CONTRATO DE SEGURO
ANULABILIDADE
OMISSÕES E INEXATIDÕES DOLOSAS
ABUSO DE DIREITO
Sumário

(elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil)
I. Nos termos do artigo 25º do RJCS, a anulabilidade do contrato de seguro com fundamento em “omissões ou inexatidões dolosas” não está, conforme resulta do seu teor, dependente da verificação de um nexo de causalidade entre a verificação ou as consequências do sinistro e o facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões (contrariamente ao que sucede no cado das “omissões ou inexatidões negligentes”).
II. Perante as declarações inexatas do segurado nas quais havia fundado a sua decisão de contratar e que, conforme se veio a constatar, não correspondiam à verdade, a Ré limitou-se a exercer o direito de anular a apólice de seguro que lhe é conferido pelo citado normativo. E não se vislumbra em que medida a invocada imprevisibilidade da doença que infelizmente veio a causar a morte do marido da autora ou o hiato temporal que decorreu entre a conclusão do contrato de seguro e o aparecimento dessa doença são suscetíveis, por si só, de tornar ilegítimo o exercício desse direito por parte da Ré.

Texto Integral

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:

M, residente (…), intentou a presente ação declarativa de processo comum contra Seguros, S.A. e Banco S.A., pedindo que:
a) Se reconheça e declare válido o contrato de seguro celebrado entre a Autora e a 1ª Ré e, em consequência, que se condene:
b) a 1ª Ré, a liquidar o sinistro em causa nos autos, procedendo ao pagamento a favor da 2ª Ré da quantia de €57.295,04, quitando-se o respetivo mútuo; e,
c) a 2ª Ré, a restituir à Autora as prestações indevidamente suportadas por esta, desde o falecimento de seu marido, no valor de €2.207,10.
d) Se condene a 1ª Ré no pagamento à Autora, a título de reparação de danos não patrimoniais, em valor não inferior de €7.500,00;
e) Aos referidos valores acresçam juros à taxa legal desde a citação até efetivo recebimento.
Para tanto e em síntese, alega que ela e seu marido, C, em 07/12/2017, adquiriram a fração autónoma “B”, para habitação, correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito (…). Para aquisição da dita fração, na mesma data, celebraram com a 2ª Ré um contrato de mútuo com hipoteca, no valor de €65.000,00. Ainda nessa data, foi celebrado com a então Seguradora (…) um contrato de seguro de vida, titulado pela apólice n.º 000 e representado pelo produto denominado “(…) Crédito Casa 2.0”, Opção 2PS 1005 morte + IAD, com efeitos a partir de 07/12/2017 e com resolução a 07/12/2037, ou seja, pelo período de 20 anos.
Acontece que a 05/05/2020, em Luanda-Angola, o marido da Autora faleceu, devido a um “tumor hemisfério esquerdo Cérebro A 60”.
Na sequência do óbito, a Autora realizou a participação do sinistro e solicitou a liquidação e pagamento do capital segurado.
Na sequência do curso do respetivo processo de sinistro, recebeu uma comunicação datada de 23/06/2021, através da qual a 1ª Ré, com fundamento na existência de inexatidões e omissões na proposta de seguro (existência de patologias reportadas ao ano de 2010 e não declaradas à data da celebração do contrato), deu por anulado o contrato de seguro em causa e recusou-se a liquidar o capital seguro.
Considera que a conduta da 1ª Ré implica um manifesto abuso de direito, pois anulou unilateralmente um contrato sem que tenha exigido, aquando da sua celebração, mais informações específicas, violando o princípio da transparência na vertente do conhecimento efetivo e completo do clausulado pela contraparte.
Mais alega que em consequência da recusa da 1ª Ré sofreu danos não patrimoniais.
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Regularmente citadas, ambas as Rés contestaram.
A Ré Seguradora alega que aquando da subscrição da proposta de seguro o falecido C, tal como a Autora, não comunicaram à Ré ou ao agente de seguros qualquer facto ou circunstância para além dos seus dados pessoais. Nessa ocasião, aquando da realização do questionário clínico, efetuado através de entrevista telefónica, o falecido C não comunicou que padecesse de alguma patologia ou que efetuasse algum tratamento, designadamente medicamentoso. Sabiam, a Autora e o falecido, que era essencial para a apreciação do risco a resposta exata às questões colocadas naquela proposta quanto aos antecedentes e histórico clínico e de saúde. Em virtude das declarações prestadas pelo segurado falecido aquando da contratação, e tendo-se este declarado saudável e sem qualquer sintomatologia, patologia, lesão, doença, acidente ou tratamento anterior ou atual, a Ré aceitou celebrar o contrato de seguro e fixar o prémio de seguro inicial, quanto à anuidade de 2017, no valor mensal de €30,27, o qual passou a ser €30,29 na anuidade de 2018, de €35,01, na anuidade de 2019 e de €39,21 na anuidade de 2020.
Sucede que em maio de 2021, na sequência da participação do sinistro, ficou demonstrado que o segurado, aquando da apresentação da proposta do contrato de seguro, proferira declarações falsas, ocultando à Ré que sofria de múltiplas doenças e tomava diversa medicação diária. Caso a Ré tivesse conhecimento de tal quadro clínico grave, indiciador e demonstrativo de doença de diabetes, hipertensão e colesterol – a par do tabagismo crónico (também omitido) – não teria celebrado com a o segurado falecido qualquer contrato de seguro, fosse em que que circunstâncias fosse. Ao invés, teria exigido, como condição imprescindível e insuprível para a celebração do contrato de seguro, a prévia realização pelo Segurado de exames de diagnóstico aptos a detetar a existência de tais doenças. Aquelas doenças, são fatores de risco, causa de sequelas graves e geradoras de incapacidade total permanente e/ou morte. Assim sendo, havia fundamento para a anulação do contrato de seguro tal como foi efetuado.
 O Réu Banco alega que é alheio ao contrato de seguro e às suas vicissitudes, pois nele não interveio, impugnando tudo quanto a tal propósito é alegado pela Autora.
Mais refere não alcançar o pedido da Autora, concretamente, no que se refere ao ressarcimento das prestações pagas desde dezembro de 2017, considerando que o óbito do mutuário ocorreu em maio de 2020.
Conclui defendendo a improcedência, quanto a si, da ação.
*
Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi proferida sentença cujo segmento decisório aqui se reproduz:
VI - Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente ação improcedente, por não provada e, consequentemente, absolvo os Réus SEGUROS S.A. e BANCO S.A., do pedido deduzido pela Autora.
(…).
*
Não se conformando com essa sentença a Autora dela interpôs recurso, pedindo a sua revogação e substituição por outra que julgue procedente a ação.
Formulou as seguintes conclusões:

A sentença recorrida julgou improcedente a ação instaurada pela Apelante e absolveu os Apelados do pedido deduzido.

Com efeito, inicialmente verifica-se que os pontos da matéria de facto, dada como provada, de “1” a “15”, encontram-se incompletos.

Visto que deveria constar dos mesmos, o Relatório de Autópsia, do marido da Apelante, junto aos autos pela petição com ref: Citius nº 4522087, de 04-04-2023,

Cuja leitura indica que a causa da morte do marido da Apelante, foi um tumor cerebral, de 3x3cm de dimensão, no parênquima do hemisfério esquerdo do cérebro, com “Conclusão Médico-Legal”, de “Tumor”, com código “A-60”.

Pelo que, urge ser alterada a matéria de facto dada como provada para que, da mesma (…) passe a constar que:
«A causa da morte do marido da Autora, Sr. C, foi um tumor cerebral, com 3x4cm de dimensão, localizado na parênquima do hemisfério esquerdo do cérebro, com “Conclusão Médico-Legal”, de “Tumor”, com código “A-60”».

Devendo, nesta parte, ser provido o presente recurso para que a matéria de facto dada como provada seja alterada, com inclusão do novo ponto acima transcrito, julgando-se, por consequência, a ação totalmente procedente por provada.

Caso assim não se entenda, em caráter subsidiário, verifica-se que ao inserir e considerar o Relatório Médico-Legal de Autópsia, no rol de factos provados, a sentença recorrida violou o disposto pelo artigo 607.º, nº 4, do Código de Processo Civil, por ausência de juízo crítico (enquanto prova científica) desta prova documental, que constitui juízo técnico-científico em caráter tout court.

Sem se olvidar que, por outro lado, na sua fundamentação afirmou (em caráter genérico e abstrato, «…Consequentemente, o facto de o Segurado ter falecido devido a um “tumor hemisfério esquerdo Cérebro A 60”, em nada contende com invalidade de que está ferido o contrato de seguro vida em apreço, por força das declarações inexatas proferidas pelo mesmo, em nossa opinião de forma necessariamente dolosa, aquando da subscrição do respetivo contrato».

Salvo o devido respeito, tal inserção, em sede de fundamentação não demonstra, de per si, qualquer nexo de causalidade com eventual “omissão de informações aquando da subscrição do seguro, visto que uma morte futura, com um “tumor cerebral” era e é, segundo as regras da experiência comum IMPREVISÍVEL, ou seja, se o contrário fosse, então NENHUM SEGURO seria liquidado e pago, por motivo de doença, no mercado.
10º
Por consequência, a decisão posta em crise, nesse juízo de apelo, nos moldes em que foi proferida, acarreta, salvo o devido respeito, ao abrigo do disposto pelo artigo 334.º, do Código Civil, abuso de direito, por parte dos Apelados em detrimento da posição da Apelante-viúva.
11º
Pois, ao não se liquidar e pagar um seguro, no qual o segurado falece por causa imprevisível a formação e conclusão do contrato, salvo o devido respeito, excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé e o fim social desse direito, pois se assim fosse, repita-se, nenhum contrato é liquidado e pago.
12º
Especialmente, levando-se em consideração, o hiato temporal entre a conclusão do contrato e o aparecimento do tumor e, aquando da conclusão do contrato, nenhuma TAC ter sido solicitada.
13º
Tendo, assim, a sentença recorrida violou o disposto pelo artigo 334.º, do Código Civil, devendo ser revogada e, por consequência, mesmo por questão de Direito, a ação deverá ser julgada procedente por provada.”
*
Notificadas ambas as Rés do recurso interposto pela Autora, apenas a Ré Seguradora contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
1. Insurge-se a Recorrente contra a apreciação da prova preconizada pela Mma. Juiz a quo e com o enquadramento jurídico dos factos considerados provados.
2. Não lhe assiste, porém, qualquer razão quer no que respeita à matéria de facto considerada como provada, quer quanto à matéria de direito invocada, nem quanto, e em geral, sobre toda a sua linha de argumentação, cujo conteúdo se encontra totalmente esvaziado e desprovido de qualquer correspondência com a prova produzida e constante nestes autos.
3. Ao contrário do alegado pela Recorrente, a lista dos factos considerados provados pelo Tribunal a quo não se encontra incompleta, não se vislumbrando a existência de qualquer motivo para a inclusão de um (novo) ponto na matéria de facto sobre a causa da morte do marido da Autora.
4. Tal matéria já se encontra na lista de factos provados, nomeadamente no ponto 4 da lista de factos provados (cfr. página 5 da Sentença), o qual refere, expressamente, que: “A 05/05/2020, em Luanda-Angola, o marido da autora faleceu, com causa de “tumor hemisfério esquerdo Cérebro A 60”.
5. Também ao contrário do alegado, o Tribunal a quo analisou e teve em consideração toda a prova documental junta ao processo, nomeadamente, o teor do invocado relatório médico-legal de autópsia (aliás, junto ao processo por determinação oficiosa do Tribunal).
6. Neste sentido, explicou o Tribunal a quo, na fundamentação da matéria de facto, (na página 7 da Sentença) que :“Ao considerar demonstrados os factos constantes dos pontos 1., 2., 3., 4., 5., e 6. da Matéria de Facto Provada, o Tribunal atendeu ao Assento de Casamento constante de fls. 8 verso, à escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca e documento complementar, constantes de fls. 9 a 22, Condições Particulares da Apólice de Seguro constantes de fls. 22 versos a 24; Assento de Óbito constante de fls. 24 verso a 26 e Relatório Médico-legal constante de fls. 77 e carta constante de fls. 30.” (sublinhado nosso).
7. Matéria que depois, e demonstrando o Tribunal a quo estar perfeitamente ciente da causa da morte e do teor e/ou dos elementos constantes do relatório de autópsia, voltou a mencionar na parte final do enquadramento jurídico da questão (página 15 da Sentença), onde, concluiu: “Consequentemente, o facto de o Segurado ter falecido devido a um “tumor hemisfério esquerdo Cérebro A 60”, em nada contende com invalidade de que está ferido o contrato de seguro vida em apreço, por força das declarações inexatas proferidas pelo mesmo, em nossa opinião de forma necessariamente dolosa, aquando da subscrição do respetivo contrato.”
8. Finalmente, cumpre salientar que a Recorrida/Seguradora não excedeu os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social do direito em questão. Inexistindo qualquer abuso de direito da sua parte.
9. Quem falhou com as suas obrigações e deveres, e, em geral, com o princípio da boa-fé, a que as partes, aquando da celebração de um contrato de seguro, estão sujeitas, foi a Recorrente e Segurado falecido, que, entre outros normativos legais, violaram o disposto nos artigos 227.º do Código Civil, artigos 24.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, artigos 3.º e 4.º das Condições Gerais da Apólice.
10. A Recorrente e o Segurado falecido, tendo sido confrontados com um questionário clínico por parte da Seguradora, com diversas perguntas sobre o seu estado de saúde, antecedentes e condição clínica, nada referiram quanto ao acompanhamento médico de que o Segurado falecido vinha a ser alvo desde, pelo menos, 2010, de que padecia de diabetes melitus tipo 2, hipertensão arterial, obesidade grau 2, hiperuricemia, dislipidemia mista, esteatose hepática, hipervitaminose D e tabagismo crónico, o que --- como concluiu o Tribunal a quo --- constitui uma declaração inexacta, susceptível de fundamentar a anulação da apólice.
11. Os Segurados proferiram declarações falsas e/ou inexactas tendo, de forma consciente e intencional, omitido a comunicação à Recorrida Seguradora de circunstâncias relevantes para a apreciação do risco, que tornam o contrato de seguro nulo.
12. Não vislumbramos, pois, que a percepção do Tribunal a quo, mereça ou seja susceptível de algum juízo de censura, impondo-se, por conseguinte, a manutenção destas respostas dadas à matéria de facto nos exactos termos em que as mesmas foram dadas pelo Tribunal de 1.ª Instância.
13. A Sentença recorrida deverá, pois, manter-se nos exactos termos em que foi proferida, tal como as respostas dadas à matéria de facto, que estão correctas e em plena consonância com a prova produzida nestes autos.
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O recurso foi corretamente admitido.
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Foram os autos remetidos a este Tribunal e colhidos os vistos legais.
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II. Questões a Decidir:
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as seguintes:
- Da impugnação da matéria de facto;
- Do abuso de direito.
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III. Fundamentação de Facto:
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos:
1. A Autora casou com C, a 04/11/2005.
2. Em 07/12/2017, a Autora e seu marido, adquiriram o imóvel constituído pela fração autónoma “B”, que corresponde a rés-do-chão, para habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito (…), com recurso a mútuo com hipoteca, na importância de então €65.000,00, concedidos pelo Banco S.A.
3. Foi celebrado contrato de seguro de vida, representado pela Apólice nº 000, junto da então Seguros, S.A. (…), representado pelo produto denominado “(…) Crédito Casa 2.0”, Opção 2PS 1005 morte + IAD, com efeitos, a partir de 07/12/2017, pelo período de 20 (vinte anos).
4. A 05/05/2020, em Luanda-Angola, o marido da autora faleceu, com a causa de “tumor hemisfério esquerdo Cérebro A 60”.
5. Na sequência do óbito de seu marido, a Autora realizou a participação do sinistro e solicitou a liquidação e pagamento do capital segurado.
6. Na sequência do curso do processo de sinistro nº 0013164974, a Autora recebeu uma comunicação de 23/06/2021, nos termos da qual a primeira Ré mencionou que:
«… Reportando-nos ao assunto em referência, informamos termos constatado que da proposta de seguro subscrita por V. Exa. Constam inexatidões e omissões, nomeadamente quanto ao facto do Sr. C ser acompanhado desde 2010 em consulta de especialidade, por diversas patologias não declaradas à data da celebração do contrato (como sejam, DM tipo 2, HTA, obesidade, dislipidemia, esteatose hepática), que têm influência na apreciação do risco.
As referidas inexatidões subsumem-se no disposto no artigo 25º do Decreto-lei 72/2008, de 16 de abril, pelo que, nos termos desta norma, comunicamos a V. Exa. Que o contrato titulado pela apólice acima indicada considera-se anulado e de nenhum efeito desde o seu início e não iremos proceder à liquidação de qualquer quantia no âmbito deste processo».
7. Era parte integrante da proposta de seguro apresentada pela Autora a realização de um Questionário Clínico, a efetuar a ambas as Pessoas Seguras – no caso a Autora e o falecido C – composto de inúmeras perguntas, que foram por aqueles, individual e pessoalmente, respondidas.
8. Ao questionário clínico, o falecido/Segurado C respondeu “não”, quanto aos seus antecedentes e/ou história clínica designadamente às perguntas 6 a 10.15, onde lhe foi questionado, entre outros:
- Tem valores alterados de tensão arterial?
- Tem ou teve valores alterados de Colesterol?
- É fumador?
- Doença do fígado ou do pâncreas ou vesícula, tais como, hepatite, cirrose ou pancreatite?
- Diabetes, níveis alterados de glicose no sangue ou intolerância à glicose?
9. Em resposta à pergunta constante do ponto 13 do referido Questionário Clínico, onde se perguntava se “Toma atualmente algum medicamento ou está ou esteve a fazer algum outro tratamento médico, psicológico, psiquiátrico ou de reabilitação que ainda não nos tenha declarado? (em caso afirmativo, dê detalhes como dose, motivo, …) o Segurado C, declarou “não”.
10. (…) Perguntado sobre “Alguma outra doença ou alteração não mencionada anteriormente?” – ponto 19 do Questionário Clínico – indicou “não”.
11. Mais declarou o Segurado e a Autora, na Nota Informativa dessa proposta de seguro, em texto imediatamente sob o qual apôs a sua assinatura, que “DECLARA(M) ter(em) respondido, nesta data com exatidão aos questionários de risco, não tendo conhecimento de outras situações, para além das acima descritas, que possam ser relevantes para efeitos de apreciação do risco por parte do Segurador, ainda que se trate de situações que não constem de qualquer uma das perguntas acima formuladas, sob pena de incorrerem nas consequências previstas nos artigos 25.º e 26.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL n.º 72/2008 de 16 de Abril. Em caso de inexatidão ou omissão negligente, o contrato será alterado e os sinistros garantido na proporção da diferença entre o prémio pago e o que seria devido se o facto inexato ou omitido fosse conhecido sem prejuízo da possibilidade do Segurador poder anular o contrato caso se comprove que em caso algum o teria celebrado se tivesse conhecido o facto omitido ou inexato, salvo se entretanto ocorrer incontestabilidade do contrato.”
12. O Segurado falecido foi seguido na Consulta de Endocrinologia da Clínica de Endocrinologia, Diabetes Metabolismo de Lisboa, Lda., de 5 de agosto de 2010 a 4 de março de 2020 devido a padecer de:
- Diabetes Melitus tipo 2,
- Hipertensão Arterial,
. Obesidade grau 2,
- Hiperuricémia,
- Dislipidémia mista,
- Esteatose hepática,
- Hipovitaminose D.
- O doente confirmou tabagismo crónico.
13. Em março de 2020, o Segurado encontrava-se medicado com Eucreas 50/1000mg, 2 comprimidos por dia, Jardiance 25mg, 1 comprimido por dia de forma irregular, Zyloric 100mg, 1 comprimido por dia, Forxiga 10mg, 1 comprimido por dia e tinha auto-suspenso Atozet 20/10mg, 1 comprimido por dia.
14. A conjugação das doenças referidas em 12., constituem fatores de risco, causa de sequelas graves, potencialmente geradoras de incapacidade total permanente e/ou morte.
15. Caso a Ré Seguradora tivesse conhecimento dos factos referidos em 12. À data da celebração do contrato de seguro referido em 3., em circunstância alguma, teria celebrado o mesmo.
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IV. Mérito do Recurso:
- Da impugnação da matéria de facto.
Defende a Apelante, nos pontos 2º a 6º das suas conclusões, que com base no teor do relatório de autópsia do seu falecido marido, o qual consta dos autos, deve ser acrescentado ao elenco de factos provados um novo ponto com a seguinte redação: “A causa da morte do marido da Autora, Sr. C, foi um tumor cerebral, com 3x4cm de dimensão, localizado na parênquima do hemisfério esquerdo do cérebro, com “Conclusão Médico-Legal”, de “Tumor”, com código “A-60”.”
Ora, consta do ponto 4. do elenco de factos dados como provados na sentença recorrida que “A 05/05/2020, em Luanda-Angola, o marido da autora faleceu, com a causa de “tumor hemisfério esquerdo Cérebro A 60”.
Esse facto, conforme resulta da mesma sentença, agora no segmento relativo à “Fundamentação da Matéria de Facto”, foi considerado como provado precisamente com base no Relatório Médico-legal a que alude a Apelante.
Assim sendo, porque o facto que a Apelante pretende ver aditado ao referido elenco de factos provados já dele consta, conclui-se, sem necessidade de outras considerações, pela improcedência do recurso no que à impugnação da matéria de facto se refere. 
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- Do abuso de direito.
Defende a Apelante, nos pontos 8º a 13º das suas conclusões, que inexiste qualquer nexo de causalidade entre a omissão de informações aquando da subscrição do seguro e a causa do óbito do seu marido, que era imprevisível, concluindo que em tais circunstâncias a não liquidação pela 1ª Ré da quantia em dívida ao 2º Réu constitui um abuso de direito, especialmente se se levar em consideração o hiato temporal entre a conclusão do contrato e o aparecimento do tumor.
Vejamos.
Em causa nos autos está um contrato de seguro de vida, celebrado em 17.12.2017.
Atenta a data em que foi celebrado, é-lhe aplicável o Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril (de acordo com a redação introduzida pela Lei n.º 147/2015 de 9 de setembro), nomeadamente, no que aqui nos interessa, o disposto nos seus artigos 24º a 26º, relativo aos deveres de informação do tomador do seguro ou do segurado.
Tais disposições normativas são de imperatividade relativa, de acordo com o artigo 13º, n.º 1, do mesmo diploma, o qual prevê a possibilidade de ser estabelecido um regime mais favorável ao tomador do seguro, ao segurado ou ao beneficiário da prestação de seguro.
Estabelece o artigo 24º do citado DL 72/2008, de 16 de abril, sob a epígrafe “Declaração inicial do risco”, o seguinte:
1 - O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.
2 - O disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.
3 - O segurador que tenha aceitado o contrato, salvo havendo dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, não pode prevalecer-se:
a) Da omissão de resposta a pergunta do questionário;
b) De resposta imprecisa a questão formulada em termos demasiado genéricos;
c) De incoerência ou contradição evidente nas respostas ao questionário;
d) De facto que o seu representante, aquando da celebração do contrato, saiba ser inexato ou, tendo sido omitido, conheça;
e) De circunstâncias conhecidas do segurador, em especial quando são públicas e notórias.
4 - O segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador do seguro ou o segurado acerca do dever referido no n.º 1, bem como do regime do seu incumprimento, sob pena de incorrer em responsabilidade civil, nos termos gerais.” 
Por sua vez, o artigo 25º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Omissões ou inexatidões dolosas”, prevê:
1 - Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.
2 - Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento.
3 - O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.
4 - O segurador tem direito ao prémio devido até ao final do prazo referido no n.º 2, salvo se tiver concorrido dolo ou negligência grosseira do segurador ou do seu representante.
5 - Em caso de dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do contrato.
Por fim, o artigo 26º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Omissões ou inexatidões negligentes”, determina:
1 - Em caso de incumprimento com negligência do dever referido no n.º 1 do artigo 24.º, o segurador pode, mediante declaração a enviar ao tomador do seguro, no prazo de três meses a contar do seu conhecimento:
a) Propor uma alteração do contrato, fixando um prazo, não inferior a 14 dias, para o envio da aceitação ou, caso a admita, da contraproposta;
b) Fazer cessar o contrato, demonstrando que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexatamente.
2 - O contrato cessa os seus efeitos 30 dias após o envio da declaração de cessação ou 20 dias após a receção pelo tomador do seguro da proposta de alteração, caso este nada responda ou a rejeite.
3 - No caso referido no número anterior, o prémio é devolvido pro rata temporis atendendo à cobertura havida.
4 - Se, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões negligentes:
a) O segurador cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente;
b) O segurador, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio.
As cláusulas 5. e 6. das “Condições Gerais da Apólice” relativas ao contrato de seguro em causa nos autos, juntas aos autos pela Ré Seguradora em 21.05.2022, espelham o teor dos referidos normativos.
Resulta da factualidade considerada como provada na sentença recorrida que o falecido marido da Autora, aquando da subscrição do contrato de seguro, prestou declarações inexatas e que, caso a Ré Seguradora disso tivesse tido conhecimento, em circunstância alguma teria celebrado o referido contrato de seguro.
Concluiu-se ainda na sentença recorrida, agora em sede de enquadramento jurídico, que essas declarações inexatas foram prestadas “de forma necessariamente dolosa”. 
Ora, a Apelante, no recurso que interpôs, não questiona que ao ter prestado essas declarações inexatas o seu falecido marido tenha agido com dolo.
A Apelante apenas afirma que inexiste qualquer nexo de causalidade entre essas declarações inexatas e a causa do óbito do seu marido, para daí concluir que em tais circunstâncias a não liquidação pela Ré Seguradora da quantia em dívida ao Réu Banco constitui um abuso de direito, nos termos do artigo 334º do Código Civil.
Ora, conforme decorre do regime legal acima assinalado, estando em causa uma “omissão ou inexatidão dolosa” é aplicável o disposto no artigo 25º do RJCS.
Nos termos desse normativo, a anulabilidade do contrato de seguro com fundamento em “omissões ou inexatidões dolosas” não está, conforme resulta do seu teor, dependente da verificação de um nexo de causalidade entre a verificação ou as consequências do sinistro e o facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões (contrariamente ao que sucede no cado das “omissões ou inexatidões negligentes”).
Será que a invocação dessa anulabilidade por parte da Ré Seguradora traduz, como afirma a Autora, um abuso de direito?
Desde já adiantamos que não.
O artigo 334º do Código Civil determina que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Pressupondo necessariamente a existência de um direito, o que está em causa no abuso de direito é o excesso no respetivo exercício, excesso esse que é delimitado em função dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito.
A boa-fé, subjacente ao conceito de abuso de direito, significa que “(…) as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros” (cfr.  Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, 1983, pág. 55), sendo que, na aplicação desse princípio, o juiz “(…) deverá partir das exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos”(cfr. Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 4.ª edição, pág. 81). O que releva, pois, para efeitos de abuso de direito é saber se o exercício do direito corresponde ou não a uma conduta que, nas circunstâncias em que está a ser exercido e, eventualmente, em função de comportamentos anteriores, não se pauta pela honestidade e lealdade para com a outra parte, defraudando, de algum modo, a confiança e a expectativa desta.
Por bons costumes entende-se um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e corretas aceitam comummente.
No que respeita ao fim social ou económico do direito, importará atender ao fim, social ou económico, a que o direito está subordinado e com vista ao qual foi concedido, sendo ilegítima a “(…) utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução do interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 3ª ed., pág. 297).
Para que se possa falar em abuso de direito, será ainda necessário que a conduta desonesta, incorreta, desleal ou lesiva da confiança legitimamente criada na outra parte – contrária à boa-fé – ou o excesso dos limites impostos pelo fim social ou económico do direito sejam manifestos, claros e notórios, de tal forma que o exercício do direito possa ser considerado como clamorosamente ofensivo da justiça ou sentimento jurídico socialmente dominante.
Para fundamentar a existência de abuso de direito, a Apelante afirma que “uma morte futura, com um “tumor cerebral” era e é, segundo as regras da experiência comum IMPREVISÍVEL, ou seja, se o contrário fosse, então NENHUM SEGURO seria liquidado e pago, por motivo de doença, no mercado”, “especialmente, levando-se em consideração, o hiato temporal entre a conclusão do contrato e o aparecimento do tumor e, aquando da conclusão do contrato, nenhuma TAC ter sido solicitada.”
Conforme já acima referimos, nos termos do artigo 25º do RJCS a anulabilidade do contrato de seguro com fundamento em “omissões ou inexatidões dolosas” não está dependente da verificação de um nexo de causalidade entre a verificação ou as consequências do sinistro e o facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões.
Perante as declarações inexatas do segurado nas quais havia fundado a sua decisão de contratar e que, conforme se veio a constatar, não correspondiam à verdade, a Ré Seguradora limitou-se a exercer o direito de anular a apólice de seguro que lhe é conferido pelo citado normativo. E não se vislumbra em que medida a invocada imprevisibilidade da doença que infelizmente veio a causar a morte do marido da autora ou o hiato temporal que decorreu entre a conclusão do contrato de seguro e o aparecimento dessa doença são suscetíveis de tornar ilegítimo o exercício desse direito por parte da Ré Seguradora, sendo certo que a Autora também não o explica.
Quanto à circunstância de aquando da conclusão do contrato de seguro não ter sido solicitada ao falecido marido da Autora a realização de uma TAC, a verdade é que, com base nas declarações que pelo mesmo foram prestadas, nada indiciava a sua necessidade.
Em face do exposto, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo desta 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa abaixo identificados em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela Autora.
Registe.
Notifique.
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Lisboa, 04.07.2024
Susana Mesquita Gonçalves
Arlindo José Colaço Crua
Higina Castelo