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FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
CADUCIDADE DO DIREITO À RESOLUÇÃO
MORA
ABUSO DE DIREITO
Sumário
I. Perante a ausência de pagamento das rendas cria-se por banda do senhorio o direito potestativo de resolução do contrato de arrendamento, para obstar a tal direito preceitua o art.º 1084º, nº 3, do CC, que quando a resolução pelo senhorio, opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de um mês. II. Face à resolução extrajudicial, não estamos perante o nº 1 do art.º 1048º do CC, nem a oposição no procedimento especial de despejo pode ser considerada para aplicação de tal preceito, que prevê a caducidade do direito à resolução quando o locatário proceda ao pagamento das somas devidas e indemnização até ao termo do prazo da contestação. Na verdade, este preceito é apenas aplicável quando esteja em causa uma acção e despejo onde se pretenda que opere a resolução e não no caso, como ocorre nos autos, em que a resolução já se operou por aplicação do art.º 1084º nº 2. III. Donde, perante a resolução competiria à arrendatária purgar a mora, aplicando-se para o efeito o disposto nos art.ºs 1084º nº 3, 1048º nº 4 e 1042º nº 1todos do CC, cessando a resolução caso efectue o pagamento em dívida acrescida da indemnização de 20% IV. Não constitui abuso de direito a circunstância de na notificação judicial avulsa, a senhoria não tenha feito alusão ao pagamento da indemnização devida e prevista no art.º 1041º nº 1 do CC, pois pretendendo a recorrente operar a resolução não lhe competiria fazer alusão à mesma, seria sim a arrendatária que teria o ónus de aferir a forma de purgar a mora. V. Também não preenche tal instituto, a circunstância de a senhoria aceitar o recebimento das rendas após a data em que operou a resolução, pois tal constitui um direito consagrado no art.º 1041º nº 4 do CC. (Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
A…, com domicílio em Lisboa, intentou procedimento especial de despejo contra P…, pedindo o despejo do r/c do imóvel sito na Rua … Montijo.
Para tanto, alegou a celebração de contrato de arrendamento destinado a fins não habitacionais relativamente a imóvel sito no concelho do Montijo, o incumprimento da obrigação de pagamento das rendas e a consequente cessação da relação jurídica fundada em resolução contratual.
O requerido deduziu oposição, na qual, em resumo, alegou que, logo que recebeu a notificação judicial avulsa, pagou as rendas em dívida e que, apesar de a requerente não lhe ter exigido, aquando da oposição, procedeu ao pagamento da indemnização, no valor de 20% e, assim, pôs fim à mora. E mais alegou que, de qualquer forma, a requerente tem recebido sempre as rendas e que, por isso, sempre incorreria em abuso de direito.
Por último, sustentou que, sem prescindir do alegado relativamente à cessação da mora, também é aplicável o estatuído no art.º 1048º, nº 1, do Código Civil (CC).
Tendo-lhe sido concedido direito de resposta, a requerente pugnou pela falta de razão do requerido, alegando que a resolução operada através de notificação judicial avulsa tem por base não só a falta de pagamento das rendas, mas também o pagamento da renda para além da moratória legal de oito dias, por mais de quatro meses num período de 12 meses, prevista no art.º 1083º, nº 4, do CC, e relativamente à qual o requerido não deduziu oposição. E mais alegou que, de qualquer modo, com referência ao pagamento das rendas em atraso e da indemnização de 20% atinente a essas rendas, o mesmo foi realizado extemporaneamente e que, por conseguinte, não obsta à resolução por si operada.
Após, ouviram-se as partes relativamente ao eventual conhecimento imediato do mérito da causa, ao que não se opuseram. E, nesse seguimento, complementaram as suas alegações, reafirmando as posições
defendidas em sede de oposição e de resposta.
Foi assim, proferida decisão que conclui em termos de dispositivo da seguinte forma:
“Pelo exposto, decide-se: a) julgar a oposição improcedente; b) determinar a emissão de título de desocupação do imóvel, após trânsito em julgado do presente despacho; e c) condenar o requerido no pagamento das custas, sem prejuízo isenção de que beneficia.”
A ré recorreu de tal decisão pugnando pela sua revogação e logo, a sua absolvição, concluindo da seguinte forma:
A. Não assiste qualquer razão ao tribunal a quo quando condena o Recorrente tendo por
fundamento a NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AVULSA a que se alude no ponto 6 dos factos provados.
B. Na sequência da NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AVULSA o Recorrente foi notificado para os efeitos ali expressos, ou seja, para a resolução do contrato de arrendamento não habitacional por falta de pagamento das rendas.
C. O Recorrente foi notificado do teor da notificação judicial avulsa no dia 04.07.2022.
D. Por carta com data de 18.07.2022 o Recorrente respondeu à Recorrida.
E. Na sequência de tal missiva, o Recorrido informou que tinha procedido ao pagamento da totalidade das rendas que se encontravam atrasadas na data de 08.06.2022.
F. O Recorrente, contrariamente ao que a douta decisão refere, colocou fim à mora, nos termos do disposto no art.º 1042.º do Código Civil.
G. A Recorrida não exigiu, na notificação judicial avulsa, a indemnização no valor de 20% das rendas em atraso facto que, contrariamente àquilo que defende o Tribunal a quo, tem relevo para a decisão do processo dos autos.
H. O Recorrente procedeu ao pagamento de tal montante.
I. O Recorrente cumpriu as obrigações a que estava adstrito.
J. O Recorrente pagou todas as rendas devidas pelo mesmo no âmbito do contrato de arrendamento dos autos.
K. A Recorrida, depois do pagamento referido anteriormente nada mais transmitiu ao Recorrente tendo aceite o pagamento das rendas durante todo este período.
L. A Recorrida recebeu as rendas todas até à presente data sendo certo que as aceitou e nunca mais a mesma se referiu a qualquer resolução do contrato em face do pagamento das rendas referentes à notificação judicial avulsa pelo que em face deste comportamento, sem prescindir de tudo aquilo que ficou dito anteriormente, sempre se estaria perante um manifesto abuso de direito por parte da Recorrida ao pretender a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas a que a notificação judicial avulsa diz respeito.
M. Também neste ponto andou mal o Tribunal a quo ao considerar que o comportamento da Recorrida era completamente irrelevante para o desfecho dos presentes autos.
N. Sem prescindir, o art.º 1048.º, n.º 1 é claro no que diz respeito ao procedimento de resolução ficar sem efeito nos termos ali previstos sendo que o Demandado, com o pagamento do valor indemnizatório de 20% sempre a mora do mesmo estaria ultrapassada, isto sem prescindir do que ficou dito anteriormente relativamente ao término da mora por parte do Demandante com o pagamento integral das rendas que foi efectuado.
O. A decisão recorrida violou as norma constantes dos art.ºs 1041.º, 1042.º, 1048.º do CPC.”
A Autora respondeu, arrematando que:
“1º- A falta de pagamento da renda no tempo e lugar próprios constitui violação do princípio da pontualidade, por parte do arrendatário, face ao qual o senhorio pode fazer cessar o contrato, por meio de resolução judicial ou extrajudicial - cfr. Artºs 1079.º, 1080.º, 1083.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CC, e 14.º e 15º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.
2º - Ficou provado que o requerido e aqui recorrente, ininterruptamente, não procedeu ao pagamento das rendas dos meses de Outubro de 2021 a Maio de 2022, que acabou, no entanto, por pagar em singelo no dia seguinte à notificação judicial avulsa.
3º - Dispõe o art.º 1084º, nº 3, do CC, que “a resolução pelo senhorio, quando opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário, nos termos do n.º 3 do artigo anterior, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de um mês.”
4º - Da conjugação desta norma com o estatuído no art.º 1048º, nº 4, do C.C. que preceitua que “Ao direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer, quando for exercido extrajudicialmente, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 1084º ”, retira-se que, em conformidade com o preceituado no art.º 1048º, nº1, do CC, o arrendatário, no caso de resolução extrajudicial do contrato,
poderá torná-la ineficaz, através do depósito liberatório das rendas em dívida acrescidas da indemnização de 20% estabelecida no art.º 1041º, nº 1, do CC.
5º - Todavia, tal depósito/pagamento tem que ser realizado no prazo de um mês, a contar da notificação da resolução pelo senhorio, como decorre da parte final do art.º 1084, nº 3, do CC.
6º - O art.º 1048º, nº 1, apenas, tem aplicação às situações em que o senhorio intenta acção declarativa comum para declarar a resolução do contrato e consequente despejo e não nos casos em que a resolução foi operada extrajudicialmente.
7º - Tenha-se presente, com efeito, o texto deste normativo: “1 - O direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer, quando for exercido judicialmente, caduca logo que o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da ação declarativa, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização referida no n.º 1 do artigo 1041.º” (realce e sublinhado nossos).
8º - Dispõe o art.º 1041º, nº 1, do C.C. que se o senhorio, perante a falta de pagamento das rendas, pode optar pela resolução do contrato mas fica impedido de exigir o pagamento dessa indemnização, ou seja, o senhorio apenas a poderá exigir se não quiser resolver o contrato ou se a cessação do contrato se basear nas outras causas de extinção previstas no art.º 1079º do CC.
9º - Inexiste qualquer abuso de direito por parte da requerente e ora recorrida, consubstanciado na recepção de rendas posteriores à cessação do contrato, alegado pelo recorrente, ou por ter aguardado que, voluntariamente, este lhe entregasse o prédio após a cessação operada pela NJA, porquanto esse direito encontra-se consagrado no art.º 1041º, nº 4, do CC, segundo o qual “a recepção de novas rendas ou alugueres não priva o
locador do direito à resolução do contrato ou à indemnização referida, com base nas prestações em mora.”
10º -A douta sentença subsumiu exemplarmente os factos às legais disposições e, em consequência, deverá manter-se o decidido, assim se fazendo Justiça.”.
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
* Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- Ocorre a mora consubstanciadora do despejo decretado; e
- Se o recebimento do valor da rendas e indemnização por parte do senhorio determina a sua actuação em abuso de direito.
*
II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1. 1. Por escrito particular, o pai da requerente, AR…, deu de arrendamento ao requerido que, por sua vez, o tomou de arrendamento, o rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua …, Montijo inscrito na respectiva matriz predial sob o art.º … correspondente ao antigo art.º …da mesma freguesia
2. O contrato foi celebrado pelo prazo de seis meses, com início em 01 de Dezembro de 1980, automaticamente renovável por períodos iguais e sucessivos.
3. Os contraentes acordaram o pagamento da renda mensal, no valor de PTE1.500$00, que, após sucessivas atualizações, se cifra em €56,00.
4. Os contraentes estipularam que a renda mensal será paga no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar.
5. AS… outorgou o referido contrato na qualidade de fiador e de principal pagador.
6. A requerente através de notificação judicial avulsa realizada em 07 de julho de 2022, invocando o estatuído no art.º 1083º, nºs 3 e 4, do CC, operou a resolução do mencionado contrato, com base nos fundamentos que dela constam e que se passam a reproduzir:
7. O requerido, em 08 de junho (deverá passar a constar julho, dado o manifesto lapso de escrita) de 2022, procedeu ao pagamento da quantia de €504,00 e, nessa sequência, enviou a seguinte carta à requerente:
8. Na sequência da notificação/citação realizada no âmbito do presente procedimento, o requerido, em 06 de dezembro de 2023, procedeu ao pagamento à requerente da quantia de €89,60, a título de indemnização, correspondente a 20% do valor das rendas discriminadas no ponto 9º da notificação judicial avulsa.
9. Após, a notificação judicial avulsa, a requerente aceitou o pagamento de todas as rendas que se venceram nos meses subsequentes.
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Mais se consignou que: “Todos os demais factos alegados pelas partes, considerando as soluções de direito aplicáveis ao caso concreto, por serem conclusivos e/ou matéria de direito e por desnecessidade, não se integraram no quadro factual supra fixado.”
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III. O Direito:
A questão essencial a decidir é saber se operou ou não a resolução do contrato de arrendamento existente entre as partes, ou em concreto, aferir se os depósitos efectuados pela recorrente, em dois momenos distintos, o primeiro do pagamento do valor das rendas devidas e em dívida, e o segundo da indemnização correspondente as 20% do valor dessas rendas, determinariam a caducidade do direito da Autora.
Sustenta a recorrente que ao contrário do decidido, não opera resolução do contrato, argumentando que após a notificação judicial avulsa e dado o constante da mesma, informou a Recorrida que tinha procedido ao pagamento da totalidade das rendas que se encontravam atrasadas, na data de 08.06.2022. Logo, entende que contrariamente ao que a decisão a quo refere, colocou fim à mora, nos termos do disposto no art.º 1042.º do Código Civil.
Mais invocou, em agasalho da sua pretensão de manutenção do arrendamento, que a Recorrida não exigiu, na notificação judicial avulsa, a indemnização no valor de 20% das rendas em atraso, tendo o recorrente vindo a efectuar tal pagamento já neste procedimento, pelo que cumpriu todas as obrigações a que estava adstrito.
No mais, em sustentação do abuso de direito da posição assumida pela recorrida, alega que após o pagamento do valor aludido, a Recorrida nada mais transmitiu ao Recorrente tendo aceite o pagamento das rendas durante todo este período, sendo que sempre a mora do recorrente estaria ultrapassada. Assacando à decisão a violação das normas constantes dos art.ºs 1041.º, 1042.º, 1048.º do CPC.
A Autora, pugnando pela confirmação da decisão respondeu, arrematou que, contrariamente ao defendido pelo recorrente, não está em causa a resolução judicial, mas sim a extrajudicial, pelo que não tem aplicação o disposto no art.º 1048º nº 1 do CC. Quanto ao abuso de direito, alega que o mesmo não existe, pois, é o próprio art.º 1041º nº 4 do CC que permite a recepção de rendas posteriores à cessação do contrato.
Com efeito, não há dúvida que estamos perante um contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais, com todas as características enunciadas na decisão recorrida, sem que exista discussão sobre as mesmas, pelo que apenas haverá que aferir se operou validamente a cessação de tal contrato.
Nos termos do disposto no art.º 1079º do CC, o arrendamento urbano cessa por
acordo das partes, resolução, caducidade, denúncia ou outras causas previstas na lei.
Sobre o caso expôs-se na decisão recorrida que: “(…) verifica-se que as partes reduziram o contrato a escrito e que, relativamente ao pagamento da renda, no valor de atual de €56,00, convencionaram que a mesma vencer-se-ia no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar. Vejamos, então, o que nos diz a Lei relativamente à obrigação de pagamento da renda. Sob a epígrafe Tempo e lugar do pagamento, o art.º 1039º do CC preceitua que: 1. O pagamento da renda ou aluguer deve ser efetuado no último dia de vigência do contrato ou do período a que respeita, e no domicílio do locatário à data do vencimento, se as partes ou os usos não fixarem outro regime. Decorre desta norma que senhorio e inquilino, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, aflorado no art.º 405º, nº 1, do CC, são livres de fixar a data em que se vence a obrigação de pagamento da respetiva renda. E, assim sendo, é incontroverso que a cláusula convencionada pelas partes relativamente à data do vencimento da renda é válida, enquadrando-se, aliás, nos usos do mercado de arrendamento. Tendo, então, as partes estipulado que a renda se vence no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeita, coloca-se a questão de saber quais as consequências da falta de pagamento da renda nesse dia. A solução encontra-se plasmada no art.º 1041º do CC que, sob a epígrafe Mora do locatário, estipula o seguinte: 1 - Constituindo-se o locatário em mora, o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual a 20 % do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento. 2. Cessa o direito à indemnização ou à resolução do contrato, se o locatário fizer cessar a mora no prazo de oito dias a contar do seu começo. Decorre, então, desta norma que, no caso de o arrendatário não pagar a renda na data do seu vencimento, goza de uma moratória de oito dias, para pagar a renda sem qualquer acréscimo e que, se deixar passar esse período sem proceder ao pagamento, o senhorio, para manter o contrato, poder-lhe-á exigir o pagamento de indemnização igual a 20% do que for devido.(…)”
Quanto à existência de mora, na apreciação do caso, prossegue de forma correcta o Tribunal a quo quando refere que: “(…) verifica-se que, efectivamente, o requerido, em conformidade com o quadro que consta do ponto 6º da notificação judicial avulsa, de maio a outubro de 2021, pagou todas as rendas para lá da moratória legal de oito dias.”. Sendo que não está em causa tal mora quanto à possibilidade de resolução, mas sim a falta absoluta do pagamento do valor das rendas em determinado período.
Logo, aqui chegados importa saber se face à mora, consubstanciada na falta de pagamento das rendas devidas, poderia a recorrida resolver o contrato.
Resulta dos factos que o recorrente estaria em dívida para com a recorrida quanto aos valores das rendas relativas aos meses de novembro e dezembro de 2021 e de janeiro a junho de 2022.
Ora, a falta de pagamento da renda no tempo e lugar próprios constitui violação do referido princípio da pontualidade, por parte do arrendatário, face ao qual o senhorio pode fazer cessar o contrato, por meio de resolução judicial ou extrajudicial (cfr. Art.ºs 1079.º, 1080.º, 1083.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CC, e 14.º e 15º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro).
Com efeito, a obrigação principal do locatário, como contrapartida do gozo do locado, consiste no pagamento da renda ao locador, no tempo e lugar consagrados na lei, salvo estipulação em contrário -arts. 1038.º, al. a) e 1039.º, n.º 1 do C.Civil. Logo, no caso de o arrendatário não pagar ao senhorio a renda acordada durante três meses, forma-se na esfera jurídica deste o direito potestativo de resolver o contrato de arrendamento – arts. 1079.º do CC (na Redação da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro). Esse direito, sendo a causa da resolução o não pagamento das rendas, pode ser exercido judicial ou extrajudicialmente (art.º 1047.º do CC, na Redação da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro).
Quando exercido judicialmente, será com recurso à ação de despejo regulada no art.º 14.º do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, caso em que o direito à resolução caduca logo que o arrendatário, até ao termo do prazo para a contestação da ação declarativa, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização referida no n.º 1 do art.º 1041.º (art.º 1048.º, n.º 1, do CC, Redação da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto ).
No entanto, quando tal direito seja exercido extrajudicialmente, o mesmo é realizado através de comunicação ao arrendatário, nos termos do art.º 1084.º, n.º 2, do CC, caso em que deverão ser observados os formalismos previstos no art.º 9.º, n º 7, do NRAU, ou seja, devendo a notificação ser efectuada mediante notificação avulsa, ou mediante contacto pessoal de advogado, solicitador ou solicitador de execução, comprovadamente mandatado para o efeito.
No caso em apreço, ficou demonstrado que o recorrente, ininterruptamente, não procedeu ao pagamento das rendas aludidas (relativas aos meses de novembro e dezembro de 2021 e de janeiro a junho de 2022), fazendo nascer na esfera jurídica da recorrida o direito de resolução do contrato nos termos do art.º 1083º nº 3 do CC. Acresce que se logrou provar que, face ao incumprimento do arrendatário, a recorrida procedeu à notificação judicial avulsa do mesmo, comunicando-lhe a resolução do contrato, a qual se operou a 7/07/2022. Em resposta, veio a recorrente a 8 de 2022, informar e procedeu ao pagamento da quantia de €504,00, sendo que tal valor corresponde ao pagamento das rendas devidas até essa data, em singelo.
Na sequência, veio a recorrida intentar o presente procedimento especial de despejo a 12/12/2023, pelo que haverá que apreciar se tal pagamento determinou ou não a caducidade da resolução, ou mais concretamente se tal pagamento torna a resolução ineficaz e repristina o contrato de arrendamento.
O procedimento especial de despejo previsto no artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2006, de 27.2, é o meio processual que se destina a efectivar a cessação do arrendamento quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes. Sendo que, no caso que nos ocupa, prevê-se no nº 2 alínea e) do mesmo preceito que serve de base ao procedimento especial de despejo independentemente do fim a que se destina o arrendamento, em caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil, bem como, quando aplicável, do comprovativo, emitido pela autoridade competente, da oposição à realização da obra. Como bem alude Teixeira de Sousa (in “Temas de Direito de Arrendamento”, pág. 134 e ss.) trata-se de um meio de tutela especial e sincrético, i.e. declarativo e executivo, visando os actos de apreensão e entrega do imóvel arrendado, ou a realização coactiva da obrigação de restituição do locado, por termos do contrato.
Manifestamente, no caso, a recorrida lançou mão da resolução conferida pelo art.º 1083º nº 3, fazendo-o por referência ao art.º 1084º nº 2 ambos do CC, conjugando ainda pelo art.º 9.º, n º 7, do NRAU.
Perante tal accionamento do direito potestativo que assistia à senhoria, para obstar a tal direito preceitua o art.º 1084º, nº 3, do CC, que quando a resolução pelo senhorio, opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de um mês.
Acresce que a par de tal norma, estatui-se no art.º 1048º nº 4 do CC que o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer, quando for exercido extrajudicialmente, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 1084.º. Logo, não estamos perante o nº 1 do art.º 1048º do CC, nem a oposição no procedimento especial de despejo pode ser considerada para aplicação de tal preceito, que prevê a caducidade do direito à resolução quando o locatário proceda ao pagamento das somas devidas e indemnização até ao termo do prazo da contestação. Na verdade, este preceito é apenas aplicável quando esteja em causa uma acção e despejo onde se pretenda que opere a resolução e não no caso, como ocorre nos autos, em que a resolução já se operou por aplicação do art.º 1084º nº 2.
Assim, face à resolução extrajudicial haverá que considerar a remissão feita no art.º 1048º nº 4 do CC para o previsto no art.º 1084º nº 3, pelo que à resolução operada nestes autos nos termos sobreditos, poderia o arrendatário obter a cessação dos seus efeitos desde que pusesse “fim à mora no prazo de um mês”.
Donde, perante a resolução competiria à arrendatária purgar a mora, e é nesta questão que manifestamente não assiste à recorrente.
A propósito de tal temática importa ter presente o exposto por Albertina Pedroso, (in A resolução do contrato de arrendamento no novo e novíssimo regime do arrendamento urbano, na revista Julgar, n.º 19, 2013), ainda que face à redacção anterior do art.º 1041º, mas cujo princípio se mantém, ao referir que:
«Diz-nos ainda o artigo 1041.º, n.º 1, que se o locatário se constituir em mora, entenda-se mora relevante em face do que dispõe o seu n.º 2, o locador tem o direito de exigir, além das rendas em atraso, uma indemnização igual a 50% do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento. Como entender então, em face deste referido normativo, o segmento do n.º 4 do artigo 1083.º quando refere a final “não sendo aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo seguinte”, ou seja, não permitindo que, nestes casos, o arrendatário possa pôr fim à mora no prazo de um mês, pagando a renda e a indemnização?
De facto, perante o que dispõem os n.ºs 3 e 4 do artigo 1041.º, torna-se difícil entender o respectivo alcance porquanto segundo estes, quando o arrendatário se constitui em mora relevante, o senhorio tem o direito de recusar o recebimento das rendas seguintes, mas se as receber tal não o priva do direito à resolução do contrato ou à indemnização referida. Porém, tem de optar: ou resolve o contrato e tem direito ao pagamento das rendas em singelo; ou recebe a indemnização e tal não lhe dá lugar à possibilidade de accionar a sanção para o incumprimento que consiste na possibilidade de resolver o contrato.
Por seu turno, o artigo 1042.º do CC, com a redacção introduzida pela Lei n.º 31/2012, sob a epígrafe, Cessação da mora, dispõe que: «1. O locatário pode pôr fim à mora oferecendo ao locador o pagamento das rendas ou alugueres em atraso, bem como a indemnização fixada no n.º 1 do artigo anterior. 2. Perante a recusa do locador em receber as correspondentes importâncias, pode o locatário recorrer à consignação em depósito».
Ora, da própria epígrafe do preceito decorre que a mora cessa nos termos do preceito, ou seja, quando o locatário que se encontra em mora pagar as rendas acrescidas da indemnização. Nessa ocasião, o locatário faz cessar a mora, põe fim à mesma, ou seja, deixa de estar em mora e, como tal, cessa a situação de incumprimento em que se encontrava. Portanto, se a mora cessa quando o arrendatário paga a indemnização - e não se diga que este preceito é apenas para a locação porquanto o mesmo refere-se claramente ao pagamento das rendas ou alugueres, pelo que também se aplica ao arrendamento - mesmo que esta situação aconteça mais do que 4 vezes num ano, não pode depois esta mora “renascer” para que o locatário se considere constituído em mora nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1083.º, n.º 4, porquanto ele constituiu-se em mora, mas fê-la cessar nos termos da lei.
Acresce que, a lei nestes casos, nem sequer dá ao senhorio a possibilidade de não aceitar a indemnização. De facto, se ele se recusar a receber estas importâncias, o locatário pode recorrer à consignação em depósito, purgando a mora, ou seja, acabando com a situação de incumprimento em que se encontrava passível de fundar a resolução do contrato.
Ora, se assim é, e se no n.º 4 do artigo 1083.º o legislador impede o arrendatário de purgar a mora nos casos de reiteração do atraso no pagamento da renda, afastando a aplicação do artigo 1084.º, n.º 3, do CC, em face da sua conjugação com o preceituado nos artigos 1041.º e 1042.º do CC, pensamos que a interpretação mais adequada daquele preceito, só pode ser a de que o referido fundamento de resolução se aplica aos casos em que o arrendatário pagou a renda mais de oito dias depois da data contratualmente fixada e a renda foi recebida em singelo pelo senhorio, porquanto a recepção de novas rendas não priva o locador do direito à resolução do contrato de arrendamento — artigo 1041.º, n.º 4.
Desta sorte, nos casos em que o arrendatário se constituiu em mora relevante, nos termos sobreditos, por mais de 4 vezes seguidas ou interpoladas, e ainda se encontra em mora aquando da resolução pelo senhorio - note-se que o legislador expressamente refere “no caso de o arrendatário se constituir em mora”, e não “no caso de o arrendatário se ter constituído em mora”, inculcando precisamente a ideia de que o arrendatário ainda está numa mora operante quando o senhorio decide resolver o contrato -, deve entender-se que o legislador considera que tal constitui um comportamento que compromete de tal forma irremediavelmente o sinalagma contratual que torna, sem mais, inexigível a manutenção do contrato, não lhe sendo consequentemente possível purgar agora a mora que não fez oportunamente cessar nos termos em que os artigos 1041.º e 1042.º o admitiam a fazer, cessando o incumprimento.
Caso, porém, o arrendatário se tenha constituído em mora relevante que haja oportunamente purgado com o pagamento da indemnização de 50%, por via do artigo 1041.º, n.º 1 ( actualmente 20%), deve entender-se, em face da previsão do artigo 1042.º que aquele fez cessar a mora, aceitando obrigatoriamente o senhorio a indemnização como compensação pelo incumprimento e, como tal, este não pode depois “renascer” para fundar a grave sanção agora consagrada no n.º 4 do artigo 1083.º, e que se reporta a uma mora operante.
Este entendimento é o único que se nos afigura efectuar uma interpretação harmoniosa do sistema, acrescendo que a defesa do contrário, ou seja, de que o fundamento de resolução previsto no n.º 4 do artigo 1083.º do CC, se verifica mesmo que tenha havido cessação da mora, em face de um comportamento do arrendatário e do senhorio que tem uma relevância concludente que se encontra legalmente estabelecida quanto ao pagamento pelo arrendatário da indemnização, atentaria contra a boa fé e constituiria mesmo abuso de direito, instituto que em face dos referidos normativos sempre poderá ser usado pelo arrendatário como meio de defesa em sede de oposição.
Na verdade, ainda que pudesse ter sido essa a intenção do legislador, - e admitimos que sim, talvez pensando nos casos em que as rendas são de baixo valor e este procedimento do pagamento da indemnização beneficia o arrendatário -, o seu pensamento deveria ter na letra da lei um mínimo de correspondência expressa, como resulta do disposto no artigo 9.º, n.º 2, do CC, - o que, salvo o devido respeito, não acontece no referido preceito legal -, para do mesmo se poder retirar que se aplica aos casos em que o arrendatário fez cessar a mora nos termos dos indicados normativos, caindo este argumento se tivermos em conta que a lei também se aplica aos casos em que as rendas são elevadas, e aí existiria um claro benefício do senhorio com a possibilidade de receber a indemnização e, ainda assim, fazer operar a resolução. Pelas razões expostas, é nosso entendimento que o novo fundamento de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio com base na existência de mora superior a oito dias apenas se aplica aos casos em que a mora do arrendatário se mantenha operante aquando da comunicação e não tenha cessado por força do oportuno pagamento da indemnização devida, nos termos dos artigos 1041.º e 1042.º do CC.».
No caso dos autos, já não estamos perante o nº 4 do art.º 1083º, mas sim perante o nº 3, logo, relativamente ao depósito dito liberatório tem que ser realizado no prazo de um mês, a contar da notificação da resolução pelo senhorio – cf. art.º 1084º nº 3. E esse depósito só será liberatório e porá fim à mora, caso obedeça ao previsto no art.º 1042º do CC, ou seja, além do pagamento do valor das rendas devidas, deverá ainda o arrendatário proceder ao pagamento da indemnização correspondente a 20% do valor em dívida.
A recorrente apenas efectuou, no prazo, o pagamento do valor das rendas em singelo, porém, não poderia desconhecer que esse pagamento, tendo em vista por fim à mora, teria de ser efectuado nos termos do art.º 1042º do CC. Aliás, não pode pretender invocar que na notificação judicial avulsa a recorrida não tenha feito alusão ao pagamento da indemnização devida e prevista no art.º 1041º nº 1 do CC, pois pretendendo a recorrente operar a resolução não lhe competiria fazer alusão à mesma, seria sim a arrendatária que teria o ónus de aferir a forma de purgar a mora. Importa ainda referir que na notificação avulsa em causa não alude a recorrida aos valores em dívida, tendo sido opção da recorrente proceder ao pagamento do valor de 504€, valor esse que corresponde aos meses em falta – 9 meses x 56€ mensais de renda.
Com efeito, sob a epígrafe “cessação da mora”, prevê o art.º 1042º do CC que o locatário pode pôr fim à mora oferecendo ao locador o pagamento das rendas ou alugueres em atraso, bem como a indemnização fixada no n.º 1 do artigo anterior.
Como bem se alude no Acórdão da Relação de Coimbra de 30/04/2019 ( proc. nº 4072/18.3T8CBR.C1, in www.dgsi.pt): 1 - Caso a renda não seja paga no primeiro dia útil, pode ainda ser paga nos 8 dias seguintes sem qualquer sanção/indemnização para o inquilino. 2 - A partir daqui – decorridos os 8 dias seguintes sem a renda ser paga – o senhorio pode em alternativa exigir (além, claro está, das rendas em atraso) a indemnização pela mora (20% na redacção do recente DL 13/2019 e, antes, 50%) ou resolver o contrato (cfr. art.º 1041.º/2 do C. Civil). 3 - Exercido tal direito “alternativo” – optando o senhorio pela resolução – o que acontece a seguir decorre e convoca o que se dispõe no art.º 1084.º/3/parte final do C. Civil, segundo o qual a resolução contratual declarada não opera imediatamente, uma vez que, com a declaração resolutiva, se inicia o prazo de 1 mês para o arrendatário pôr fim à mora e assim neutralizar/impedir que se operem os efeitos extintivos da declaração resolutiva efectuada pelo senhorio. 4 - Ou seja, para impedir tais fins extintivos (e o fim do contrato) tem o inquilino que “oferecer” o pagamento da indemnização dos (actuais) 20% (antes 50%), uma vez que, como resulta do art.º 1042.º do C. Civil, só põe fim à mora se oferecer o pagamento das rendas ou alugueres em atraso, acrescido da indemnização fixada no art.º 1041.º/1 do C. Civil.”( sublinhado nosso).
Do exposto, resulta que competiria ao locatário purgar a mora nos termos previstos em tal preceito, sendo esta a forma de obstar à resolução, ou seja, efectuar o pagamento do valor das rendas devidas acrescidas da indemnização de 20%, no prazo de um mês – cfr. Art.º 1084º nº 3 e 1042º, ambos do CC. Considerando que no caso concreto a recorrente perante a comunicação da resolução apenas efectuou, em prazo, o pagamento das rendas em singelo, mantém-se a mora, em nada relevando o pagamento da indemnização já face ao procedimento especial de despejo deduzido pela arrendatária.
Destarte haverá que confirmar o juízo efectuada na decisão recorrida e considerar válida e eficaz a resolução do contrato operada pela arrendatária.
No que diz respeito ao abuso de direito convocado pela recorrente, antecipando, também aqui não lhe assiste razão.
Como bem se alude na decisão sob recurso: “Acresce que a tese defendida pelo requerido no sentido de que a requerente não lhe exigiu a dita indemnização, não merece acolhimento legal. Com efeito, resulta do art.º 1041º, nº 1, que se o senhorio, perante a falta de pagamento das rendas, optar pela resolução do contrato, está impedido de exigir o pagamento dessa indemnização, ou seja, o senhorio apenas a poderá exigir se não quiser resolver o contrato ou se a cessação do contrato se basear nas outras causas de extinção previstas no citado art.º 1079º do CC. O requerido alega também em sua defesa que o facto de a requerente, após a resolução do contrato ter continuado a receber as rendas constitui abuso de direito, mas sem razão, porquanto esse direito encontra-se consagrado no art.º 1041º, nº 4, do CC, segundo o qual a recepção de novas rendas ou alugueres não priva o locador do direito à resolução do contrato ou à indemnização referida, com base nas prestações em mora. E, assim sendo, sem necessidade de mais considerandos, ter-se-á que julgar a oposição improcedente.”.
Com efeito, do art.º 334º do Código Civil resulta que é abusivo (ou ilegítimo) o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé ocorre quando o titular do direito viola o princípio da confiança que nele foi depositada pela contraparte, através da prévia aquisição da expectativa de uma conduta de sinal contrário à que se mostra adoptada. Este sentido interpretativo é aquele que é seguido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como no acórdão de 12/2/2009 (relatado por Azevedo Ramos e disponível em www.dgsi.pt), aí se referindo que “no âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória (venire contra factum proprium), que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara”. E no mesmo acórdão refere-se ainda que “o abuso do direito só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do direito e da justiça”.
Também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/11/2010 (relatado por Sebastião Póvoas e disponível em www.dgsi.pt), é afirmado que o abuso de direito, “tal como resulta do seu “nomen juris”, pressupõe a existência de um direito radicado na esfera do titular, direito que, contudo, é exercido por forma ilegítima por exceder manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico (artigo 334.º do Código Civil).
Logo, o preceito em causa tem ínsito que o abusador surja titular de um direito subjectivo, ou de parte dele e que ou o utiliza licitamente – dentro dos limites do direito objectivo – ou ultrapassa limites que a ética, a boa fé e o fim social não toleram. Assim, são os casos de “venire contra factum proprium”, em que o exercício contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo agente (Cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2007 – 07 A1180, desta Conferência e de 30 de Março de 2006 – P.º 3921/05, 4.ª). Pelo que o ponto de partida é uma anterior conduta de um sujeito jurídico que “objectivamente considerada é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira.” (cf. Prof. Baptista Machado, apud “Obra Dispersa”, 1, 415 e ss).
Na base estará uma situação de confiança, cujos pressupostos desta modalidade de abuso do direito são os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, desde logo não se verifica qualquer actuação de sinal contrário da A., no sentido de considerar que a falta de pagamento das rendas pela R. não conduzia à possibilidade de fazer uso do seu direito à resolução contratual, fazendo depois uso daquele direito. O facto de ter aceite o pagamento em singelo do valor das rendas devidas não é concludente na situação de considerar expurgada a mora, nem o pagamento ocorrido doravante criou qualquer expectativa, pois a recorrente manteve-se a ocupar o locado. Acresce que o recorrente tinha perfeita consciência que não havia cessado a mora, pois na sequência da notificação/citação realizada no âmbito do presente procedimento, a 6 de dezembro de 2023, procedeu ao pagamento à requerente da quantia de €89,60, a título de indemnização, correspondente a 20% do valor das rendas discriminadas no ponto 9º da notificação judicial avulsa. Sendo manifesto que nessa data já havia decorrido o prazo para que se pudesse considerar tal pagamento como obstaculativo da resolução, tendo já precludido o direito da arrendatária, que disponha para o efeito do prazo de um mês, após a notificação judicial avulsa. Por outro lado, como vimos, o recebimento das rendas após a data em que operou a resolução, constitui um direito consagrado no art.º 1041º nº 4 do CC, não integrando tal actuação do senhorio em abuso de direito, mas sim como direito que decorre directamente da lei.
De tudo o exposto, resulta que improcede a apelação.
As custas são devidas pelo recorrente, pois não está em causa a isenção prevista na alínea e) do art.º 4º do RCP, pois esta apenas ocorre quando os partidos políticos actuem no contencioso previsto nas leis eleitorais, cujos benefícios não estejam suspensos, e não nas questões em que actuam como qualquer particular, como é o caso.
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Réu e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo apelante
Registe e notifique.
Lisboa, 4 de Julho de 2024
Gabriela de Fátima Marques
Nuno Lopes Ribeiro
Anabela Calafate