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TRANSMISSÃO DE ARRENDAMENTO
INCAPACIDADE DE 60%
ATESTADO MÉDICO DE INCAPACIDADE MULTIUSO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
JUÍZO PERICIAL
Sumário
I. Um «Atestado Médico de Incapacidade Multiuso» não pode ser integralmente considerado (isto é, em todo o seu conteúdo/teor), para efeitos probatórios, um documento autêntico, já que quanto à determinação da percentagem de incapacidade da pessoa avaliada e à data de começo da mesma consubstancia um juízo pericial, sujeito à livre apreciação do julgador (conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2024, Diário da República n.º 121/2024, Série I, 25 de Junho de 2024).
II. A ciência médica é um campo privilegiado de aplicação de regras de experiência, sobre as quais se constroem os protocolos clínicos, de aplicação obrigatória pelos profissionais de saúde, precisamente porque assentam: na probabilidade estatística de um determinado conjunto de sintomas registados ser produzido por uma concreta doença (correcção dos diagnósticos); probabilidade estatística da doença diagnosticada ter uma previsível evolução (correcção dos prognósticos); e na probabilidade estatística da doença diagnosticada ser minorada ou curada pela administração dos fármacos selecionados (êxito das terapêuticas que lhe correspondam).
III. Se um caso concreto (doente) desafia e/ou contraria um provável e expectável prognóstico, terão de ser fornecidos factos que o comprovem; ou, pelo menos, factos que antecipem como provável essa possibilidade. De outro modo, dever-se-á ter como mais provável que esse concreto doente confirmará, na evolução da sua doença, a regra sedimentada da experiência médica (vertida num, ou em vários protocolos de seguimento).
Texto Integral
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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I - RELATÓRIO
1.1.Decisão impugnada 1.1.1. AA e marido, BB, residentes na Rua ..., freguesia ..., ..., em Guimarães, e CC, residente na mesma morada, propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra DD, residente na Rua ..., freguesia ..., ..., em Guimarães, pedindo que a Ré fosse condenada a:
· reconhecê-los como donos e legítimos possuidores de um prédio urbano (que identificaram);
· restituir-lhes o mesmo, completamente devoluto de pessoas e coisas;
· abster-se da prática de quaisquer actos que atentassem contra o seu direito de propriedade sobre ele;
· pagar-lhes a quantia mensal de € 200,00, pela sua ocupação ilegítima, desde ../../2020 até efectiva entrega do mesmo.
Alegaram para o efeito, em síntese, terem a 1.ª Autora (AA) e 2.º Autor (BB) adquirido por sucessão hereditária a propriedade sobre o referido prédio urbano, que depois doaram ao 3.º Autor (CC), reservando porém, para si o respectivo usufruto, tudo conforme devidamente registado; e terem ainda todos eles adquirido a respectiva propriedade por usucapião (alegando os diversos factos demonstrativos desta forma de aquisição).
Mais alegaram que a Ré (DD) ocupa o dito prédio desde ../../2020, sem qualquer título e de forma não consentida por eles, causando-lhe um prejuízo mensal de € 200,00, correspondente à renda que poderiam obter com ele. 1.1.2. Regularmente citada, a Ré (DD) contestou, pedindo que a acção fosse julgada improcedente, por não provada, sendo ela própria absolvida de todos os pedidos.
Alegou para o efeito, em síntese, que sendo sua mãe, EE, anterior arrendatária do prédio em causa, tendo a mesma falecido em ../../2020, vivendo ela própria com ela desde que nasceu em economia comum e possuindo uma incapacidade superior a 60% (estando inclusivamente reformada por invalidez), beneficiou da transmissão do dito arrendamento, que desse modo não caducou com aquele óbito.
Mais alegou ser o valor actual da renda mensal de € 51,00; e ser o valor locativo actual muito inferior a € 200,00 mensais, por se tratar de uma casa velha e com deficientes condições de habitabilidade.
A Ré (FF, para prova da incapacidade alegada, um documento, epigrafado «Informação Clínica»; e requereu que fosse efectuada uma perícia médico-legal à sua pessoa, juntando desde logo os respectivos quesitos. 1.1.3. Os Autores (AA e marido, BB, e CC) responderam à excepção peremptória de transmissão do arrendamento deduzida pela Ré (DD).
Impugnaram para o efeito viver a mesma em economia comum com a anterior arrendatária, sua mãe; e/ou possuir uma qualquer incapacidade.
Defenderam ainda que a dita incapacidade só se proferia provar por meio de Atestado Médico de Incapacidade Multiusos (nos termos do Decreto –Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro), pelo que a prova pericial requerida pela Ré (DD) seria inócua para os efeitos pretendidos.
1.1.4. Em 10 de Janeiro de 2022 foi proferido despacho, indeferindo a realização da perícia médico-legal impetrada pela Ré (DD) e determinando-lhe a junção de um atestado médico de incapacidade multiusos, lendo-se nomeadamente no mesmo: «(…) Exercidos os contraditórios, cabe já apreciar o seguinte quanto à questão da prova pericial: Como dão nota as AA, para efeitos de apreciação de incapacidade do beneficiário da transmissão de um arrendamento, releva o certificado de incapacidade multiusos, o qual é emitido por um colégio de peritos (junta médica) e observa formalidades e requisitos próprios. A perícia pretendida pela Ré e visando confirmar o seu alegado grau de incapacidade não irá nem poderá substituir esse certificado. Assim sendo, não se admite a mesma, por inócua aos autos. Notifique.
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Notifique-se a Ré para juntar o certificado de incapacidade multiusos e/ou os documentos que disponha sobre quanto ao mesmo para melhor instrução dos autos e em face do supra decidido quanto à pretendida perícia. (…)»
1.1.5. Em 14 de Janeiro de 2022 a Ré (DD), por meio de requerimento, esclareceu ter solicitado «há largos meses a marcação de uma Junta médica de avaliação da incapacidade para fixação desta», sem a lograr; e requereu, por necessária à prova da sua incapacidade, que fosse «mantida a prova pericial requerida através de perícia médico-legal à Ré para suprir a eventual inexistência atempada do Atestado de incapacidade multiuso», bem como fosse «admitido nesta contingência o aditamento ao rol de testemunhas o Sr. Médico subscritor da informação clinica constante do documento n.º 5 junto com a contestação e que é o seguinte: Dr. GG, Assistente Hospitalar de Psiquiatria». 1.1.6. Em 07 de Fevereiro de 2022 a Ré (DD) juntou ao processo um «Atestado Médico de Incapacidade Multiusos», emitido na sequência de junta médica a que foi submetida em 31 de Janeiro de 2022, certificando uma incapacidade própria de 60%; e, face «à junção do atestado médico de incapacidade multiuso», que então fez, considerou que «vieram a tornar-se desnecessárias as diligências de prova requeridas na parte final do referido requerimento de 14 de Janeiro de 2022, pelo que se desiste delas». 1.1.7. Em 25 de Fevereiro de 2022, em sede de audiência prévia, foi proferido despacho: saneador (certificando tabelarmente a validade e a regularidade da instância); fixando o valor da causa em € 15.488,90; e conhecendo do mérito da causa, à excepção do pedido indemnizatório pela alegada ocupação ilícita do imóvel em causa (para cuja decisão os autos deveriam prosseguir), lendo-se nomeadamente no mesmo: «(…) E, com relevo para a decisão da causa e em face dos mesmos meios de prova supra referidos, ficou por demonstrar que: A. À data de ../../2020, a Ré detinha uma incapacidade superior a 60%. E, com relevo para a decisão da causa e em face dos mesmos meios de prova supra referidos, ainda se encontra controvertido que: i. A Ré vivia e viveu, desde que nasceu, com a mãe na realidade id. em 1., nesse local organizando conjuntamente a sua vida familiar, pessoal, era e é aí que comia e come, dormia e dorme todos os dias, onde passa o seu tempo, onde recebe correio, onde recebe amigos e familiares.
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Ainda sobre os documentos oferecidos como meio de prova, há a destacar o seguinte: i) o certificado de incapacidade multiusos não atesta que à data do óbito da arrendatária (nov 2020) a Ré padecesse de incapacidade em grau de 60%; ii) a informação clínica alusiva à Ré refere essa incapacidade de 60%, mas não a situa temporalmente, isto é, desde quando é que a Ré está incapaz por razões de doença do foro psíquico, desde quando é que essa incapacidade atingiu os aí indicados 60%; iii) a declaração de pensão por invalidez da Ré também não refere desde quando se encontra inválida e qual o grau dessa invalidez. De notar que a não prova da incapacidade de 60% à data de ../../2020 da Ré não pode ser suprida por prova testemunhal, atenta a especificidade de tal matéria de facto. (…) In casu, ainda que se viesse a provar que a Ré vivia com a falecida arrendatária há mais de um ano antes da morte desta (facto alegado por esta mas impugnado pelos AA), sempre se dirá que não há prova que a ../../2020 a Ré padecesse de deficiência com grau comprovado de incapacidade de 60% (ou mais). (…) Ou seja, não estando demonstrado o preenchimento de qualquer das situações previstas nas alíneas e) e f) do n.º 1 do art.º 57.º do NRAU, não lhe assiste o direito à transmissão da posição de arrendatário. Cumpre, em consequência, concluir pela caducidade do contrato de arrendamento por morte do arrendatário. Por ocupar sem título o imóvel, deverão proceder, desde já e sem mais delongas, os pedidos apresentados pelos AA em b) e em c). Resta aferir do pedido apresentado em d) e respeitante à indemnização pelo alegado dano da privação. Sobre este, porém, o tribunal não reúne ao momento condições para o conhecer de imediato – implica a produção de prova quanto à ocorrência de danos e o seu quantum -, pelo que irão os autos prosseguir quanto a esta matéria. Aqui chegados, resta concluir.
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III. Dispositivo:
Pelo exposto e desde já, julga-se (parcialmente) procedente a presente causa e, por via disso:
a) Reconhece-se que o 2.º Autor, CC, é dono, e os 1.ºs AA, AA e BB, são usufrutuários, do imóvel id. em 1.º da p.i.; b) Condena-se a Ré a restituir aos AA o imóvel id. em 1.º da p.i, livre de pessoas e bens; c) Condena-se a Ré a abster-se da prática de quaisquer atos que atentem contra os direitos reconhecidos em a); e d) Relega-se para após produção de prova o conhecimento do pedido formulado em d) da p.i. pelos AA. Mais condena-se a Ré no pagamento das custas que sejam devidas, em função do seu já verificado decaimento, que se fixa em 80% de toda a causa (art.º 527.º do CPC). Notifique, registe e d.n.. (…)»
1.1.8. Tendo a Ré (DD) interposto recurso desta decisão, e os Autores (AA e marido, BB, e CC) pugnado pela sua manutenção, em 15 de Junho de 2022 foi proferido acórdão por este Tribunal da Relação de Guimarães (relatora Juíza Desembargadora HH), julgando procedente a apelação e revogando a decisão recorrida, lendo-se nomeadamente no mesmo: «(…) Já relativamente à incapacidade superior a 60% por referência à data de novembro 2020 (data do óbito), considerou-se na decisão sob recurso que tal não se apurou até ali, e que não há mais maneira de se apurar em fase posterior dos autos, já que o Atestado Multiuso que a R. juntou aos autos seria o único meio de prova sobre tal admissível, e do mesmo não resulta aquele facto com aquela dimensão. Esta apreciação requer uma prévia abordagem do direito aplicável e uma chamada de atenção para o facto de ter transitado o despacho que considerou inócua a realização de prova pericial – atento o disposto no artº. 644º, nº. 2, d), e 638º, nº. 1, C.P.C., e estando em causa o indeferimento de um meio de prova, o recurso de apelação seria autónomo, a interpor em 15 dias; na falta da sua apresentação, essa decisão tornou-se definitiva. (…) Por isso, fica também assente definitivamente que “… para efeitos de apreciação de incapacidade do beneficiário daemitido por um colégio de peritos (junta médica) e observa formalidades e requisitos próprios. A perícia pretendida pela Ré e visando confirmar o seu alegado grau de incapacidade não irá nem poderá substituir esse certificado. (…) Voltando ao início, só importará averiguar da veracidade do alegado pela R,. quanto ao tempo em que vive no prédio se estiver provado ou ainda poder ser provado que a R. tem deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%, já que os requisitos são cumulativos e havendo falência comprovada de um não importa se o outro se verifica. Ora, a “sorte” do recurso resolve-se por aqui: para o efeito a R. juntou o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso onde se refere que a sua incapacidade é de 60% e que se reporta a janeiro de 2021. A mãe faleceu, repete-se em ../../2020. Tendo o Tribunal limitado a demonstração da incapacidade a esse meio de prova –posição contrariada pela jurisprudência, podendo citar-se o Ac. do STJ de 16/2/2012 (relatora Ana Luísa Geraldes, www.dgsi.pt)-, e face aos seus termos, lógica seria a conclusão de que não provou que à data do óbito reunia as condições para a transmissão do arrendamento e por isso tem de se determinar a sua caducidade nos termos do artº. 1051º, d), do C.C.. Sendo a conclusão lógica, resta saber se é inteiramente correta. O Tribunal recorrido fundamentou assim a sua convicção: “o certificado de incapacidade multiusos não atesta que à data do óbito da arrendatária (nov 2020) a Ré padecesse de incapacidade em grau de 60%; ii) a informação clínica alusiva à Ré refere essa incapacidade de 60%, mas não a situa temporalmente, isto é, desde quando é que a Ré está incapaz por razões de doença do foro psíquico, desde quando é que essa incapacidade atingiu os aí indicados 60%; iii) a declaração de pensão por invalidez da Ré também não refere desde quando se encontra inválida e qual o grau dessa invalidez. De notar que a não prova da incapacidade de 60% à data de ../../2020 da Ré não pode ser suprida por prova testemunhal, atenta a especificidade de tal matéria de facto.” Sucede que o único facto que está duvidoso, do ponto de vista do Tribunal, é a data do começo da incapacidade e não o seu grau, data essa mencionada em “observações” do atestado multiuso junto aos autos. Quanto a esta o certificado multiuso refere janeiro 2021; a informação clínica, muito embora não situe a data em que os 60% se verificam (desde quanto) refere esse grau e tem a data (a informação) de 25/3/2021. A prova pericial está sujeita à livre apreciação do Tribunal –artº. 389º do C.C.. A R. apresentou uma testemunha. Nos termos do artº. 598º, nº. 2, do C.P.C., ainda pode aditar prova testemunhal até 20 dias antes da data em que se realize audiência final, não obstante ter já desistido de ouvir o médico subscritor da informação clínica. E nos termos do artº. 423º, nº. 2, do C.P.C., ainda pode apresentar prova documental até 20 dias antes da data em que se realize audiência final (sem prejuízo do nº. 3). Muito embora se esteja perante uma matéria que exige juízos técnicos e científicos, não podemos dizer que seja inadmissível qualquer outro tipo de prova, ainda mais quando está em causa “apenas” a data do começo da incapacidade e não o grau. Se para a prova do grau de incapacidade releva o certificado multiuso como decidiu o Tribunal no despacho que já mencionamos, esse mesmo despacho não excluiu que se possam obter esclarecimentos sobre o mesmo, nem que relativamente à data do começo da incapacidade mencionada em observações possa ser conjugado com outros elementos de prova. Decorre por isso que (toda) a matéria relevante para proferir decisão não se mostra assente por acordo das partes, por documento com força probatória plena ou por confissão. E relativamente à que ficou por demonstrar não se mostra afastada por impossibilidade legal de prova. Assim sendo, não estando este Tribunal munido de todos os elementos, que ainda podem ser obtidos (como não estava ainda o Tribunal recorrido) com vista a uma decisão segura sobre a matéria de facto em causa (facto que está controvertido e é relevante), devem os autos prosseguir em conformidade, em consequência da revogação do saneador sentença. Ainda se mostra controvertida matéria relevante e indispensável para a decisão da causa, não estando a R. legalmente impossibilitada de a demonstrar em juízo. E prosseguindo, deve ser apreciado ainda o facto que se manteve controvertido e que respeita ao tempo de vivência da R. com a mãe no prédio objeto do arrendamento, com elaboração dos temas de prova nos termos do artº. 596º, nº. 1, C.P.C.. Conclui-se assim pela procedência do presente recurso.
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IV DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, dar provimento à apelação e revogando a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por despacho que determine o prosseguimento dos autos visando o apuramento e julgamento de toda a matéria relevante e indispensável à decisão da causa, nomeadamente os factos mencionados. Custas a cargo dos recorridos.
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(…)» 1.1.9. Devolvidos os autos à 1.ª instância, foi proferido despacho: enunciando os temas da prova («1. Tempo de vivência da Ré com a mãe, no prédio objeto do arrendamento; 2. Data do começo da incapacidade de 60% atribuída à Ré»); apreciando os requerimentos probatórios das partes (nomeadamente, «testemunhal - por tempestivo e legal, admite-se o rol oferecido na contestação (1 - II)»); e designando dia para realização da audiência final. 1.1.10. Em 20 de Setembro de 2022 a Ré (DD) juntou uma «Declaração Médica» subscrita por GG, certificando o início a sua incapacidade pelo menos em 2008; e requereu a respectiva inquirição como testemunha, por iniciativa do Tribunal, bem como de JJ, médico presidente da Junta Médica a que fora antes submetida.
Os Autores (AA e marido, BB, e CC) impugnaram o documento junto; e opuseram-se à inquirição das testemunhas identificadas. 1.1.11. Em 07 de Outubro de 2022 foi proferido despacho, indeferindo a junção aos autos da «Declaração Médica» e a inquirição de GG, e deferindo a inquirição de JJ, lendo-se nomeadamente no mesmo: «(…) Junção de prova documental – atento o disposto no art.º 423.º n.ºs 1 a 3 do CPC, mostra-se extemporânea e, por via disso, indefere-se a sua junção; Inquirição do médico Dr. GG – por já ter desistido de tal meio de prova, por não ser admissível o documento que o mesmo volta a subscrever, indefere-se a sua inquirição; Aditamento ao rol - Inquirição do médico JJ – admite-se o mesmo (da sua relevância - questão suscitada pelos AA refª ...93 - face aos conhecimentos concretos do facto atender-se-á em sede de julgamento), admitindo-se a sua notificação para o efeito. (…)» 1.1.12. A Ré (DD) interpôs recurso desta decisão; e os Autores (AA e marido, BB, e CC) pugnaram pela sua manutenção. 1.1.13. Realizada a audiência final, foi proferida sentença, julgando a acção totalmente procedente, lendo-se nomeadamente na mesma: «(…) In casu, ainda que se tenha provado que a Ré vivia com a falecida arrendatária há mais de um ano antes da morte desta, sempre se dirá que não há prova que a ../../2020 a Ré padecesse de deficiência com grau comprovado de incapacidade de 60% (ou mais). In casu, ainda que se provasse que a Ré vivia com a falecida arrendatária há mais de cinco anos antes da morte desta, sempre se dirá que não há prova – porque nem alegado sequer - que a20.11.2020 a Ré tivesse 65 anos (tinha 61 – cfr. certidão do seu assento de nascimento) e com o seu agregado tivessem um RABC inferior a 5RMNA. Ou seja, não estando demonstrado o preenchimento de qualquer das situações previstas nas alíneas e) e f) do n.º 1 do art.º 57.º do NRAU, não lhe assiste o direito à transmissão da posição de arrendatário. Cumpre, em consequência, concluir pela caducidade do contrato de arrendamento por morte do arrendatário. Por ocupar sem título o imóvel, deverão proceder, desde já e sem mais delongas, os pedidos apresentados pelos AA em b) e em c). [Relembra-se que, em tempo, os AA vieram desistir do pedido apresentado em d) e respeitante à indemnização pelo alegado dano da privação, o que mereceu a não oposição da Ré e foi homologado por despacho já transitado em julgado]. Aqui chegados, resta concluir.
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III. Decisão:
Pelo exposto, julga-se procedente a presente causa e, por via disso: a) Reconhece-se que o 2.º Autor, CC, é dono, e os 1.ºs AA, AA e BB, são usufrutuários, do imóvel id. em 1.º da p.i.; b) Condena-se a Ré a restituir aos AA o imóvel id. em 1.º da p.i, livre de pessoas e bens; c) Condena-se a Ré a abster-se da prática de quaisquer atos que atentem contra os direitos reconhecidos em a); e Mais condena-se a Ré no pagamento das custas que sejam devidas, em função do seu já verificado decaimento, que se fixa em 100% (dos restantes 80%) de toda a causa (art.º 527.º do CPC). (…)» 1.1.14. Tendo a Ré (DD) interposto recurso desta decisão final de mérito, e os Autores (AA e marido, BB, e CC) pugnado pela sua manutenção, em 23 de Março de 2023 foi proferido despacho pelo respectiva Relatora neste Tribunal da Relação de Guimarães (Juíza Desembargadora HH), declarando suspensa a instância recursiva até ser proferido acórdão no prévio recurso interposto do despacho intercalar (de indeferimento de meios de prova), por constituir sua causa prejudicial.
1.1.15. Em 27 de Abril de 2023 foi proferido acórdão por este Tribunal da Relação de Guimarães (relatora Juíza Desembargadora KK), julgando procedente a apelação relativa ao indeferimento de meios de prova e revogando a decisão recorrida, lendo-se nomeadamente no mesmo: «(…) Ora, no caso dos autos, temos que, depois de revogado o saneador-sentença inicialmente proferido e determinada a sua substituição por despacho que determine o prosseguimento dos autos visando o apuramento e julgamento de toda a matéria relevante e indispensável à decisão da causa, volvidos os autos à 1ª instância, foi proferido despacho a 15.09.2022 a fixar os temas da prova, a admitir prova e a designar julgamento para o dia 25.10.2022. Ou seja, não foi realizada audiência prévia. Nessa sequência veio a ré/apelante a 20.09.2022, requerer a inquirição de duas testemunhas, ao abrigo do disposto pelos art.ºs 498.º, n.º 2 e 526.º do CPC, peticionado que seja oficiosamente ordenada a notificação das mesmas para depor em audiência de julgamento, esclarecendo que só não usa da faculdade estabelecida no art.º 598.º, n.º 2 do CPC, pois teria de apresentar em juízo as testemunhas ora indicadas, o que tornava improvável a sua comparência sem notificação do Tribunal, como decorre das regras da experiência comum e dos critérios de normalidade, já que a ré é pessoa que não tem conhecimentos ou influências capazes de conseguir por si só a presença daqueles Ilustres Clínicos. Mais requereu a junção aos autos de um documento, subscrito por uma das testemunhas cuja inquirição requereu. O Tribunal a quo, entendeu que era inadmissível a junção do documento, por não se enquadrar em nenhuma das hipóteses previstas pelo art. 423º do CPC, bem como entendeu ser inadmissível a inquirição da testemunha subscritora do documento em causa, por dela ter já a parte prescindido. Não tem razão em nenhuma das duas decisões. Por um lado, e quanto à inquirição da testemunha em causa, por ser admissível a alteração ao rol, nos termos acima explanados (não houve audiência prévia e a ré/apelante, dentro de 10 dias após a notificação do despacho que fixou o objecto do litigio e os temas da prova, veio requerer tal inquirição) e por nada resultar da lei que o facto de a parte ter prescindido da inquirição de uma testemunha (antes de fixados o objecto do litígio e os temas da prova) a impeça, em altura posterior (já depois de tal fixação) de vir requerer a sua inquirição, não necessitando de socorrer-se do disposto pelos arts. 498.º, n.º 2 e 526.º do CPC para o efeito. Por outro lado, e quanto à junção do documento, por manifestamente se enquadrar a sua junção no preceituado pelo art. 423º nº 2 do CPC (sem condenação em multa, já que devidamente justificada a sua junção tardia). Nesta medida, sendo legalmente admissível a alteração do requerimento probatório mesmo havendo dispensa de audiência prévia, bem como a junção de documentos até 20 dias da data em que se realize a audiência final (provando a parte que os não pode oferecer com o articulado), tal significa na situação dos autos que a ré/apelante estava legitimada a fazê-lo. Logo, o despacho apelado não pode manter-se. Procede, pois, a apelação.
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(…) V. Decisão. Perante o exposto, acordam os Juízes da 3ª secção cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, e, em consequência, revogar o despacho recorrido, admitindo a junção aos autos do documento em causa, bem como a inquirição da testemunha nos termos requeridos pela ré/apelante. Custas da apelação a cargo dos apelados. (…)» 1.1.16. Em 07 de Julho de 2023 foi proferido despacho pelo respectiva Relatora neste Tribunal da Relação de Guimarães (Juíza Desembargadora HH), declarando extinta a instância recursiva, por inutilidade superveniente, relativa à sindicância da sentença proferida nos autos. 1.1.17. Devolvidos os autos à 1.ª instância, reaberta e concluída a audiência final, foi proferida sentença, julgando a acção totalmente procedente, lendo-se nomeadamente na mesma: «(…) III. Decisão: Pelo exposto, julga-se procedente a presente causa e, por via disso: a) Reconhece-se que o 2.º Autor, CC, é dono, e os 1.ºs AA, AA e BB, são usufrutuários, do imóvel id. em 1.º da p.i.; b) Condena-se a Ré a restituir aos AA o imóvel id. em 1.º da p.i, livre de pessoas e bens; c) Condena-se a Ré a abster-se da prática de quaisquer atos que atentem contra os direitos reconhecidos em a); e Mais condena-se a Ré no pagamento das custas que sejam devidas, em função do seu já verificado decaimento, que se fixa em 100% (dos restantes 80%) de toda a causa (art.º 527.º do CPC). Notifique, registe e d.n.. (…)»
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1.2. Recurso 1.2.1. Fundamentos
Inconformada com esta decisão, a Ré (DD) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que fosse provido e se revogasse a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por decisão a julgar procedente a defesa por ela invocada e absolvendo-a dos pedidos formulados.
Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):
I. Em Março de 2022 em sede de saneador/sentença foi proferida decisão de mérito parcial julgando parcialmente procedente a causa e decidindo, entre o mais, condenar a Ré a restituir aos Autores o imóvel identificado nos autos livre de pessoas e bens.
II. A ora recorrente não se conformou com aquela douta decisão e dela interpôs recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, onde foi proferido Acórdão revogando a decisão recorrida e ordenando a sua substituição por despacho a determinar o prosseguimento dos autos para apuramento e julgamento de toda a matéria relevante e indispensável à decisão da causa, nomeadamente os factos mencionados naquele douto Acórdão.
III. Baixando o processo à 1.ª Instância foram formulados os seguintes temas de prova: “Temas da Prova: a. 1. Tempo de vivência da Ré com a mãe, no prédio objeto do arrendamento; (Posteriormente confessado pelos Autores). b. 2. Data do começo da incapacidade de 60% atribuída à Ré”.
IV. Na sequência deste despacho a Ré apresentou em 20/09/2022 requerimento nos autos com a indicação de novos elementos de prova, quer documental, nos termos do art.º 423.º do CPC, quer testemunhal, nos termos dos art.º 498.º, n.º 2 e 526.º, ambos do CPC, tendo justificado a apresentação deles apenas nesta fase e qual a matéria a que correspondia a prova apresentada.
V. Foi proferido despacho que indeferiu parcialmente os elementos de prova requeridos pela Ré/Recorrente.
VI. A Ré não se conformando com aquele douto despacho na parte em que ele não admitiu a junção aos autos do documento em causa, bem como na parte em que indeferiu a inquirição do médico Dr. GG, interpôs em 24 de Outubro de 2022 recurso intercalar, nos termos e para os efeitos do art.º 644.º nº. 2, al. d) do CPC.
VII. Foi realizada a audiência de julgamento em 28 de Outubro de 2022 e inquiridas as testemunhas até aí admitidas.
VIII. Foi proferida douta sentença notificada às partes em 9 de Novembro de 2022, com a qual a Ré não se conformou e da qual interpôs o competente recurso.
IX. Por douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 27 de Abril de 2023 foi julgado procedente o recurso intercalar interposto e em consequência revogado o despacho recorrido, admitindo a junção aos autos do documento em causa, bem como a inquirição da testemunha nos termos requeridos pela Ré apelante.
X. O recurso interposto da sentença referida VIII foi julgado extinto por inutilidade superveniente da lide face à decisão do recurso intercalar.
XI. Realizada que foi nova audiência de julgamento, em 29 de Novembro de 2023 foi proferida douta sentença onde novamente (pela 3ª. vez) se julgou procedente a causa e onde na parte decisória se escreveu: “III. Decisão: Pelo exposto, julga-se procedente a presente causa e, por via disso: a) Reconhece-se que o 2.º Autor, CC, é dono, e os 1.ºs AA, AA e BB, são usufrutuários, do imóvel id. em 1.º da p.i.; b) Condena-se a Ré a restituir aos AA o imóvel id. em 1.º da p.i, livre de pessoas e bens; c) Condena-se a Ré a abster-se da prática de quaisquer atos que atentem contra os direitos reconhecidos em a); e Mais condena-se a Ré no pagamento das custas que sejam devidas, em função do seu já verificado decaimento, que se fixa em 100% (dos restantes 80%) de toda a causa (art.º 527.º do CPC).”
XII. É desta douta decisão que vem interposta a presente apelação porque a Ré recorrente continua a entender que não se valorou devidamente o teor dos documentos juntos ao processo, nem se tiraram as deduções e ilações inerentes ao teor dos depoimentos das testemunhas inquiridas nas duas audiências, Dr. JJ e Dr. GG.
XIII. No entendimento da R/recorrente não podia o Tribunal a quodar como não provado o único facto relevante para a decisão e que era o seguinte: “À data de ../../2020, a Ré detinha patologia(s) do foro psiquiátrico que lhe determinava uma incapacidade igual ou superior a 60%.”
XIV. A recorrente respeitosamente discorda que se tenha dado como não provado que à data de ../../2020 a Ré detinha patologia(s) do foro psiquiátrico que lhe determinava uma incapacidade igual ou superior a 60%.
XV. E entende que, pelo contrário, deveria ter-se dado como provado que à data de ../../2020, a Ré detinha patologia(s) do foro psiquiátrico que lhe determinava uma incapacidade igual ou superior a 60%.
XVI. A Ré considera, assim, incorrectamente julgado este concreto ponto de facto por ter havido não valoração ou a errada valoração pelo Tribunal a quo dos meios de prova disponíveis no processo e que deveriam ter assumido relevância probatória, o que integra erro de julgamento da matéria de facto.
XVII. A decisão que no entender da recorrente deveria ter sido proferida sobre a matéria de facto impugnada era a de que à data de ../../2020, a Ré detinha patologia(s) do foro psiquiátrico que lhe determinava uma incapacidade igual ou superior a 60%.
XVIII. Os meios de prova que em concreto constam do processo e impunham decisão diferente são as várias declarações médicas nele entranhadas, o atestado médico multiusos, a declaração de reforma por invalidez, tudo conjugado e harmonizado com os depoimentos das testemunhas inquiridas.
XIX. Como meio de prova documental e para prova do único tema a Ré juntou aos autos várias declarações médicas subscritas pelo Dr. GG, Médico Assistente Hospitalar de Psiquiatria, designadamente a Declaração Médica emitida em ../../2022 e devidamente transcrita no artigo 31 destas alegações.
XX. Juntou igualmente um atestado médico de incapacidade multiuso, comprovando que por junta médica presidida pelo médico Dr. JJ e realizada em 31/01/2022, lhe foi fixada a incapacidade de 60% a título definitivo, reportada a 01/2021 e, portanto a 41 dias depois do falecimento da mãe da Ré recorrente.
XXI. A leitura e interpretação conjugada do conteúdo de toda esta documentação, aponta claramente para que à data da morte da mãe a Ré já se encontrava afectada de incapacidade daquele referido grau de 60%.
XXII. Errou, portanto, o douto tribunal na apreciação que fez do conjunto desta documentação pois ela permitiria concluir com segurança a obtenção de uma convicção jurídica, que seria a de que a Ré já se encontrava afectada de incapacidade de 60% à data de ../../2020.
XXIII. Esta convicção que se extrai daquela documentação fica reforçada e converte-se em certeza jurídica com a análise dos depoimentos das duas testemunhas inquiridas.
XXIV. A testemunha Dr. JJ, presidente da junta médica que atribuiu o atestado multiusos à Ré e lhe fixou uma incapacidade de 60% reportada a 01/2021, prestou o seu depoimento nos termos assinalados nos n.ºs 39 e 41 destas alegações e nele disse entre o mais (…) “nós vamos à data em que requereu a junta.” … “a senhora requereu em 27 Janeiro de 2021, … o atestado até é de 2020… mas como ela só requereu em 2021…” (Sublinhado nosso)
XXV. O médico psiquiatra Dr. GG, que segundo disse também é especialista em psiquiatria forense, prestou o seu depoimento nos termos também transcritos no número 47 destas alegações, onde à pergunta que lhe foi feita se, em Novembro de 2020, a Recorrente já tinha esta incapacidade e deste grau de 60% respondeu : “objectivamente sim” e deu explicação cabal para a resposta.
XXVI. A testemunha JJ explicou que a data a que se reportou a incapacidade (01/2021) pode ter sido aposta pelo facto de a Junta médica ter sido requerida em Janeiro de 2021, apesar do atestado em que a Junta se apoiou ser do ano de 2020.
XXVII. Para aferição da data de início da incapacidade em junta médica são tidos em conta dois factores:
a. Teor dos documentos que instruem o pedido;
b. Data do pedido de junta médica.
XXVIII. Nos termos do art.º 349.º do CC pode e deve o julgador tirar a ilação de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido e tudo indica pela natureza da afectação da Ré que a desvalorização dela existia nessa precisa medida em ../../2020, apesar de reportada no atestado multiusos a Janeiro de 2021.
XXIX. O princípio da livre apreciação da prova consagrado no n.º 5, do art.º 607.º do CPC, não é um poder livre e arbitrário, mas antes um poder vinculado que tem que ter em conta, além dos preceitos legais atinentes à produção da prova de acordo com as regras dos art.ºs 341.º e seguintes do CC, os critérios de normalidade e de prudência, radicados nos ensinamentos da vida.
XXX. Foi admitido pela testemunha Dr. JJ em plena audiência de julgamento que, ao fixar a data de 01/21, se orientou pela data do pedido de Junta médica pelo utente.
XXXI. O depoimento do médico Dr. GG foi peremptório na resposta que deu à pergunta que lhe foi feita no sentido de se saber se a Ré em ../../2020 já estaria afectada de incapacidade de 60%.
XXXII. Objectivamente sim, respondeu ele por duas vezes.
XXXIII. É imperioso concluir que a valoração conjugada de todos os elementos probatórios carreados nos autos demonstram claramente existir uma certeza jurídica que aquela incapacidade de 60% é pré-existente à data da morte da mãe da Ré, ou seja, ../../2020.
XXXIV. Atenta a natureza que é própria das incapacidades com base em patologias de natureza mental o espaço de 41 dias é manifestamente desprezível na qualificação e graduação delas.
XXXV. É o que resulta dos critérios de normalidade e das regras da experiência comum.
XXXVI. A Ré era já uma doente crónica de há muitos anos como também é evidenciado no depoimento do Dr. GG e nos vários documentos juntos ao processo.
XXXVII. Os concretos elementos probatórios acima indicados fazem concluir existir a certeza jurídica e dever ser dado como provado que a Ré à data de ../../2020 detinha patologia do foro psiquiátrico que lhe determinava uma incapacidade igual ou superior a 60%.
XXXVIII. Com todo o respeito por opinião contrária, que no caso concreto é muito, não pode deixar de se considerar que a apreciação e valoração da prova interessante ao único tema controvertido foi feita de forma contrária às regras dos critérios de normalidade e da experiência comum.
XXXIX. O princípio da livre apreciação da prova consagrado no n.º 5, do art.º 607.º do CPC, não é um poder livre e arbitrário, mas antes um poder vinculado que tem que ter em conta, além dos preceitos legais atinentes à produção da prova de acordo com as regras dos art.ºs 341.º e seguintes do CC, os critérios de normalidade e de prudência, radicados nos ensinamentos da vida.
XL. Deve ser alterada a decisão de facto proferida, nos poderes que cabem ao Tribunal Superior pelo art.º 662.º do CPC.
XLI. A produção de prova do(s) julgamento(s) efectuados e de cuja decisão agora se recorre permite concluir com forte dose de segurança e certeza jurídica que à data da morte da mãe, ocorrida em ../../2020, a Ré já estava afectada de incapacidade de 60%.
XLII. Por recurso à prova por presunção nos termos do artigo 349.º do CC seria de dar como provado que em ../../2020 já a Ré padecia de uma incapacidade igual ou superior a 60%, devendo alterar-se a matéria de facto neste sentido por forma a dar-se como provado o único facto dado como não provado.
XLIII. Ao dar-se como provado este facto a acção terá necessariamente que improceder no ponto útil (pedido de restituição) por a Ré se encontrar na situação prevista na alínea e) do artigo 57.º do NRAU, por se lhe ter transmitido, por morte da mãe, a posição de inquilina no contrato de
arrendamento e nessa medida beneficiar da excepção invocada em sede de contestação.
XLIV. A douta referida decisão violou por erro de interpretação e aplicação o disposto no n.º 5, do art.º 607.º do CPC, art.º 349.º do CC, e ainda, no art.º 57.º, n.º 1, al. e) do NRAU, os quais deveriam ter sido interpretados e aplicados no sentido de que o contrato de arrendamento em causa teria de transmitir-se e transmitiu-se efectivamente para a Ré, vigorando entre as partes.
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1.2.2. Contra-alegações
Os Autores (AA e marido, BB, e CC) contra-alegaram, pedindo que se negasse provimento ao recurso e se mantivesse integralmente a sentença recorrida.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR
2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC) [1].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [2], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
Mercê do exposto, e do recurso de apelação independente interposto pela Ré (DD), 02 questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal ad quem: 1.ª- Fez o Tribunal a quo uma erradainterpretação e valoração da prova produzida, nomeadamente porque . a mesma impunha que se desse como demonstrado o facto não provado enunciado na sentença recorrida sob a alínea A) («À data de ../../2020, a Ré detinha patologia(s) do foro psiquiátrico que lhe determinava uma incapacidade superior a 60%») ? 2.ª- Fez o Tribunal a quo uma erradainterpretação e aplicação do Direito, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida (nomeadamente, face ao prévio sucesso da impugnação de facto feita), considerando ter a Ré beneficiado da transmissão do arrendamento antes titulado pela sua mãe (nomeadamente por viver à data do óbito da mesma com ela em economia comum há mais de um ano e ser então portadora de uma incapacidade igual ou superior a 60%) ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1. Decisão de facto do Tribunal a quo
3.1.1. Factos Provados
Realizada a audiência de julgamento no Tribunal de 1.ª Instância, resultaram provados os seguintes factos:
1 - Existe uma realidade predial composta de casa de ..., dependência e logradouro, sito na Rua ..., freguesia ..., ..., concelho ..., descrita no Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...42/..., ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...19.
2 - O direito de propriedade sobre a realidade identificada no facto provado anterior consta inscrita a favor de CC (aqui 3.º Autor), por o ter adquirido por doação de AA (aqui 1.ª Autora) e de LL (aqui 2.º Autor), que, por sua vez, o haviam adquirido por via de sucessão hereditária, por óbito do pai da 1.ª Autora (AA).
3 - Consta inscrito a favor dos 1.ª Autora (AA) e do 2.º Autor (LL) o usufruto sobre essa mesma realidade predial.
4 - Os Autores (AA e marido, BB, e CC), por si e antepossuidores, há mais de 30 e 50 anos, ininterruptamente, e relativamente à realidade predial referida nos factos provados anteriores, pagam as respectivas contribuições e impostos e usufruem das respectivas utilidades, com o conhecimento de toda a gente, incluindo de DD (aqui Ré), sem oposição de ninguém e à vista de toda a gente, dia a dia, ano a ano, na convicção de não lesarem direitos de outrem e sem violência alguma, sempre com o ânimo de quem exerce um direito seu e exclusivo de usufruto e de propriedade.
5 - A Ré (DD) vem ocupando a realidade predial referida nos factos provados anteriores desde o mês de ../../2020.
6 - A ocupação referida no facto provado anterior priva os Autores (AA e marido, BB, e CC) de a usar e fruir e dela retirar todas as suas utilidades, designadamente, dando-a de arrendamento e com perda de obtenção do seu respectivo rendimento locativo.
7 - A Ré (DD) é filha de EE.
8 - EE faleceu no dia ../../2020.
9 - Há mais de sessenta anos atrás, verbalmente, o então proprietário da realidade predial referida nos factos provados anteriores cedeu o uso e fruição da mesma para habitação à mãe da Ré (DD), por tempo indeterminado e mediante o pagamento de renda mensal, pagável até ao dia 8 do mês a que respeitasse.
10 - A Ré (DD) vivia, pelo menos desde ../../2019 e com a mãe, na realidade predial referida nos factos provados anteriores, nesse local organizando conjuntamente a sua vida familiar e pessoal: era, e é, aí que comia e come, dormia e dorme todos os dias, onde passa o seu tempo, onde recebe correio, onde recebe amigos e familiares.
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3.1.2. Factos não provados
Na mesma decisão, o Tribunal de 1.ª Instância considerou que, com «relevo para a decisão da causa, ficou por demonstrar» que:
A) À data de ../../2020, a Ré (DD) detinha patologia(s) do foro psiquiátrico que lhe determinava uma incapacidade superior a 60%.
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3.2. Modificabilidade da decisão de facto 3.2.1. Incorrecta apreciação da prova legal -Poder (oficioso) do Tribunal da Relação
Lê-se no art.º 607.º, n.º 5, do CPC, que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», de forma consentânea com o disposto no CC, nos seus art.º 389.º (para a prova pericial), art.º 391.º (para a prova por inspecção) e art.º 396.º (para a prova testemunhal).
Contudo, a «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do n.º 5, do art.º 607.º, do CPC citado).
Mais se lê, no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art.º 607.º, n.º 4, do CPC, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no CC), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (art.ºs 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CC), ou quando exista acordo das partes (art.º 574.º, n.º 2, do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art.º 358.º, do CC, e art.ºs 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos art.ºs 351.º e 393.º, ambos do CC).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
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3.2.2. Incorrecta livre apreciação da prova 3.2.2.1. Âmbito da sindicância (provocada) do Tribunal da Relação
Lê-se no n.º 2, als. a) e b), do art.º 662.º, do CPC, que a «Relação deve ainda, mesmo oficiosamente»: «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (al. a); «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (al. b)».
«O actual art.º 662.º representa uma clara evolução [face ao art.º 712.º do anterior CPC] no sentido que já antes se anunciava. Através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.
(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua actuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos factores de imediação e da oralidade. Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607.º, n.º 5) ou da aquisição processual (art. 413.º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 225-227).
É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efectiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, págs. 29 e segs.).
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3.2.2.2. Modo de operar o duplo grau de jurisdição - Ónus de impugnação
Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdiçãoem sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detectar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento» (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com ageneralidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recurso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 228, com bold apócrifo).
Lê-se, assim, no art.º 640.º, n.º 1, do CPC, que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (al. a), do n.º 2, do art.º 640.º citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c), do n.º 1, do art.º 640.º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor [3] enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional (art.º 205.º, n.º 1, da CRP) e processual civil (art.ºs 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC) - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo n.º 3785/11.5TBVFR.P1).
Com efeito, «livre apreciação da prova» não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 655).
«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 325).
«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 591, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causapelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, pág. 281).
É, pois, irrecusável e imperativo que, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 595, com bold apócrifo).
Compreende-se que assim seja, isto é, que a «censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não» possa «assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão» (Ac. do TC n.º 198/2004, de 24 de Março de 2004, publicado no DR, II Série, de 02.06.2004, reproduzindo Ac. da RC, sem outra identificação).
De todo o exposto resulta que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo (e tal como se referiu supra), mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, precisa-se ainda que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 609).
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3.2.2.3. Caso concreto (cumprimento do ónus de impugnação)
Concretizando, considera-se que a Ré (DD) cumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art.º 640.º, n.º 1, do CPC (conclusão distinta de saber se existe fundamento para a pretendida alteração do facto julgado como não provado).
Com efeito, indicou, no corpo das alegações e nas conclusões do seu recurso: o concreto ponto de facto que considerava incorrectamente julgado (o facto não provado enunciado na sentença recorrida sob a al. A)); os concretos meios probatórios que imporiam decisão diferente (uma diferente ponderação dos depoimentos prestados pelas testemunhas JJ e GG, e da prova documental junta aos autos); as exactas passagens das gravações dos depoimentos seleccionados para fundar a sua sindicância; e a decisão que, no seu entender, se impunha (o dar-se como demonstrado o facto não provado enunciado na sentença recorrida sob a al. A)).
Já relativamente ao juízo crítico próprio, a Ré (DD) assentou o mesmo na reclamação de uma diferente valoração a fazer dos depoimentos prestados pelas testemunhas JJ e GG, e da prova documental junta aos autos.
Recorda-se, a propósito, que os art.ºs 640.º, n.º 1, al. b), e 662.º, n.º 1, do CPC afirmam inequivocamente que a matéria de facto previamente julgada deverá ser alterada quando a prova produzida imponha decisão diversa da recorrida, e não apenas quando a admita, permita ou consinta. Ora, para esse efeito, o recorrente terá que contrariar a apreciação crítica da prova realizada pelo Tribunal a quo, demonstrando e justificando por que razão as regras da lógica e da experiência por ele seguidas não se mostrariam razoáveis no caso concreto, conduzindo a um resultado inadmissível, por não sufragado por elas.
Por outras palavras, admitindo-se necessariamente que o Tribunal a quo ouviu integralmente os depoimentos seleccionados, certo é que fez dos mesmos uma outra valoração, ajuizando todo o seu conjunto face à demais prova produzida e às regras da experiência. Assim, pretendendo o recorrente sindicar este juízo, importará que indique as razões objectivas pelas quais entende que à prova que seleccionou (já antes vista e apreciada pelo Tribunal a quo) deveria ter sido dada outra relevância, o que a simples reiteração do seu conteúdo, e a reclamação conclusiva da respectiva suficiência, é claramente inidónea para este efeito.
Ora, no caso dos autos, a Ré (DD) recorrente fê-lo de forma correcta.
Assim, está este Tribunal da Relação em condições de poder proceder, nos termos autorizados pelo art.º 640.º do CPC, à reapreciação da matéria de facto sindicada pela Ré (DD).
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3.3. Modificabilidade da decisão de facto - Caso concreto . Grau de incapacidade registada pela Ré (DD) em ../../2020
Veio a Ré (DD) defender que a prova produzida impunha que se desse como provado que, em ../../2020 (data do óbito da sua mãe, anterior arrendatária dos Autores no imóvel que os mesmos reivindicam nos autos) sofria de uma patrologia do foro psiquiátrico, que lhe determinava uma incapacidade superior a 60%.
Esta matéria encontra-se vertida no facto não provado enunciado na sentença recorrida sob a al. A) («À data de ../../2020, a Ré detinha patologia(s) do foro psiquiátrico que lhe determinava uma incapacidade superior a 60%»).
Invocou para o efeito uma outra valoração diferente valoração dos depoimentos prestados pelas testemunhas JJ (médico que presidiu à Junta Médica que emitiu o «Atestado Médico de Incapacidade Multiuso») e GG (médico psiquiatra que a assistia), e da prova documental junta aos autos.
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Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pela Recorrente (Ré).
Assim, ponderou a mesma para este efeito (com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais relevantes): «(…) Relativamente ao facto exarado em A., o mesmo mereceu resposta negativa dada a ausência de prova suficiente e cabal para resposta em sentido positivo. Com efeito, i) o certificado de incapacidade multiusos, datado de 31.01.2022, não atesta que à data do óbito da arrendatária (nov 2020) a Ré padecesse de incapacidade e em grau de 60%, atestando – e nos termos infra melhor explicados – que tal incapacidade e grau se verifica na Ré em (27.)01.2021; ii) a informação clínica datada de 25.03.2021 e que refere ter a Ré essa incapacidade de 60% tem data posterior à data do óbito da mãe da Ré e não fixa temporalmente essa incapacidade, isto é, não estabelece que a ../../2020 a Ré já estava incapaz em grau de 60%; iii) a declaração de pensão por invalidez do ano de 2018 é datada de 2019 e não refere desde quando se encontra a Ré inválida, nem qual a natureza e grau dessa invalidez; a informação clínica de 14.07.2022, também não atesta o momento da incapacidade (para além dos esclarecimentos que infra se dirão mais e prestados pelo seu subscritor); e, sobretudo, a informação clínica de 31.12.2020, informa que desde 2018 a Ré deixou de ser acompanhada em termos médicos, pelo menos, no serviço nacional de saúde e que se desconhece o seu estado atual de saúde, ainda que se preveja ter um quadro clínico crónico e progressivo. Por sua vez, a testemunha JJ, médico de saúde pública aposentado e que presidiu à junta médica donde resultou o certificado de incapacidade multiusos já aqui abordado, disse não se lembrar do concreto exame colegial mas esclareceu o modus operandi em situações como as da Ré e que, segundo trespassou, terá sido também adoptado no caso da Ré (primeiro, analisam os documentos que instruem o pedido de junta médica e depois fazem uma entrevista à Requerente para aferir da correspondência com a informação contida nos documentos). Realçou ainda que para a data do começo da incapacidade ora atendem ao que consta dos documentos que instruem o pedido ora à data do pedido de junta médica. In casu, exibiu (e foram juntos aos autos, nessa sequência) os documentos que instruíram o pedido de junta médica feito a 27.01.2021, que consistem em duas informações clínicas de um mesmo médico psiquiatra (Dr. GG – testemunha que foi expressamente prescindida pela Ré e tal devidamente homologado, mas que foi ouvida em obediência ao douto acórdão proferido nos autos): i) uma, datada de 31.12.2020 onde se menciona, no que releva, que desde 14.11.2018 teve alta, por abandono, se indica a medicação que fazia até à alta e se refere desconhecer “o seu estado atual mas prevê-se que o seu quadro seja crónico e progressivo”; ii) outra, datada de 30.09.2021 (com o conteúdo igual ao doc. 5 junto pela Ré na contestação), onde se diz que a Ré tem um “défice permanente enquadrável no Capitulo X da Tabela Nacional de Incapacidades, num mínimo de 60% face ao impacto que tem nas diversas dimensões”. Por sua vez, ouvido o subscritor de algumas das informações clínicas juntas aos autos e médico que foi acompanhando a Ré no serviço nacional de saúde, Dr GG, nenhum préstimo se conseguiu, pois que, de concreto, não soube precisar quando foi a última vez que viu a paciente até 2020, tendo começado por dizer que consultava a Ré regularmente mas quando confrontado com a declaração que emitiu em ../../2020, atrapalhou-se e reconheceu que as informações e declarações datadas do ano de 2021 e 2022 e que estão no processo e que foram por si passadas poderão ter sido por a Ré ter dirigido um pedido formal das mesmas ao serviço, sendo verdade que a Ré até, pelo menos, entre 2018 e ../../2020 não compareceu em consultas da sua especialidade médica, pelo que, ainda que crónica e progressiva a patologia da Ré, não conseguiu precisar se evoluiu lenta (como consta de algumas das informações clínicas que emitiu) ou rapidamente e a ponto de chegar aos 60%, tendo ainda reconhecido que esses 60% indicou-os por presunção (a reforma por invalidez após os 55 anos e por ser essa a percentagem necessária à determinação de incapacidade geral), isto é, sem qualquer teste específico (e até legalmente imposto). Pois bem, analisados estes depoimentos e os documentos referidos e juntos, temos dúvidas acerca de a Ré ter patologia que lhe determinasse incapacidade de 60% à data de ../../2020, isto é, que a incapacidade de 60% da Ré tenha tido o seu início ou já se verificasse à data de ../../2020. Acresce que o recurso às regras da experiência e do senso comum não nos permitem suprir tal falta, pois que ainda que a Ré padeça de um quadro clínico incapacitante há alguns ou muitos anos (daí ser crónico), esse mesmo quadro, atenta a sua particular natureza, sabe-se que pode sofrer variações, incluso na sequência de eventos traumáticos como o caso da morte de um ente querido ou o saber-se estar em risco de ser despejado…. eventos deste tipo que aconteceram, como se sabe, na vida da Ré… mas após ../../2020. Desta feita, pela prova produzida nos autos, o tribunal não ficou convencido que à data de ../../2020 a Ré padecesse de uma incapacidade igual ou superior a 60%. Consequentemente, a resposta negativa a esta concreta factualidade. (…)»
Ora, ouvida integralmente toda a prova pessoal produzida em sede de audiência de julgamento, e consultados todos os documentos juntos autos, afirma-se desde já que não se sufraga o juízo de prova do Tribunal a quo.
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Dir-se-á, antes de mais, que, não obstante formalmente se tenha dado como não provado «deter a Ré patologia(s) do foro psiquiátrico que lhe determinava uma incapacidade superior a 60%» e encontrar-se assim «à data de ../../2020», apenas este último segmento está verdadeiramente em causa nos autos.
Com efeito, e tal como foi desde logo referido no primeiro acórdão proferido nos autos (em 15 de Junho de 2022), sucede «que o único facto que está duvidoso, do ponto de vista do Tribunal, é a data do começo da incapacidade e não o seu grau, data essa mencionada em “observações” do atestado multiuso junto aos autos».
Dir-se-á ainda que o «Atestado Médico de Incapacidade Multiuso» não pode ser integralmente considerado (isto é, em todo o seu conteúdo/teor), para efeitos probatórios, um documento autêntico, já que quanto à determinação da percentagem de incapacidade da pessoa avaliada e à data de começo da mesma consubstancia um juízo pericial, sujeito à livre apreciação do julgador.
Com efeito, se já antes parte da jurisprudência se pronunciava nesse sentido [4], foi entretanto proferido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2024, de 23 de Maio (Diário da República n.º 121/2024, Série I, 25 de Junho de 2024), fixando a seguinte jurisprudência: «O atestado médico de incapacidade multiuso, emitido para pessoas com deficiência de acordo com o Decreto-Lei n.º 202/96, de 21 de Outubro, é um documento autêntico, que, de acordo com o artigo 371º, n.º 1, em conjugação com o artigo 389º, do Código Civil, faz prova plena dos factos praticados e percepcionados pela “junta médica” (autoridade pública) competente e prova sujeita à livre apreciação do julgador quanto aos factos correspondentes às respostas de avaliação médica e de determinação da percentagem de incapacidade da pessoa avaliada».
Ponderou para o efeito:
«(…)
Urge distinguir entre os factos referidos no “atestado médico de incapacidade multiuso” que correspondem à outorga do documento-atestado (à emissão da própria declaração, com aquela forma e com aquele conteúdo) e à percepção factual directa do presidente (quem emite a declaração) e dos membros da “junta médica” (por exemplo, a identificação do processo, o local em que a avaliação médica da pessoa identificada nesse atestado foi realizada, os elementos de identificação da pessoa avaliada, o ou os “atestados” anteriormente realizados) – prova plena nos termos do art. 371º, 1, 1.ª parte, do CCiv.;
e os factos constantes desse documento que decorrem da apreciação pelos mesmos membros da “junta médica” no âmbito da respectiva competência especializada, ou seja, dos factos decorrentes do diagnóstico (incluindo o tempo de referência para a situação de incapacidade) e da respectiva determinação de um grau de incapacidade, no uso de conhecimentos científicos e, assim sendo, juízos de ordem pessoal assentes num “convencimento lógico-dedutivo” (e decisório, como se viu) susceptível de ser contrariado ou infirmado11.
De tal sorte que a força probatória material deste documento nesta segunda vertente não pode deixar de estar sujeita à regra do jogo da livre convição judicial da prova imposta pelo art. 371º, 1, 2.ª parte.
Afirmação esta que é reforçada pela circunstância – de ordem sistemática no conjunto do direito probatório material (conteúdo da prova quanto às declarações constantes) – de tal atestado, nessa parte, corresponder verdadeiramente a uma resposta de sujeitos com «conhecimentos especiais que os julgadores não possuem», isto é, sujeitos actuando como “peritos” para o efeito do art. 388º do CCiv. Razão pela qual não pode, neste segmento factual, num domínio em que a autoridade pública emissora do documento é simultaneamente detentora de uma qualificação especial em face da lei («médicos especialistas»: como refere agora o art. 2º, 6, do DL 202/96), deixar de ser vista como averiguação e apreciação a cargo de peritos com conhecimentos especiais12; o que conduz a que as suas «respostas» sejam também objecto de livre apreciação do julgador (arts. 388º e 389º do CCiv.).13
Ou seja: a declaração integrada em documento autêntico como juízo de valor técnico-científico e especializado, comum à declaração da prova constante da “perícia” produzida nos autos (nos termos dos arts. 467º-489º do CPC) mas sem o ser enquanto tal, só pode constituir-se com a força probatória relativa que é própria dessa prova pericial14; conjugando-se e aplicando-se para um mesmo resultado – documento autêntico com narração vinculativa e juízo pessoal dispositivo da «entidade documentadora» – os arts. 371º, 1, 2.ª parte, e 389º do CCiv.
(…)»
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Começando então por analisar a prova documental, dir-se-á, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que, ponderado cada documento de per se e concertadamente com os demais, se revela o seu conjunto bem mais esclarecedor do que a avaliação que dele foi feita pelo Tribunal a quo.
Com efeito, e seguindo a ordem cronológica da sua produção, juntou a Ré (DD) como documento n.º 6 com a sua contestação uma «DECLARAÇÃO» do Centro Nacional de Pensões, datada de 11 de Janeiro de 2019, que refere ser a mesma beneficiária de «Tipo de Pensão»«INVALIDEZ», tendo recebido no ano de 2018, sem quaisquer complementos, o valor global de € 3.737,84, isto é, € 266,99 por mês.
Logo, foi reconhecido à Ré (DD) - nascida em ../../1959 (conforme certidão de assento de nascimento respectivo, junta como documento n.º 1 com a sua contestação) -, em data anterior a 2018, uma incapacidade permanente (relativa ou absoluta) para trabalhar, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de Maio [5].
Esta incapacidade permanente para o trabalho é objecto de prévia avaliação (físico, sensorial e mental da pessoa, do seu estado geral, da sua idade, das suas aptidões profissionais, bem como da eventual capacidade de trabalho que ainda possua); e confirmação pelo Sistema de Verificação de Incapacidades [6].
Assim, e se tal como refere o Tribunal a quo, o documento que ora se analisa «não refere desde quando se encontra a Ré inválida, nem qual a natureza e grau dessa invalidez», certo é que resulta do mesmo, quando conjugado com a legislação aplicável que condiciona a reforma por invalidez: que a Ré (DD) se encontrava incapacitada para o trabalho em data anterior a 2018; e que essa incapacidade era definitiva e permanente (isto é, a situação de facto que lhe estava subjacente não admitia a possibilidade de melhoria ou regressão, por forma a permitir a recuperação da dita capacidade de trabalho).
Considerando agora a«Informação Clínica»datada de ../../2020, subscrita por «GG, médico psiquiatra», refere a mesma que o seu autor «acompanhou em consulta da especialidade» a Ré (DD), cujo «quadro clínico se caracterizava por crises de angústia que surgem num contexto sintomatológico ansioso e depressivo de forma reativa a eventos vivenciais sobejamente adversos a par de contribuições temperamentais. (CID 10 – F33.2: Perturbação Depressiva Recorrente)».
Explica que a «doente descontinuou o acompanhamento ambulatório motivo pelo qual 2018 e teve alta por abandono da consulta externa», tendo tido «última consulta em 14/11/2018 e à data foi-lhe sugerido um esquema psicofarmacológio»; e que durante «o período de acompanhamento apresentava períodos frequentes de crise, com desorganização pessoal e franca impulsividade, agravando o seu estado depressivo-ansioso de base. Desconhece-se o seu estado atual mas prevê-se que o seu estado seja crónico e progressivo».
Assim, e se tal como refere o Tribunal a quo, o documento que ora se analisa «informa que desde 2018 a Ré deixou de ser acompanhada em termos médicos, pelo menos, no serviço nacional de saúde e que se desconhece o seu estado atual de saúde, ainda que se preveja ter um quadro clínico crónico e progressivo», certo é igualmente que se atesta como diagnóstico Perturbação Depressiva Recorrente(CID F33.2).
Está-se, assim, perante um transtorno depressivo recorrente, e de um seu episódio actual grave mas sem sintomas psicóticos (segundo o código da Classificação Internacional de Doenças), ou seja, perante uma depressão endógena, maior (isto é, de grau mais grave) recorrente, e vital recorrente.
Considerando agora a «Informação Clínica»datada de 25 de Março de 2021, subscrita por «GG, Assistente Hospitalar de Psiquiatria», refere a mesma que o seu autor «acompanha em consulta da especialidade» a Ré (DD), «doente com um quadro de humor depressivo e ansiedade que surge no contexto temperamental e socio-cultural adverso», sendo que desde «há cerca de uma década, o seu quadro ciclotímico tem vindo, de forma lenta mas progressiva, a agravar-se de forma significativa em termos de intensidade e frequência dos sintomas afetivos mas também comportamentais. Efetivamente, a sua clínica é caraterizada por crises de angústia frequentes associadas a sintomatologia psicossomática exuberante, humor depressivo com características major, sentimentos de menos-valia, descuramento dos auto-cuidados, isolamento social, diminuição da capacidade de concentração, franca alteração do ciclo sono/vigília com clinofilia e queixas mnésicas que têm vindo a ser estudadas. Na avaliação clínica e ao exame de estado mental é notória a parca funcionalidade da doente. Atualmente os seus diagnósticos psiquiátricos são Perturbação Neurocognitiva não especificada (DSM V 799.59) e Perturbação Depressiva Persistente (DSM V 300.4). Considero que as consequências desse quadro neuropsiquiátrico e as limitações subjacentes ao mesmo têm sido consideráveis do ponto de vista psíquico, condicionando um padrão estável de experiência interna e comportamento inflexível e invasivo, com interferência numa variedade de situações pessoais, sociais e laborais. Considero que o seu quadro clínico, globalmente, configura uma perturbação importante, com assinalável afetação do nível de eficiência pessoal ou profissional, tanto mais que não tem respondido favoravelmente aos tratamentos instituídos. As rotinas diárias, o funcionamento ocupacional e a sua vida social acabaram por ficar bastante prejudicadas. Efetivamente, encontra-se já reformada por invalidez por este motivo. Considero que o seu quadro neuropsiquiátrico condiciona um défice permanente enquadrável no Capítulo X da Tabela Nacional de Incapacidades, num mínimo de 60% face ao impacto que tem nas suas diversas dimensões».
Assim, e se tal como refere o Tribunal a quo, o documento que ora se analisa e que refere uma «incapacidade de 60%» da Ré (DD) «tem data posterior à data do óbito da mãe da Ré e não fixa temporalmente essa incapacidade, isto é, não estabelece que a ../../2020 a Ré já estava incapaz em grau de 60%», certo é igualmente que atesta: uma perturbação depressiva persistente, com características major (isto é, a forma mais grave da patologia em causa); um seu agravamento, lento mas progressivo, ao longo de toda uma década (isto é, a patologia já se encontrava instalava nesse período de tempo, com carácter crónico e negativamente evolutivo, nomeadamente por a Ré não ter respondido favoravelmente aos tratamentos instituídos); e o carácter limitador/incapacitante deste quadro, de forma absolutamente conforme com a prévia reforma por invalidez registada já em 2018 (permitindo o historial e conhecimento pessoal da doente ter como certo que a dita reforma por invalidez radicara naquela patologia instalada há mais de um década, isto é, pelo menos desde 2011, atenta a data de produção da «Informação Clínica»em causa).
Prosseguindo com a consideração do«Atestado Médico de Incapacidade Multiuso», datado de 31 de Janeiro 2022, refere o mesmo que a Ré (DD) «é portador de deficiência que, nesta data e conforme o quadro seguinte, lhe confere uma incapacidade perante global de: 60% (sessenta por cento)», de carácter «DEFINITIVO», e não «suscetível de variar no futuro, devendo ser reavaliado no ano de». «A incapacidade reporta-se a: 01/2021».
Assim, e se tal como refere o Tribunal a quo, o documento que ora se analisa «não atesta que à data do óbito da arrendatária (nov 2020) a Ré padecesse de incapacidade e em grau de 60%, atestando (…) que tal incapacidade e grau se verifica na Ré em (27.)01.2021», certo é igualmente que tais incapacidade e grau, escassos 41 dias depois do óbito da sua mãe (verificado em ../../2020) assumia já carácter definitivo, isto é, não susceptível de qualquer variação no sentido da melhoria.
Confirma-se, assim, o referido antes, isto é, que a afectação da saúde mental da Ré (DD), que durava há mais de uma década, com carácter gravemente incapacitante para a sua vida globalmente considerada (v.g. laboral, social), se foi, progressiva e irreversivelmente, agravando.
Por fim, considerando a «Declaração Médica»datada de 14 de Julho de 2022, (junta aos autos na sequência do primeiro acórdão neles proferido, de 15 de Junho de 2022) subscrita por «GG, Assistente Hospitalar de Psiquiatria e Coordenador da Unidade de Psiquiatria Forense», refere a mesma que o seu autor «acompanha em consulta da especialidade» a Ré (DD), por o seu «quadro clínico» se caracterizar «por uma oscilação patológica do humor sem sintomatologia psicótica enquadrável numa grave Perturbação Afetiva com gravidade clínica e funcional» que precisamente «motiva e justifica o seu acompanhamento em consultas da especialidade».
Esclarece ainda que o «início dos sintomas remonta ao início da idade adulta, altura em que teve o seu primeiro episódio depressivo com características major e iniciou a sua patologia afetiva de características ciclotímicas de cariz incapacitante. Tal tem motivado o acompanhamento em consulta da especialidade com instituição de esquemas medicamentosos e com períodos frequentes de crise com descompensação do seu quadro psicopatológico de base».
Reitera que desde «há cerca de uma década, o seu quadro, já grave de base, tem vindo, de forma lenta, mas progressiva, a agravar-se de forma significativa em termos de intensidade e frequência dos sintomas afetivos. Tal clínica é caracterizada por crises de angústia frequentes associadas a sintomatologia psicossomática, humor depressivo, sentimentos de menos-valia, descuramento dos autocuidados, isolamento social, sintomatologia obsessiva com ruminações deliroides, diminuição da capacidade de concentração e alteração do padrão de sono com clinofilia e queixas mnésicas. Tais queixas motivaram um estudo são congruentes com um défice cognitivo multidomínio».
Enfatiza de novo que as «consequências da experiência deste quadro têm sido devastadoras do ponto de vista psíquico, condicionando um padrão estável de experiência interna e de comportamento, inflexível e invasivo, com interferência numa variedade de situações pessoais e sociais»; que na «avaliação clínica e ao exame de estado mental é notória a parca funcionalidade da doente. Atualmente os seus diagnósticos psiquiátricos são Perturbação Neurocognitiva não especificada (DSM V 799.59) e Perturbação Depressiva Persistente (DSM V 300.4)»; e «que o seu quadro clínico, globalmente, configura uma perturbação importante, com assinalável afetação do nível de eficiência pessoal ou profissional desde há mais de uma década. Efetivamente, as suas rotinas diárias, o funcionamento ocupacional e vida social encontram-se bastante prejudicadas desde então e encontra-se já reformada por invalidez na sequência das sequelas do seu quadro neuropsiquiátrico».
De forma, porém, mais esclarecedora face à «Informação Clínica»datada de 25 de Março de 2021, consideraque o «seu quadro neuropsiquiátrico condiciona um défice permanente enquadrável no Capítulo X da Tabela Nacional de Incapacidades, tendo sido valorizado em sede de Junta Médica para atribuição de Atestado Médico Multiuso. Pelos elementos clínicos que constam no seu processo, pode-se documentalmente situar o início da sua incapacidade a pelo menos 2008 (altura em que existem os primeiros registos eletrónicos), muito embora o seu início remonte já há várias décadas».
Atende-se, neste momento, a que o autor desta última «Declaração Médica», para além de, naturalmente, se manter como médico especialista em psiquiatria, coordena agora a Unidade de Psiquiatria Forense (subespecialidade de psiquiatria) isto é, aquela que tendencialmente assistirá os tribunais na decisão de questões que precisamente contendam com a dita especialidade.
Assim, e se tal como refere o Tribunal a quo, o documento que ora se analisa «também não atesta o momento da incapacidade», esta afirmação só pode reportar-se a uma incapacidade certa de 60%, uma vez que o texto é claro ao referir «situar o início da sua incapacidade a pelo menos 2008 (altura em que existem os primeiros registos eletrónicos), muito embora o seu início remonte já há várias décadas», querendo com isso reportar-se à própria patologia que determina a sequela incapacitante.
Confirma-se, ainda, com esta derradeira «Declaração Médica»: que a patologia psiquiátrica da Ré (DD) remonta ao início da sua idade adulta; que reveste características major; que, além de crónica, se foi agravando progressiva e irreversivelmente na última década (de forma significativa em termos de intensidade e frequência de manifestações, importando já um défice cognitivo multidomínio); e que se tornou gravemente incapacitante (justificando a sua antecipada reforma por invalidez).
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Prosseguindo, e agora relativamente à prova pessoal produzida, limitada aqui aos depoimentos prestados unicamente por médicos, foi inquirido como testemunha (ouvido por expressa imposição do primeiro acórdão proferido nos autos, em 15 de Junho de 2022) JJ, médico de saúde pública, que presidiu à Junta Médica realizada a 21 de Janeiro de 2022, que atribuiu à Ré (DD) um grau de incapacidade de 60%, permitindo a emissão do «Atestado médico de Incapacidade Multiuso» que o certificou.
Ora, e tal como referiu o Tribunal a quo na sua motivação da decisão de facto, o respectivo depoimento permitiu concluir que o facto da Junta Médica ter datado o início a incapacidade da Ré (DD) em «01/2022» não foi fruto de uma qualquer perícia realizada nesse sentido, mas sim por ser habitual fazer coincidir o início da incapacidade do requerente: ou com o que resulta da documentação clínica apresentada pelo próprio (em especial quando está em causa uma doença do foro psiquiátrico, face a alguma subjectividde e à maior especialidade de conhecimentos médicos em causa, como expressamente referiu a testemunha); ou com a data em que foi pedida a realização da Junta Médica (no caso .../.../2021, explicando a testemunha estarem as juntas médicas atrasadas mais de um ano, e realizando ele próprio cerca de quinze por dia), quando não encontram a data do início da doença ou do evento incapacitante na dita documentação clínica.
Precisando o caso concreto, a testemunha JJ esclareceu que a documentação clínica consultada pela Junta Médica foi a «Informação Clínica» datada de ../../2020 e a «Informação Clínica» datada de 25 de Março de 2021, ambas subscritas por GG, médico psiquiatra que acompanhou em consulta da sua especialidade a Ré (DD).
Referiu ainda que nenhum dos três membros da Junta Médica eram psiquiatras; e que, tendo analisado primeiro a dita documentação, e entrevistado depois a Ré (nomeadamente, obtido informação sobre a medicação que fazia), se lhes afigurou conforme o diagnóstico feito, o carácter incapacitante da doença diagnosticada e o grau da incapacidade dela resultante, sem que se lhes afigurasse necessária a realização de quaisquer exames complementares.
Relativamente ao concreto início da fixada incapacidade de 60%, a testemunha JJ referiu que, não constando da informação clínica disponibilizada à Junta Médica, optou a mesma por a fazer coincidir com a data em que foi pedida a sua realização (no caso, .../.../2021).
Ora, e no caso da Ré (DD), atenta a natureza da patologia psiquiátrica que manifestava desde o início da idade adulta e ininterruptamente há décadas, o relevante grau incapacitante da mesma já em 2018 (que justificara, antes desta data, a sua reforma por invalidez) e o seu caracter permanente e irreversivelmente progressivo, só de forma inegavelmente aleatória se poderia ter por certo que a incapacidade de 60% que alegadamente a afectava em Janeiro de 2021 se iniciara tão só e apenas nesse mês, quando foi formulado o pedido de realização da Junta Médica que o atestou.
Por outras palavras, sendo esse o critério da dita Junta Médica, se a Ré tivesse formulado o pedido de realização respectiva um mês, dois meses, ou qualquer mês antes da morte da mãe, seria essa a data utilizada para datar o início da dita incapacidade de 60%, mantendo-se, porém, a concreta patologia em causa (natureza e grau) - quer numa situação (hipotética), quer noutra (efectivamente ocorrida) - inalteradamente a mesma.
Dir-se-á, assim, que o depoimento prestado pela testemunha JJ, considerado de per se, em nada contribui para a determinação da real data do início da incapacidade de 60% da Ré (DD), antes reforça a importância do depoimento da testemunha GG.
Com efeito: a contrário daquele, médico de saúde pública, é este último não só médico psiquiatra (isto é, especialista no quadro da patologia que afecta a Ré), como possui subespecialidade em psiquiatria forense; foi essencialmente com base na avaliação clínica da doente que documentou por escrito que o exame desta foi feito pela Junta Médica (confirmando-o); e foi para ele que a própria testemunha JJ, expressa e assertivamente, remeteu a determinação do início da sua incapacidade de 60%, enquanto psiquiatra que acompanharia a Ré (DD).
Considerando, então, o depoimento da testemunha GG (ouvido por expressa imposição do segundo acórdão proferido nos autos, em 27 de Abril de 2023), referiu ser a Ré (DD)ser sua doente «no mínimo desde 2018»; e, quando confrontado com a «Informação Clínica» datada de ../../2020, congratulou-se com a mesma, já que, vendo milhares de doentes, «este relatório consegue esclarecer, portanto, o início do meu acompanhamento da doente terá de ser muito antes [de 2018], não é ?». Precisaria ainda que quando redigiu a «Informação Clínica» em causa, a pedido da Ré (DD), a mesma não lhe falou de qualquer processo judicial (nem posteriormente o fez), só de problemas que tinha com os irmãos.
Confrontado com a «Declaração Médica»datada de 14 de Julho de 2022, explicou ter sido pedido pela Ré (DD) que se situasse melhor o início da sua incapacidade, pelo que foi verificar os registos médicos do hospital, iniciados em 2008, afirmando que «a incapacidade funcional dela iniciou-se seguramente já há algumas décadas, sem dúvida».
Foi-lhe então expressamente perguntado: «Esse “Atestado Multiuso” foi feito, foi elaborado, no dia 31 de Janeiro de 2022, mas reportou o início da incapacidade a Janeiro de 21, a Janeiro de 2021. Ora eu pergunto, eu pergunto: dois meses antes, ou seja, em Novembro de 2020, a Senhora já tinha esta incapacidade, já estava afectava desta incapacidade, e se estava já estava afectada neste grau de 60%. É esta a pergunta principal que lhe queria pôr». Respondeu clara e seguramente: «Objectivamente sim, aliás eu acredito muito antes. Objectivamente sim».
Precisando os termos da emissão da referida «Declaração Médica»datada de 14 de Julho de 2022, e após de esclarecer o modo de actuação das Juntas Médicas (de forma absolutamente conforme com o antes declarado pela testemunha JJ), reiterou: «de qualquer das formasfoi exactamente nesse contexto que a Senhora Dona DD me pediu para eu tentar com algum rigor, pronto, atestar, enfim, ou comprovar, que a sua incapacidade decorrente da sua patologia se podia situar em momento anterior [reportando-se ao considerado pela Junta Médica, de «01/2021»]. E a verdade é que sim. Aliás, eu creio, eu acho que esta senhora está reformada (…) pelos critérios, que até são bastante rígidos, da segurança social que medem o impacto funcional do quadro, não é ? (…) que ela objectivamente está reformada por invalidez muito antes da atribuição do atestado multiusos, não é ? que é um dos critérios que se pode usar para, para realmente avaliar a presença, ou não, de doença mental, de psicopatologia. O selo da segurança social, os colegas que fazem estas juntas avaliam muito bem a capacidade de dano e a capacidade de auto e de heterosubsistência do indivíduo. Portanto eu em consciência atesto que a sua incapacidade está presente em data anterior ao início do Multiusos».
Confrontado depois com a «Informação Clínica» datada de ../../2020, e perguntado como é que podia situar a incapacidade de 60% em Novembro de 2020 quando alegadamente não viu a Ré desde 2018 a ../../2020, respondeu: «Muito bem. Olhe, ainda bem que levanta essa questão porque este relatório consegue esclarecer, portanto, o início do meu acompanhamento da doente terá de ser muito antes [de 2018], não é ? (…) Portanto esta é uma doente crónica. Certo ? Estabelece-se esta patologia. Se por algum motivo ela terá abandonado as consultas em 2018 não sabemos em que contexto (…). Não faria uma declaração se não tivesse visto a Senhora e se não tivesse atestado, não é ?».
Melhor explicou de seguida que o situar objectivamente o grau de incapacidade de 60% da Ré (DD) como seguramente verificado em ../../2020, resultaria não só do retomar da sua consulta (após o interregno de 14 de Novembro de 2018 a ../../2020), como ainda do facto «de ela estar inválida e do meu conhecimento pessoal desta doente, da Dona DD, porque as patologias psiquiátricas não surgem de um momento para o outro, eu gostava de tentar explicar, não quero ser académico, só estou a tentar explicar o meu raciocínio, não surgem de um momento para o outro, existe um curso, certo ? E exige um atingimento da funcionalidade do doente. Nós podemos prever, não é ? ou podemos, no fundo, aferir» (altura em que o seu discurso se tornou imperceptível, por ser interrompido e duplicado por outro do Tribunal a quo - como já sucedera antes e sucederia ainda depois -, tornando-se apenas este último inteligível na gravação).
Por fim, e instado expressamente nesse sentido, referiu que, ainda que pudesse não ter realizado testes neuropsiquiátricos à Ré (DD) no retomar regular das suas consultas em Dezembro de 2021 (o que não confirmou, admitindo pelo contrário poder ter feito alguns), esclareceu que só lhe coube emitir parecer sobre a incapacidade, e não, como à Junta Médica que emitiu o atestado multiuso, fixá-la; e só àquela será aplicável a legislação que, sendo-lhe lida em audiência, imporá a realização dos ditos testes para aquele preciso efeito. Não deixou ainda - de forma serena e segura - de declarar que: «Em consciência sou bastante rigoroso naquilo que escrevo, não é ? E se eu atestei tenho consciência que eu atestei, não é ?».
Verifica-se, assim, que o depoimento prestado pela única testemunha academicamente habilitada para o efeito (sob pena da existência de uma especialidade de psiquiatria e de uma subespecialidade de psiquiatria forense de nada valerem) e com conhecimento pessoal da situação clínica da Ré (por a ter acompanhado profissionalmente ao longo de mais de uma década, sem prejuízo do interregno de 14 de Novembro de 2018 a 31 de Dezembro de 2021) foi peremptório no confirmar que a incapacidade de 60% que a afecta já se registava em Novembro de 2020, à data do óbito da respectiva mãe.
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Considerando, então, concertadamentetoda prova produzida, dir-se-á confirmar o depoimento da testemunha GG, já que não se surpreende na mesma qualquer alteração da perturbação psiquiátrica por si diagnosticada à Ré (DD), do seu agravamento progressivo e irreversível e do seu grau crescentemente incapacitante (referindo mesmo esta testemunha, no seu depoimento, que as «queixas mnésicas» referidas «Declaração Médica»datada de14 de Julho de 2022, eram reveladoras da instalação de um incipiente quadro demencial).
Sindicando agora esta prova à luz das regras da experiência comum, dir-se-á receber o depoimento da testemunha GG a mesma confirmação, e de forma acentuada.
Com efeito, a ciência médica é um campo privilegiado de aplicação de regras de experiência, sobre as quais se constroem os protocolos clínicos, de aplicação obrigatória pelos profissionais de saúde, precisamente porque assentam: na probabilidade estatística de um determinado conjunto de sintomas registados ser produzido por uma concreta doença (correcção dos diagnósticos); probabilidade estatística da doença diagnosticada ter uma previsível evolução (correcção dos prognósticos); e na probabilidade estatística da doença diagnosticada ser minorada ou curada pela administração dos fármacos selecionados (êxito das terapêuticas que lhe correspondam).
Ora, se um caso concreto (doente) desafia e/ou contraria um provável e expectável prognóstico, terão de ser fornecidos factos que o comprovem; ou, pelo menos, factos que antecipem como provável essa possibilidade. De outro modo, dever-se-á ter como mais provável que esse concreto doente confirmará, na evolução da sua doença, a regra sedimentada da experiência médica (vertida num, ou em vários protocolos de seguimento) [7].
Assim, e não obstante o Tribunal a quo tenha energicamente insistido em sede de audiência final na hipótese da Ré (DD) poder ter melhorado durante o período em que não foi acompanhada pela testemunha GG (nas perguntas que, por iniciativa própria, lhe dirigiu, e nos comentários às respostas que foi obtendo) - nomeadamente, por diminuição do grau da sua anterior incapacidade -, nada nos autos permite ter essa melhoria como hipótese prevalente (sendo ela de carácter excepcional) face à contrária (que enuncia o prognóstico regra).
Conclui-se, assim, que a prova produzida impunha, efectivamente, que se desse como provado que, à data de ../../2020, a Ré (DD) detinha patologia(s) do foro psiquiátrico que lhe determinava uma incapacidade superior a 60%.
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Procede o recurso sobre a matéria de facto interposto pela Ré (DD), passando o facto dado como não provado sob a al. A) a integrar o elenco dos factos provados, onde passará a constar sob o número 11.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Transmissão do contrato de arrendamento por morte do primitivo arrendatário
Consubstanciado os autos uma acção de reivindicação sobre um prédio urbano, não está em causa no presente recurso o direito (de propriedade e de usufruto) dos Autores (AA e marido, BB, e CC) sobre o mesmo, que a Ré (DD)reconheceu logo na sua contestação.
A mesma, ocupando o imóvel, excepcionou apenas a obrigação de proceder à sua entrega aos Autores (AA e marido, BB, e CC), defendendo para o efeito ter beneficiado da transmissão do contrato de arrendamento existente sobre ele, antes titulado por sua mãe, EE, como arrendatária, por à data do respectivo óbito, ela própria viver com ela em economia comum e possuir uma incapacidade de 60%.
Reproduz-se aqui a fundamentação de direito a considerar para este efeito, constante da sentença recorrida, de forma conforme com o antes afirmando no primeiro acórdão proferido nos autos, por se subscrever inteiramente o seu acerto: «(…) O art.º 1051.º do Código Civil estabelece várias causas de caducidade do contrato de locação, aplicáveis ao contrato de arrendamento, entre elas a morte do arrendatário (al. d)). Todavia, essa caducidade não ocorre se o contrato de arrendamento se transmitir. Assim, cumpre aferir se, no caso presente, ocorreu a transmissão da posição de arrendatário. A apreciação da questão suscitada impõe a prévia determinação do regime aplicável, dada a sucessão de leis no tempo. Estando em causa a apreciação dos efeitos operados pela morte do arrendatário na relação contratual, é aplicável o regime legal em vigor à data do óbito, atento o disposto no art.º 12.º, n.º 1, do CC. Assim, considerando que a transmissão da posição contratual invocada pela Ré se baseia na morte do arrendatário, o direito em causa, a existir, nasceu na sua esfera jurídica no momento de tal falecimento, assim devendo ser aplicada a lei em vigor nessa data. De acordo com a factualidade dada como provada, a Ré conseguiu provar que há mais de 60 anos (pelo menos, desde 1961) a sua mãe havia celebrado com os então donos do imóvel id. em 1. e que pertence aos AA um contrato de arrendamento destinado à sua habitação, por tempo indeterminado. Está demonstrado também que a primitiva arrendatária faleceu em ../../2020 e que era a mãe da Ré. Está igualmente demonstrado que a Ré vivia com a sua falecida mãe há mais de um ano, atenta a data do óbito desta. E que a 28.01.2021 a Ré comunicou aos AA a sua intenção de ver mantido o contrato de arrendamento que antes vinculava a sua mãe. Diante destes factos, há que apurar o direito aplicável. Tendo o contrato em causa sido celebrado antes da entrada em vigor do NRAU – Lei 6/2006, de 27.02 - e subsistindo nessa data a relação jurídica dele emergente, cumpre atender ao que nele é previsto. «No que respeita ao regime da transmissão por morte da posição contratual do arrendatário habitacional, consagra o NRAU duas diferentes soluções: a prevista no artigo 1106.º do Código Civil, aplicável aos arrendamentos celebrados após a sua entrada em vigor, e a constante do artigo 57.º da NLAU, aplicável aos arrendamentos celebrados anteriormente, quer tenham sido celebrados antes quer depois da entrada em vigor do Regime do ArrendamentoUrbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15-10, conforme resulta do disposto no artigo 26.º, n.º 1, aplicável por força do estatuído nos artigos 27.º e 28.º, n.º 1, da citada Lei.» (cfr. Ac. Relação de Évora de 16.05.2019, Proc. n.º 3373/17.2T8LLE.E1, disponível em www.dgsi.pt). Como no caso concreto, o contrato de arrendamento fora celebrado antes da entrada em vigor do NRAU (o qual entrou em vigor a 28.06.2006), importa destacar as normas transitórias, estas com a redação em vigor a ../../2020 (data do óbito da arrendatária) e não a norma prevista no art.º 1106.º do CC. Dispõem aquelas: - Artigo 27.º: «As normas do presente capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro.» - Art.º 28.º: «1 - Aos contratos a que se refere o artigo anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26.º, com as especificidades constantes dos números seguintes e dos artigos 30.º a 37.º e 50.º a 54.º. 2 - Aos contratos referidos no número anterior não se aplica o disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil. // 3 - (Revogado.) // 4 - (Revogado.) // 5 - (Revogado.). // 6 - (…).» - Art.º 26.º: «1 – (…) // 2 - À transmissão por morte aplica-se o disposto nos artigos 57.º [habitação] e 58.º [não habitação].» - Art.º 57.º do NRAU (na redação em vigor e que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro), sobre a Transmissão por morte, que: «1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva: (…) e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct.. (…) Por este artigo 57.º verifica-se que: - a tutela da situação do filho do arrendatário prevista na alínea e) do n.º 1 do preceito exige, além da convivência com o arrendatário há mais de um ano, que o descendente padeça de deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%; (…)»
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4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
Concretizando, verifica-se que, de «acordo com a factualidade dada como provada, a Ré conseguiu provar que há mais de 60 anos (pelo menos, desde 1961) a sua mãe havia celebrado com os então donos do imóvel id. em 1. e que pertence aos AA um contrato de arrendamento destinado à sua habitação, por tempo indeterminado. Está demonstrado também que a primitiva arrendatária faleceu em ../../2020 e que era a mãe da Ré. Está igualmente demonstrado que a Ré vivia com a sua falecida mãe há mais de um ano, atenta a data do óbito desta. E que a 28.01.2021 a Ré comunicou aos AA a sua intenção de ver mantido o contrato de arrendamento que antes vinculava a sua mãe» (reprodução da sentença recorrida).
Por fim, verifica-se que, à data do óbito da sua mãe, a Ré (DD)possuía uma incapacidade de 60%.
Logo, está demonstrado o preenchimento da situação prevista na al. e) do n.º 1 do art.º 57.º do NRAU, pelo que assiste à Ré (DD)o direito à transmissão da posição de arrendatário, antes detida por sua mãe, EE; e, em conformidade, não se extinguiu, por caducidade, o contrato de arrendamento em causa por morte da dita arrendatária.
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela procedência total do recurso interposto pela Ré (DD).
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V - DECISÃO
Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto pela Ré (DD)e, em consequência, em
· Revogar as alíneas b) e c) do dispositivo final da sentença recorrida, absolvendo a Ré (DD) do pedido de restituição aos Autores (AA e marido, BB, e CC) do imóvel em causa nos autos, por ser lhe ter transmitido o contrato de arrendamento antes titulado, como arrendatária, pela sua mãe, EE, com a morte da mesma.
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Custas da acção e da apelação pelos Autores (art.º 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC).
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Guimarães, 27 de Junho de 2024.
O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos
Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos; 1.º Adjunto - José Carlos Pereira Duarte; 2.ª Adjunta - Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade. [1] «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 - inwww.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem). [2]Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido». [3] A exigência de rigor, no cumprimento do ónus de impugnação, manifestou-se igualmente a propósito do art.º 685º-B, n.º 1, al. a), do anterior CPC, de 1961, conforme Ac. da RC, de 11.07.2012, Henrique Antunes, Processo n.º 781/09, onde expressamente se lê que este «especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor», constituindo «simples decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última extremidade, a seriedade do próprio recurso». [4]Professou esse entendimento o Ac. do STJ, de 17.06.2021, Ferreira Lopes, Processo n.º 3325/15.7T8SNT.L1.S1, onde se lê que um «atestado médico multiuso emitido por uma Administração Regional de Saúde, por meio de Junta Médica para verificação de incapacidades, não pode ser considerado, para efeitos probatórios, um documento autêntico», constituindo, diversamente, «uma conclusão pericial, sujeita à livre apreciação do julgador (art. 389º do CCivil)».
Contudo, em sentido contrário, Ac. do STJ, de 24.11.2016, Tavares de Paiva, Processo n.º 7531/12.8TBMTS-A.P1.S1, da 2.ª Secção, onde, por referência ao mesmo atestado médico multiuso, se lê que estamos «perante um documento autêntico (art. 369 do C. Civil), sendo que os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial respectivo, assim como os factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (art. 371 do C. Civil), força probatória esta que só pode ser ilidida pela via da falsidade, o que, aqui, manifestamente não se verificou. (art. 372 nº 1 do C. Civil)». [5]ODecreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de Maio, aprovou o regime de protecção nas eventualidades invalidez e velhice dos beneficiários do regime geral de segurança social, tendo sido desde então objecto de sucessivas alterações. [6] O regime do Sistema de Verificação de Incapacidades no âmbito da segurança social encontra-se actualmente previsto no Decreto-Lei n.º 360/97, de 17 de Dezembro. [7]Pronunciando-se (com profundidade e rigor) sobre o que seja, e como deva ser aplicado, o standard de prova, Ac. da RG, de 07.12.2013, Gonçalo Oliveira Magalhães, Processo n.º 573/20.1T8VCH.G1.