I. Os factos provados revelam que não existiu qualquer intenção do autor de se demitir do direito de propriedade sobre os bens móveis que se encontravam no interior do locado, motivo pelo qual tais bens não podem ser considerados “coisas abandonadas” para efeitos do disposto no art. 1318.º do CC.
II. Tampouco se verificam os pressupostos da acção directa, consubstanciando a conduta da ré uma acção ilícita e culposa que privou o autor do direito de propriedade sobre os seus bens, dos quais a ré ilegitimamente se apropriou, dispondo dos mesmos ao entregá-los a uma terceira entidade que se recusou a restituí-los sem que lhe fosse paga uma contrapartida financeira.
III. Estando dado como provado o núcleo essencial dos danos patrimoniais invocados pelo autor, não oferece dúvidas a possibilidade de condenação em quantia a liquidar; porém, não tendo o autor logrado provar os danos constantes da factualidade dada como não provada, tal constitui um limite intransponível à indemnização a fixar em incidente de liquidação, não sendo admissível que, no âmbito do mesmo processo, possa ser dado como provado certo facto que anteriormente, por decisão transitada em julgado, foi dado como não provado.
IV. Verificando-se, porém, contradição insanável que inviabiliza a decisão de definir o limite máximo da indemnização a fixar em incidente de liquidação, de acordo com o previsto no n.º 3 do art. 682.º do CPC, há que determinar a baixa dos autos ao TR para que a decisão de facto seja alterada, expurgando-a da referida contradição.
1. AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A. (1.ª ré), BB (2.ª ré), CC (3.º réu) e DD (4.º réu).
Na petição inicial, apresentada em 28-11-2019, aperfeiçoada mediante requerimento apresentado em 26-11-2020, formulou o autor os seguintes pedidos:
a) Que os réus sejam solidariamente condenados a pagar ao autor a quantia de € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros) a título de indemnização pelos danos patrimoniais e prejuízos por ele sofridos, acrescida de juros à taxa legal, a contar desde a data da citação até integral e efectivo pagamento; e
b) Que os réus BB, DD e CC sejam solidariamente condenados a pagar ao autor a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, contados desde o trânsito em julgado da sentença até integral e efectivo pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que:
- Por contrato de arrendamento urbano para fim não habitacional, datado de 01-10-2010, a ré BB cedeu ao autor o gozo da fracção autónoma designada pela letra D, correspondente à loja n.º 4 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 304, pelo prazo de cinco anos, com termo final em 30-09-2015, mediante a renda mensal de € 800,00, destinando-se o locado a estabelecimento de SPA;
- O recheio do estabelecimento do autor valia € 350.000,00 e, com as benfeitorias realizadas no locado, o autor despendeu € 150.000,00;
- Em Dezembro de 2016, os réus BB, DD e CC arrombaram a fechadura da porta do locado, partiram e derrubaram todas as paredes e divisões que compunham o interior do estabelecimento, desmontaram, partiram e/ou destruíram e removeram todo o mobiliário, equipamentos e mercadorias, que se encontravam no interior do estabelecimento, deixando o interior da loja arrendada apenas com as paredes estruturantes (ficando em open space) e cheio de lixo e entulho resultante das demolições;
- Os mesmos réus entregaram os bens móveis e produtos/consumíveis que integravam o recheio do estabelecimento à instituição “R...IPSS”, assim os perdendo o autor, uma vez que a instituição se recusou a restituí-los, só aceitando entregá-los ao autor mediante pagamento do respectivo preço, o que este não aceitou;
- O autor subscreveu e celebrou um contrato de seguro, do ramo “Multirriscos” com a seguradora ora ré, com apólice n.º .......34, para a cobertura de todos os danos materiais do mobiliário, equipamentos e mercadorias (designadamente, produtos de tratamento) que integravam o recheio do seu estabelecimento, incluindo em caso de ocorrência de actos de vandalismo, sendo o valor (global) do capital contratado pelo autor de € 335.000,50, dos quais € 320.000,50 para a cobertura do mobiliário e equipamentos do estabelecimento e € 15.000,00 para as mercadorias fixas;
- O autor fez a participação do sinistro à seguradora ora ré, que não pagou qualquer quantia ao autor, não obstante este lhe ter fornecido todos os elementos que foram sendo solicitados.
2. A ré Allianz apresentou contestação em que se defendeu, por impugnação e por excepção, alegando, designadamente: não lhe ter sido possível apurar, por o autor não ter facultado os documentos solicitados (nomeadamente, listagem dos bens reclamados no processo crime, recibos de rendas e declarações de IVA, entre outros), que, à data em que o seguro foi contratado (01-04-2015), o referido estabelecimento estivesse a funcionar, com os equipamentos e mercadorias objecto do contrato de seguro, reservando-se a ré o direito de invocar a nulidade do contrato de seguro caso se venha a apurar que as declarações feitas pelo autor quando subscreveu a proposta de seguro não correspondiam à verdade; de qualquer modo, os factos alegados pelo autor não integram as coberturas da apólice, seja por furto, roubo ou actos de vandalismo.
3. Os demais réus também apresentaram contestação em que se defenderam por impugnação, de facto e de direito, alegando, em síntese, que: a sua (confessada) actuação teve lugar porque o autor, após lhe ter sido comunicada a resolução do contrato de arrendamento, em 28-04-2016, não entregou a loja no prazo de dez dias. Requereram a condenação do autor como litigante de má-fé. A 2.ª ré deduziu também pedido reconvencional de condenação do autor no pagamento da quantia de € 15.000,00 a título de indemnização por danos patrimoniais (€ 10.000,00) e danos não patrimoniais (€ 5.000,00).
4. O autor pronunciou-se a respeito da matéria de excepção, da reconvenção e do pedido de condenação como litigante de má-fé, pugnando pela sua improcedência.
5. Realizou-se audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador que admitiu o pedido reconvencional apenas no que concerne à indemnização por danos não patrimoniais.
6. Após julgamento, veio a ser proferida sentença, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Face ao exposto, julgo a presente acção improcedente e, consequentemente:
A) Absolvo os RR. do pedido contra si deduzido pelo A..
B) Absolvo o A. do pedido de condenação como litigante de má-fé.
C) Dispenso o pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Custas a cargo do A..”.
7. A sentença foi notificada às partes em 08-03-2023.
8. Inconformado com esta decisão, o autor interpôs recurso de apelação que foi admitido, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 09-11-2023, julgado o recurso parcialmente procedente e, em consequência, decidido:
a) Revogar parcialmente a sentença recorrida, na parte em que absolveu a 2.ª ré do pedido, condenando-a a pagar ao autor a quantia indemnizatória, a fixar em liquidação ulterior, até ao limite de € 350.000,00, atinente ao valor dos objectos descritos no ponto 16. dos factos provados;
b) Manter, quanto ao mais, a sentença recorrida.
9. Inconformada, a 2.ª ré BB interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
“i. O presente recurso tem por objecto o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que julgou tempestivo e parcialmente procedente o recurso apresentado pelo Autor e condenou a Ré Recorrente a pagar ao Autor a quantia indemnizatória, a fixar em liquidação ulterior até ao limite de 350.000,00 €, atinente ao valor dos objetos descritos no ponto 16. dos factos provados.
ii. Salvo o devido respeito pelo Tribunal a quo, o recurso apresentado pelo Autor Recorrente não foi tempestivo.
iii. A se considerar tempestivo o recurso de apelação, o que não se admite, mas por mera cautela de patrocínio se refere, o Tribunal a quo deveria ter mantido, na íntegra, a sentença proferida pela 1.ª instância, pelo facto de a mesma não merecer qualquer censura ou reparo.
iv. As conclusões que delimitam o objecto do recurso, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de questão que delas não conste.
v. Compulsando os números 1 a 16 das conclusões do Autor Recorrente, não se descortina a impugnação da matéria de facto, as quais omitem, em absoluto, quer a indicação específica dos factos que pretendia fossem reapreciados, quer os depoimentos concretos que alicerçavam uma alteração à matéria de facto assente pela 1.ª instância.
vi. O Autor pretendia que os factos dados como provados fossem alterados, com fundamento na prova documental produzida e não com fundamento no depoimento de qualquer testemunha.
vii. Assim, é dito na conclusão 14 das alegações de recurso do Autor: “(…) Ora, tendo sido realizada uma exaustiva análise e visionamento das fotografias juntas aos Autos, mal se compreende que o Douto Tribunal, que tudo tentou e conseguiu esclarecer, tenha, entretanto, dado todos estes factos como não provados, tal como resumido no artigo 6.º das presentes alegações, para o qual se remete criticamente (…)”.
viii. O único ponto das conclusões de recurso em que o Autor Recorrente refere o depoimento de uma testemunha (conclusão 13), não retira nenhuma consequência no que se refere à alteração da matéria de facto.
ix. Desta feita, não tendo o Autor cumprido o determinado no artigo 638.º, n.º 7, do CPC, deve o tribunal ad quem revogar a decisão do Tribunal a quo, considere extemporâneo o recurso por si apresentado.
x. Se se considerar que o recurso do Autor foi tempestivo, o que não se admite, mas por mera cautela de patrocínio se refere, deve também ser revogado o acórdão recorrido e, em consequência, manter-se a decisão proferida pela 1.ª instância.
xi. Assim, a Ré Recorrente não provocou quaisquer danos na esfera jurídica do Autor.
xii. Eventuais vicissitudes verificadas relativas aos bens deixados no locado resultam, exclusivamente, de conduta imputável ao Autor.
xiii. Entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa que a conduta da Ré Recorrente foi idónea a provocar danos patrimoniais na esfera jurídica do Autor, alegando, e citamos:
“(…) É mesmo descabido convocar o art. 15.º-K, pois este preceito aplica-se no âmbito do incidente de despejo imediato na ação de despejo (que segue a forma de processo comum declarativo) e no âmbito do procedimento especial de despejo, mas obviamente não se aplica numa situação de “despejo” efetuado à margem da lei, como foi o caso (…)”.
xiv. Acontece que a Recorrente intentou contra o Autor um procedimento especial de despejo, junto do Balcão Nacional do Arrendamento, em Junho de 2016, que correu termos sob o número de processo 4355/16.7..., o qual foi extinto por desocupação do locado, no dia 02.10.2017, conforme Doc. n.º 5 da contestação.
xv. O pagamento de uma indemnização até ao limite de € 350.000,00 também nunca poderia proceder, atendendo aos factos dados como não provados; ao valor da causa (€ 360.000,00), e à quantia de € 350.000,00 peticionada pelo Autor a título de danos patrimoniais.
xvi. Determina o ponto b dos factos não provados pela 1.ª instância o seguinte:
“(…) . Do interior da loja foram retirados e/ou destruídos, os seguintes bens:
a. A parede de água tipo cascata modelo Niagara - estrutura de metal, com aspecto de uma moldura e um depósito de água na base, no valor de 7.003,00 €;
b. Equipamento de cromoterapia modelo cromolight madeira wengé, no valor de 3.017,19 €; c. O duche vichy braço com 7 cabeças com cama hidráulica, no valor de 15.810,00 €;
d. Marquesa eléctrica gemya lacada a preto, no valor de 4.663,98 €;
e. Equipamento de radiofrequência facial/corporal Dermoheat, no valor 11.749,49 €; f. Aparelho de cavitação – Impact, no valor de 22.443,30 €;
g. Skinlight aparelho para tratamento de rosto, no valor de 6.171,71 €; h. Artigos de decoração, no valor global de 83.000,00 €;
i. Roupas, atoalhados, toalhões, lençóis para marquesa, toalhas de rosto, toalhas de mão, roupões, quimonos, chinelos, fardas e tapetes, no valor de 9.500,00 €;
j. Um espelho dourado séc. XVIII – Grande Talha; outro espelho dourado séc. XVIII; espelho dourado (Talha) Séc. XVII e espelho preto c/cristais Swarovski (2,50m Alt. x 3,00m L), no valor global de 22.500,00 €;
k. Material de ginásio, no valor de 8.000,00 €;
l. Cadeiras, marquesas, lupas e mesas, no valor global de 8.500,00 €;
m. Electrodomésticos e equipamentos informáticos, no valor global de 9.000,00 €; n. Produtos consumíveis/material de armazém, no valor de 15.000,00 € “(…)”.
xvii. Somando os vários valores acima descritos, relativos aos danos patrimoniais alegados e não provados, alcançamos a quantia de €220.798,67.
xviii. Sendo considerados não provados danos no valor de €220.798,67 e atendendo ao valor dos danos patrimoniais alegados (€350.000,00), a ter havido condenação, o que por mero exercício hipotético se refere, a condenação a Ré Recorrente teria sempre como limite máximo €129.201,33.
xix. Porém, central para o presente recurso de revista é a circunstância de ter sido dado por provado na sentença de 1.ª instância (facto 4) o seguinte:
“(…) O A. encerrou o estabelecimento instalado na predita loja, em data não concretamente apurada, mas não posterior a 19-02-2015, deixando o local ao abandono (…)” (...).
xx. Também foi dado como provado pelo tribunal de 1.ª instância e transcrevemos:
xxi. “(…) Ora, em face do que vimos dizendo, os bens que o A. deixou no locado em 19-02-2015, devem considerar-se abandonados pelo R. (…)”.
xxii. A Recorrente apenas entrou no locado apenas e tão só, atendendo ao comportamento concludente do Autor de abandono do mesmo e dos bens que se encontravam no imóvel, conforme deu por provado a 1.ª instância
xxiii. O comportamento concludente de abandono do locado e dos bens que se encontravam no imóvel pelo Autor (concretizado nos factos dados por provados na 1.ª instância) foram os seguintes:
i. Cessação de vigência do contrato de fornecimento de electricidade do locado a 06.08.2014 (Doc. n.º 10 da contestação);
ii. Cessação de vigência do contrato da água do locado a 19.02.2015 (Doc. n.º 9 da contestação);
iii. Frustração do contacto pessoal de advogado com o objectivo de comunicação da resolução do contrato de arrendamento, no dia 16.03.2016 (Doc. n.º 2 da contestação), por ninguém se encontrar no locado;
iv. Tentativas de contacto da Ré Recorrente, junto do Autor, desde 2014, sem sucesso, com o seu subsequente desaparecimento;
v. Tentativas diversas de contacto da Ré Recorrente, junto do Autor, em Dezembro de 2016, antes da entrega dos bens que se encontravam no locado à Associação R...IPSS.
xxiv. Conclui-se que, em Dezembro de 2016, quer o locado, quer os bens que se encontravam no imóvel, se encontravam abandonados.
xxv. O artigo 1318.º do Código Civil o seguinte: Podem ser adquiridos por ocupação os animais e as coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvas as restrições dos artigos seguintes, sublinhado nosso.
xxvi. A ocupação é um modo de aquisição originária da propriedade.
xxvii. JOSÉ BONIFÁCIO RAMOS, Manual de Direitos Reais, 3.ª ed, Lisboa, 2022, p. 366 ensina que: “(…) O abandono, enquanto cessação da titularidade de Direitos Reais sobre coisas móveis, implica a demissão expressa do domínio. Mesmo um outro comportamento que signifique, de modo inequívoco, o preenchimento daquela causa extintiva (…)”.
xxviii. Refere LUÍS DE MENEZES LEITÃO, Direitos Reais, 8.ª ed., Coimbra, 2019, p. 226: “(…) Em consequência do abandono, o apossamento por terceiro não constitui esbulho (…)”.
xxix. O comportamento concludente do Autor é idóneo a integrar uma situação de abandono, não tendo a Recorrente esbulhado os bens indicados no ponto 16 dos factos provados da sentença.
xxx. Verificado o abandono, pelo Autor, das coisas móveis encontradas no locado pela Ré Recorrente, esta tinha legitimidade para adquirir a titularidade dos mesmos, por ocupação, razão pela qual a entrega dos mesmo à Associação R...IPSS estava inteiramente legitimada.
xxxi. Na circunstância de se entender que não se verifica uma situação de abandono, dir-se-á, subsidiariamente, o seguinte.
xxxii. O Tribunal a quo, no acórdão recorrido decidiu:
“(…) Assim, a Ré, ao facultar a terceiros a remoção dos bens que se encontravam no interior do locado, sem que tivesse recorrido às vias (judicial ou extrajudicial) legalmente previstas para efetivação do despejo, em termos tais que o Autor não logrou recuperá-los (pois foi-lhe exigido, pela Associação que os tinha em seu poder, que os pagasse), causou ao Autor um prejuízo correspondente ao valor daqueles bens (…)”, sublinhado nosso.
xxxiii. Reitera-se que a Ré Recorrente recorreu à via judicial para a efectivação do despejo (processo 4355/16.7... concluído pelo Balcão Nacional do Arrendamento), tendo entregado, de forma lícita, os bens que se encontravam abandonados no locado à associação “R...IPSS”
xxxiv. Disse o legal representante da associação “R...IPSS”, em sede de instrução, no âmbito do processo-crime intentado pelo Autor contra a Ré Recorrente, da qual foi não pronunciada, facto que configura autoridade de caso julgado, e que transcrevemos:
“(…) O Autor ou quem este tivesse indicado, tiveram a possibilidade de recuperar os poucos objectos que haviam sido depositados em tal associação, por incúria do Autor na sua aceitação, o que nunca fizeram (…)” (...).
xxxv. Se o Autor não logrou recuperar os bens deixados na associação R...IPSS, tal
deveu-se a causa que lhe é inteiramente imputável e não à Ré Recorrente.
xxxvi. Salvo o devido respeito, não encontra respaldo na sentença proferida pela 1.ª instância o seguinte trecho decisório do acórdão recorrido: “pois foi-lhe exigido, pela Associação que os tinha em seu poder, que os pagasse”, pois foi dito na sentença do tribunal da 1.ª instância e transcrevemos:
“(…) E o depoimento da testemunha EE, voluntária da ASSOCIAÇÃO R...IPSS que confirmou a recolha de tais bens na loja em causa nos autos e que o fez por a 2ª R. lhes ter doado os mesmos, embora sem os lograr identificar nas fotografias juntas aos autos pelo A. como doc. 22 da PI. Que confirmou não ter deixado sair tais bens da associação, explicitando a razão de assim ter procedido (…), sublinhado nosso. (…) Finalmente, ponderou-se o depoimento da testemunha FF, assistente social, voluntário da ASSOCIAÇÃO R...IPSS, que referiu terem estado dois agentes da PSP na loja da associação solicitando informações sobre os bens em causa e que a dada altura foram avisados para não os venderem por causa do litígio entre as partes, sublinhado nosso (…)”
xxxvii. Os bens entregues pela Recorrente em Dezembro de 2016 encontram-se na Associação R...IPSS, não tendo sido vendidos a quaisquer terceiros.
xxxviii. Não foi dado por provado que aquela entidade pediu o pagamento ao Autor para a sua entrega.
xxxix. Encontrando-se as coisas móveis indicadas no ponto 16 de sentença da 1.ª instância na associação R...IPSS, com a possibilidade de os mesmos serem recuperados e entregues ao Autor, caso o Tribunal ad quem decida nesse sentido, não se verifica qualquer dano que possa ser imputado à Recorrente.
xl. Subsidiariamente, se se entender que há dano patrimonial na esfera jurídica do Autor, o que não se entende, mas por mero benefício de patrocínio se refere, haveria exclusão de ilicitude da Recorrente por culpa do lesado, de acordo com o artigo 570.º do Código Civil.
xli. Tendo o Autor, putativo lesado, tido a hipótese, em momento imediatamente posterior à entrega dos bens pela Recorrente, de os recuperar junto da Associação R...IPSS, e não o tendo feito, age com culpa.
xlii. Destarte, e em suma, deve ser revogado o acórdão do Tribunal a quo, devendo, em consequência, ser a Recorrente absolvida, com as devidas consequências legais.”.
10. O recorrido apresentou contra-alegações em 01-02-2024, nas quais, ainda que de forma pouco clara e rigorosa, inseriu pedido de alteração da decisão da matéria de facto no que refere aos bens pertencentes ao autor retirados do imóvel e doados a terceiro.
II – Questão prévia: admissibilidade das contra-alegações
Não existe obstáculo à admissibilidade da revista. Porém, o mesmo já não se verifica quanto às contra-alegações apresentadas pelo autor. Com efeito, a ré, ora recorrente, interpôs o recurso de revista por via electrónica em 05-12-2023, notificando na mesma data o requerimento de interposição e respectivas alegações, também electronicamente, aos mandatários das restantes partes, nos termos do disposto no art. 221.º, n.º 1, do CPC, conforme certificação do sistema Citius.
De acordo com o disposto no art. 255.º do mesmo Código, o mandatário do autor, aqui recorrido, presume-se notificado em 11-12-2023 (que corresponde ao 1.º dia útil seguinte ao terceiro dia posterior ao envio da notificação, uma vez que o dia 08-12-2024 foi feriado nacional), começando o prazo para apresentação de resposta no dia seguinte. Assim, o prazo de trinta dias previsto no art. 638.º, n.ºs 1 e 5, do CPC, terminou em 23-01-2024 (art. 138.º, n.º 1, do CPC).
O autor apresentou a sua resposta ao recurso em 01-02-2024, pelo que tal acto processual é manifestamente intempestivo, não tendo sido invocada qualquer situação de justo impedimento, nem sendo sequer possível o recurso ao disposto no art. 139.º, n.º 5, do CPC.
Alegou o recorrido que a sua resposta é tempestiva porque, embora tenha sido notificado da apresentação de alegações por parte da contraparte, não o foi, contudo, pela secretaria judicial, nos termos do disposto no artigo 254.º do CPC, “posto que as alegações não constituem requerimentos autónomos, para os quais baste a notificação de uma parte à outra, desde logo porquanto os recursos têm de ser admitidos dão origem a novo processo nos Tribunal superiores, e, em tal medida não se confundem com meros requerimentos autónomos.”.
Em abono da sua tese, cita um acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-07-2007, proferido no âmbito da vigência do antigo Código de Processo Civil.
Da leitura da alegação do recorrido, facilmente se constata que o mesmo confunde a redacção do actual art. 221.º, n.º 1, do CPC, com o regime do antigo Código que decorria do seu art. 229.º-A, n.º 1, na redacção original do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, que aditou esse preceito, antes da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007 de 24 de Agosto.
Previa o n.º 1 desse art. 229.º-A, na sua redacção original, o seguinte:
“Nos processos em que as partes tenham constituído mandatário judicial, todos os articulados e requerimentos autónomos que sejam apresentados após a notificação ao autor da contestação do réu, serão notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte, no respectivo domicílio profissional, nos termos do artigo 260.º-A.”.
A interpretação desta norma legal, na referida redacção original, gerou uma divergência jurisprudencial quanto à inclusão ou não na sua previsão das alegações e das contra-alegações de recurso. No sentido de que tais actos processuais não deviam ser considerados “articulados ou requerimentos autónomos”, para efeito da notificação prevista no art.º 229.º-A, n.º 1, do CPC, pronunciaram-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29-06-2010 (proc. n.º 2466/04.0TBGDM.P1.S1), de 27-04-2005 (proc. n.º 4080/04) e de 21-09-2010 (proc. n.º 4831/05.7TVLSB.L1.S1), estes dois últimos publicados em https://juris.stj.pt. Em sentido contrário, decidiram os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02-10-2003 (proc. n.º 1370/03), de 11-07-2006 (proc. n.º 1277/06), de 03-07-2008 (proc. n.º 977/08) e de 05-05-2005 (proc. n.º 419/04), este último publicado em https://juris.stj.pt.
Porém, a referida divergência jurisprudencial foi ultrapassada com a alteração ao referido n.º 1 do art. 229.º-A, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, passando a prever-se que:
“Nos processos em que as partes tenham constituído mandatário judicial, os actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes após a notificação da contestação do réu ao autor, serão notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte, no respectivo domicílio profissional, nos termos do artigo 260.º-A.”.
Esta redacção manteve-se no art. 221, n.º 1, do actual CPC, que é a norma aplicável à presente acção, não havendo quaisquer dúvidas que o requerimento de interposição de recurso de revista e as respectivas alegações constituem “actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes”, tendo os mesmos sido apresentados “após a notificação da contestação do réu ao autor”.
Face à lei em vigor, é indubitável que não cabia à secretaria judicial notificar o aqui recorrido das alegações de recurso de revista que, conforme o próprio admite, lhe foram notificadas pelo mandatário subscritor das mesmas, por via electrónica, em 05-12-2023, presumindo-se notificado em 11-12-2023.
A resposta ao recurso (tal como o recurso da decisão de facto que, ainda que de forma pouco clara e rigorosa, nela se inclui – cfr. art. 633.º, n.º 2, do CPC) é, assim, manifestamente intempestiva, devendo ser desentranhada dos autos, não produzindo a mesma quaisquer efeitos na presente acção.
III – Objecto do recurso
Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.
Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões (por ordem de precedência das mesmas):
• Tempestividade do recurso de apelação interposto pelo autor, ora recorrido, discutindo-se a aplicação do disposto no art. 638.º, n.º 7, do CPC;
• Eventual aquisição pela 2.ª ré do direito de propriedade (por ocupação) sobre os bens móveis existentes no locado;
• Verificação dos pressupostos da acção directa exercida pela 2.ª ré e (in)existência de conduta ilícita e culposa da mesma ré;
• (In)existência de danos ou, pelo menos, contribuição da culpa do lesado para os danos;
• Redução do valor máximo de indemnização devida em sede de incidente de liquidação perante os factos considerados não provados.
IV – Fundamentação de facto
1. Foi dado como provado o seguinte:
1. Por escrito denominado “CONTRATO DE ARRENDAMENTO COMERCIAL COM DURAÇÃO EFECTIVA DE CINCO ANOS”, datado de 01-10-2010, a Ré BB deu de arrendamento ao Autor a loja sita na Rua ..., 2, loja 2B, ..., correspondente à fração autónoma designada pela letra “D”, loja n.º 4, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 304, da freguesia de ..., pelo prazo de cinco anos, renovável por igual período, com início em 01-10-2010 e termo em 30-09-2015, em contrapartida do pagamento da renda mensal de 800,00 € (oitocentos euros).
2. Lê-se na cláusula 6.ª do contrato: “O arrendatário não poderá fazer quaisquer obras de alteração no local arrendado sem autorização prévia e por escrito do senhorio, nem levantar ou demolir quaisquer benfeitorias por si realizadas, ainda que não autorizadas, nem por elas pedir indemnização ou alegar retenção (...)”.
3. Em 2011, os contraentes acordaram na redução da renda mensal para 700,00 €.
4. O Autor encerrou o estabelecimento instalado na predita loja, em data não concretamente apurada, mas não posterior a 19-02-2015, deixando o local ao abandono.
5. Entre a Ré ALLIANZ e o Autor, na qualidade de tomador, foi celebrado um contrato de seguro multirriscos Comércio e Serviços, titulado pela Apólice n.º .......34, em vigor desde as 00:00 horas de 01-04-2015 até às 24:00 horas de 31-03-2016, automática e anualmente renovável, a partir de 01-04-2016.
6. Da referida apólice consta que:
6.1. O local de risco é a loja em causa nos autos, para atividade principal de SPA.
6.2. O capital seguro tem a cobertura base de 335.000,50 €, sendo 320.000,50 € para mobiliário e equipamento e 15.000,00 € para mercadorias fixas, valores máximos indemnizáveis por sinistro e anuidade.
6.3. Para a cobertura atos de vandalismo ou sabotagem o limite é de 335.000,50 €, com 300,00 € de franquia.
7. Lê-se no art. 4.º, al. c), das Condições Particulares, a respeito do Mobiliário e Equipamento, que:
“(...) o capital seguro deve corresponder ao custo de substituição dos bens pelo seu valor em novo.
São considerados elementos integrantes do Mobiliário e Equipamento o conjunto de:
1. Móveis assim como os vidros, mármores ou pedras, naturais ou artificiais, neles integrados, mas não incluídos os móveis fixos ou embutidos nas paredes que são considerados parte integrante do edifício;
2. Espelhos de paredes ou integrados nos móveis;
3. Equipamentos fixos de serviço: água, gás, electricidade, aquecimento e climatização, energia solar, saneamento, telefone, rádio televisão e outras comunicações, alarmes, mas não incluídas as condutas fixas integradas na construção que são consideradas parte integrante do edifício;
4. Máquinas, equipamentos e utensílios próprios da actividade.
5. Elementos de decoração não fixos, de valor unitário inferior a 3.000 euros;
6. Letreiros, anúncios luminosos e toldos de propriedade do Segurado.”.
8. Lê-se no art. 4.º, al. c), das Condições Particulares, a respeito de Mercadorias, que:
“O capital seguro deve corresponder ao valor corrente de aquisição por grosso das mercadorias, líquido de impostos. Quando as mercadorias correspondem a produtos transformados ou acrescentados no estabelecimento o capital seguro deve corresponder ao valor dos materiais transformados, acrescido do custo de transformação.”.
9. Lê-se no art. 1.º, A, 1., A4, das Condições Particulares, a respeito de Atos de Vandalismo ou Sabotagem, que:
“A. Garante as perdas ou danos (incluindo os de incêndio ou explosão) directamente causados aos bens seguros, em consequência de:
a) Atos de vandalismo ou de sabotagem, desde que não configurem nenhuma das situações definidas nas alíneas a) e b) do parágrafo A da Cobertura ‘A 31 Atos de Terrorismo ou de sabotagem’;
b) Atos praticados por qualquer autoridade legalmente constituída, por ocasião de ocorrências mencionadas na alínea a), para a salvaguarda ou protecção de bens e pessoas.
D. Não ficam garantidos os danos resultantes de:
a) roubo ou pilhagem, com ou sem arrombamento, directa ou indirectamente relacionado com os riscos garantidos por esta cobertura;”.
10. Lê-se no, art. 3º, das Condições Particulares, a respeito de Exclusões, que:
“A. (...) não ficam garantidos, em caso algum (...) os prejuízos que derivem directa ou indirectamente de: (...)
g) Qualquer responsabilidade criminal, contra-ordenacional ou disciplinar;”.
11. Em 16-03-2016, pelas 15h05, a advogada da Ré BB tentou contactar o Autor para resolução do contrato de arrendamento, não o tendo logrado na loja em questão, por estar encerrada.
12. Em 18-04-2016, a Ré BB remeteu ao Autor, para a morada da loja locada, carta registada com aviso de receção, declarando estarem em dívida as rendas de outubro de 2012 a abril de 2016, no valor de 19.200,00 €, resolvendo o contrato de arrendamento celebrado e solicitando a entrega do locado no prazo de 8 dias.
13. Tal carta foi devolvida à Ré BB pelo distribuidor postal com a menção “por o estabelecimento comercial estar encerrado e a caixa de correio estar cheia sendo impossível deixar aviso.”.
14. Em 29-06-2016, a Ré BB apresentou contra o Autor, requerimento executivo, ao abrigo do previsto no art. 14.º-A do NRAU, para pagamento da quantia de 19.846,44 €, correspondente às rendas dos meses de novembro de 2012 a maio de 2016, que veio a ser o Proc. n.º 13215/16.0T8SNT.
15. No início de novembro de 2016, a 2.ª Ré entrou na loja, para o que contratou um serralheiro para abrir a porta e mudar a fechadura.
16. Nos dias 4 e 5 de dezembro de 2016, por ordem da Ré BB, foram retirados da loja e entregues, sem contrapartida, à ASSOCIAÇÃO R...IPSS: uma cama de massagem; um móvel estante; três cadeiras; um candeeiro; dez diversos eletrodomésticos; cinco espelhos; seis peças de escultura; um quadro; uma ducha de hidromassagem; e dez objetos de decoração, de valor não concretamente apurado, que tal associação se recusou a restituir por o Autor se ter recusado a pagar o preço.
17. No dia 5 ou 6 de dezembro de 2016, os Réus DD e CC, entraram na loja, a pedido da Ré BB para retirarem as paredes divisórias e limpar o espaço.
18. Em 16-12-2016, encontravam-se na loja em causa os Réus DD e CC procedendo a obras de demolição das paredes e divisões do estabelecimento de SPA, deixando o interior da loja em “open space”, a solicitação da 2.ª Ré.
19. Em 16-12-2016 o Autor apresentou denúncia junto da 88.ª Esquadra de Massamá da Polícia de Segurança Pública, acusando os Réus CC e DD de, em tal data, estarem na referida loja, “a partir tudo e a pôr no lixo”, a mando da Ré BB, referindo que “em obras e projectos gastou na loja 150.000,00€”, que “o recheio da loja valia 350.000,00 €” e que “não sabia quanto valiam os produtos para utilização” que lá tinha.
20. Em 20-12-2016 o Autor apresentou participação à Ré ALLIANZ de sinistro que teria ocorrido em 16-12-2016, tendo a referida Ré aberto em 21-12-2016, processo de sinistro, designando para o instruir “UON CONSULTING, S.A.”.
21. Em 03-01-2017, o perito da “UON CONSULTING, S.A.” deslocou-se ao local e constatou que estava sem qualquer conteúdo e que nele decorriam trabalhos de demolição e retirada das benfeitorias instaladas no interior.
22. Na ocasião o perito solicitou ao Autor:
“Certidão das autoridades intervenientes (PSP/GNR) c/cópia de listagem bens
Cópia Contrato de Arrendamento
Documento de aquisição dos equipamentos/bens/produtos
NIB (nº identificação bancária)
Orçamento reparação / substituição / Reconstrução devidamente discriminados por trabalhos
Facturas das obras de remodelação iniciais
Aditamento da certidão das autoridades
Fotos do estabelecimento anteriores à ocorrência (formato JPG)
Fotos do estabelecimento posteriores à ocorrência (formato JPG)
Recibos das rendas (últimos 4)
Declarações do IVA (desde Janeiro de 2014)
Facturas aquisição de mercadoria”
23. Em 04-08-2017, a Ré ALLIANZ solicitou ao Autor os seguintes documentos:
“- Cópia da listagem de bens constante da certidão das autoridades intervenientes (PSP/GNR).
- Documentos de aquisição dos equipamentos/bens/produtos até Dezembro de 2016 (inclusive).
- Facturas aquisição das mercadorias até Dezembro de 2016 (inclusive).
- Orçamentos de reparação ou substituição dos bens do conteúdo/Orçamento reconstrução devidamente discriminado por trabalhos.
- Recibos de rendas (últimos 4).
- Declaração do IVA (desde Janeiro de 2014).
- Comprovativo de IBAN.”.
24. Por apenso ao Proc. n.º 13215/16.0T8SNT (referido no ponto 14. acima) o Autor deduziu embargos de executado, alegando falta de título executivo por não ter sido comunicada ao executado a resolução do contrato de arrendamento.
25. Em 04-12-2017, em tal processo, foi proferida sentença julgando tais embargos improcedentes, onde se lê: “Assim sendo, impõe-se concluir que a comunicação ao arrendatário não padece de qualquer vício que afecte a sua exequibilidade nos termos supra referidos em conjugação com o contrato de arrendamento, o que se julga.”.
26. Por não ter sido deduzida acusação contra a Ré BB, na sequência da denúncia efetuada pelo Autor, este requereu a abertura da fase instrutória, no Proc. n.º 1064/16.0..., tendo, em 11-12-2017, sido proferida decisão de não pronúncia da Ré BB.
27. Na sequência de recurso apresentado pelo Autor, em 04-10-2018, no Proc. n.º 13215/16.0..., foi proferido acórdão pelo TRL, julgando improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida, que julgou improcedentes os embargos do Autor à execução que lhe moveu a Ré BB para cobrança das rendas em dívida.
28. Por não ter sido proferido despacho de pronúncia da Ré BB, o Autor recorreu da decisão instrutória do Proc. n.º 1064/16.0..., tendo, em 03-07-2018, sido proferido acórdão do TRL, confirmando a decisão recorrida.
29. A Ré ALLIANZ não pagou ao Autor qualquer valor indemnizatório na sequência da referida participação de sinistro.
2. Foram dados como não provados os seguintes factos:
A) No locado, o Autor fez as seguintes obras:
a. Colocação de ardósia natural no chão de toda a loja;
b. Reconstituição das casas de banho;
c. Colocação de termo-acumuladores com capacidade superior a 350 litros;
d. Colocação de tectos falsos em toda a loja e gabinetes, com instalação de sistema de iluminação;
e. Instalação de sistema acústico;
f. Montagem/instalação de sistema de drenagem e de escoamento de águas;
g. Construção e montagem de duches;
h. Elevação de chão para instalação do duche Vichy;
i. Instalação de ar condicionado em todos os gabinetes e divisões;
j. Montagem de som ambiente em todo o espaço;
k. O chão, tubagem (eléctrica, saneamento, drenagem das águas), sistema acústico e de som, iluminação, equipamentos/máquinas de ar condicionado, bancadas, mobiliário, móveis, objectos de decoração e a parede de água situada na entrada, foram destruídos.
B) Do interior da loja foram retirados e/ou destruídos, os seguintes bens:
a. A parede de água tipo cascata modelo Niagara - estrutura de metal, com aspecto de uma moldura e um depósito de água na base, no valor de 7.003,00 €;
b. Equipamento de cromoterapia modelo cromolight madeira wengé, no valor de 3.017,19 €;
c. O duche vichy braço com 7 cabeças com cama hidráulica, no valor de 15.810,00 €;
d. Marquesa eléctrica gemya lacada a preto, no valor de 4.663,98 €;
e. Equipamento de radiofrequência facial/corporal Dermoheat, no valor 11.749,49 €;
f. Aparelho de cavitação – Impact, no valor de 22.443,30 €;
g. Skinlight aparelho para tratamento de rosto, no valor de 6.171,71 €;
h. Artigos de decoração, no valor global de 83.000,00 €;
i. Roupas, atoalhados, toalhões, lençóis para marquesa, toalhas de rosto, toalhas de mão, roupões, quimonos, chinelos, fardas e tapetes, no valor de 9.500,00 €;
j. Um espelho dourado séc. XVIII – Grande Talha; outro espelho dourado séc. XVIII; espelho dourado (Talha) Séc. XVII e espelho preto c/cristais Swarovski (2,50m Alt. x 3,00m L), no valor global de 22.500,00 €;
k. Material de ginásio, no valor de 8.000,00 €;
l. Cadeiras, marquesas, lupas e mesas, no valor global de 8.500,00 €;
m. Electrodomésticos e equipamentos informáticos, no valor global de 9.000,00 €;
n. Produtos consumíveis/material de armazém, no valor de 15.000,00 €.
C) O Autor forneceu todos os elementos que lhe foram sendo solicitados pela Ré ALLIANZ.
D) O Autor sofreu choque imediato e sentiu-se fortemente abalado com esta perda, vulnerável, desmotivado e impotente.
E) Nos dias imediatos, o Autor caiu num estado de grande ansiedade e depressão.
F) O Autor teve sentimentos de impotência, impunidade, humilhação e grande frustração que invadiram e afectaram psicológica e animicamente o mesmo, que ficou profundamente infeliz e amargurado.
G) Desde 16-12-2016, o Autor tem muitas horas de insónias que o deixam num constante estado de ansiedade e depressão e sofre de stress.
H) O Autor ainda tem a auto-estima e a confiança muito em baixo.
V – Fundamentação de direito
1. Recorde-se que o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:
• Tempestividade do recurso de apelação interposto pelo autor, ora recorrido, discutindo-se a aplicação do disposto no art. 638.º, n.º 7, do CPC;
• Eventual aquisição pela 2.ª ré do direito de propriedade (por ocupação) sobre os bens móveis existentes no locado;
• Verificação dos pressupostos da acção directa exercida pela 2.ª ré e (in)existência de conduta ilícita e culposa da mesma ré;
• (In)existência de danos ou, pelo menos, contribuição da culpa do lesado para os danos;
• Redução do valor máximo de indemnização devida em sede de incidente de liquidação perante os factos considerados não provados.
2. Considere-se antes de mais, a questão da tempestividade do recurso de apelação, bem como da aplicação do disposto no art. 638.º, n.º 7, do CPC.
Alega a recorrente que o recurso de apelação apresentado pelo autor não foi tempestivo, argumentando para o efeito, nas suas conclusões, o seguinte:
“iv. As conclusões que delimitam o objecto do recurso, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de questão que delas não conste.
v. Compulsando os números 1 a 16 das conclusões do Autor Recorrente, não se descortina a impugnação da matéria de facto, as quais omitem, em absoluto, quer a indicação específica dos factos que pretendia fossem reapreciados, quer os depoimentos concretos que alicerçavam uma alteração à matéria de facto assente pela 1.ª instância.
vi. O Autor pretendia que os factos dados como provados fossem alterados, com fundamento na prova documental produzida e não com fundamento no depoimento de qualquer testemunha.
vii. Assim, é dito na conclusão 14 das alegações de recurso do Autor: “(…) Ora, tendo sido realizada uma exaustiva análise e visionamento das fotografias juntas aos Autos, mal se compreende que o Douto Tribunal, que tudo tentou e conseguiu esclarecer, tenha, entretanto, dado todos estes factos como não provados, tal como resumido no artigo 6.º das presentes alegações, para o qual se remete criticamente (…)”.
viii. O único ponto das conclusões de recurso em que o Autor Recorrente refere o depoimento de uma testemunha (conclusão 13), não retira nenhuma consequência no que se refere à alteração da matéria de facto.
ix. Desta feita, não tendo o Autor cumprido o determinado no artigo 638.º, n.º 7, do CPC, deve o tribunal ad quem revogar a decisão do Tribunal a quo, considere extemporâneo o recurso por si apresentado.”.
No acórdão recorrido considerou-se que, tendo em conta o teor da alegação de recurso, “é claro que o Apelante pretendeu impugnar a decisão da matéria de facto e que o recurso tem por objeto a reapreciação da prova gravada, considerando designadamente o alegado nos artigos 62.º e 63.º”. Sendo que “a circunstância de eventualmente não ter sido observado, para tanto, o disposto no art. 640.º do CPC poderá determinar, conforme expressamente previsto nesse preceito legal, a rejeição do recurso no tocante à impugnação da decisão da matéria de facto (o que adiante se apreciará), mas não é motivo para afastar a aplicação do disposto no art. 638.º, n.º 7, do CPC.”.
Não merece reparo esta conclusão do tribunal a quo que seguiu a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal a respeito da matéria. Com efeito, tem vindo a ser decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça que a extensão do prazo de dez dias para a interposição de recurso de apelação prevista no n.º 7 do art. 638.º do CPC pressupõe que, no objecto do recurso, sejam integradas questões relativas à impugnação da decisão da matéria de facto com base na reapreciação de prova que tenha sido gravada, independentemente de, no julgamento do recurso, o Tribunal da Relação vir a considerar não terem sido cumpridos os ónus de alegação previstos no art. 640.º do CPC. Nesse sentido, a título exemplificativo, para além das decisões citadas no acórdão recorrido, se pronunciaram os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30-06-2020, (proc. n.º 310/17.8TCBT.G1.S1), de 06-06-2019 (proc. n.º 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1), de 08-09-2021 (proc. n.º 5404/11.0TBVFX.L1.S1), de 14-09-2021 (proc. n.º 18853/17.1T8PRT.P1.S1), de 01-03-2023 (proc. n.º 421/17.0T8BGC-M.P1.S1) e de 03-11-2023 (proc. n.º 11973/20.7T8PRT.P1.S1), todos disponíveis em https://juris.stj.pt.
Refere-se, a este propósito, no citado acórdão de 30-06-2020, “que, para efeitos de extensão do prazo (aspeto situado a montante), é totalmente indiferente o que seja decidido a jusante, quer em termos de apreciação dos requisitos formais do requerimento e das alegações, quer no que respeita ao mérito da impugnação, como se decidiu no Ac. do STJ, de 22-10-15, 2394/11, www.dgsi.pt. Mas é imprescindível que decorra das alegações de recurso a impugnação de algum ponto da matéria de facto e que a mesma seja sustentada na invocação e apreciação crítica de meios de prova gravados, como também se concluiu no Ac. do STJ, de 6-6-19, 2215/12, www.dgsi.pt.”.
No caso dos autos, como alega a recorrente, são as conclusões que delimitam o objecto do recurso, não podendo o tribunal ad quem conhecer de questão que delas não conste.
Compulsado o teor das conclusões do recurso de apelação apresentado pelo autor, aqui recorrido, facilmente se verifica que, em primeiro lugar, na conclusão 10.ª, o apelante alega que, “em face da prova produzida em audiência” (o que abrange toda a prova aí produzida, incluindo, necessariamente, a prova que foi gravada), se demonstrou que os réus, “ainda antes de terem obtido sentença de desocupação do locado, apropriaram-se de objetos, equipamentos e pertences do Autor e, não satisfeitos com isso, ainda os “doaram” a terceiros, sendo para eles irrelevante o facto de tais bens não lhes pertencerem”.
Apesar de o apelante misturar matéria de facto com conceitos jurídicos, não deixa de decorrer da referida conclusão uma clara vontade de que seja reapreciada a prova produzida para que se prove a factualidade relativa à apropriação indevida pelos réus de coisas que pertencem ao autor e a sua entrega a terceiros. E, no domínio da mesma questão factual, assume especial relevância o vertido na conclusão 13.ª na qual o apelante afirma o seguinte: “Por fim, a Douta sentença não teve em conta o depoimento vivo, emocionado, conhecedor e completo prestado pela Sra. Dra. Fernanda Elizabeth Martins Batista, parcialmente transcrito nos pontos 70.º e seguintes das presentes alegações, de onde se evidencia um conhecimento completo, tanto do “modus operandi” do Estabelecimento, como dos materiais e equipamentos existente no mesmo.”.
Conjugando essas conclusões com o restante teor das alegações do apelante, nas quais o mesmo faz expressa referência a passagens da gravação da inquirição da referida testemunha Fernanda Elizabeth Martins Batista, é possível concluir que, no objecto do recurso de apelação interposto nos autos, foram integradas questões relativas à impugnação da decisão da matéria de facto com base na reapreciação de prova testemunhal que foi gravada, pelo que é aplicável ao caso a extensão do prazo de dez dias para a interposição de recurso de apelação prevista no n.º 7 do art. 638.º do CPC. E, como acima referido, essa conclusão não é prejudicada pelo facto de a impugnação da decisão da matéria de facto não ter sido conhecida pela Relação por incumprimento dos ónus de alegação previstos no art. 640.º do CPC.
Tendo a sentença de 1.ª instância sido notificada às partes em 08-03-2023, presumindo-se as mesmas notificadas em 13-03-2023, o último dia do prazo (de trinta mais dez dias) para interposição do recurso foi o dia 02-05-2023, conforme consta do acórdão recorrido.
Tendo a apelação sido interposta no dia 03-05-2023 e tendo sido proferido despacho nos autos, já transitado em julgado, que considerou verificado o justo impedimento, dispensando o pagamento da multa que seria devida nos termos do art. 139.º do CPC, o recurso foi interposto dentro do prazo legal, improcedendo, nesta parte, o recurso de revista.
3. Passa-se a apreciar a questão da eventual aquisição pela 2.ª ré do direito de propriedade (por ocupação) sobre os bens móveis existentes no locado.
Alega a recorrente que apenas entrou no locado devido ao comportamento concludente do autor de abandono do mesmo e dos bens móveis que se encontravam no seu interior, invocando ter adquirido o direito de propriedade sobre os referidos bens móveis através de ocupação, nos termos constantes do art. 1318.º do Código Civil.
A este respeito, apresenta as seguintes conclusões recursórias:
“xix. Porém, central para o presente recurso de revista é a circunstância de ter sido dado por provado na sentença de 1.ª instância (facto 4) o seguinte:
“(…) O A. encerrou o estabelecimento instalado na predita loja, em data não concretamente apurada, mas não posterior a 19-02-2015, deixando o local ao abandono (…)”, (...).
xx. Também foi dado como provado pelo tribunal de 1.ª instância e transcrevemos:
xxi. “(…) Ora, em face do que vimos dizendo, os bens que o A. deixou no locado em 19-02-2015, devem considerar-se abandonados pelo R.(…)”.
xxii. A Recorrente apenas entrou no locado apenas e tão só, atendendo ao comportamento concludente do Autor de abandono do mesmo e dos bens que se encontravam no imóvel, conforme deu por provado a 1.ª instância
xxiii. O comportamento concludente de abandono do locado e dos bens que se encontravam no imóvel pelo Autor (concretizado nos factos dados por provados na 1.ª instância) foram os seguintes:
i. Cessação de vigência do contrato de fornecimento de electricidade do locado a 06.08.2014 (Doc. n.º 10 da contestação);
ii. Cessação de vigência do contrato da água do locado a 19.02.2015 (Doc. n.º 9 da contestação);
iii. Frustração do contacto pessoal de advogado com o objectivo de comunicação da resolução do contrato de arrendamento, no dia 16.03.2016 (Doc. n.º 2 da contestação), por ninguém se encontrar no locado;
iv. Tentativas de contacto da Ré Recorrente, junto do Autor, desde 2014, sem sucesso, com o seu subsequente desaparecimento;
v. Tentativas diversas de contacto da Ré Recorrente, junto do Autor, em Dezembro de 2016, antes da entrega dos bens que se encontravam no locado à Associação R...IPSS.
xxiv. Conclui-se que, em Dezembro de 2016, quer o locado, quer os bens que se encontravam no imóvel, se encontravam abandonados.
xxv. O artigo 1318.º do Código Civil o seguinte: Podem ser adquiridos por ocupação os animais e as coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvas as restrições dos artigos seguintes, sublinhado nosso.
xxvi. A ocupação é um modo de aquisição originária da propriedade.
xxix. O comportamento concludente do Autor é idóneo a integrar uma situação de abandono, não tendo a Recorrente esbulhado os bens indicados no ponto 16 dos factos provados da sentença.
xxx. Verificado o abandono, pelo Autor, das coisas móveis encontradas no locado pela Ré Recorrente, esta tinha legitimidade para adquirir a titularidade dos mesmos, por ocupação, razão pela qual a entrega dos mesmo à Associação R...IPSS estava inteiramente legitimada.”.
Vejamos.
3.1. Em primeiro lugar, importa referir que a questão da eventual aquisição pela 2.ª ré do direito de propriedade sobre os bens móveis descritos no ponto 16 dos factos provados não foi apreciada pela Relação, sendo uma questão nova suscitada pela primeira vez no presente recurso de revista. Na sua contestação, a ora recorrente invoca apenas que o autor abandonou o estabelecimento e o que nele se encontrava, sem que tenha invocado a aquisição de qualquer direito de propriedade.
Trata-se, assim, de uma questão da qual - não sendo de conhecimento oficioso - este Supremo Tribunal não pode tomar conhecimento, uma vez que os recursos não incidem sobre questões novas, mas sobre decisões tomadas sobre questões oportunamente suscitadas e decididas nos autos. Cfr., neste sentido, os acórdãos de 28-09-2017 (proc. n.º 10145/14.4T8LSB.L1.S1), de 12-07-2018 (proc. n.º 216/15.5T8GRD.C1.S1), 09-02-2021 (proc. n.º 720/19.6T8VFR.P1.S1), de 06-07-2021 (proc. n.º 750/18.5T8VNF-B.G1.S1), disponíveis em https://juris.stj.pt.
Ainda que assim não se entendesse, sempre se dirá que, no caso dos autos, não se verifica qualquer aquisição, por ocupação, pela 2.º ré do direito de propriedade sobre os bens móveis em causa.
A ocupação é um modo de aquisição originária do direito de propriedade que apenas pode incidir sobre bens móveis como decorre expressamente do art. 1318.º do Código Civil que dispõe:
“Podem ser adquiridos por ocupação os animais e as coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvas as restrições dos artigos seguintes.”.
A recorrente alega que adquiriu o direito de propriedade sobre os bens móveis referidos no ponto 16 dos factos provados, uma vez que tais bens foram “abandonados” pelo aqui autor conforme entendeu a sentença da 1.ª instância.
No ponto 4 dos factos provados consta que “o Autor encerrou o estabelecimento instalado na predita loja, em data não concretamente apurada, mas não posterior a 19-02-2015, deixando o local ao abandono.”.
Porém, não pode considerar-se verificada a previsão do referido art. 1318.º do CC com base no teor de tal facto provado. O conceito de “coisas móveis abandonadas” é um conceito jurídico que carece de ser concretizado através de factos que o revelem. A expressão utilizada no ponto 4 dos factos provados de que o local foi deixado “ao abandono” não significa, só por si, que as coisas móveis existentes nesse local foram “abandonadas”, para efeitos da previsão da referida norma legal. Está em causa um juízo de direito que não pode valer sem que seja concretizado através de outros factos.
Depois da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que não prevê norma similar ao antigo art. 646.º, n.º 4, 1.ª parte, do anterior código (que previa que se tinham por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito), tem este Supremo Tribunal considerado que, apesar de não figurar expressamente na lei processual vigente, “mantém-se na nossa ordem jurídica o mecanismo anteriormente previsto no art. 646.º, n.º 4, do CPC, devendo ser suprimida da fundamentação de facto da sentença toda a matéria dela constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, bem como a que integre juízos conclusivos ou de valor” (acórdão de 12-07-2018, proc. n.º 88/14.7TJPRT.P3.S2, não publicado). Neste sentido, veja-se também o acórdão de 12-01-2021 (proc. n.º 2999/08.0TBLLE.E2.S1, publicado em https://juris.stj.pt), no qual se afirma que, “em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjetivação.”.
No mesmo sentido, cfr. os acórdãos de 23-03-2017 (proc. n.º 301/14.0T8STR.E1.S1) e de 19-12-2018 (proc. n.º 857/08.7TVLSB.L1.S2), este último publicado em https://juris.stj.pt.
3.2. Voltando ao caso dos autos, importa, antes de mais, interpretar o conceito de “coisas abandonadas” (res derelictae) previsto no art. 1318.º do CC e apurar se o mesmo se encontra preenchido face aos factos dados como provados na presente acção.
Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 125), em anotação ao referido preceito legal, ensinam que “o abandono supõe que o dono afastou a coisa da sua disponibilidade natural, como sucede quando se deita fora o jornal ou a revista que se leu ou a ponta do cigarro que se fumou. Mas para que se verifique o abandono, é necessário ainda que haja intenção, por parte do proprietário, de demitir de si o direito que tem sobre ela (animus derelinquendi)”.
No caso sub judice, os factos provados não revelam qualquer intenção de o aqui autor demitir de si o direito que tem sobre os bens móveis que se encontravam no interior do locado. O que se provou (cfr. factos 4, 11 e 13) é que o autor encerrou o estabelecimento comercial que explorava no locado em data não concretamente apurada, mas não posterior a 19-02-2015, passando a não existir ninguém no local para receber a correspondência registada, deixando também o autor de levantar a correspondência existente na respectiva caixa de correio, que ficou cheia, e tendo igualmente deixado de proceder ao pagamento das rendas. Mas tal não significa que o autor quisesse abrir mão de todo o recheio do estabelecimento, nomeadamente dos bens descritos no ponto 16. Pois, apesar de o estabelecimento se encontrar encerrado, os bens permaneciam num espaço fechado à chave, de modo a impedir a entrada não autorizada de terceiros no interior do imóvel, tanto mais que, como ficou provado, a aqui ré recorrente, para entrar no seu interior, teve de contratar um serralheiro para abrir a porta, tendo posteriormente mudado a fechadura que nela existia (cfr. facto 15).
Revelador da intenção do autor de não se demitir do seu direito de propriedade sobre os bens existentes no imóvel é o facto de se ter provado (cfr. facto 5) que o mesmo, na qualidade de tomador, celebrou com a ré Allianz, um contrato de seguro multirriscos, em vigor desde as 00:00 horas de 01-04-2015 até às 24:00 horas de 31-03-2016, automática e anualmente renovável, a partir de 01-04-2016, cujo capital seguro tinha a cobertura base de € 335.000,50, sendo € 320.000,50 para mobiliário e equipamento e € 15.000,00 para mercadorias fixas, valores máximos indemnizáveis por sinistro e anuidade.
Provou-se (cfr. facto 7) que, de acordo com o referido contato de seguro, eram considerados elementos integrantes do “Mobiliário e Equipamento” o conjunto de:
“1. Móveis assim como os vidros, mármores ou pedras, naturais ou artificiais, neles integrados, mas não incluídos os móveis fixos ou embutidos nas paredes que são considerados parte integrante do edifício;
2. Espelhos de paredes ou integrados nos móveis;
3. Equipamentos fixos de serviço: água, gás, electricidade, aquecimento e climatização, energia solar, saneamento, telefone, rádio televisão e outras comunicações, alarmes, mas não incluídas as condutas fixas integradas na construção que são consideradas parte integrante do edifício;
4. Máquinas, equipamentos e utensílios próprios da actividade.
5. Elementos de decoração não fixos, de valor unitário inferior a 3.000 euros;
6. Letreiros, anúncios luminosos e toldos de propriedade do Segurado.”.
Os objectos descritos no ponto 16 dos factos provados, ou, pelo menos, grande parte deles, encontravam-se, assim, abrangidos pela cobertura do referido contrato de seguro, o qual estava em vigor na data em que a ré procedeu à abertura forçada da porta do locado e na data em que ordenou a retirada dos bens que se encontravam no seu interior.
A vigência do contrato de seguro pressupõe naturalmente o pagamento de uma quantia pecuniária pelo aqui autor a título de prémio, o que é revelador da sua intenção de assegurar o risco de perda do seu património e contrário a qualquer intenção de abandono do mesmo.
Os factos provados revelam, assim, que não existiu qualquer intenção do autor de se demitir do direito de propriedade sobre os bens móveis que se encontravam no interior do locado, motivo pelo qual tais bens não podem ser considerados “coisas abandonadas” para efeitos do disposto no art. 1318.º do CC, improcedendo a argumentação da recorrente.
4. Passa-se assim a apreciar da questão da verificação dos pressupostos da acção directa exercida pela 2.ª ré e da invocada (in)existência de conduta ilícita e culposa da mesma ré.
Procurando refutar o carácter ilícito e culposo da sua conduta, alega a 2ª ré, ora recorrente, que, ao contrário do que é referido no acórdão recorrido, não efectuou qualquer despejo à margem da lei, nem é descabida a invocação do disposto no art. 15.º-K do NRAU, pois, de facto, em Junho de 2016, intentou contra o autor um procedimento especial de despejo, junto do Balcão Nacional do Arrendamento, que correu termos sob o número de processo 4355/16.7..., o qual foi extinto por desocupação do locado, no dia 02-10-2017, conforme documento n.º 5 junto com a contestação.
Esta argumentação da recorrente carece em absoluto de sentido. Se, de facto, a mesma intentou contra o autor um procedimento especial de despejo nos termos por si alegados, é também manifesto que a mesma não esperou por qualquer decisão judicial que ordenasse o despejo do imóvel locado. Pelo contrário, provou-se (cfr. facto 15) que, no início de Novembro de 2016, a 2.ª ré entrou na loja, para o que contratou um serralheiro para abrir a porta e mudar a fechadura. Provou-se também (cfr. facto 16) que, nos dias 4 e 5 de Dezembro de 2016, por ordem da 2ª ré, foram retirados da loja e entregues, sem contrapartida, à Associação R...IPSS: uma cama de massagem; um móvel estante; três cadeiras; um candeeiro; dez electrodomésticos diversos; cinco espelhos; seis peças de escultura; um quadro; uma ducha de hidromassagem; e dez objectos de decoração, de valor não concretamente apurado; objectos que tal associação se recusou a restituir por o autor se ter recusado a pagar o preço.
Os factos provados revelam que a aqui recorrente, para assegurar o seu direito de propriedade sobre o locado, recorreu à acção directa, a qual, conforme se prevê no n.º 2 do art. 336.º do Código Civil, pode consistir na apropriação ou destruição de uma coisa, sendo que a licitude de tal comportamento depende de estarem reunidos os pressupostos previstos nesse artigo.
De acordo com o n.º 1 do referido art. 336.º:
“É lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo.”.
O n.º 3 dispõe ainda que “a acção directa não é lícita, quando sacrifique interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar.”.
Como se sintetiza no acórdão deste Supremo Tribunal de 08-04-2021 (proc. n.º 6524/18.9T8LRS-A.L1.S1), disponível em https://juris.stj.pt/: “a acção directa pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos especificados na lei: a) a existência de um direito próprio; b) impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, judiciais ou policiais; c) ser a acção directa indispensável para evitar a inutilização prática do direito; d) não exceder o agente o que for necessário para evitar o prejuízo; e) não importar a acção directa o sacrifício de interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar.”.
Exige-se, assim, que o titular do direito, no caso, a aqui recorrente, enquanto proprietária do locado, estivesse impossibilitada de recorrer aos meios coercivos normais, judiciais ou policiais, ou que o recurso a esses meios não pudesse evitar a inutilização prática do direito. Ora, a própria argumentação da recorrente no presente recurso de revista, em conjunto com a factualidade provada, revela claramente a falta de preenchimento desses pressupostos. Pois, estando pendente um procedimento especial de despejo, a recorrente não esperou por qualquer decisão judicial que ordenasse o despejo do locado e contratou um serralheiro para abrir a porta do locado e mudar a fechadura. Posteriormente, a recorrente ordenou a retirada da loja dos bens descritos no ponto 16 dos factos provados e a sua entrega, sem qualquer contrapartida, a uma IPSS que depois se recusou a restituir as coisas ao autor por este se ter negado a pagar o preço que aquela instituição exigiu em contrapartida dessa devolução.
Cabia à 2ª ré o ónus de alegar e provar factos que demonstrassem a impossibilidade de esperar pela normal tramitação do procedimento judicial que instaurou uns meses antes, bem como a impossibilidade de recorrer a outros meios coercivos normais, judiciais ou policiais, para evitar a inutilização prática do seu direito (cfr., neste sentido, o acórdão deste Supremo Tribunal de 19-04-2012, proc. n.º 453/06.3TBSLV.E1.S1, consultável em https://juris.stj.pt).
Nada tendo sido alegado e provado nesse sentido, não se verificam os pressupostos da acção directa, consubstanciando a actuação da 2ª ré uma manifesta violação dolosa do direito de propriedade do autor sobre os bens móveis que se encontravam no imóvel locado, traduzindo tal conduta, e (fazendo apelo às palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 15-09-2022, proc. n.º 143/14.3T8AVR.P1.S1, consultável em https://juris.stj.pt/, proferido a respeito de caso com contornos equivalentes aos dos autos) a vontade da mesma ré “em fazer justiça pelas próprias mãos sem que tenha provado os pressupostos da ação direta (art. 336.º do CC), o que constitui uma grave afetação do mínimo ético-jurídico exigível na convivência social”.
Consubstanciando a conduta da ré uma acção ilícita e culposa que privou o autor do direito de propriedade sobre os seus bens, dos quais a ré ilegitimamente se apropriou, dispondo dos mesmos ao entregá-los a uma terceira entidade que se recusou a restituí-los sem que lhe fosse paga uma contrapartida financeira, não merece reparo a decisão recorrida que considerou verificada uma conduta ilícita e culposa da ré aqui recorrente.
Ou seja, como se concluiu no acórdão recorrido, “a Ré, ao facultar a terceiros a remoção dos bens que se encontravam no interior do locado, sem que tivesse recorrido às vias (judicial ou extrajudicial) legalmente previstas para efetivação do despejo, em termos tais que o Autor não logrou recuperá-los (pois foi-lhe exigido que os pagasse), causou ao Autor um prejuízo correspondente ao valor daqueles bens.”.
5. Ainda que sem a autonomizar completamente da questão anterior, invoca a recorrente a questão da (in)existência de danos ou, pelo menos, da contribuição da culpa do lesado para os danos.
Alega a ora recorrente que não provocou quaisquer danos na esfera jurídica do autor e que eventuais vicissitudes ocorridas relativamente aos bens deixados no imóvel locado resultam, exclusivamente, de conduta imputável a este último. Mais concretamente, sustenta que, “encontrando-se as coisas móveis indicadas no ponto 16 dos factos provados na associação R...IPSS, com a possibilidade de os mesmos serem recuperados e entregues ao Autor, caso o Tribunal ad quem decida nesse sentido, não se verifica qualquer dano que possa ser imputado à Recorrente. E subsidiariamente, alega que caso se entenda que há dano patrimonial na esfera jurídica do Autor, haveria exclusão de ilicitude da Recorrente por culpa do lesado, de acordo com o artigo 570.º do Código Civil. Pois tendo o Autor, putativo lesado, tido a hipótese, em momento imediatamente posterior à entrega dos bens pela Recorrente, de os recuperar junto da Associação R...IPSS e não o tendo feito, age com culpa.”.
Para fundamentar a sua posição, a recorrente apresenta os seguintes argumentos sintetizados nas seguintes conclusões recursórias:
“xxxii. O Tribunal a quo, no acórdão recorrido decidiu:
“(…) Assim, a Ré, ao facultar a terceiros a remoção dos bens que se encontravam no interior do locado, sem que tivesse recorrido às vias (judicial ou extrajudicial) legalmente previstas para efetivação do despejo, em termos tais que o Autor não logrou recuperá-los (pois foi-lhe exigido, pela Associação que os tinha em seu poder, que os pagasse), causou ao Autor um prejuízo correspondente ao valor daqueles bens (…)” (...).
xxxiii. Reitera-se que a Ré Recorrente recorreu à via judicial para a efectivação do despejo (processo 4355/16.7YLPRT concluído pelo Balcão Nacional do Arrendamento), tendo entregado, de forma lícita, os bens que se encontravam abandonados no locado à associação “R...IPSS”
xxxiv. Disse o legal representante da associação “R...IPSS”, em sede de instrução, no âmbito do processo-crime intentado pelo Autor contra a Ré Recorrente, da qual foi não pronunciada, facto que configura autoridade de caso julgado, e que transcrevemos:
“(…) O Autor ou quem este tivesse indicado, tiveram a possibilidade de recuperar os poucos objectos que haviam sido depositados em tal associação, por incúria do Autor na sua aceitação, o que nunca fizeram (…)” (...).
xxxv. Se o Autor não logrou recuperar os bens deixados na associação Reto à Esperança, tal deveu-se a causa que lhe é inteiramente imputável e não à Ré Recorrente.
xxxvi. Salvo o devido respeito, não encontra respaldo na sentença proferida pela 1.ª instância o seguinte trecho decisório do acórdão recorrido: “pois foi-lhe exigido, pela Associação que os tinha em seu poder, que os pagasse”, pois foi dito na sentença do tribunal da 1.ª instância e transcrevemos:
“(…) E o depoimento da testemunha EE, voluntária da ASSOCIAÇÃO R...IPSS que confirmou a recolha de tais bens na loja em causa nos autos e que o fez por a 2ª R. lhes ter doado os mesmos, embora sem os lograr identificar nas fotografias juntas aos autos pelo A. como doc. 22 da PI. Que confirmou não ter deixado sair tais bens da associação, explicitando a razão de assim ter procedido (…), sublinhado nosso. (…) Finalmente, ponderou-se o depoimento da testemunha FF assistente social, voluntário da ASSOCIAÇÃO R...IPSS, que referiu terem estado dois agentes da PSP na loja da associação solicitando informações sobre os bens em causa e que a dada altura foram avisados para não os venderem por causa do litígio entre as partes, sublinhado nosso (…)”
xxxvii. Os bens entregues pela Recorrente em Dezembro de 2016 encontram-se na Associação Reto à Esperança, não tendo sido vendidos a quaisquer terceiros.
xxxviii. Não foi dado por provado que aquela entidade pediu o pagamento ao Autor para a sua entrega.”.
Vejamos.
5.1. Resultou expressamente provado (cfr. facto 16) que os bens móveis aí descritos, foram, por ordem da aqui recorrente, retirados do imóvel locado e entregues à Associação R...IPSS, bem como (cfr. parte final do facto 16) “que tal associação se recusou a restituir por o Autor se ter recusado a pagar o preço”.
Este ponto da matéria de facto dada como provada demonstra que o autor pediu a restituição dos bens e que a referida instituição lhe exigiu em contrapartida dessa devolução o pagamento do respectivo preço, pagamento que foi recusado pelo autor.
Não se alcança, assim, o sentido da alegação da recorrente na sua conclusão 38 no sentido de não ter resultado provado que aquela entidade pediu um pagamento ao autor para a devolução dos bens. Afigura-se que a recorrente pretende com a sua alegação impugnar a matéria de facto provada pelas instâncias, pondo em causa a prova dos factos vertidos no referido ponto 16.
Porém, essa matéria não foi sequer objecto de reapreciação pelo Tribunal da Relação, não tendo a 2ª ré, aqui recorrente, apresentado resposta ao recurso de apelação interposto pelo autor. E verificando-se que, na única resposta apresentada a tal recurso (no caso, pela 1.ª ré Allianz), não foi ampliado o âmbito do mesmo recurso (cfr. art. 636.º, n.º 2, do CPC), designadamente impugnando-se a sentença de 1.ª instância quanto a esse ponto da matéria de facto provada, prevenindo a hipótese de procedência, ainda que parcial, das questões suscitadas pelo autor apelante, como veio a suceder.
Não pode, por isso, a 2ª ré, ora recorrente, requerer, neste recurso de revista, a sindicância desse concreto ponto da matéria de facto provada que não foi objecto de apreciação pelo tribunal recorrido.
5.2. Sem prejuízo do que se acaba de expor, carece também de sentido a alegação de que as declarações do legal representante da Associação R...IPSS, em sede de instrução, no âmbito do processo-crime intentado pelo autor contra a ré recorrente, na qual não foi pronunciada, configuram autoridade de caso julgado que se imponha a estes autos.
A autoridade do caso julgado reporta-se a decisões judiciais e não ao teor de declarações prestadas por intervenientes processuais, nomeadamente testemunhas em processos judiciais.
Deste modo, encontrando-se estabilizada a matéria de facto dada como provada nos presentes autos, e não estando em causa qualquer das situações previstas no art. 674.º, n.º 3, do CPC, está excluído dos poderes deste Supremo Tribunal a sindicância da prova sujeita ao princípio da livre apreciação pelo julgador, como é o caso dos meios de prova indicados nas conclusões da ora recorrente acima transcritas.
Não resultando da factualidade provada que o autor tenha tido a possibilidade de recuperar os objectos retirados do interior do locado a mando da 2ª ré que se encontram descritos no ponto 16, uma vez que se provou que lhe foi exigido o pagamento de um preço para obter a restituição de tais bens, acompanha-se o acórdão recorrido ao concluir: “a Ré, ao facultar a terceiros a remoção dos bens que se encontravam no interior do locado, sem que tivesse recorrido às vias (judicial ou extrajudicial) legalmente previstas para efetivação do despejo, em termos tais que o Autor não logrou recuperá-los (pois foi-lhe exigido que os pagasse), causou ao Autor um prejuízo correspondente ao valor daqueles bens.”.
Improcede, assim, a argumentação da recorrente quanto à inexistência de dano na esfera jurídica do autor ou da contribuição da culpa do lesado para os danos.
6. Consideremos, por fim, a questão da redução do valor máximo da indemnização devida em sede de incidente de liquidação face aos factos dados como não provados.
Subsidiariamente, e para a hipótese de se manter a sua condenação, alega a recorrente que sempre a decisão de remeter para incidente de liquidação a fixação de uma indemnização até ao limite de € 350.000,00 terá de ser alterada, atendendo ao teor dos factos dados como não provados e ao valor da quantia peticionada pelo autor a título de danos patrimoniais.
Argumenta para o efeito que, atendendo ao teor do ponto b) dos factos não provados pela 1.ª instância, e somando os vários valores aí descritos, relativos aos danos patrimoniais alegados e não provados, se alcança a quantia de € 220.798,67. Pelo que, “sendo considerados não provados danos no valor de € 220.798,67 e atendendo ao valor dos danos patrimoniais alegados (€ 350.000,00), a ter havido condenação, o que por mero exercício hipotético se refere, a condenação a Ré Recorrente teria sempre como limite máximo € 129.201,33.”.
Vejamos.
6.1. Formulou o autor o pedido de que os réus fossem solidariamente condenados a pagar ao autor a quantia de € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros) a título de indemnização pelos danos patrimoniais e prejuízos por ele sofridos, acrescida de juros à taxa legal, a contar desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
A sentença da 1.ª instância julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do peticionado.
Tendo o autor apelado, o acórdão da Relação, ainda que sem conhecer da impugnação da matéria de facto, julgou o recurso parcialmente procedente, revogando a sentença, na parte em que absolveu a 2.ª ré, condenando-a a pagar ao autor quantia indemnizatória a fixar em liquidação ulterior até ao limite de € 350.000,00, quantia indemnizatória essa relativa ao valor dos objectos descritos no ponto 16. dos factos provados.
Ora o ponto 16 dos factos provados tem o seguinte conteúdo:
“Nos dias 4 e 5 de dezembro de 2016, por ordem da Ré BB, foram retirados da loja e entregues, sem contrapartida, à ASSOCIAÇÃO R...IPSS: uma cama de massagem; um móvel estante; três cadeiras; um candeeiro; dez diversos eletrodomésticos; cinco espelhos; seis peças de escultura; um quadro; uma ducha de hidromassagem; e dez objetos de decoração, de valor não concretamente apurado, que tal associação se recusou a restituir por o Autor se ter recusado a pagar o preço.”.
Já do ponto B) dos factos dados como não provados consta o seguinte.
B) Do interior da loja foram retirados e/ou destruídos, os seguintes bens:
a. A parede de água tipo cascata modelo Niagara - estrutura de metal, com aspecto de uma moldura e um depósito de água na base, no valor de 7.003,00 €;
b. Equipamento de cromoterapia modelo cromolight madeira wengé, no valor de 3.017,19 €;
c. O duche vichy braço com 7 cabeças com cama hidráulica, no valor de 15.810,00 €;
d. Marquesa eléctrica gemya lacada a preto, no valor de 4.663,98 €;
e. Equipamento de radiofrequência facial/corporal Dermoheat, no valor 11.749,49 €;
f. Aparelho de cavitação – Impact, no valor de 22.443,30 €;
g. Skinlight aparelho para tratamento de rosto, no valor de 6.171,71 €;
h. Artigos de decoração, no valor global de 83.000,00 €;
i. Roupas, atoalhados, toalhões, lençóis para marquesa, toalhas de rosto, toalhas de mão, roupões, quimonos, chinelos, fardas e tapetes, no valor de 9.500,00 €;
j. Um espelho dourado séc. XVIII – Grande Talha; outro espelho dourado séc. XVIII; espelho dourado (Talha) Séc. XVII e espelho preto c/cristais Swarovski (2,50m Alt. x 3,00m L), no valor global de 22.500,00 €;
k. Material de ginásio, no valor de 8.000,00 €;
l. Cadeiras, marquesas, lupas e mesas, no valor global de 8.500,00 €;
m. Electrodomésticos e equipamentos informáticos, no valor global de 9.000,00 €;
n. Produtos consumíveis/material de armazém, no valor de 15.000,00 €.”.
6.2. A questão em causa insere-se no âmbito da problemática mais ampla em torno da interpretação da norma do n.º 2 do art. 609.º do CPC, de acordo com a qual:
“Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.”.
Tanto o sentido interpretativo desta norma legal como a definição dos limites legais à decisão de condenação em quantia a liquidar foram apreciados, de forma desenvolvida, no acórdão deste Supremo Tribunal de 07/05/2020 (proc. n.º 233/12.7TBMIR.C1.S1)1, consultável em https://juris.stj.pt, em termos que encontram correspondência no respectivo sumário que aqui se transcreve:
“I - Dispondo o art. 556.º, n.º 1, al. b), do CPC que é permitido formular pedidos genéricos «Quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 569.º do Código Civil», admite-se como consequência que a condenação em quantia a liquidar nos termos do art. 609.º, n.º 2, do mesmo Código, poderá ter lugar «tanto nos casos em que é deduzido um pedido genérico não subsequentemente liquidado (...) como naqueles em que o pedido se apresenta determinado, mas os factos constitutivos da liquidação da obrigação não são provados».
II - Na base de uma interpretação lata do n.º 2 do art. 609.º do CPC, actualmente dominante na jurisprudência do STJ, segundo a qual, provada a realidade de um dano, a eventual insuficiência da prova de elementos relevantes para o quantificar, ainda que por fracasso da actividade probatória do lesado, não impede a utilização do mecanismo da condenação genérica, afigura-se estar a ideia, extraída do regime do art. 569.º do CC (conjugado com o do art. 556.º, n.º 1, al. b), segunda parte, do CPC) segundo a qual não impende sobre o lesado o ónus de avançar logo com todos os elementos necessários para especificar cabalmente o dano sofrido; sendo-lhe facultada a possibilidade de formular um pedido genérico, não deverá ser afectado negativamente pela opção de ter avançado com um pedido específico, cujos elementos factuais não logrou, porém, demonstrar inteiramente.
III - Contudo, para não se distorcerem as regras gerais de distribuição do ónus da prova consagradas no CC, com o inerente efeito cominatório do art. 414.º do CPC, a possibilidade de condenação em quantia a liquidar pressupõe, necessariamente, que o lesado conseguiu demonstrar tanto a existência como o “núcleo essencial” do dano em causa.
IV - Há, por outro lado, um limite evidente: se, na acção, a respeito de certo dano invocado, são julgados não provados determinados factos relevantes para a sua delimitação e quantificação, tal decisão negativa, por força do respeito pelo caso julgado formal, terá de ser respeitada no incidente de liquidação, não sendo obviamente admissível que, no âmbito de um mesmo processo, certo facto seja sucessivamente considerado como provado e não provado.
(...).”. [negritos nossos]
Procurando aplicar as orientações constantes dos pontos III e IV do sumário transcrito ao caso sub judice, temos que: (i) estando dado como provado – no ponto 16 – o núcleo essencial dos danos patrimoniais invocados pelo autor, não oferece dúvidas a possibilidade de condenação em quantia a liquidar; (ii) porém, não tendo o autor logrado provar os danos constantes do ponto b) da factualidade dada como não provada, tal constitui um limite intransponível à indemnização a fixar em incidente de liquidação, não sendo admissível que, no âmbito do mesmo processo, possa ser dado como provado certo facto que anteriormente, por decisão transitada em julgado, foi dado como não provado.
Por outras palavras, ainda que os factos não provados não permitam afirmar a realidade contrária ao alegado, a decisão de remeter a fixação da indemnização para incidente de liquidação não pode traduzir-se na faculdade de o autor fazer prova dos danos que não logrou provar nos autos principais, mas tão só na faculdade de o autor concretizar os danos cujo núcleo essencial logrou provar nos autos principais.
Deste modo – e no pressuposto (a confirmar) de que os danos alegados pelo autor em sede de petição inicial foram, em parte (perda dos bens listados no acima transcrito ponto 16), dados como provados e, noutra parte (perda dos bens listados no acima transcrito ponto b)), como não provados – assiste razão à 2ª ré, ora recorrente, ao invocar que, tendo sido peticionada indemnização por danos patrimoniais no valor de € 350.000,00 e situando-se a soma dos danos dados como não provados em € 220.798,67, a sua condenação terá como limite máximo a diferença entre o valor peticionado e o valor dos danos não provados (isto é, € 129.201,33).
Posto é que os bens móveis descritos no ponto 16 da factualidade provada não coincidam, total ou parcialmente, com os bens descritos no ponto B) da factualidade dada como não provada. O que importa confirmar.
6.3. Compulsada a petição inicial verifica-se que, no respectivo artigo 60º, foi alegado o seguinte:
“Veio o A., posteriormente, a descobrir que muitos dos bens que lhe foram subtraídos/furtados do interior do seu estabelecimento pelos Réus BB, DD e CC(conforme admitido e confessado por estes no âmbito do supra identificado processo de inquérito), foram, alegadamente, doados, à sua revelia e sem a sua autorização, à Instituição R...IPSS com instalações, entre outras, sitas na Rua ..., n.º 88, ..., em .... (vide Docs.10 e 11)”.
Sendo que o documento 10 consiste numa declaração emitida pela Associação R...IPSS e que o documento 11 consiste num conjunto de recibos emitidos pela mesma Associação.
Em 05-11-2020, o tribunal da 1.ª instância veio a proferir despacho do seguinte teor:
“Despacho Pré-Saneador – art. 590.º, n.º2, do CPCivil
Na petição inicial apresentada, pede o Autor a condenação solidária dos Réus, a pagar-lhe, além do mais, a quantia de € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros) a título de indemnização pelos danos patrimoniais e prejuízos por ele sofridos, acrescida de juros à taxa legal, a contar desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
Para fundar a sua pretensão alega, em síntese e além do mais, que os 3.º e 4.º Réus, a mando da 2.ª Ré lhe destruíram as instalações e equipamento de sua pertença no locado, tendo-lhe ainda subtraído muitos bens (cf. arts. 58.º e 60.º, da petição inicial).
Contudo, não concretiza o estado das instalações antes e depois da alegada conduta ilícita, de onde se possa vir a concluir em que termos e extensão foi destruída, nem concretiza que concretos equipamentos e bens foram destruídos e/ou subtraídos.
Igualmente, não concretiza que benfeitorias fez nem o valor que despendeu com as mesmas.
Por fim, não indica o valor de cada equipamento e/ou bem que foi destruído e/ou subtraído.
Nestes termos e com estes fundamentos, ao abrigo do disposto no art. 590º, nº 2, alínea b), e 4, do CPC, convido o Autor a apresentar em 15 dias articulado (que não uma nova petição inicial) em que se limite a concretizar em termos fácticos os pontos supra assinalados da sua alegação.
Em resposta ao convite do tribunal, em 21-11-2020 o autor apresentou requerimento no qual alegou o seguinte:
“21º
Quantos aos bens móveis e equipamentos/aparatologia propriamente dito – que integravam o recheio do estabelecimento do A. – cumpre referir que, atendendo aos níveis de exigência da SORISA (“Master”), o tipo de clientela a que os serviços prestados pela “Art Clinic” se destinava (como já referido), todos os equipamentos adquiridos e instalados no SPA do A. pela SORISA eram de última geração e, como tal, bastante dispendiosos.».
22º
A título meramente exemplificativo, veja-se os valores dos equipamentos e aparatologia adquiridos pelo A. à SORISA – para ministrar os tratamentos aos clientes – constantes das facturas juntas à p.i. como Docs.28 e 29, que perfazem o valor total de € 70.492,51 (correspondente ao somatório de € 64.792,51 e € 5.700,00, respectivamente), onde podemos destacar:
- a parede de água tipo cascata modelo Niagara (estrutura de metal, com aspecto de uma moldura e um depósito de água na base, parcialmente destruído e com ar decadente/sucata visível nas últimas três páginas do Doc.6 da p.i., contrastando com as fotografias que o documentam nas páginas 11 e 13 do Doc.3 da p.i.), no valor de € 5.787,61 + IVA = € 7.003,00;
- o equipamento de cromoterapia modelo cromolight madeira wengé, no valor de € 2.479,95 + IVA = € 3.017,19;
- o duche vichy braço com 7 cabeças com cama hidráulica (visível na fotografia constante da página 8 do Doc.3 da p.i.), no valor de € 13.066,26 + IVA = € 15.810,00;
- marquesa eléctrica gemya lacada a preto, no valor de € 3.854,53 + IVA = € 4.663,98;
- equipamento de radiofrequência facial/corporal Dermoheat, no valor de € 9.710,33 + IVA = € 11.749,49;
- aparelho de cavitação – Impact, no valor de € 18.548,19 + IVA = € 22.443,30;
- skinlight aparelho para tratamento de rosto, no valor de € 5.100,59 + IVA = € 6.171,71, só para mencionar alguns dos equipamentos de tratamento (de valor mais elevado) constantes das facturas juntas à p.i. como Docs.28 e 29.
23º
Também integravam o recheio do SPA “Art Clinic”, os equipamentos elencados no email remetido para o mediador de seguros, GG (da sociedade “D..., Lda”) junto a p.i. como Doc.16, como seja:
- artigos de decoração, no valor global de € 83.000,00;
- roupas, atoalhados, acessórios (entenda-se, toalhões, lençóis para marquesa, toalhas de rosto, toalhas de mão, roupões, quimonos, chinelos, fardas, tapetes, etc.), no valor de € 9.500,00 (bens depreciáveis com a sua utilização, mas regularmente renovados para manter o índice de qualidade exigido pela Sorisa);
- espelhos antigos (espelho dourado séc. XVIII – Grande Talha; outro espelho dourado séc. XVIII; espelho dourado (Talha) Séc. XVII e espelho preto c/cristais Swarovski (2,50m Alt. x 3,00m L), no valor global de € 22.500,00; (vide descrição constante do artigo 68 da p.i.)
- material de ginásio, no valor de € 8.000,00;
- material dos gabinetes (cadeiras, marquesas, lupas, mesas, etc.), no valor global de € 8.500,00;
- electrodomésticos e equipamentos informáticos, no valor global de € 9.000,00 (sujeitos, naturalmente, a desvalorização/depreciação com o respectivo uso/utilização);
- produtos consumíveis/material de armazém, no valor de € 15.000,00 que, à medida que iam sendo gastos nos tratamentos ou vendidos aos clientes, iam sendo repostos em armazém/stock.
24º
Todos estes bens foram retirados pelos Réus do interior do estabelecimento do A. e, com excepção dos, alegadamente, doados pela Ré BB à Associação “R...IPSS”, constantes – designadamente, mas não só – das listagens emitidas pela própria associação e juntas à p.i. como Docs.10 e 11 para os quais se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, desapareceram daquele espaço, desconhecendo o A. o seu destino e paradeiro.”.
Analisada a motivação da decisão de facto da sentença da 1.ª instância, constata-se:
1.º) Que a lista dos bens alegadamente subtraídos, na versão original da P.I, foi dada como provada (no referido ponto 16 dos factos provados), atendendo “ao teor dos documentos 10 e 11 da PI, que constam respectivamente da declaração de tal associação, datada de 03-10-2017 e das cópias dos recibos emitidos por tal associação à R. BB”;
2.º) Que a lista dos bens alegadamente subtraídos, na versão dos artigos 22º e 23º do requerimento de aperfeiçoamento da petição inicial – em resposta ao convite a concretizar os bens destruídos e subtraídos ao autor – foi dada como não provada (no referido ponto B) dos factos não provados) com base no “depoimento da testemunha EE, voluntária da Associação R...IPSS” que “esclareceu que todos os bens que foram recolhidos da loja constam dos docs. 11 e 12 juntos pelo A. na PI”.
Temos, pois, que sendo os bens constantes da segunda lista uma concretização dos bens enunciados, de forma genérica, na primeira lista (“uma cama de massagem; um móvel estante; três cadeiras; um candeeiro; dez diversos eletrodomésticos; cinco espelhos; seis peças de escultura; um quadro; uma ducha de hidromassagem; e dez objetos de decoração”), não pode senão considerar-se contraditório dar-se como provada a primeira lista e como não provada a segunda.
Tal contradição da decisão de facto inviabiliza a decisão de direito, no caso, inviabiliza a decisão de definir o limite máximo da indemnização a fixar em incidente de liquidação. O que, de acordo com o previsto no n.º 3 do art. 682.º do CPC, implica que se determine a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para que a decisão de facto seja alterada, expurgando-a da referida contradição, clarificando-se quais os bens pertencentes ao autor que foram retirados do imóvel locado e entregues à Associação R...IPSS; e fixando-se o limite máximo da indemnização a liquidar em conformidade.
VI – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a. Julgar improcedentes os fundamentos recursórios apreciados nos pontos 2. a 5. da Fundamentação de Direito do presente acórdão, mantendo-se a decisão do acórdão recorrido de condenar a 2ª ré BB a pagar ao autor indemnização a fixar em incidente de liquidação com o limite máximo a apurar nos termos da alínea seguinte;
b. Anular o acórdão recorrido, determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação, a fim de que, se possível pelos mesmos Senhores Juízes Desembargadores, a decisão de facto seja alterada, expurgando-a da contradição identificada no ponto 6.3. da Fundamentação de Direito do presente acórdão, clarificando-se quais os bens pertencentes ao autor que foram retirados do imóvel locado e entregues à Associação R...IPSS; e fixando-se o limite máximo da indemnização a liquidar em conformidade.
Custas pela recorrente e pelo recorrido na proporção de 50% para cada uma das partes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.
Lisboa, 28 de Maio de 2024
Maria da Graça Trigo (relatora)
Catarina Serra
Afonso Henrique
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