I - Para a consumação do crime de falsidade de testemunho não é exigida a verificação de qualquer dano para a descoberta da verdade ou para a justiça do caso concreto, nem sequer a adequação da conduta para esse efeito, sendo ainda irrelevante apurar se o meio de prova viciado foi ou não determinante para a decisão.
II - O dever de verdade que impende sobre a testemunha abrange toda a declaração que se reporte ao objeto da inquirição e do processo, independentemente da sua relevância probatória e mesmo que se tratem de circunstâncias não essenciais.
III - Comete o crime de falsidade de testemunho, agravado, p. e p. pelo artigo 360º, nºs 1 e 3, do Código Penal, a testemunha que, sendo inquirida, perante Magistrado do Ministério Público, tendo prestado juramento e sido advertida das consequências penais em que incorria caso faltasse à verdade, ao ser confrontada com o depoimento anteriormente prestado, perante a Polícia Judiciária, em que confirmou o teor do auto de notícia elaborado pela GNR, com base em denúncia por si apresentada, nega ter narrado/confirmado esses factos, declaração esta que não corresponde à verdade.
2.2. Para que possamos apreciar as questões suscitadas no recurso, importa ter presente o teor da sentença recorrida, nos segmentos que relevam para esse efeito e que se passam a transcrever:
«(…)
FUNDAMENTAÇÃO
A - De Facto
Factos Provados
Da audiência de julgamento e com relevo para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
Da acusação em especial
1. No dia 16.05.2022, nas instalações da Procuradoria da República, junto do Juízo de Competência Genérica de Serpa, em sede de inquirição no âmbito do inquérito 261/20.9GDSRP, a arguida L foi inquirida na qualidade de testemunha, mãe da eventual vítima, menor de 12 anos.
2. A arguida prestou declarações, depois de previamente ter prestado juramento e de ter sido advertida pela Digna Procuradora da República, que presidiu àquela diligência, das consequências penais em que incorreria caso faltasse à verdade.
3. No decurso da aludida inquirição, a arguida disse que sabia da relação da sua filha B com o arguido através de um amigo, S, que o mesmo conseguiu apanhá-los, mas que os intervenientes não estavam a fazer nada de mal (...), que nunca conseguiu apanhá-los em flagrante, e que sabia, nunca tinham feito nada de mal, apenas uns beijinhos e nada mais do que isso, que ainda insistiu com a sua filha, mas que a mesma não desenvolveu conversa (...).
4. Confrontada com o auto de notícia de folhas 3 a 5 daqueles mesmos autos, fls. 02 a 04 dos presentes autos - a arguida disse não ser verdade aquilo que foi escrito pelo órgão de polícia criminal, que nunca disse tais informações, e,
5. Confrontada com as suas declarações, prestadas perante a Polícia Judiciária, assinadas por si, declarou que não disse tais factos, apesar de reconhecer a sua assinatura.
6. Contudo, no dia 31.12.2020, pelas 19.15horas, a GNR de Serpa recebeu uma comunicação para se deslocar à localidade de Vila Verde de Ficalho, porque a arguida pretendia a comparência da GNR naquela localidade, a fim de denunciar fatos que haviam ocorrido com a sua filha B, e que a mesma acabava de ter conhecimento.
7. Chegada a patrulha da GNR de Serpa, a arguida apresentou queixa contra G, tendo declarado que:
«Que minutos antes, quando se encontrava no Bar Bora Bora, sentada na mesa com a sua filha B e com a testemunha indicada, o Sr. J, apercebeu-se que a sua filha estava a receber mensagens no telemóvel (...) e, parecia um pouco incomodada, tendo ela insistido para ver as mensagens, ao que a filha cedeu, mostrando-lhe que estava a receber ameaças por parte de uma Srª. C, companheira do Suspeito, o Sr. G.
Que recebeu duas mensagens de voz, onde ameaçava a Sra. L, dizendo que lhe fazia a folha, difamando-a e injuriando-a dizendo que a mesma era uma puta e que andava com os homens todos em troca de dinheiro (...)
Que nesse momento a B, confessou a mãe, que havia tido um caso com o G no passado verão, que o mesmo lhe começou a mandar mensagens e que se encontraram algumas vezes, tendo a última sido no mês de setembro passado.
Que o mesmo a aliciava para ter relações sexuais, que lhe mandava fotos do seu órgão genital e que quando se encontraram a despia toda, ele também, a apalpou nas partes genitais, e que queria que a mesma lhe fizesse sexo oral, não tendo, no entanto, sido consumado o ato sexual.»
8. Depois, em 24.06.2021, a arguida prestou declarações perante Inspetor da Polícia Judiciária, na Esquadra de Investigação Criminal da PSP de Beja, tendo sido informada de que devia responder com verdade nos termos do disposto no artigo 132.º do Código de Processo Penal, salvo se alegar que das respostas resulta a sua responsabilização penal.
9. A arguida, na qualidade de mãe da menor B, confirmou na íntegra o teor do auto de notícia elaborado pela GNR - de fls. 03 a 05 daqueles autos, fls. 02 a 04 dos presentes autos - por corresponder totalmente à verdade, não tendo nada a acrescentar para os autos.
10. A arguida sabia que ao prestar o seu depoimento perante Magistrada do Ministério Público se encontrava obrigada a prestar declarações de acordo com a verdade dos factos.
11. A arguida quis prestar um depoimento falso, o que efetivamente conseguiu.
12. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intuito de prejudicar a boa administração da justiça, faltando à verdade por declarar factos que não retratavam o ocorrido, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
DAS CONDIÇÕES PESSOAIS E ECONÓMICAS E ANTECEDENTES CRIMINAIS DA ARGUIDA EM ESPECIAL
13. A arguida nasceu no dia 25.10.1979 e está divorciada;
14. A arguida tem o 9.º ano de escolaridade e encontra-se desempregada há 9 anos.
15. Não aufere quaisquer rendimentos.
16. Vive com a mãe, em casa própria desta, auferindo a mãe cerca de €700,00 mensais, de pensão de reforma.
17. A arguida não regista antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal.
2.3. Apreciação do mérito do recurso
2.3.1. Da impugnação da matéria de facto dada como não provada
O Ministério Público/recorrente impugna a matéria de facto dada como não provada na sentença recorrida, sob a al. a), invocando o erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, n.º 2, al. c), do CPP).
Está em causa o seguinte facto considerado não provado: «O depoimento falso da arguida tivesse sido o prestado em sede de interrogatório perante Magistrada do Ministério Público.»
Defende o recorrente que o enunciado facto devia ter sido dado como provado «pelo confronto da prova documental constante dos autos a fls. 02-03 (“Auto de notícia” elaborado pelos militares da Guarda Nacional Republicana); 05-05v (“Auto de Inquirição”, elaborado pelo Inspector da Polícia Judiciária) e 07-08 (“Auto de Inquirição” elaborado nos Serviços do Ministério Público de Serpa, perante Magistrada do Ministério Público), mas também pela análise do teor dos depoimentos das testemunhas H, P e J, respectivamente os militares da Guarda Nacional Republicana e o Inspector da Polícia Judiciária que redigiram aquelas peças processuais, prestados em sede de audiência de discussão e julgamento.»
Vejamos:
Desde logo, importa fazer notar que, pese embora invoque o erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do CPP, tendo em conta a fundamentação expendida pelo recorrente, para sustentar a existência de tal erro, convocando a prova documental junta aos autos e a prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, resulta claro que o que verdadeiramente pretende é impugnar a matéria de facto, dada como não provada, por erro de julgamento, na apreciação/valoração da prova, nos termos previstos no artigo 412º, n.º 3, do CPP.
Ainda assim, diremos o seguinte:
O vicio do erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando, na sentença, se dão como provados ou como não provados factos que contrariam com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar, arbitrária, de todo insustentável, e as regras da experiência comum.
«Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. Para ocorrer este vício, as provas evidenciadas pela simples leitura do texto da decisão têm que revelar claramente um sentido e a decisão recorrida extrair ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.[2]»
O erro notório na apreciação da prova terá, pois, de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, estando, por isso, vedado o recurso a elementos estranhos ao texto da sentença para fundamentar a existência desse vício (não se podendo recorrer à prova produzida na audiência, gravada, nem à prova pericial ou documental que conste dos autos).
No caso vertente, tendo em conta os contornos do erro notório na apreciação da prova, nos termos supra definidos, lida a sentença recorrida, entendemos não enferma de tal vício, enquanto erro grosseiro, ostensivo e apreensível pela generalidade das pessoas, mediante a simples leitura da decisão.
Sem prejuízo do acabado de referir, confrontando os factos dados como provados nos pontos 1. a 9. e o facto dado como não provado na al. a) e lida a motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida – com especial relevância para a questão que nos ocupa, os segmentos que se passam a transcrever: «Assim, quanto à matéria de facto vertida nos pontos 1) a 9) dos factos provados, a mesma colheu a sua demonstração positiva em razão do teor da documentação carreada para os autos (do qual se destaca o seguinte: certidão extraída dos autos de inquérito 261/20.9GDSRP, constante de fls. 1 a 12 (a qual inclui auto de notícia de fls. 2 a 4, auto de inquirição da aqui arguida, ali na qualidade de testemunha, de fls. 5, auto de inquirição da aqui arguida, ali na qualidade de testemunha, de fls. 7 e 8 e despacho de encerramento do inquérito de fls. 9 a 12). A própria arguida confirmou todas as declarações prestadas, quer as que constam do auto de notícia da GNR (não tendo confirmado, contudo, em sede de julgamento, apenas o segmento “Que nesse momento a B confessou a mãe, que havia tido um caso com o G no passado verão, que o mesmo lhe começou a mandar mensagens e se que encontraram algumas vezes, tendo a última sido no mês de setembro passado”), quer as prestadas perante Magistrada do Ministério Público. (nosso sublinhado).
No entanto, não logrou convencer o Tribunal de que não tenha prestado quaisquer declarações na Polícia Judiciária, perante o depoimento sério e objetivo, e por isso credível, do inspetor J (inspetor da Polícia Judiciária) que presidiu à inquirição, quando conjugado com o próprio auto de inquirição, de fls. 5. (nosso sublinhado) – resulta claro que ao dar como não provado que «O depoimento falso da arguida tivesse sido o prestado em sede de interrogatório perante Magistrada do Ministério Público», o Tribunal a quo está a referir-se ao teor desse depoimento, apenas na parte em que a ora arguida, quando inquirida, na qualidade de testemunha, no âmbito dos autos de inquérito n.º 261/20.9GDSRP, primeiro perante a Polícia Judiciária e depois perante o Ministério Público, relatou os factos de que teria tido conhecimento relativos ao que se passara entre a menor, sua filha e o denunciado/arguido.
Já quanto à outra parte do depoimento, prestado perante o Ministério Público, quando, ao ser confrontada com o auto de notícia de folhas 3 a 5 que deu origem aos referenciados autos de inquérito, a ora arguida e ali testemunha, disse não ser verdade aquilo que foi escrito pelo órgão de polícia criminal e nunca ter dado essas informações e ao ser confrontada com as suas declarações, prestadas, perante a Polícia Judiciária, assinadas por si, declarou que “não disse tais factos”, apesar de reconhecer a sua assinatura, o Tribunal a quo, tendo dado como provada a matéria factual constante dos pontos 4. e 5. e ante o exarado na motivação da decisão de facto, no referente a esses concretos factos, alicerçou a convicção segura, de que a ali testemunha e ora arguida, faltou à verdade.
Um breve parêntesis se impõe fazer para referir que esta destrinça mostra-se, em nosso entender, relevante para a solução a dar à questão suscitada no recurso, referente à subsunção jurídica dos factos, em face da posição que seja perfilhada sobre a amplitude do dever de verdade que impende sobre a testemunha, conforme infra explicitaremos.
Retomando a apreciação da questão que agora nos ocupa, diremos que, à primeira vista, parece existir contradição insanável entre a matéria de facto dada como provada nos pontos 4. e 5. e a factualidade dada como não provada na alínea a).
Porém, numa análise mais atenta e tendo em conta o exarado, pelo Tribunal a quo, na motivação da decisão de facto, entendemos não estarmos perante uma contradição insanável da fundamentação, prevista no artigo 410º, n.º 2, al. b), do CPP, sendo que só é insanável a contradição que «não é ultrapassável com recurso às regras da experiência, nem tão-pouco com recurso à decisão recorrida no seu todo[3]» e, no caso concreto, a contradição existente pode ser “ultrapassada” por este Tribunal da Relação.
Com efeito, havendo impugnação da matéria de facto não provada, tendo recorrente observado o ónus de especificação previsto no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP e atenta a motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida, nos segmentos supra transcritos e sublinhados, pode este Tribunal de recurso, modificar a decisão de facto (cf. artigo 431º, al. b), do CPP) e, dessa forma, ultrapassar a enunciada contradição).
Deste modo, conquanto se entenda que a prova produzida, concretamente, o teor dos documentos juntos aos autos e os depoimentos das testemunhas H, P e J, convocados pelo recorrente – que merecerem credibilidade ao Tribunal a quo, tendo essas testemunhas, militares da Guarda Nacional Republicana e inspetor da Polícia Judiciária que redigiram, respetivamente, o auto de notícia de fls. 2 e 3 e o auto de inquirição de fls. 7-8, referentes ao inquérito n.º 261/20.9GDSRP, confirmado o respetivo teor, ou seja, que a ora arguida, relatou/declarou o que ficou a constar daqueles autos – e ante o depoimento prestado pela ora arguida, ao ser inquirida, como testemunha perante o Ministério Público – tendo prestado juramento e sido advertida das consequências penais em que incorria caso faltasse à verdade – permite concluir, para além de qualquer dúvida, que a mesma faltou à verdade, neste último depoimento, afigura-se-nos, no entanto, que, caso se desse como provada a factualidade constante da alínea a) dos factos não provados, conforme propugnado pelo recorrente, ficaria implícito que a falsidade do depoimento da ali testemunha e ora arguida prestado em sede de inquirição perante o Ministério Público, abrangeria também o relato que fez sobre os factos de que tomara conhecimento, através da sua filha e/ou de um terceiro, S, envolvendo a menor, sua filha, à época com 12 anos de idade e o aí denunciado/arguido G.
Sucede que, conforme supra expusemos, nesse concreto conspecto, não foi feita qualquer prova sobre qual em qual dos depoimentos prestados pela então testemunha e ora arguida a mesma faltou à verdade.
A parte do depoimento prestado pela ora arguida, na qualidade de testemunha, no âmbito dos autos de inquérito n.º 261/20.9GDSRP, perante o Ministério Público, cuja falsidade resulta plenamente demonstrada – ante a prova produzida, especificada pelo recorrente e como decorre, inequivocamente, da factualidade dada como provada nos pontos 4. e 5. – é aquela em que, ao ser confrontada com o auto de notícia de folhas 3 a 5 que deu origem ao referenciado inquérito, a ora arguida e ali testemunha, disse não ser verdade aquilo que foi escrito pelo órgão de polícia criminal e nunca ter dado essas informações e ao ser confrontada com as declarações que prestou, perante a Polícia Judiciária, declarou que “não disse tais factos”.
Neste quadro probatório, entendemos ser de manter a matéria factual dada como não provada, na sentença recorrida, mas de modo a contemplar o acabado de expender e a ultrapassar a contradição a que supra se aludiu, decide-se aditar o seguinte o segmento «(…) no referente aos factos de que tomou conhecimento descritos nos pontos 3. e 7. dos factos provados».
2.3.2. Relativamente à subsunção jurídica dos factos dados como provados, se bem que a impugnação da matéria de facto não provada, não haja sido julgada procedente, nos exatos termos propugnados pelo recorrente, importa apreciar se, ainda assim, deve a arguida ser condenada pela prática do crime de falsidade de testemunho, com a agravação prevista no n.º 3 do artigo 360º do Código Penal, por que foi acusada, conforme é pretensão do recorrente.
Vejamos então:
O crime de falsidade de testemunho está previsto no artigo 360º do Código Penal, que, na parte para o caso vertente releva, dispõe:
1. Quem, como testemunha (...), perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento (...), informação (...), prestar depoimento (...) , der informações (...) falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.
2. (…)
3 - Se o facto referido no n.º 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias.
Dão-se aqui por reproduzidas as considerações expendidas na sentença recorrida, a propósito dos elementos típicos objetivos e subjetivos do crime em apreço.
Para a questão que agora nos ocupa releva, particularmente, a caraterização do bem jurídico tutelado pela incriminação e a delimitação do âmbito da declaração falsa tipicamente relevante, isto é, que preencha o tipo objetivo do crime de falsidade de depoimento, pelo que, nos debruçaremos sobre estes pontos.
Constitui entendimento consolidado na doutrina e jurisprudência que o bem jurídico tutelado pelo crime de falsidade de testemunho consiste essencialmente na realização da justiça, enquanto função do Estado, ou seja, como refere Medina de Seiça[4] «o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade, no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão»[5].
Para a consumação do crime de falsidade de testemunho não é exigida a verificação de qualquer dano para a descoberta da verdade ou para a justiça do caso concreto, nem sequer a adequação da conduta para esse efeito, sendo ainda irrelevante apurar se o meio de prova viciado foi ou não determinante para a decisão.
Trata-se, por isso, de um crime de perigo abstrato, pois, como refere Medina de Seiça[6], «não é necessário que a declaração falsa prejudique efectivamente o esclarecimento da verdade suporte da decisão, nem sequer, que, in concreto, o tenha colocado em perigo. (...) O fundamento do ilícito é logo a própria declaraçao falsa, independemente da consideração da sua efectiva influência na decisão (...). Isto não implica, porém, que toda e qualquer declaração falsa preencha a tipicidade (...).».
E configura também um crime de mera atividade, na medida em que «o comportamento ilícito esgota-se precisamente na efectivação da conduta proibida: a prestação do depoimento falso (...), não exigindo a lei qualquer resultado decorrente dessa conduta e dela autonomizável.[7]»
O dever de declarar com verdade inscreve-se no conjunto de deveres que conforma o estatuto processual da testemunha, estatuindo o artigo 132º, n.º 1, al. d), do CPP, que: «Salvo quando a lei dispuser de forma diferente, incumbem às testemunhas os deveres de: Responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas.»
Prestando juramento, perante a autoridade judiciária competente, a testemunha jurará, por sua honra «dizer toda a verdade e só verdade» (cf. artigo 91º, n.º 1, do CPP).
Deste modo, impenderá sobre a testemunha, como refere Medina de Seiça[8] «um dever processual de verdade e de completude (declarar só a verdade, mas toda a verdade)».
Esse dever de verdade da testemunha existe relativamente aos factos de que possua conhecimento direto e que constituam objeto da prova (cf. artigo 128º, n.º 1, do CPP), sendo este último definido no artigo 124º, do CPP, como abrangendo «todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis (n.º 1) e, no caso de existir pedido civil, os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil (n.º 2).
O dever de verdade, no caso da testemunha, conforme refere Medina de Seiça[9], limita-se aos «factos de que possua conhecimento direto (cf. art. 128º, nº 1, do CPP), i. é, factos que tenham sido objeto das suas perceções (…), acontecimentos ou circunstâncias, concretos, quer do mundo exterior, quer da vida anímica. Deste modo, o dever de verdade só é violado quando a testemunha declara falsamente sobre esses factos ou declara falsamente ter conhecimento direto desses factos. (…).»
Contudo, a exigência do dever de verdade da testemunha «abrange, na narração positiva, toda a declaração que se reporte ao objecto do interrogatório, independentemente da sua relevância probatória, i. é, de tocar circunstâncias que, a final, venham a considerar-se nos fundamentos da decisão ou antes circunstâncias hoc sensu não essenciais. Na verdade, a essencialidade do facto declarado (qualquer que deva ser o sentido a atribuir a tal conceito) não constitui elemento típico, pelo que a falsidade de uma declaração respeitante a uma circunstância considerada não essencial mas pertencente ao objecto do interrogatório realiza a tipicidade, embora constitua um fundamento de atenuação especial da pena ou mesmo de dispensa da pena, nos termos do art. 364°, al. a) (…).»[10]
Tendo presentes as considerações expendidas e revertendo ao caso dos autos, atenta a factualidade provada, entendemos o seguinte:
Sendo certo que relativamente aos depoimentos prestados pela ora arguida, na qualidade de testemunha, no âmbito dos autos de inquérito n.º 261/20.9GDSRP, primeiramente perante a Polícia Judiciária e posteriormente, perante o Ministério Público, na parte em que relatou os factos de que tomara conhecimento envolvendo a menor, sua filha e o ali denunciado/arguido, depoimentos esses divergentes, não se tendo apurado em qual deles e no que tange a essa parte, faltou à verdade, o Tribunal a quo, na sentença recorrida – acolhendo a designada teoria subjetiva da densificação do conceito da falsidade da declaração e tendo, em sede de decisão sobre a matéria de facto, por aplicação do principio in dubio pro reo, dado como não provado o facto constante da alínea a), agora alterado nos termos sobreditos –, concluiu não estar verificada a circunstância agravante prevista no n.º 3 do artigo 360º do Código Penal, enquadrando a conduta da arguida no tipo simples do crime de falsidade de depoimento, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 360º do Código Penal.
Sucede que, como supra se referiu, o dever de verdade que impende sobre a testemunha abrange toda a declaração que se reporte ao objeto da inquirição e do processo, independentemente da sua relevância probatória e mesmo que se tratem de circunstâncias não essenciais. Neste último caso, se a testemunha faltar à verdade, não sendo afastado o preenchimento da tipicidade da conduta, haverá lugar á atenuação especial da pena, podendo mesmo ter lugar a dispensa da pena (cf. artigo 364º, al. a), do Código Penal).
Deste modo, tendo resultado provado que a ora arguida, inquirida, na qualidade de testemunha, no âmbito dos autos de inquérito n.º 261/20.9GDSRP [estando em investigação a eventual prática de crime(s) de abuso sexual de crianças, cuja alegada vítima era a sua filha, à data com 12 anos de idade, inquérito esse que foi instaurado na sequência de denúncia apresentada pela ora arguida à GNR], perante Magistrada do Ministério Público, tendo sido devidamente ajuramentada e advertida das consequências penais em que incorria caso faltasse à verdade, ao ser confrontada com o auto de notícia de folhas 3 a 5, elaborado pela GNR, disse não ser verdade aquilo que foi aí escrito pelo órgão de polícia criminal, que nunca disse tais informações, e, quando confrontada com as suas declarações, prestadas perante a Polícia Judiciária declarou que não disse tais factos, o que não corresponde à verdade, já que a ora arguida, na qualidade de testemunha relatou aos militares da GNR os factos descritos no auto de notícia elaborado com base na denúncia por si apresentada e quando inquirida pela Polícia Judiciária, na qualidade de testemunha, confirmou, na íntegra, o teor do auto de notícia.
Resulta, assim, demonstrado que a ora arguida, inquirida na qualidade de testemunha, perante o Ministério Público, nos termos sobreditos, faltou à verdade, ao negar que tivesse comunicado à GNR os factos que foram exarados no auto de notícia que deu origem ao inquérito n.º 261/20.9GDSRP e ao negar ter confirmado, perante a Polícia Judiciária, ao ser inquirida, na qualidade de testemunha, o teor daquele auto de notícia.
Faltando ao dever de verdade, nessa parte do seu depoimento, estando sob juramento e tendo sido advertida das consequências penais em que incorrida caso assim procedesse, e dada a abrangência daquele dever, a que, enquanto testemunha, estava adstrita, teremos de concluir que a arguida, com a sua descrita conduta, preencheu a circunstância agravante do crime de falsidade de depoimento, prevista no n.º 3 do artigo 360º do Código Penal.
Em suma, entendemos que comete o crime de falso testemunho, agravado, p. e p. pelo artigo 360º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, a testemunha que, sendo inquirida, perante Magistrado do Ministério Público, tendo prestado juramento e sido advertida das consequências penais em que incorria caso faltasse à verdade, ao ser confrontada com o depoimento anteriormente prestado, perante a Polícia Judiciária, em que confirmou o teor do auto de notícia elaborado pela GNR, com base em denúncia por si apresentada, nega ter narrado/confirmado esses factos, declaração esta que não corresponde à verdade.
Por conseguinte, entendemos assistir razão ao Ministério Público/recorrente ao defender que a arguida deve ser condenada pelo crime de falsidade de depoimento agravado, p. e p. pelo artigo 360º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, por cuja prática vinha acusada, o que se decide.
2.3.3. Feito pela forma descrita, o enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida, mantendo-se a opção pela aplicação da pena de multa, por não existem razões que justifiquem decisão em sentido diverso, importa agora determinar a medida concreta da pena a aplicar-lhe.
Pela prática do crime de falsidade de depoimento, na forma simples [sendo a moldura da pena de multa, de 60 a 360 dias – cf. artigos 360º, n.º 1 e 47º, n.º 1, ambos do Código Penal], foi a arguida condenada, pelo Tribunal a quo, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo o valor de €800,00 (oitocentos euros).
A moldura penal abstrata da multa aplicável ao crime de falsidade de depoimento agravado é de 10 a 600 dias (cf. artigos 360º, n.º 3 e 47º, n.º 1, ambos do Código Penal).
Os critérios de determinação da medida concreta da pena são definidos pelo artigo 71º do CP, que dispõe:
«1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos pela lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
(…).»
De harmonia com o disposto no artigo 40º, n.º 1, do CP, a finalidade da aplicação de penas é a proteção de bens jurídicos, que se concretiza, em síntese, na prevenção geral e especial da prática de crimes, e a reintegração do agente na sociedade e o nº 2 estatui que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.
Culpa e prevenção são, pois, os dois termos do binómio com o auxílio do qual se há-de construir a medida da pena.
A culpa jurídico-penal vem traduzir-se num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena[11], sendo tal princípio expressamente afirmado no n.º 2 do artigo 40º do CP.
Com recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos.
Com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.
Dando concretização aos mencionados vetores, o n.º 2 do artigo 71º do Código Penal, enumera, exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
Na determinação da medida concreta da pena o Tribunal a quo ponderou as seguintes circunstâncias:
«Contra a arguida depõem:
- O grau de ilicitude dos factos, que se afigura mediano, atendendo ao modo como os mesmos foram praticados pela arguida;
- O dolo, como direto que é, encontrando-se no expoente máximo do seu grau de intensidade;
- As necessidades de prevenção geral, uma vez que a prática do presente tipo de ilícito vem contribuindo sobremaneira para a descredibilização da própria justiça, permitindo que perpasse, na comunidade, sentimento de impunidade dos agentes da prática de crimes e, bem assim, daqueles que estão obrigados a contribuir para o apuramento dos factos, tal como sucede com as testemunhas.
A favor da arguida militam:
- As necessidades de prevenção especial, que se mostram reduzidas, na medida em que a arguida não regista quaisquer antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal;
- A conduta posterior aos factos, posto que confirmou as declarações prestadas, tanto à GNR, como à Magistrada do Ministério Público, ainda que tenha negado a intenção de mentir;
- As suas condições pessoais e sociais, que resultaram provadas e aqui se dão por integralmente reproduzidas, atendendo à sua integração social e familiar.»
Com a ressalva de que, em nosso entender, as exigências de prevenção geral e especial, não devem ser consideradas como circunstâncias de depõem a favor ou contra a arguida, sendo a sua ponderação feita, na determinação da medida concreta da pena, em função, como refere o Prof. Figueiredo Dias[12] da «medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, às quais cabe, em última análise, a função de determinação da medida da pena dentro dos limites assinalados», consideramos terem sido devida e adequadamente ponderados os fatores e circunstâncias a atender para esse efeito.
Assim, sopesando os fatores e circunstâncias ponderados pelo Tribunal a quo, dentro da moldura penal agravada agora aplicável, que tem como limite mínimo 10 dias e máximo 600 dias, considera-se adequada a aplicar à arguida, a pena de 210 (duzentos e dez) dias de multa.
Tendo o quantitativo diário da multa sido fixado em €5,00 (cinco euros), mínimo legalmente previsto (cf. artigo 47º, n.º 2, do CP), que é de manter, a pena de multa em que a arguida é condenada perfaz o montante global de €1.050,00 (mil e cinquenta euros).
O recurso interposto pelo Ministério Público é, pois, procedente.
3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:
a) Determinar a modificação da redação da alínea a) dos factos não provados, aditando-lhe o seguinte segmento «(…) no referente aos factos de que tomou conhecimento descritos nos pontos 3. e 7. dos factos provados».
b) Condenar a arguida L pela prática de um crime de falsidade de testemunho agravado, p. e p. pelo artigo 360º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, por que vinha acusada, na pena de 210 (duzentos e dez) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo a multa global de €1.050,00 (mil e cinquenta euros).
Sem tributação o recurso.
Notifique.
Évora, 04 de junho de 2024
Fátima Bernardes
Filipa Costa Lourenço
Beatriz Marques Borges
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[1] Cf. Acórdão do STJ nº. 7/95, publicado no DR I-Série, de 28/12/1995.
[2] Cf. Ac. do STJ de 22/04/2020, proferido no proc. n.º 68/18.3SWLSB.S1, cujo sumário se encontra publicado no Boletim de Sumários – STJ, 2020, págs. 294 e 295, acessível em https://www.stj.pt/
[3] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. do STJ de 24/02/2016, proc. n.º 502/08.0GEALR.E1.S1, in www,dgsi.pt.
[4] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, 2001, Coimbra Editora, pág. 460.
[5] No mesmo sentido, vide Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 2008, UCE, pág. 846.
[6] In ob. cit., pág. 462.
[7] Ibidem. No mesmo sentido, vide, entre outros, Simas Santos e Leal-Henriques, in Código penal Anotado, Vol. IV, 4ª edição, 2019, Rei dos Livros, pág. 704 e 705.
[8] In ob. cit., pág. 466.
[9] In ob. cit. pág. 466 e 467.
[10] Cf. Medina de Seiça, in ob. cit., pág. 468. No mesmo sentido, vide Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 1130 e 1131.
[11] Cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime, pág. 215.
[12] In ob. cit., pág. 227.