramente mais parco e vago no seu conteúdo, na medida em que, contrariamente à progenitora, o progenitor do ofendido não quis aprofundar o assunto, além de que, havendo processo-crime em curso, preferiu aguardar pelo resultado da investigação.
Cremos que a par destes motivos, o discurso da testemunha, pobre em pormenores, também ficou a dever-se a uma postura dúbia em relação à credibilidade que lhe mereceu o filho: acreditou, mas ao mesmo tempo ficou com algumas reservas e com dúvidas (“sinceramente não queria acreditar”).
De todo o modo, embora menos confiante do que a progenitora, ainda assim não afirmou abertamente que o que contou o menor era uma absoluta mentira.
O depoimento do identificado CC, a par do que avulta do respectivo assento de nascimento (cfr. fls.206-207), serviu igualmente para concluir que o sucedido em Junho de 2016, ao contrário do que referiu o mencionado II, não ocorreu na festa de casamento do progenitor e da madrasta, pois que teve lugar no dia 17.09.2011, quando o ofendido tinha 4 anos de idade.
As demais testemunhas inquiridas pouca relevância assumiram na dilucidação dos factos que se discutem, na medida em que o conhecimento que tiveram dos mesmos não decorreu do que lhes foi contado pelo ofendido (que apenas narrou-os à progenitora BB, mais desenvolvidamente, e ao progenitor CC, mais contidamente).
Assim, a testemunha DD esclareceu que nas festas de família que se realizavam em ... – ..., nunca viu, nem ouviu o menor queixar-se de algo mais estranho, designadamente, de algum comportamento do arguido, nunca se tendo apercebido de nada de diferente com o identificado II, que descreveu como uma criança carinhosa, que gostava de colo, mas que, assim que ficava no colo, logo começava a apalpar e a massajar, sendo “atrevidinho” desde pequeno, o que levou até a testemunha a comentar com as irmãs, desconhecendo se foi ou não transmitido ao seu progenitor e à sua madrasta.
A testemunha EE, aludindo às festas familiares (designadamente, o casamento de familiares dos ... e a comunhão solene de QQ e a 1ª comunhão de OO), afirmou o mesmo que a testemunha anterior, isto é, nunca se apercebeu de nada de anormal, embora, usualmente, andasse mais pela cozinha.
Acrescentou que o progenitor do menor era muito protector e que não o perdia de vista, o que se devia também ao facto de ser uma criança hiperactiva.
A testemunha DD confirmou que a comunhão de OO (sua filha) e de QQ realizou-se na ... – ... e que aí estiveram presentes, entre outros, o ofendido II e os identificados CC e HH.
Tal como as testemunhas DD e EE, não notou nada de inusitado nessa festa de família que se relacionasse com o menor.
A testemunha GG, à semelhança das anteriores, elucidou que naquela festa de comunhão não houve nada de anormal que lhe chamasse a atenção.
No entanto, quando dali saiu para ir-se embora, a sua filha, no carro, perguntou-lhe: “Ó mãe o que é que é pinar?”
Surpreendida, indagou onde tinha ouvido esse termo, ao que a filha respondeu-lhe ter sido o menor II que lhe perguntou: “Queres pinar comigo?”.
A testemunha comentou o que havia acontecido com a mencionada DD, que, pedindo-lhe desculpa pelo sucedido, confidenciou-lhe que o ofendido estaria a ser acompanhado por psicólogos.
Aquela GG recordou-se, ainda, de uma outra situação, ocorrida em Setembro de 2015, em que pôde observar o identificado II a levantar a saia a uma miúda ou a tirar-lhe a camisola, bem como a encostar-se a uma outra a simular a cópula.
A testemunha HH – que, entretanto, divorciou-se do aludido CC – afirmou que teve conhecimento por este da queixa apresentada pela progenitora do seu, então, enteado e do que aí estava em causa.
Apesar de ser madrasta do menor, não abordou o ofendido acerca deste assunto, até porque a relação que tinha com ele não era próxima.
Mais referiu ter-se apercebido de alguns comportamentos daquele II, na vertente sexual, que lhe chamaram a atenção, nomeadamente, tocar em si próprio e no pénis, recordando-se de alguém ter comentado consigo, numa altura em que o menor passou a viver com o progenitor, que tinha tocado numa mama ou algo desse género.
Posto isto, não ignoramos que as crianças, durante o seu crescimento e por causa dele, vão desenvolvendo uma curiosidade natural pela sexualidade, sendo essa curiosidade mais prematura numas do que noutras.
No entanto, sem prejuízo do que vem de afirmar-se, no que concerne às referências que foram efectuadas acerca de comportamentos sexualizados do ofendido II, cumpre esclarecer, desde logo, que, as testemunhas DD e GG apenas privaram com o mesmo em contactos bastante ocasionais, sendo que a aludida HH, como elucidou, não era próxima do enteado.
Por outro lado, os relatos que produziram pautaram-se por manifestamente superficiais, isto é, pouco ou nada precisos em pormenores (o seu contexto, as circunstâncias espácio-temporais em que foram desenvolvidos tais comportamentos, como e porquê).
Para além disso, as testemunhas supra referidas não dispõem de conhecimentos técnicos suficientes para exprimir um juízo científico a respeito desses comportamentos e do que representam.

Acresce impor recordar-se, neste âmbito, que:
- a testemunha KK, psicóloga, que tem esses conhecimentos e acompanhou o ofendido II em consultas de psicologia entre 2016 e 2022, foi segura em asseverar que este nunca assumiu um comportamento (não)verbal tido como hipersexualizado;
- a testemunha LL, pedopsiquiatra, que também tem esses conhecimentos e acompanhou o ofendido em consultas da especialidade entre 2016 e 2018, nunca notou/registou qualquer modificação no seu comportamento sexual;
- a Sra. Perita MM, que tem igualmente esses conhecimentos, foi clara e inequívoca em esclarecer que nas entrevistas que realizou com o menor II foram abordadas estas questões, não tendo percepcionado qualquer hipersexualização da sua parte, mais acrescentando que em casos de abuso sexual como aqueles sob discussão nos presentes autos é frequente as vítimas adoptarem comportamento similares aos evidenciados pelo ofendido e supra descritos (cfr., ainda, o relatório de perícia psicológica forense, onde se expressa precisamente o que acaba de ser referido, nos seguintes termos: (...) A avaliação permite constatar que o menor apresenta de forma muito evidente comportamentos frequentemente observados em menores vítimas de abuso sexual, conversas de cariz sexual não apropriada à idade, interesse excessivo por esta temática, comportamentos desadequados de cariz sexual com outros adultos e crianças, nomeadamente com a mãe, com as irmãs e com a amiga da escola e mesmo com esta perita, procurado expor o pénis por diversas vezes e pedindo para exemplificar com o acto para que esta percebesse melhor aquilo que tinha acontecido. O menor não é capaz de avaliar a inadequação destes comportamentos, sendo que não os vivenciou de forma negativa (...) menor apresenta, como foi referido, comportamentos com características compatíveis com as dinâmicas usualmente observadas nos casos de abuso sexual continuado (...) – cfr. fls.79-80).
Em face do exposto, o que relataram as testemunhas supra identificadas a propósito de comportamentos sexualizados do ofendido II, em nada afectou a credibilidade que se reconheceu às declarações para memória futura que prestou.
Como se assinalou supra, o arguido optou, legitimamente, pelo silêncio, não se pronunciando quanto aos factos que lhe são imputados.
A propósito do «direito ao silêncio», explica-se no Acórdão da Relação do Porto, de 22.09.2010, que a sua génese não assenta num intuito de beneficiar o arguido, antes decorrendo do princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos que lhe são imputados, facultando ao arguido um comportamento que, em última análise, poderá obstar a que se auto-incrimine. No entanto, se o uso do direito ao silêncio não poderá em caso algum prejudicar o arguido, também o não deverá beneficiar! Aliás, não se vislumbra nenhuma razão de ordem lógica, ou mesmo jurídica, para que um arguido que se refugia no direito ao silêncio deva ser beneficiado, porventura na mesma medida dos arguidos que colaborem com a justiça ou que manifestem sincero arrependimento. O silêncio constitui, é certo, um direito do arguido, mas não se traduz numa circunstância atenuante; não implica diminuição da culpa e também não reduz a ilicitude do facto. Logo, o silêncio não beneficia o arguido; apenas o não prejudica! Aliás, como dizem Simas Santos e Leal Henriques não se deve confundir “desfavorecer” com o “não favorecer”. A confissão, se espontânea, beneficia a posição do arguido. E se do silêncio do arguido resultar o desconhecimento de circunstâncias que o poderiam favorecer – e de que, porventura, só ele tem conhecimento –, então poderá esse silêncio nitidamente desfavorecê-lo. O que estes autores salientam é, afinal, a evidência de que, muito embora o arguido esteja isento do ónus de provar a sua inocência, não podendo ver juridicamente desfavorecida a sua posição pelo facto de exercer o seu direito ao silêncio – de que não é legítimo extrair qualquer consequência, seja para determinar a culpa, seja para determinar a medida concreta da pena –, não é menos verdade que quando é do interesse do arguido invocar um facto que o favorece – e que ele poderá ser o único a conhecer –, a manutenção do silêncio poderá desfavorecê-lo (acessível em www.dgsi.pt/jtrp, Processo nº439/07.0PUPRT.P1, relatora Eduarda Lobo).
Desse silêncio não se pode extrair qualquer consequência jurídica desfavorável para aquele AA, que se presume inocente antes de haver sentença condenatória com o trânsito em julgado.
Porém, por via dessa legítima opção, privou-se da oportunidade de apresentar a sua própria versão dos factos, ficando o tribunal circunscrito às declarações para memória futura prestadas pelo menor II, aos depoimentos testemunhais produzidos em audiência e à prova pericial e documental anteriormente elencada.
Como se anota, ainda este respeito, no já citado aresto da Relação do Porto, de 22.09.2010: (…) a opção pelo silêncio pode ter consequências, que não passam pela sua valorização indevida. «Um arguido que mantém o silêncio em audiência, não pode ser prejudicado, pois não é obrigado a colaborar e goza da presunção de inocência, mas prescinde assim de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal. Daí que quando tal suceda não possa pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio (acessível em www.dgsi.pt/jtrp, Processo nº439/07.0PUPRT.P1, relatora Eduarda Lobo).
Deste modo, no caso de que nos ocupamos, o arguido AA prescindiu da faculdade de expor ao tribunal a sua versão dos factos, designadamente por não conformar-se com aquela que resultou da demais prova produzida, nos termos que ficaram supra explicitados.
Por outro lado, nenhum contra-indício foi apresentado que coloque em causa a factualidade que se teve por provada.
No que concerne aos factos que respeitam ao foro volitivo do arguido AA, insusceptíveis de percepção sensorial, importa salientar que, conforme ensina Germano Marques da Silva, na valoração da prova intervêm deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, sendo certo que se as inferências não dependem substancialmente da imediação, terão de basear-se na correcção do raciocínio, o qual se alicerçará nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência (vide Curso de Processo Penal, Volume II, p.127).
A prova do elemento subjectivo, por pertencer ao mundo interior do agente, é, pois, indirecta, devendo ser extraída dos demais elementos existentes nos autos e das regras da normalidade e da experiência comum.
Como se escreve no Acórdão da Relação de Coimbra, de 23.05.2012: (…) tratando-se de factos de ordem subjectiva (do mundo dos pensamentos e das representações mentais do agente: os seus conhecimentos e intenções) são insusceptíveis de prova directa, havendo que retirar a convicção da sua verificação da análise dos factos objectivos praticados à luz das regras da experiência comum (acessível em www.dgsi.pt/jtrc, Processo nº630/09.5TACNT.C1, relatora Maria Pilar Oliveira).
Deste modo, em relação ao elemento subjectivo, o mesmo ou é revelado pelo próprio arguido, através da confissão (vide o Acórdão da Relação de Évora, de 14.07.2015, acessível em www.dgsi.pt/jtre, Processo nº27/14.5PTEVR.E1, relator Alberto Borges), ou então tem de ser inferido de factos objectivos que sejam suficientemente idóneos para a sua demonstração.
No caso decidendo, a convicção do tribunal formou-se em virtude da conjugação da atitude desenvolvida pelo arguido com as consequências que, segundo é adequado e esperado – atentas as regras da experiência –, dela decorrem, podendo concluir-se, com segurança, que, não obstante saber que o seu comportamento era proibido e punido por lei como crime, agiu sempre de modo deliberado, livre e consciente, nos moldes que, neste âmbito, se tiveram como provados e que, aqui, temos por integralmente reproduzidos, por brevidade de exposição, sendo certo que a intenção que presidiu à sua actuação também resulta da materialidade objectiva dos demais factos que se tiveram por demonstrados.
A convicção do tribunal quanto à ausência de antecedentes criminais resultou do que avulta do respectivo Certificado do Registo Criminal (cfr. referência nº...27).
Relativamente às condições pessoais, familiares, profissionais, económicas e sociais do arguido, atendeu-se ao respectivo relatório social actualizado (cfr. fls.332-336 e fls.682-684), que se mostra cabalmente fundamentado e com indicação expressa das respectivas fontes, sendo certo que o seu teor foi, no essencial, confirmado pelo próprio AA que, a este propósito, acedeu a prestar declarações.
Tomou-se, também, em consideração o que relataram as testemunhas EE, DD e FF, que, sendo com ele conviventes, aludiram a aspectos da sua vida, o que fizeram de modo coerente, consistente e credível.
A não demonstração dos factos não provados resultou, sempre sem prejuízo do exposto em sede de motivação dos factos provados, de, sobre os mesmos, não se ter logrado fazer prova (documental e/ou testemunhal), tendente a permitir concluir pela sua verificação, de acordo com o supra referido princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º, do CPP.”.

Vejamos, agora, as concretas questões submetidas à nossa apreciação.

I) Da Nulidade Prevista no artº 379º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal:

Entende o arguido que o acórdão recorrido padece de falta de fundamentação o que o torna nulo nos termos dos artºs 97º, 379º e 374º nº 2 todos do Código de Processo Penal.

Vejamos.

Diz o artº 379º do Código de Processo Penal, subordinado à epígrafe “nulidades da sentença” o seguinte:
“1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º
3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.” – sublinhado nosso

Sendo que o artº 374º nº 2 do Código de Processo Penal, subordinado à epígrafe “requisitos da sentença” determina o seguinte:
“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”

Ora, e adiantando desde já a nossa convicção, não se vislumbra no acórdão recorrido a apontada nulidade de falta de fundamentação, mostrando-se o acórdão fundamentado de facto e de direito.

O facto do arguido discordar da análise do Tribunal a quo, ou desta análise eventualmente poder encerrar um erro de julgamento ou mesmo um erro notório na apreciação da prova, não inquina o acórdão de nulidade.

Improcede, assim, esta parte do recurso.

II) Dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do Código de Processo Penal:

Entende ainda o arguido que o acórdão recorrido padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto uma vez que continua a faltar a realização da perícia ordenada pela Relação, não sendo suficiente ouvir-se a autora da primeira perícia.
Vejamos.

Conforme dispõe o artº 410º do Código de Processo Penal:

“1. Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;     
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3. O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”  

Esclarecem Simas Santos e Leal Henriques[3] “Deve notar-se que a al. a) do nº 2 se refere à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127º), que é insindicável em reexame da matéria de direito.
Por sua vez a contradição a que se reporta a al. b) é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência.
Finalmente o erro notório na apreciação da prova a que alude a al. c) é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente. Esse erro existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, v.g., quando se dá por assente que o arguido está num determinado local a determinada hora e ao mesmo tempo se tem como provado que ele estava em local longínquo minutos depois; ou quando se dá por assente que o arguido disparou três tiros de pistola a 4 metros de uma mesa onde estavam sentadas várias pessoas, no interior de um café apinhado e se dá por provado que ele não previu a possibilidade de atingir mortalmente alguém.(…)
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ao das legis artis.
Não pode esquecer-se que, como se prescreve na 2ª parte do corpo do nº 2, os vícios apontados nas suas alíneas têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou com recurso às regras da experiência comum, não sendo permitida a consulta de outros elementos constantes do processo.”

Como muito bem explicitado no Acórdão do STJ de 15-09-2009 (procº nº 103/09 da 3ª Secção, in Boletim do STJ):
“I -As anomalias, os vícios da decisão elencados no n.° 2 do art. 410.° do CPP têm de emergir, resultar do próprio texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma; esses vícios têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo.
II - Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei -vícios da decisão, não do julgamento.
III - Os vícios previstos no artigo 410.°, n.° 2, do CPP, nomeadamente, o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no art. 127.° do CPP.
IV - Não podendo, neste tipo de análise, prevalecer-se de prova documentada nem se encontrando perante prova legal ou tarifada, não pode o tribunal superior sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida; é, afinal, querer impugnar a convicção do tribunal, olvidando a citada regra.
V - Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.°, n.° 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.”

Assim, os vícios previstos no artº 410º do CPP, embora de conhecimento oficioso, são vícios que têm de resultar da análise da sentença/acórdão em si, sem recurso a outros elementos processuais, e têm de ser vícios patentes que sobressaem da sentença pela simples leitura desta.

Ou conforme se refere no recente Acórdão do STJ de 06-02-2019 (in stj.pt) tratam-se de vícios que “decorrem do texto da própria decisão”.

Em relação aos vícios concretamente anunciados sabemos que:

O vício da insuficiência, para a decisão, da matéria de facto, plasmado na al. a) do nº 2 do artº 410º CPP não se confunde com a falta de prova para a matéria de facto, antes, traduzindo a falta de factos para a decisão dada, isto é, constata-se, da simples leitura da sentença/acórdão de que não existem factos suficientes para integrar o crime imputado e pelo qual se veio a condenar determinado arguido, ou então, não há factos suficientes para a determinação da pena em concreto, como, por exemplo, para se concluir pela taxa diária da multa aplicada desconhecendo-se por completo a situação económica do arguido.
           
“O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (constante da al. b) do nº 2 do artº 410º do CPP) consiste tanto na contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, como também entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou até mesmo entre a fundamentação e a decisão. Ou seja, uma situação em que, seguindo o fio condutor do raciocínio lógico do julgador, os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si ou uns com os outros ou, ainda, com a fundamentação da decisão.”[4]

“Há contradição insanável da fundamentação quando, sendo feito um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os factos provados e não provados se contradigam entre si ou se excluam mutuamente.”[5]

Ou ainda, conforme explicitado no Ac. do STJ de 24-02-2016[6]:
“Há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou entre a fundamentação probatória da matéria de facto. A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorre quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova indicados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.”

“O vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPPerro notório na apreciação da prova – só se pode verificar quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.”[7]

Nos termos do Acórdão do STJ de 15-09-2009 (já supra citado):
“O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.”

Ora e adiantando desde já a nossa convicção, afigure-se-nos que o vício previsto na al. a) do nº 2 do artº 410º do CPP, em nosso modesto entendimento e salvo o devido respeito, continua a verificar-se uma vez que, embora por razões alheias ao Tribunal a quo, não foi possível realizar-se a perícia ordenada por esta Relação, não sendo,  minimamente suficiente, ou substitutiva dessa perícia, a tomada de declarações à senhora perita que efectuou a primeira perícia nas condições manifestamente irregulares e insuficientes.

Veja-se que, no primeiro acórdão proferido por esta Relação em 28-09-2020 (refª ...17), e no tocante ao teor da dita perícia, da responsabilidade da perita MM foi referido o seguinte:

«O Tribunal a quo atribuiu crucial importância às declarações do menor, sustentando tal opção, além de outros meios de prova, na perícia psicológica forense a que o menor foi submetido, na qual se concluiu pela inexistência de “indicadores de eventual mentira da autoria do ofendido ou induzida por terceiros”.
Contudo, da mesma perícia consta que o menor, questionado sobre quem o ensinou a ver filmes no tablet, referiu ter chegado a dizer ao pai “que foi a mãe mas já pedi desculpa, não foi ela”, não esclarecendo quem foi que o ensinou.
Afirme-se, desde já, que o extenso e circunstanciado parecer emitido pelo Exmo. PGA constitui uma excelente e rigorosa análise da questão, que subscrevemos e que acompanhamos de muito perto.
No parecer, na parte reportada à perícia psicológica, afirma-se: “(…) a perícia (…) visaria (…) aferir se o ofendido tinha ou não capacidade para testemunhar, por ter aptidão para memorizar e narrar factos em que participou ou que visualizou, (…) não podendo funcionar o relatório como antecipação do depoimento da testemunha, o que, em certa medida, perpassa pelo mesmo.
Ou seja, na parte em que veicula o depoimento do ofendido, não envolve um juízo pericial propriamente dito.
Ora, tal perícia, para além de ser, em grande medida, um extenso certificado de credibilidade e um documento sobre hipotéticas causas da narração, com elevada propensão no sentido de que a mesma está marcada pelo pretérito abuso sexual, não deixa de causar, desde logo, alguma apreensão quanto ao seu desenvolvimento e à formulação das conclusões já que, em quatro parágrafos destas, em que afiança credibilidade, antecipando a aferição do Tribunal, designa o examinado como “a menor” (…)
Custa a compreender como num documento de tamanha importância e relevância para a condenação, aliás, em pena de prisão efectiva, de forma tão ostensiva se repete, confrangedoramente, uma tal troca do género, o que não poderá ser levado na conta de mero lapso,(…).
Ou esta parte importante do relatório não pertence ao exame destes autos, ou então outra será a explicação
Para o que importa, que é a valia da perícia, qualquer uma das respostas não é, salvo o devido respeito, boa.”
(…) também não aborda, (…) a relevância que teve, ou pode ter, a confessada mentira do mesmo a propósito da identificação da pessoa que, alegadamente, lhe ensinou a ver filmes pornográficos no tablet, (…), sendo que o “SS” nunca foi referenciado, como utilizador, conjuntamente consigo, do tablet (…)”.
Na mesma perícia, o menor terá declarado à perita “eu deitava-me e ele deitava-se em cima de mim e fazia-me aquilo…dava-me beijinhos na boca, fazia a pinagem …metia a pila no cu…saia um líquido branco para cima de mim, eu limpava com toalhetes…”, mas, nas declarações para memória futura, quando questionado pelo senhor juiz de instrução sobre se, em alguma das vezes, saiu alguma coisa da pilinha, o ofendido respondeu que não, que não viu.
Ainda relativamente à perícia “(…) quanto ao ponto que seria, a todas as luzes, especialmente relevante, (…) ficou-se pela menção de que: «II frequenta o 4.° ano de escolaridade, tendo sido retido no 2.° e 3.° ano. Usufrui de medidas de ensino especial por dificuldades de aprendizagem, hiperactividade e défices de atenção», sem qualquer consideração por todo um processo de acompanhamento clínico descrito pelo pai na inquirição de fls. 52, em que, para além de estranhar a situação, esclareceu que: «Relativamente ao II refere que é uma criança com deficit de atenção, encontrando-se inclusivamente medicado para o efeito e sendo seguido em consultas de psicologia (Dr.ª KK) e pedopsiquiatria (Dr.a LL), no Hospital ....»
Ora, tendo a perícia deixado referências, aliás com alguma ambiguidade, à postura do ofendido nos relatos como podendo eventualmente já estar afetada pelos factos, deixando menos assertiva essa relação de causa a efeito, e referindo, por outro lado, que: «O menor não é capaz de avaliar a inadequação destes comportamentos, sendo que não os vivenciou de forma negativa.» — cf. fls. 79, pág. 6 da perícia —; e ainda que: «é de admitir a necessidade de providenciar ao examinado um acompanhamento psicológico especializado.» — cf.fls 80, pág. 7 da perícia; é razoável considerar que a efectivação da perícia não teve em qualquer atenção todo o seguimento assistencial a que o ofendido vinha sendo sujeito e, acima de tudo, a caraterízaçâo da patologia que lhe foi eventualmente diagnosticada, bem como o tratamento a que é sujeito, tudo isso, (…) de capital importância para, cabalmente e sem esponjosidade, se poder formular um juízo tendencialmente definitivo e seguro quanto à eclosão dos padecimentos, revelações da problemática de natureza sexual , bem como, para além do mais, a aferição da existência, ou não, de razões autónomas para a narrativa abusiva e se o vocabulário utilizado peto ofendido é já o efeito dos abusos sexuais, como hipotisa a perícia, embora de forma pouco segura, ou se será preexistente e terá porventura passado oculto ou despercebido na esfera dos progenitores.
A este propósito, não se poderá olvidar que o douto acórdão, naturalmente atento à perícia e convocando-a, para além de ter feito considerações diferenciais sobre condutas como as que foram descritas como protagonizadas pelo ofendido ao nível da expressão sexual, optando pelo enquadramento das mesmas no arquétipo das condutas dos ofendidos abusados sexualmente, também se referiu aos depoimentos das testemunhas de defesa e às declarações do arguido como mobilizadas para «em uníssono, denegrir a imagem do menor, pelos comportamentos de cariz sexual que o mesmo alegadamente apresentava…», quando esses meios de prova, mesmo à luz da descrição da fundamentação do acórdão, foram essencialmente descritivos da objectividade dos comportamentos do ofendido, e a razão única que conduziu a que não tivessem sido atendidos, como se refere na fundamentação, juízo aliás ambíguo, assente na incompreensão, do Tribunal, quanto aos motivos pelos quais as várias testemunhas não denunciaram o ofendido ao pai e/ou à madrasta ou os aconselharam à procura de ajuda especializada que, pelos vistos, o ofendido já tinha.
(…)
Ora, não tendo a perícia contado com qualquer informação sobre todo o entorno de assistência médica, de pedopsiquiatria, que vinha sendo prestada ao ofendido, é manifesto que ficou desguarnecida do melhor quanto à verdadeira caracterização do ofendido nos seus padecimentos, razões dos mesmos, efeito possíveis deles, sua inserção temporal e tudo o mais que serve para apoiar a decisão num caso de tamanha gravidade, em que foi aplicada pena de prisão efectiva ao recorrente, o qual, segundo os factos apurados — cf. Ponto 12 —, averba um percurso pessoal, familiar, social e escolar com atributos de positividade, além de recusar a prática abusiva e de estabelecer alguma ligação possível entre a imputação e um episódio em que fez cessar uma ocorrência em que o ofendido estaria em cima da sua irmã UU a tentar puxar-lhe o vestido para cima.
(…)
Lembre-se que a perícia realizada, a dado passo, refere: «O menor não é capaz de avaliar a inadequação destes comportamentos, sendo que não os vivenciou de forma negativa.», o que traduz um juízo, não só contraditório com algumas expressões de nojo que o ofendido verbalizou nas declarações para memória futura, mas também insolubilidade quanto ao posicionamento das manifestações do ofendido, nomeadamente em relação à mãe e à perita, já como efeito dos abusos assacados ao recorrente, no fundo e pese embora o ofendido os tenha representado com uma pluralidade mais extensa, nuclearizados em duas datas, com um intervalo de cerca de um ano (junho de 2016 e julho de 2017); ou de outros abusos, ou ainda, por outro lado, como efeito de uma outra causa, já que, como consta do depoimento da própria mãe do menor, resenhado na fundamentação da matéria de facto: «…o filho desde muito cedo (?), fazia questão que olhassem para o pénis dele e manifestava curiosidade/ interesse acerca da sexualidade.»
Aferir, pois, em função do exposto, se os factos que o recorrente considera incorrectamente julgados — ponto 5 — justificam esse juízo, face à recusa, por aquele, da sua prática e atenta a ausência, segundo a perícia, de qualquer vestígio no histórico do seu telemóvel quanto a esse tipo de acessos, é tarefa que acaba por reclamar alguma transversalidade na apreciação e que passa, quase exclusivamente, ou essencialmente, pela credibilidade e confiança que deve merecer, ou não, o ofendido, o que, pelas razões aduzidas demanda o colmatar da prova, através da perícia pedopsiquiátrica, que abarque todo o esquecido enquadramento do ofendido e das suas patologias, tratamentos e evolução clínica, em ordem a saber se o que denota é causa da narrativa de abuso ou consequência do mesmo, ou, como diz o Tribunal a quo, «mera curiosidade pela sexualidade», revelando-se, na nossa ótica, insuficiente o apuramento dos factos, deixando-se, assim, eivado o acórdão recorrido, mas com carácter abrangente, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do arL°410.°, n.° 2, al. a).”. – páginas 31 e ss do acórdão (sublinhado e negrito meus)

Afigura-se-nos, muito modestamente, que a perícia ordenada por esta Relação não se satisfaz com declarações adicionais por parte da senhora perita que, logo de início, não elaborou, como se notou, uma perícia adequada e válida –  prestando, como já notado por esta Relação “na parte em que veicula o depoimento do ofendido, não envolve um juízo pericial propriamente dito” – continuando a não se compreender porque motivo, tendo o ofendido referido à senhora perita que até foi sujeito a abuso sexual com coito anal, e ejaculação de esperma, tal, afinal, não foi referido pelo ofendido nas declarações para memória futura?

Quando se sabe que o coito anal é muito mais traumatizante para a vítima e até deveria ser o acto mais facilmente lembrado.

Ora, se é verdade que não é assacável ao Tribunal a quo a falta de realização da segunda perícia ordenada por esta Relação – pelo que não se vislumbra a apontada nulidade por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade –  a verdade é que essa perícia não se realizou por vontade do próprio ofendido que se recusou a colaborar com a justiça, algo que, a nosso ver, não pode, nem deve prejudicar o arguido.

Assim, e tal como se concluiu, no primeiro acórdão prolatado por esta Relação entendemos que continua a verificar-se o vício previsto na al. a) do nº 2 do artº 410º do CPP, pois, como se referiu em tal acórdão:
«A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorrerá - como referem Simas Santos e Leal Henriques em “Recursos em Processo Penal”, citados por Maia Gonçalves em “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª edição, pág. 871 – “quando exista uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.
Porventura, melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.”
Ora, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorrecta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.”
O mesmo Alto Tribunal – Acórdão de 20/04/2006, no proc. nº 363/03, citado no referido parecer – afirmou: “A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ser apurados na audiência visto a sua importância para a decisão….”.
Como bem se refere no parecer, “(…) a falta da perícia pedopsiquiátrica que envolvesse os imprescindíveis saberes desta área, manifestamente diferentes dos da zona da psicologia, ficou-se sem saber se todos os segmentos comportamentais do ofendido, a que o acórdão se reporta ao descrever os depoimentos e ao aludir à perícia, ocorreram ou foram potenciados pela patologia que a pedopsiquiatria tenha vindo a observar eventualmente no mesmo e se esta é susceptível de influir na narrativa dos abusos que protagonizou; (…) – sublinhado nosso

Aliás, o Tribunal a quo, tendo já sido confrontado por esta Relação com as discrepâncias no discurso do menor, que ora diz à perita que também foi alvo de abuso sexual com coito anal, mas nada menciona nas declarações para memória futura, ora diz que via filmes pornográficos no tablet, sem mencionar o arguido, e imputando tal comportamento à própria mãe (note-se com quem o menor não vive), o Tribunal a quo, no segundo acórdão proferido e ora sob escrutínio, continua sem abordar estes aspectos, sendo que nem as declarações adicionais da senhora perita revelam alguma explicação pelo facto de continuar a entender que o menor presta um depoimento sem contaminação e de forma credível.

Por outro lado, o Tribunal a quo que até faz menção dos comportamentos já sexualizados por parte do menor em momento anterior aos factos dos autos, conforme relatado pelas testemunhas DD, GG e HH depois utiliza, a nosso ver e salvo o devido respeito, um argumento perfeitamente erróneo para descredibilizar tais relatos, afirmando que tais testemunhas não são peritas.

Veja-se o que referiu o Tribunal a quo a propósito destas testemunhas, que não descredibiliza nos relatos:
     
«Assim, a testemunha DD esclareceu que nas festas de família que se realizavam em ... – ..., nunca viu, nem ouviu o menor queixar-se de algo mais estranho, designadamente, de algum comportamento do arguido, nunca se tendo apercebido de nada de diferente com o identificado II, que descreveu como uma criança carinhosa, que gostava de colo, mas que, assim que ficava no colo, logo começava a apalpar e a massajar, sendo “atrevidinho” desde pequeno, o que levou até a testemunha a comentar com as irmãs, desconhecendo se foi ou não transmitido ao seu progenitor e à sua madrasta. (…)
A testemunha GG, à semelhança das anteriores, elucidou que naquela festa de comunhão não houve nada de anormal que lhe chamasse a atenção.
No entanto, quando dali saiu para ir-se embora, a sua filha, no carro, perguntou-lhe: “Ó mãe o que é que é pinar?”
Surpreendida, indagou onde tinha ouvido esse termo, ao que a filha respondeu-lhe ter sido o menor II que lhe perguntou: “Queres pinar comigo?”.
A testemunha comentou o que havia acontecido com a mencionada DD, que, pedindo-lhe desculpa pelo sucedido, confidenciou-lhe que o ofendido estaria a ser acompanhado por psicólogos.
Aquela GG recordou-se, ainda, de uma outra situação, ocorrida em Setembro de 2015, em que pôde observar o identificado II a levantar a saia a uma miúda ou a tirar-lhe a camisola, bem como a encostar-se a uma outra a simular a cópula.
A testemunha HH – que, entretanto, divorciou-se do aludido CC – afirmou que teve conhecimento por este da queixa apresentada pela progenitora do seu, então, enteado e do que aí estava em causa.
Apesar de ser madrasta do menor, não abordou o ofendido acerca deste assunto, até porque a relação que tinha com ele não era próxima.
Mais referiu ter-se apercebido de alguns comportamentos daquele II, na vertente sexual, que lhe chamaram a atenção, nomeadamente, tocar em si próprio e no pénis, recordando-se de alguém ter comentado consigo, numa altura em que o menor passou a viver com o progenitor, que tinha tocado numa mama ou algo desse género. (…)
…as testemunhas supra referidas não dispõem de conhecimentos técnicos suficientes para exprimir um juízo científico a respeito desses comportamentos e do que representam.»

Ora, é para nós claro que não é preciso ser-se um perito para se perceber, num contexto normal de convivência com o menor, se este apresenta comportamentos sexualizados ou não e se o mesmo tem atitudes que não são consideradas normais para uma criança da sua idade em determinado contexto social.

Uma criança de 10 anos ou menos, que mexe nos seios de uma mulher ou que se encosta a uma outra criança a simular cópula, revela um claro comportamento sexualizado não normal para a sua idade e completamente fora de qualquer contexto social.

Por outro lado, as referidas testemunhas foram ouvidas nessa qualidade em relação a factos relativamente aos quais terão um conhecimento directo.

Pelo que, e como infra veremos melhor, o acórdão recorrido padece de mais um vício, também ele de conhecimento oficioso, isto é, revela um erro notório na apreciação da prova, nos termos do artº 410º nº 2 al. c) do CPP.

Vejamos.

Na senda do que temos vindo a referir, o Tribunal a quo, que atribuiu uma relevância fundamental às declarações do menor e aos “esclarecimentos” da senhora perita, utilizados no lugar da realização de nova perícia, ignora as claras discrepâncias existentes no relato do ofendido, bem como ignora as contradições entre o que a senhora perita MM disse e o que resulta dos depoimentos da psicóloga KK e da pedopsiquiatra LL.

Só olhando o texto do acórdão recorrido é possível retirar estas discrepâncias.

Veja-se que, quanto à fundamentação tecida em torno da primeira perícia realizada a perita MM diz que:

“o menor demonstrou uma atitude cooperante e capacidade para narrar a alegada experiência abusiva. Revelou facilidade de comunicação (...) Recorda a primeira vez em que terá acontecido, embora não os consiga precisar no tempo, relata com pormenor os acontecimentos (...)”

Contudo a psicóloga KK, bem como a pedopsiquiatra LL, que acompanham o menor há alguns anos, mesmo antes do tempo em que os factos alegadamente ocorreram, referem ambas que o menor apresenta “um discurso oral pobre”.

Ora isto não é consentâneo com aquilo que afirma a perita quando diz que o menor “relata com pormenor os acontecimentos”.

Mais afirma a psicóloga KK que:
“Recorda-se que o progenitor do aludido II solicitou uma consulta com carácter de urgência e que subjacente à mesma estava o relato de uma situação de abuso (sexual) por parte do filho, sendo que a testemunha, até então, não lhe tinha detectado qualquer alteração no seu comportamento.
Depois de ter sido abordada pelo progenitor, falou com o ofendido.
No entanto, além de este ter dificuldades em elaborar, tratava-se de um assunto que lhe gerava desconforto e para o qual não mostrava disponibilidade, o que implicou que deixasse de explorá-lo.
- sublinhado e negrito nossos
Ora isto está em flagrante contradição com o que afirmou a perita MM quando esta diz na perícia:
“Ao longo do processo de avaliação, o menor demonstrou uma atitude cooperante e capacidade para narrar a alegada experiência abusiva.”

Tanto que, quando se tentou a segunda perícia ordenada por esta Relação a mesma não foi possível porque o menor se recusou a participar nela:
“O examinando disse que já sabia sobre que era o exame, mas que não queria falar sobre o assunto. Apesar das várias tentativas efectuadas o examinando continuou a recusar em abordar o objecto da perícia e permaneceu numa posição opositiva e de não colaboração.”[8]

Ou seja, esta recusa é mais consentânea com o relato da psicóloga KK, que acompanha o menor há mais tempo, do que a perícia da MM que até troca o sexo do menor na parte final da perícia referindo-se a “a menor” levando a crer que fez “copy/paste” de um relatório pericial já existente o que nos leva a questionar até que ponto o relatório é todo ele referente ao menor deste processo e o que são vestígios de relatórios anteriores referentes a outros menores, conforme já notado por esta Relação no primeiro acórdão aqui proferido.

Para validar a primeira perícia o Tribunal a quo refere que a respectiva perita MM referiu o seguinte:
“Assim, na anamnese, questionou-o sobre a sua história de vida, a história familiar, bem como o historial de saúde, sendo que também falou acerca desse historial com o progenitor do ofendido, que fez referência às dificuldades de aprendizagem do filho, ao diagnóstico de défice de atenção (a Sra. Perita, aliás, levou a cabo uma avaliação cognitiva ao ofendido tendo o resultado comprovado esse défice, ligeiramente abaixo do normal), à sua hiperactividade e à toma de medicação para esse efeito.
Simplesmente não fez constar essa patologia e respectivo tratamento do relatório de perícia psicológica forense porque concluiu que em nada interferia com a capacidade de o ofendido relatar as suas próprias vivências.
Com efeito, como sublinhou, a característica principal deste género de diagnósticos é a impulsividade.
Assim, “(...) todo o entorno de assistência médica, de pedopsiquiatria, que vinha sendo prestada ao ofendido”, referido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães no acórdão de 28.09.2020, não foi esquecido pela Sra. Perita na perícia psicológica forense de que foi incumbida.
Pelo contrário, foi abordado no âmbito dessa perícia, embora não tenha sido vertido no relatório pericial de fls.75-80 por a Sra. Perita não ter atribuído nenhuma relevância a esse seguimento assistencial do ofendido no que concerne à sua capacidade de testemunhar.”

Contudo e, salvo o devido respeito, esta explicação é altamente irregular e pouco credível uma vez que os peritos responsáveis por este tipo de perícia têm protocolos para seguir na elaboração das perícias, não só não lhes cabendo excluir o que “acham” não interessar, como todo o historial clínico do examinando é essencial para a perícia ainda que, à partida, poderá não estar na base da sintomatologia apresentada.

Por outro lado, a explicação oferecida pela perita não esclarece porque motivo entende que as patologias de que padece o menor, mormente a hiperactividade e défice de atenção, não interferem com a sua capacidade de relatar facto fidedignos, não sendo a característica da impulsividade um elemento que, de per se, possa afastar aquela dúvida uma vez que é a própria impulsividade que pode até levar a que o menor preste um depoimento acerca do que “lhe vem à cabeça”, dito no momento e para se libertar de um exame no qual, seguramente, não se consegue conter de forma calma e serena (relembre-se que o menor é hiperactivo e padece de défice de atenção), em vez de falar sobre algo que genuinamente terá ocorrido.

É que, independentemente das patologias de que o menor padece poderem, eventualmente, não implicar comportamentos sexualizados antes dos factos dos autos alegadamente terem ocorrido, fica-se sem saber se tais patologias afectam a sua capacidade de relatar factos de forma fidedigna, sem enfabulações, uma vez que o menor, além do défice cognitivo de que padece, é hiperactivo e tem défice de atenção, duas situações que, a nosso modesto ver, poderão afectar a sua capacidade de relatar factos de forma como a senhora perita referiu na perícia e para o qual esta Relação, no primeiro acórdão prolatado, já havia chamado atenção.

Mas há, ainda, outra discrepância que não podemos ignorar.

Vejamos.

Referiu a perita MM, segundo o Tribunal a quo anotou na sua fundamentação que:
“Ainda neste contexto, referiu que o ofendido, durante as entrevistas, descreveu comportamentos relacionados com sexo, usou o termo “pinagem” e verbalizou pretender baixar as calças para mostrar à Sra. Perita o que se tinha passado, sendo que em momento algum denotou que essas atitudes fossem reflexo de uma hipersexualização, mais esclarecendo que é muito frequente neste tipo de situações de abuso (sexual) que os menores tenham comportamentos idênticos aos manifestados pelo ofendido.”

Ora, não só este aparente “à vontade” do menor com uma perita totalmente estranha contradiz a clara falta de vontade do menor em expor o episódio sexual perante a psicóloga KK, que era a psicóloga que já conhecia e que o acompanhava com frequência, como revela que a perita concluiu que os comportamentos sexualizados manifestados pelo ofendido eram fruto do abuso sexual investigado nos autos, sem que tivesse tido o cuidado de afastar um possível comportamento ou patologia do menor em momento anterior, motivo pelo qual esta Relação anulou o acórdão anterior e pediu nova perícia.

É que a perita MM afirma que o menor está a dizer a verdade porque a sua hiperactividade e défice de atenção apenas implicam impulsividade (já se viu que esta impulsividade pode implicar exagero e enfabulação no relato), mas nada diz acerca da análise que supostamente teria de ter efectuado de algum comportamento anterior do menor que já pudesse revelar uma tendência sexualizada.

Ou seja, a perita MM concluiu que os comportamentos sexualizados do menor são fruto do abuso sexual que o menor lhe relatou – (o menor terá dito que foi alvo de abuso sexual que também implicou coito anal com ejaculação e, estranhamente, o Tribunal a quo que tanta fé fez quer nas declarações do menor, quer nas declarações desta perita, não deu este facto por provado, o que nos leva a perguntar porque motivo) – não tendo tido o cuidado de perceber se já antes dos alegados factos revelava esse tipo de comportamento, ou se o mesmo não podia ter sido fruto da sua “confessada” exposição a filmes pornográficos.

Por outro lado, a psicóloga KK e pedopsiquiatra LL, que acompanham o ofendido desde 2016 de forma regular, não notam qualquer comportamento ou verbalização hipersexualizado do ofendido, no entanto, a perita MM, que só conhece o menor para a perícia e, portanto, era uma total estranha ao menor, já revela que o ofendido:
“A avaliação permite constatar que o menor apresenta de forma muito evidente comportamentos frequentemente observados em menores vítimas de abuso sexual, conversas de cariz sexual não apropriada à idade, interesse excessivo por esta temática, comportamentos desadequados de cariz sexual com outros adultos e crianças, nomeadamente com a mãe, com as irmãs e com a amiga da escola e mesmo com esta perita, procurado expor o pénis por diversas vezes e pedindo para exemplificar com o acto para que esta percebesse melhor aquilo que tinha acontecido.”

Isto está em flagrante confronto com o que disseram KK e LL, técnicas de saúde que acompanham o menor desde 2016.

Porque motivo o menor abre-se com tanta facilidade e expõe-se de forma tão frontal com uma perita que não conhece e já não se sente à vontade para falar com a psicóloga e pedopsiquiatra que o acompanham há anos?

E porque motivo o menor conta tudo à mãe, numas férias no ... já em 2017, note-se o ofendido não está à guarda da mãe, quando, segundo a perita MM o menor “não os vivenciou de forma negativa”, e nada contou ao pai, com quem vive e partilha o seu quotidiano?

Quanto às declarações do menor, é certo que a Relação não beneficia do princípio da oralidade e da imediação, contudo, no que tange à avaliação das declarações do menor para memória futura, também o Tribunal a quo não beneficiou desses princípios.

Por outro lado, há um claro erro notório na apreciação da prova no que tange ao facto vertido em 5.

Vejamos.

“5. Ainda nesse dia de Junho de 2016, desta vez no sótão da sua residência, o arguido, após fechar a porta dessa divisão, exibiu ao ofendido filmes com imagens/cenas de actos sexuais/relações sexuais explícitos (coito vaginal) praticados por homens com mulheres e crianças com crianças, sendo estas de idade aparente de 10 anos e com menos idade.”

Não é possível afirmar-se a idade aparente de uma criança num filme/imagem pornográfica sem a devida perícia por parte da PJ que tem de analisar a imagem e, através dos traços morfológicos e anatómicos, mormente (in)existência de pelos púbicos, desenvolvimento dos seis etc. é que conseguirá concluir-se pela idade aparente da criança filmada/fotografada.

Ora, não existe qualquer filme ou imagem de pornografia apreendida nos autos, e nada foi visto no telemóvel do arguido conforme se retira da perícia efectuada e que o Tribunal a quo valorou, pelo que, não é possível afirmar-se, com a segurança que a lei penal exige, que o ofendido visionou material pornográfico envolvendo crianças com a idade aparente de 10 anos, ou sequer com crianças.

Nem é credível que uma criança de 10 anos ao tempo, ademais com défice cognitivo e défice de atenção, conseguisse identificar a idade de uma outra criança num filme ou imagem pornográfica.

Este tipo de análise só se consegue através de uma perícia que obriga à visualização do filme/imagem e posterior análise de marcadores biológicos específicos que se mostram subtraídos ao conhecimento do ofendido e subtraídos ao próprio tribunal que nenhum filme/imagem visionou.

Por outro lado, e salvo o devido respeito, o Tribunal a quo erra grosseiramente quando afirma que:
“A inexistência de ficheiros relacionados com pornografia não significa, porém, que não possam ter sido visualizados vídeos de cariz pornográfico nesse “...”, atenta a possibilidade de serem transmitidos em “streaming” (tecnologia de transmissão de conteúdos multimédia através da internet e sem necessidade de fazer download e subsequente armazenamento no equipamento).”

Uma vez que, mesmo o streaming deixa uma pegada digital.

Não é preciso fazer-se download, nem subsequente armazenamento no respectivo equipamento para se detectar a “visita” a um site pornográfico ou mesmo a um site de outra natureza.

O streaming bem como qualquer simples consulta que seja deixa um rasto informático que, tivesse ocorrido no telemóvel do arguido, a perícia tê-la-ia detectado, quer no histórico do aparelho e, mesmo que esse histórico tivesse sido apagado, tal apagamento, por sua vez, também deixaria rasto, pelo que há um erro notório na apreciação da prova quando o Tribunal a quo dá por provado o facto vertido em 5 com base na assumpção de que a visualização de conteúdo pornográfico não deixa rasto digital no respectivo equipamento e quando afirma que o conteúdo visionado pelo menor continha imagens de actos sexuais com/entre crianças com idade aparente de 10 anos pois tal só pode ser aferido com a visualização do respectivo conteúdo submetido a perícia especifica para determinar a idade das crianças.

Por outro lado, tratando-se de material pornográfico infantil – o facto vertido em 5 diz que à vítima foi exibida material contendo actos sexuais explícitos entre crianças com idade inferior a 10 anos – só se acede a tal material pornográfico na dark web, que carece de um browser específico, uma vez que a pornografia infantil é vista como crime na maior parte do mundo, não podendo tal material circular na dita internet ou clearnet normal.

Portanto, não é só a impossibilidade da vítima ter visionado tal material pornográfico no Youtube, como afirmou, como o material pornográfico infantil nem na internet circula, tendo o respectivo utilizador que saber aceder à darkweb através de browser específico.

Por outro lado, afigura-se-nos que, em relação ao crime de pornografia infantil, existe ainda o vício plasmado no artº 410º nº 2 al. a) do CPP, ou seja, há uma insuficiência da matéria de facto para a respectiva condenação.

Vejamos porquê.

O arguido foi condenado, entre outros, pelo crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artºs 176º nº 1 al. c) e 177 nº 7 do Código Penal.
O artº 176º nº 1 do Código Penal, na versão aplicável aos autos, dada pelo DL nº 103/2015 de 24-08, diz o seguinte:

“1 - Quem:
a) Utilizar menor em espectáculo pornográfico ou o aliciar para esse fim;
b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim;
c) Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior;
d) Adquirir ou detiver materiais previstos na alínea b) com o propósito de os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos.”
- sublinhado e negrito nossos

E o artº 177º nº 7 do Código Penal, na versão aplicável aos autos, dada pelo DL nº 103/2015 de 24-08, diz o seguinte:

“7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.”

Analisemos de perto o teor da al. c) do nº 1 do artº 176º do Código Penal, que é o crime imputado ao arguido:

c) Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior;

Sendo que, a alínea anterior, a al. b), diz o seguinte:
b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim;

Ora, não podendo o Tribunal a quo ter dado como provado que o material pornográfico alegadamente exibido ao ofendido por parte do arguido continha actos sexuais com/entre crianças com idade aparente inferior a 10 anos – porque, como vimos, tal só se prova com o visionamento da respectiva imagem aliada à perícia específica para determinar a idade das “crianças” filmadas – tal parte do facto vertido em 5 tem de cair, o que significa que, a parte do facto que, eventualmente, se poderia manter, o visionamento por parte da vítima de material pornográfico de adultos não configura o crime imputado ao arguido, nem qualquer outro.

O artº 176º nº 1 do Código Penal não pune quem exibe perante um menor “simples” material pornográfico, entenda-se, material revelador de actos sexuais entre adultos e sem qualquer envolvimento de crianças.

Pois, no crime em referência não está em causa a proliferação da pornografia tout court, isto é, filmes com cenas explícitas de sexo entre adultos que consentem – pese embora o visionamento de pornografia adulta terá os seus efeitos a médio e longo prazo em termos sociológicos e psicológicos – mas a proliferação de pornografia infantil, ou seja, filmes com cenas explícitas ou simuladas de sexo entre crianças ou entre adultos e crianças.

Ora, não é isto que resulta do facto vertido em 5 uma vez que, não podendo o tribunal ter considerado provado, apenas com base nas declarações do menor, que o arguido exibiu no seu telemóvel filmes/imagens pornográficas de crianças com crianças, ademais, com a idade aparente de 10 anos, a simples exibição à vítima de material pornográfico de adultos, por eticamente censurável que seja, não leva à prática de crime.

Pelo que, claramente, em relação a este crime o arguido tem de ser absolvido.

E, em face das inúmeras discrepâncias no relato do menor, em face, ainda, da inválida perícia realizada pela perita, bem como as discrepâncias entre o que a perita refere e as técnicas de saúde KK e LL, que acompanham clinicamente o menor há anos, bem como na impossibilidade de se realizar nova perícia, conforme ordenado por esta Relação, não sendo a sua falta colmatável pelas declarações de uma perita que, logo de início, elaborou uma perícia irregular e incompleta, afigura-se-nos que surge uma dúvida insanável que não permite, com a segurança que é exigida pela lei penal, concluir-se pela participação do arguido em nenhum dos crimes que lhe são imputados.

Aliás, se o menor admitiu à perita ter visionado material pornográfico, cuja exposição atribuiu à própria mãe, como se sabe se as descrições que o menor terá feito à perita não serão fruto daquele mesmo material que supostamente visionou?

Uma criança exposta a pornografia irá ter um ponto de referência para descrever actos sexuais, sem que isso implique que a mesma tivesse sido alvo de abuso sexual.

É certo que o Tribunal a quo não se deparou com dúvida alguma, contudo, quando, em face daquilo que resulta do acórdão recorrido, se constata que uma dúvida deveria ter nascido na mente do julgador, estamos novamente no campo do erro notório na apreciação da prova, que traduz um vício de conhecimento oficioso e que, no caso em concreto, não é susceptível de reparação, motivo pelo qual, por força do princípio in dúbio pro reo deve o arguido ser absolvido de todos os crimes que lhe foram imputados. 

Consequentemente, fica prejudicada a análise das restantes questões submetidas à nossa apreciação.

Decisão:

Em face do acima exposto decidem os Juízes Desembargadores da Secção Penal em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, absolvem AA da prática de 2 crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº1, 26º, 1ª proposição, e 171º, nºs 1 e 2, do Código Penal e de  1 crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº1, 26º, 1ª proposição, 176º, nº1, alínea c) e 177º, nº 7, do Código Penal.

Sem custas.
Guimarães, 02 de Julho de 2024.

Florbela Sebastião e Silva (Relatora por vencimento)
Ana Teixeira (Presidente da Secção com voto de qualidade e de desempate)[9]
António Teixeira (Relator originário, vota vencido)
Isabel Cristina Gaio Castro (2ª Adjunta, vota vencido)

Declaração de voto:

Salvo o devido respeito pela posição que fez vencimento, afigura-se-me que o tribunal colectivo apreciou de forma assertiva, correcta, e fundamentada, a abundante prova produzida em audiência de discussão e julgamento, designadamente a referente aos factos atinentes aos dois crimes de abuso sexual de crianças e ao crime de pornografia de menores imputados ao arguido, não havendo dúvidas, em face de tal prova, devidamente apreciada e concatenada em consonância com as regras da experiência comum e da normalidade das coisas, que o mesmo os perpetrou, nos termos dados como assentes.
Outrossim se afigurando correcto e devidamente fundamentado o enquadramento jurídico levado a cabo pelo tribunal a quo no que tange à verificação dos elementos objectivos e subjectivos dos aludidos ilícitos penais, como justas e ponderadas se acham as penas (parcelares e única) cominadas ao arguido.
Nesse circunstancialismo, e porque, na perspectiva do signatário, todas as questões suscitadas pelo arguido na sua peça recursória estariam votadas ao insucesso, negaria provimento ao recurso e confirmaria, in totum, o douto acórdão recorrido.
- António Teixeira
*
Declaração de voto:

Subscrevo na íntegra a declaração de voto do Exmº Desembargador Dr. António Teixeira.
- Isabel Cristina Gaio Castro


[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[2] Embora o arguido tenha indicado no seu recurso a violação do artº 379º nº 1 als. a), b) e c) do CPP, da sua motivação e conclusões o que se retira é que o arguido apenas suscita a falta de fundamentação, não estando em causa uma condenação por factos não descritos na acusação/pronúncia (al. b), nem uma omissão de pronúncia (al. c).
[3] In Código de Processo Penal Anotado, Vol. 2, Editora Rei dos Livros, p. 514 e 515.
[4] Ac. Relação do Porto de 24-04-2013, procº nº 1800/10.9TAVLG.P1, in www.dgsi.pt.
[5] Ac. Relação de Évora de 20-06-2006, procº nº 717/06.1, in www.dgsi.pt.
[6] Procº nº 502/08.0GEALR.S1 in “Diário da República Electrónico”.
[7] Acórdão do STJ de 27-04-2017, procº nº 452/15.4JAPDL.L1.S1, in “Diário da República Electrónico”.
[8] Embora se deva esclarecer que a segunda perícia até chegou a ser realizada, mas como a mesma foi declarada irregular – por força do despacho de 29-06-2021 com a refª ...13, junto a fls. 547 – em virtude de não ter estado presente o consultor técnico requerido pelo arguido, a recusa da vítima assentou na segunda tentativa de realizar tal perícia.
[9] Cfr. Acórdão do STJ de 23-11-2023 (procº nº 2257/21.4JABRG.G1.S1) consultável em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/65e75bf7b092e47280258a7100346a2a?OpenDocument
E ainda Paulo Pinto de Albuquerque em anotação ao artº 423º do CPP (Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, p. 1167):
“Assim, o presidente da secção desempenha os poderes do juiz presidente do tribunal colectivo de primeira instância (ver anotação ao artigo 14º), ressalvadas as especialidades previstas nos artigos 421º e seguintes. Quando o recurso é julgado em audiência, o presidente intervém também na deliberação e na subsequente votação e assina o acórdão. O voto do presidente é um voto de qualidade, que determina o vencimento da decisão em caso de empate.”