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DESPACHO DE PRONÚNCIA
RECURSO
VÍCIOS DA DECISÃO
PROVA A VALORAR
INDÍCIOS
Sumário
I - Sendo o recurso respeitante a uma decisão instrutória, não há que averiguar a existência dos vícios do art. 410º nº 2 do CPP, relativos à sentença. II - Para a apreciação do recurso da decisão instrutória impõe-se a análise de todos os elementos indiciários constantes do processo, quer os que já constavam no inquérito, quer os que foram produzidos já na fase de instrução. III - Se existir algum indício da prática do crime, mas o mesmo for de tal modo ténue que não sustentaria uma condenação em julgamento, a decisão deve ser de não pronúncia.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 914/21.4T9VFR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Instrução Criminal de Aveiro
Juiz 2
ACÓRDÃO
I. RELATÓRIO
Por decisão de 18.11.2023 foi proferido despacho de não pronúncia de AA e BB. A assistente, requerente da abertura de instrução, CC, não se tendo conformado com tal decisão veio interpor recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
1. Ao Comandante Geral da GNR foi remetida uma denúncia por "DD", da qual resulta que o agente EE, do Posto Territorial ..., companheiro da engenheira CC persegue e ameaça promotores agrícolas e seus familiares. Todo o restante conteúdo respeita à Assistente CC, que não tem qualquer relação com a GNR e a quem não se aplica aquela Lei n. 0 145/99, motivo pelo qual, no que respeita aos factos que à mesma eram imputados, deveria ter sido dada notícia ao Ministério Público, para prosseguir com a investigação, dado ser este quem tem competência para tal.
2. O Regulamento da Disciplina da Guarda Nacional Republicana não prevê qualquer averiguação relativamente à prática de crimes (muito menos quando está em causa uma pessoa estranha à GNR), mas apenas e tão só infrações disciplinares. Ora, estando em causa a denúncia da prática de dois crimes, deveria ter sido dada notícia ao Ministério Público no prazo máximo de I0 dias, cf. artigo 6.0 da Lei 145/9, o que implica a suspensão do processo de averiguações/disciplinar na GNR — artigos 242.º, n.0 1, al. a) e 243º, n.º 3 do Código de Processo Penal, ao invés de se continuar com uma investigação ilegal.
3. Não pomos em causa a necessidade ou não da instauração de um processo de averiguações (cujo visado veio a ser EE), mas sim as diligências (e a legalidade destas) que foram levadas a cabo no âmbito do mesmo e que violaram, de forma flagrante, os direitos da Assistente, nomeadamente o seu direito à reserva da vida privada e à proteção de dados.
4. No processo de averiguações, antes mesmo daquele EE ser identificado enquanto visado, o Arguido BB, antes mesmo de ouvir aquele, (l) solicita quem é o proprietário da viatura da marca Mercedes Benz, modelo ..., com a matrícula ..-0G-.., o qual é propriedade da A...; (2) solicitou ao Ministério Público de Águeda e de Albergaria-a-Velha informações sobre a Assistente e a A..., Lda, nomeadamente a existência de queixas/denúncias que recaíssem sobre a empresa A... ou sobre a Assistente no que respeita a eventuais incumprimentos contratuais face a outros profissionais no setor da agricultura; (3) solicitou diligências de investigação à DRAP-Centro, à DRAP-Norte e à IFAP sobre a empresa A... e a Assistente CC, nomeadamente a existência de queixas/denúncias que recaíssem sobre a empresa A... ou sobre a Assistente, no que respeita a eventuais incumprimentos contratuais; (4) contactou telefonicamente com alegadas clientes da Assistente; (5) pediu informações sobre a propriedade da viatura de marca Mercedes Benz, modelo ..., com a matrícula ..-RU-.., o qual é propriedade da A... (isto numa altura em que já tinham concluído que o "EE" referido na denúncia se tratava do companheiro da Assistente, ou seja, não havia qualquer justificação para procurar o proprietário deste veículo); (6) solicitou o NIF e o NIPC da Assistente e da A...; todas as informações solicitadas, foram fornecidas.
5. Não podemos deixar de nos questionar em que medida é que estas informações privadas da Assistente importam para um processo de averiguações (o qual se caracteriza por ser "sumaríssimo") em que o visado é EE, sendo a queixa/denúncia relativa a um crime de ameaça.
6. O Tribunal "a quo" confundiu os poderes de investigação do Ministério Público no âmbito de um procedimento criminal com os poderes disciplinares da GNR, aquando da existência de um processo de averiguações. O processo de averiguações, a existir como existiu, apenas poderia incidir sobre a denúncia feita a "EE", isto é, perseguição e ameaça de promotores, apenas isto se poderia considerar a averiguação em curso.
7. Para apurar a veracidade destes factos e a identidade do guarda (para eventual existência de processo disciplinar), em nada relevam, por exemplo, incumprimentos contratuais da empresa A... e de CC ou a propriedade de viaturas (principalmente numa altura em que os Arguidos já tinham concluído que o visado era EE).
8. Nos termos do artigo 109.º, al. c) da Lei 145/99, o processo de averiguações é convertido em processo disciplinar, sendo, consequentemente, aproveitados os atos já praticados, tal como previsto no n.º 2 daquele preceito legal, ou seja, o processo de averiguações faz parte do processo disciplinar e, como tal, entendemos que se insere no âmbito do crime de denegação de justiça e prevaricação, sendo certo que, tendo em conta o bem jurídico protegido (equitativa administração de justiça), outro não pode ser o entendimento.
9. Caso assim não se entendesse, estaríamos a passar uma carta em branco à discricionariedade e à falta de regras dos militares instrutores de processos de averiguações, que poderiam fazer tábua rasa dos direitos, liberdades e garantias de qualquer cidadão (em particular e em especial, no caso em concreto, daqueles que não têm qualquer vínculo funcional com a GNR), permitindo-se que a sua vida e informações sejam devassadas por terceiros.
10. O Tribunal "a quo" entendeu que no que concerne à alegada falta de envio para o Ministério Público da carta que aqui estava em causa, importa não esquecer que a missiva foi (como consta expressamente da mesma) enviada simultaneamente ao Comando Geral da GNR, ao Comandante do Posto Territorial da GNR ... e à Polícia Judiciária, tendo todas estas entidades dado conhecimento ao Ministério Público, para apuramento de eventual responsabilidade criminal, o que equivale a, por um lado admitir como sério e certo o conteúdo de uma carta (anónima) cuja origem se desconhece (isto porque, apesar de conter lá um nome, não tem qualquer assinatura ou identificação que permita averiguar a sua autoria) e, por outro, passar um cheque em branco e "desculpar" o incumprimento da obrigação que impende sobre os Arguidos de remeter a denúncia à autoridade competente, uma vez que, na tese do Tribunal "a quo", outros organismos o fizeram. Contudo, nesta altura, os arguidos não tinham qualquer conhecimento de que o Ministério Público havia tido notícia da denúncia.
11. Estamos perante uma situação em que os Arguidos BB e AA (este último com uma relação controversa e de animosidade com o companheiro da Assistente, EE) aproveitaram uma "oportunidade" para remexer a vida da Assistente CC.
12. Aquilo que se impunha aos arguidos era a análise crítica das diligências que eram necessárias para, em primeiro lugar, averiguar a identidade do militar referido na queixa (para o que não eram necessárias quaisquer informações da Recorrente) e, em segundo lugar, perceber se, efetivamente, existiu alguma perseguição ou ameaça da parte do militar, sendo que as informações da Recorrente não eram, de todo, necessárias para nenhuma destas averiguações.
13. Os arguidos sabiam que não podiam remexer a vida da Assistente (aliás, não tinham competência para tal), contudo não se inibiram de o fazer, em total desconsideração pela lei e pela dignidade das funções que exercem.
14. A maior parte das diligências levadas a cabo, no que à Assistente diz respeito, foram feitas sem existir qualquer informação no processo de averiguações de que seria o EE o "alvo" do mesmo. Isto é, foram pedidas informações sobre a Assistente e sobre a empresa A... antes mesmo de se averiguar qual o militar em questão.
15. A Assistente não foi chamada para depor (não obstante o seu nome estar na denúncia e, consequentemente, ter conhecimento sobre a existência ou não dos factos), tendo sido chamado FF, irmão do companheiro da Assistente, sendo que aquele FF não era uma pessoa conhecida nem referida na carta anónima, daí que nem sequer se descortina como é que apareceu no processo, contudo, relatou aquela que era a sua versão (falsa) da vida da Assistente.
16. Os Arguidos, embora sabedores que não podiam aceder a informações relativas a uma pessoa alheia à GNR, acederam sem autorização ou justificação a dados pessoais da Recorrente e da empresa por si gerida (A..., Lda.). Não consideramos que assista razão ao Tribunal "a quo" quando considera que todos os atos levados a cabo pelos Arguidos tinham uma justificação concreta (em face do teor da denúncia que deu origem ao processo de averiguações), isto porque o único teor a que os Arguidos deveriam ter atendido, era a suposta perseguição e ameaça da parte de um militar da GNR.
17. Estão reunidos indícios suficientes da prática dos Crimes de Denegação de Justiça e Prevaricação, de Acesso Indevido e de Abuso de Poder, previstos e punidos, respetivamente, pelo artigo 3690 do Código Penal, artigo 47.0, n.º 1 da Lei 58/2019, de 08 de Agosto e pelo artigo 382.0 do Código Penal.
Termina pedindo a pronuncia dos Arguidos AA E BB pelos Crimes de Denegação de Justiça e Prevaricação, de Acesso Indevido e Abuso de Poder.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, concluindo desta forma:
1. O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369. º n. º 1, do Código Penal, tem por elementos constitutivos a ocorrência de comportamento contra o direito, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, por parte de funcionário, conscientemente assumido, havendo lugar à agravação no caso de o agente agir com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém.
2. Os factos que a assistente entende que a G.N.R. não poderia ter praticado tiveram todos lugar no processo de averiguações, o que quer dizer que os factos denunciados nunca integrariam a prática do referido crime de denegação de justiça, pois que os mesmos não ocorreram no âmbito de qualquer inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar.
3. O instrutor a quem foi atribuído o referido processo de averiguações se limitou a recolher elementos que lhe permitissem decidir se deveria ser instaurado processo disciplinar, o que no caso acabou por vir a ocorrer, mas os actos que a assistente ora recorrente põe em causa não ocorreram neste processo disciplinar mas sim no processo de averiguações prévio, que foi instaurado devidamente.
4. Tendo em conta o concreto teor da denúncia que deu origem ao processo de averiguações, a recolha de elementos sobre a empresa A... e a actividade profissional da assistente CC mostrava-se necessária.
5. As informações que foram pedidas e os contactos telefónicos que foram efectuados tinham uma justificação, pelo que forçoso se torna concluir que ninguém levou a cabo qualquer acção que integre o crime de acesso indevido, previsto no art. 47.º da Lei n. 2 58/2019, de 8 de Agosto.
6. O crime de abuso de poder exige que o agente actue de forma desadequada aos deveres funcionais que lhe sejam cometidos no caso, tendo também o mesmo de actuar com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.
7. Os militares AA e BB actuaram no âmbito das suas competências, sem que tenha havido mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, com desrespeito de formalidades essenciais, a que acresce a circunstância de não estar minimamente demonstrado que os mesmos tenham actuado, tendo como propósito a obtenção de um qualquer benefício ou o causar de um qualquer prejuízo, pelo que não se verifica a prática do crime de abuso de poder.
Por tudo o exposto, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a não pronúncia dos arguidos AA e BB, pela prática dos crimes de denegação da justiça e prevaricação, acesso indevido e abuso de poderes.
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Já nesta Relação, o Ex. Sr.º Procurador Geral Adjunto emitiu Parecer dizendo “Por serem completas e exaustivas subscrevo e adiro sem reservas (indo até para lá da cautela razoável) às considerações e motivos constantes da proficiente resposta apresentada pela Digníssima magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância, que aqui se convocam, para as quais se remete e cujo conteúdofactual, descritivo e narrativo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos e que desta peça faz parte integrante e incindível, (e igualmente convoco, pela sua actualidade e pertinência, o despacho de arquivamento do inquérito datado de 15/06/2022), devendo, por conseguinte, julgar-se o recurso improcedente e manter-se o despacho de não pronuncia nada mais tendo a acrescentar por tudo já ter sido dito, debatido e equacionado, evitando-se assim o calvário ou via sacra de inúteis e fastidiosas repetições (e porventura acabar por (re)dizer o mesmo por outras palavras, num arranjo de ideias e gramatical formalmente diferente mas substancialmente idêntico, criando a ilusória aparência de inovação ou – falsa –novidade – artigo 130.º do Código de Processo Civil – C.P.C., ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal – C.P.P.). Para além disso, a decisão revidenda também é autodemonstrativa, autossustentável, autoexplicativa e autossuficiente, o que, em acrescento, já é motivo suficiente e bastante para que nos escusarmos de tecer mais aturadas considerações, por manifesta e exuberante redundância. Com efeito, não é necessário qualquer esforço intelectual ou interpretativo para acompanhar o Tribunal a quo no processo racional e lógico que deixou explanado no texto e narrativa da decisão, quer na imaculada interpretação da prova produzida, na correcta avaliação dos indícios e na primorosa escolha do sentido decisório de não pronuncia, que honra os pergaminhos mais prodigiosos da sempiterna ideia de Justiça.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, onde deve ser julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, nº3, al. c), do diploma citado.
II. Fundamentação
A) Delimitação do Objecto do Recurso
Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da Relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
No caso vertente, em face das conclusões do recurso, a questão essencial prende-se com a existência, ou não, de indícios suficientes da prática, pelos arguidos, dos crimes que a assistente lhes imputa.
B) Decisão Recorrida
Com vista à apreciação das questões supra enunciadas, importa ter presente o seguinte teor da decisão recorrida da qual transcrevemos as partes essenciais.
I- Relatório O Ministério Público deduziu despacho de arquivamento relativamente à factualidade participada por CC, abstratamente configuradora da prática de crime de denegação de justiça, de prevaricação e de acesso indevido, nos termos constantes de fls. 142 a 146.
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Veio a assistente CC requerer a abertura de instrução alegando, no essencial, existirem indícios suficientes da prática dos crimes de denegação de justiça, de prevaricação, de acesso indevido e de abuso de poder. Solicitou que lhe fosse tomadas declarações e arrolou uma testemunha.
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Recebidos os autos no Juízo de Instrução, e admitida a instrução, foi ordenada a constituição dos denunciados na qualidade de arguidos e tomado aos mesmos o Termo de Identidade e Residência, como resulta de fls. 209 a 221. Designou-se data para tomada de declarações à assistente, inquirição da testemunha arrolada e subsequente debate instrutório. Não se vislumbrando qualquer outro ato instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efetuaram-se as diligências instrutórias requeridas e o debate instrutório, o qual decorreu na presença dos arguidos, com observância do formalismo legal, conforme se alcança da respetiva acta, tudo em conformidade com o disposto nos arts. 298º, 301º e 302º, todos do Código de Processo Penal. (…) No caso vertente, a questão a decidir, delimitada tematicamente pelo requerimento de abertura de instrução, encontra-se perfeitamente delineada: se existem indícios suficientes para pronunciar os arguidos, considerando os elementos probatórios produzidos em sede de inquérito e de instrução.
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B) Do requerimento de abertura de instrução B.1) O enquadramento jurídico-penal i) Do crime de denegação de justiça e prevaricação O art. 369º do Código Penal estabelece que: “1 - O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias. 2 – Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até cinco anos” (o negrito é nosso). O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do Código Penal, encontra-se sistematicamente integrado no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, o que aponta para que o bem jurídico tutelado pela norma se situa na equitativa administração da justiça. Pretende-se assegurar o domínio ou a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, o que permite assinalar que se pressupõe uma específica qualidade do agente, a de funcionário, ficando caracterizado como um crime específico. Tem por elementos constitutivos a ocorrência de comportamento contra o direito, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, por parte de funcionário, conscientemente assumido, havendo lugar à agravação no caso de o agente agir com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém. O preenchimento do tipo objectivo convoca uma actuação ou omissão de funcionário contra direito, lesando deveres funcionais ínsitos ao cargo desempenhado; relativamente ao tipo subjectivo, o mesmo satisfaz-se com o dolo genérico, desinteressando-se a lei dos fins ou motivos do agente. Face à exigência típica decorrente da expressão “conscientemente”, só o dolo directo e o necessário são relevantes, como é jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça (cfr., entre muitos outros, o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no processo n.º 73/17.7TRGMR.S1, de 05-02-2020, disponível em www.dgsi.pt). Ou seja, a lei exige que o funcionário actue conscientemente, o que exclui o dolo eventual. A nota definidora do crime é, no fundo, a consciência de tal contradição de agir contra o direito, ou seja, é o assumir da violação dos deveres profissionais em função de outras razões. A colisão com o direito, procurada de forma deliberada, é o núcleo essencial do crime de prevaricação. Com efeito, e como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.07.2012, citado no despacho de arquivamento destes autos, “(…)O dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica. Não são meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente contra o direito e, muito menos, com o propósito específico de lesar alguém. VI - Por outro lado, não é a prática de qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra o direito, com o alcance definido no n.º 1 do art. 369.º do CP; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça. Não basta, pois, que se tenha decidido mal, incorrectamente, contra legem, sendo necessário que quem assim decidiu tenha consciência de que, desviando-se dos seus deveres funcionais, violou o ordenamento jurídico pondo em causa a administração da justiça” (os negritos são nossos). ii) Do crime de acesso indevido Tal ilícito penal encontra-se previsto no art. 47.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, sendo o seu texto o seguinte: “1 - Quem, sem a devida autorização ou justificação, aceder, por qualquer modo, a dados pessoais é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - A pena é agravada para o dobro nos seus limites quando se tratar dos dados pessoais a que se referem os artigos 9.º e 10.º do RGPD. 3 - A pena é também agravada para o dobro nos seus limites quando o acesso: a) For conseguido através de violação de regras técnicas de segurança; ou b) Tiver proporcionado ao agente ou a terceiros benefício ou vantagem patrimonial”. O bem jurídico protegido é a segurança dos sistemas informáticos, não se impondo qualquer intenção específica (por exemplo, a de causar prejuízo ou a de obter qualquer benefício ilegítimo), apenas se exigindo dolo genérico. ii) Do crime de abuso de poder Estipula o artigo 382º do Código Penal que: “O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” (negrito nosso). Quanto ao bem jurídico protegido está em causa a autoridade e credibilidade da administração do Estado ao ser afectada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços. Corresponde esta exigência, de resto, a um princípio fundamental da organização do Estado consagrado constitucionalmente nos artigos 266º, 268º e 269º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade – cfr. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo III, págs. 774 e seguintes (anotação de Paula Ribeiro de Faria). O preenchimento do tipo legal poderá ter lugar através do abuso de poderes ou da violação de deveres pelo funcionário. Em ambos os casos terá que se tratar de poderes ou deveres inerentes à sua função. De uma forma geral pode definir-se o abuso de poderes como uma instrumentalização de poderes (inerentes à função), para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo (ou, melhor dizendo, ilegítimas). Abusa dos poderes que lhe são conferidos, o agente que excede os limites da sua competência, quanto à natureza dos assuntos que lhe são confiados, em razão do grau hierárquico, em razão do lugar e em razão do tempo. Da mesma forma, é susceptível de integrar esta figura a conduta do funcionário que desrespeita formalidades impostas por lei, ou actua fora dos casos estabelecidos na lei (violação de lei) - cfr. o citado Comentário Conimbricense ao Código Penal, III, 774 e seguintes. O tipo legal pode também ser preenchido pela violação de deveres por parte do funcionário; deveres esses funcionais, deveres que estão relacionados com o exercício da função. Aqui se incluem os deveres impostos por normas jurídicas ou instruções de serviço e deveres funcionais genéricos que se referem a toda a actividade desenvolvida no âmbito da administração do Estado. Não se exige que o abuso de poderes ou a violação de deveres venham referidos a um acto administrativo, apenas que os poderes ou deveres em causa sejam inerentes às funções exercidas pelo agente. O tipo legal em causa tanto poderá ser preenchido por acção como por omissão. O agente terá que actuar com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, sendo certo que se pode caracterizar como benefício toda a vantagem que o sujeito activo pretende retirar da sua actuação, e que em concreto poderá assumir natureza patrimonial ou não patrimonial. O benefício em causa terá que ser necessariamente ilegítimo. Não basta o abuso de funções ou a violação de deveres por parte do funcionário, sendo necessário que um tal abuso de poder se manifeste exteriormente através da lesão do bom andamento e da imparcialidade da administração. O sujeito activo do crime em causa terá que ser um funcionário, no sentido do artigo 386º do Código Penal. O crime consuma-se com a comissão do acto ou facto abusivo por parte do funcionário, sendo irrelevante sob este ponto de vista a efectiva verificação do dano ou vantagem para o agente ou para terceiro. Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, é necessário o dolo do agente. O dolo supõe a consciência e vontade por parte do agente de exercer uma função pública abusando dos poderes, ou violando os deveres a ela inerentes, bem como o conhecimento do carácter ilegítimo da vantagem ou do prejuízo pretendidos - cfr. de igual modo, Comentário Conimbricense ao Código Penal, III, 774 e seguintes.
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B.2) Do juízo indiciário Importa agora analisar e concatenar os elementos probatórios constantes dos autos, com vista a este Tribunal formar a sua convicção acerca se de tais elementos resultam ou não indícios suficientes da prática, pelos arguidos, dos crimes que lhes são imputados no requerimento de abertura de instrução. O inquérito teve origem numa queixa apresentada CC, tendo a mesma aí manifestado desejar procedimento criminal contra incertos, a identificar em sede de inquérito, caso uma carta elaborada por GG (cujo cópia juntou a fls. 16), não tivesse sido remetida ao Ministério Público pelo Sr. Chefe da Secção de Justiça e oficial instrutor do Comando da G.N.R. em ..., nos termos do preceituado nas disposições conjugadas da al. a) do n.º 1 do art. 242º; 245º, e n.º 6 e 7 do art. 246º do Código de Processo Penal, e ainda contra quem se viesse a apurar ter ordenado e instruído o Processo de Averiguações ..., convertido no Processo Disciplinar ..., que teve por base a aludida carta, dirigida ao Comandante Geral da Guarda Nacional Republicana, por ter(em) promovido actos de competência exclusiva dos Tribunais no âmbito do PAV e do PD, oficiando pedidos de informações a diversas entidades públicas e privadas, visando-a a ela e à empresa A..., Lda., da qual é legal representante, obtendo assim acesso ilegítimo a dados pessoais sobre ambas, não tendo poder jurisdicional para tal. CC foi inquirida, tendo dito que é esposa de EE, Sargento-Chefe do Destacamento de Trânsito da Brigada da G.N.R. .... Em Janeiro de 2021 este foi ouvido num processo de averiguações, na G.N.R., onde teve conhecimento de uma carta anónima que tinha sido enviada para o Comando Geral da G.N.R. ...., que, por sua vez, a enviou para .... Na sequência de tal processo, foi depois instaurado um processo disciplinar. O seu marido foi ouvido nesse processo e consultou-o, tendo dessa forma tido conhecimento que, na sequência da aludida carta, tinham sido efetuadas muitas diligências de investigação à sua pessoa e à empresa que ela representa, nomeadamente ao IFAP, às Direções Regionais com quem trabalha e telefonemas a pessoas com quem trabalha. Foi também informada por HH, mãe de uma cliente, que tinha recebido um telefonema de um Guarda a fazer perguntas sobre a sua pessoa e sobre a empresa (se estava satisfeita com o trabalho da empresa, se o projeto tinha corrido bem e se alguma vez o seu marido a tinha ameaçado). O seu marido também lhe disse que viu no aludido processo correspondência com o IFAP e as Direções Regionais. No âmbito das diligências de investigação levadas a cabo no decurso do inquérito foi ainda junta aos autos certidão integral dos Processos ... e ..., onde constam, para além do mais, os seguintes elementos: cópia das páginas da internet relativas à empresa “A...” (cfr. fls. 27-28 do Anexo Documental); email remetido para a Direção Regional de Agricultura e Pescas do Centro e do Norte e o Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, questionando sobre a existência de queixas/denúncias que recaíssem sobre a empresa “A...”; Engenheira CC, quanto a eventuais incumprimentos contratuais face a outros profissionais do sector da agricultura (na área de consultadoria de projectos) e o eventual envolvimento por parte de militares do Comando Territorial ... da G.N.R., em situações de ameaças para com profissionais do sector da agricultura, decorrente de projectos ligados à empresa “A...” ou à engenheira CC (cfr. fls. 34 do Anexo Documental); emails remetidos para a G.N.R. ... e o Ministério Público de Águeda e de Albergaria-a-Velha, questionando sobre a existência de queixas/denúncias que recaíssem sobre a empresa “A...”; engenheira CC, quanto a eventuais incumprimentos contratuais face a outros profissionais do sector da agricultura (na área de consultadoria de projectos) e o eventual envolvimento por parte de militares do Comando Territorial ... da G.N.R., em situações de ameaças para com profissionais do sector da agricultura, decorrente de projectos ligados à empresa “A...” ou à engenheira CC (cfr. fls. 59 e 60 do Anexo Documental); cotas dando conta de contactos telefónicos efectuados com «II», «HH», «JJ», «KK», tendo-lhes sido perguntado se tinham algum projecto com a empresa “A...” (cfr. fls. 105 e 121 do Anexo Documental); ofício subscrito pelo Magistrado do Ministério Público Coordenador da Comarca de Aveiro, dando conta que a certidão que havia sido remetida pela G.N.R. tinha sido registada como inquérito sob o n.º 991/21.6T9AVR (cfr. fls. 190 do Anexo Documental). A fls. 131-135 encontra-se junta certidão extraída do inquérito n.º 991/21.8T9AVR, daí constando um ofício da Secção de Justiça do Comando Territorial ... da G.N.R., datado de 12 de Março de 2021, através do qual foi remetido ao D.I.A.P. de Aveiro uma certidão integral do Processo de Averiguações ..., para efeitos de apreciação e apuramento de eventual responsabilidade criminal. Na fase de instrução foi ouvida a assistente que, em síntese, narrou e reiterou o que esteve na origem da apresentação da queixa que deu origem ao presente inquérito. Inquirida a testemunha EE, Sargento-chefe da Guarda Nacional Republicana e irmão do companheiro da assistente, o mesmo explicou o que verificou no âmbito do processo de averiguações, no âmbito do qual foi ouvido como testemunha. Ora, chegados aqui, crê-se que firmemente que os factos investigados não integram a prática de um crime de denegação de justiça e prevaricação. Com efeito, conforme sublinhou a Digna Magistrada do Ministério Público, os factos que a denunciante entende que os arguidos não poderiam ter praticado tiveram todos lugar processo de averiguações. Ora, não tendo sido os mesmos praticados no âmbito de qualquer inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar nunca poderiam integrar a prática do referido crime de denegação de justiça. A este propósito há também que atender ao art. 108º do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana, aprovado em anexo à Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, cujo texto é o seguinte: “1 - Quando haja vago rumor ou indícios insuficientes de infração disciplinar ou sejam desconhecidos os seus autores é instaurado processo de averiguações. 2 — O processo de averiguações é de investigação sumaríssima, caracteriza-se pela celeridade e destina-se à recolha de elementos factuais que permitam determinar se deve ou não ser ordenada a instauração de sindicância, inquérito ou processo disciplinar”. No caso dos autos, ressalta-se que o instrutor – Capitão de Infantaria BB - a quem foi atribuído o referido processo de averiguações limitou-se a recolher elementos (nomeadamente através de recolha de prova testemunhal e documental) que lhe permitissem averiguar, em primeiro lugar, quem era o militar “EE” referenciado na denúncia apresentada por “GG” ao Comando Geral da GNR (e simultaneamente ao Comandante do Posto Territorial da GNR ... e à Polícia Judiciária) e, após tal identificação cabal, decidir se deveria ser instaurado processo disciplinar. No entanto, e tendo em conta o concreto teor da denúncia que deu origem ao processo de averiguações (que envolvia alegadas perseguições e ameaças, envolvendo um militar de nome “EE, companheiro da engenheira CC” e “promotores agrícolas e seus familiares”, com projetos submetidos no IFAP) não se pode de forma alguma dizer que o mesmo tenha praticado qualquer acto que sabia que era contra a lei e que o mesmo tivesse consciência que estava a pôr em causa a administração da Justiça. A recolha de elementos sobre a empresa A... (da qual EE é sócio – cfr. certidão de registo comercial de fls. 81 sgs) ou sobre a actividade profissional de CC (gerente da sociedade A...) mostrava-se necessária para a averiguação em curso, atento - sublinhe-se uma vez mais - o concreto teor da denúncia em apreciação. Mas mais. Não se pode sobretudo olvidar que tal processo de averiguações surgiu após despacho superior do Comandante Geral da Guarda Nacional Republicana – Coronel LL –em 7/01/2021 (cfr. fls. 8 do Anexo Documental), que nomeou o Capitão de Infantaria BB como instrutor. Nesta sequência, em cumprimento desse despacho, a 11/01/2021, o Major AA faz a entrega do ..., ao instrutor para cumprimento do ordenado (cfr. fls. 11 do Anexo Documental). Ou seja, respeitando a hierarquia da Guarda Nacional Republicana, os aqui arguidos cumpriram o que lhes foi superiormente ordenado, no âmbito das suas concretas funções, pelo que não se pode, de modo algum, afirmar que os mesmos agiram contra o direito, com violação dos seus deveres profissionais. Quanto ao imputado crime de acesso indevido, conforme já se assinalou, as informações que foram pedidas e os contactos telefónicos que foram efectuados tinham uma justificação concreta (em face do teor da denúncia que deu origem ao processo de averiguações), pelo que forçoso se torna concluir, como bem concluiu o Ministério Público, que os arguidos não levaram a cabo qualquer acção integradora de tal ilícito. No que concerne à alegada falta de envio para o Ministério Público da carta que aqui estava em causa, importa não esquecer que a missiva foi (como consta expressamente da mesma) enviada simultaneamente ao Comando Geral da GNR, ao Comandante do Posto Territorial da GNR ... e à Polícia Judiciária, tendo todas estas entidades dado conhecimento ao Ministério Público para apuramento de eventual responsabilidade criminal, responsabilidade que, obviamente, não se confunde, nem exclui, uma eventual responsabilidade disciplinar. Com efeito, e no que respeita ao Comando Territorial ..., como consta do ofício, datado de 19.04.2021, subscrito pelo Magistrado do Ministério Público Coordenador da Comarca de Aveiro e dirigido ao Comandante da Unidade de Comando Territorial da Guarda Nacional Republicana – Coronel LL, a certidão que havia sido remetida (por ofício datado de 12/03/2021, assinado pelo Comandante Coronel LL – cfr. fls. 134 dos autos principais) pela Guarda Nacional Republicana foi registada como inquérito sob o n.º 991/21.6T9AVR (cfr. também fls. 190 do Anexo Documental), pelo que não se impunha, salvo o respeito sempre devido por outro entendimento, ao Chefe da Secção de Justiça da Guarda Nacional Republicana AA ou ao instrutor BB, superiormente nomeado, qualquer outra iniciativa, a este nível. Por fim, relativamente ao imputado crime de abuso de poder, dir-se-á apenas que como decorre do que foi já explanado que não se indicia que os arguidos tenham actuado com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa. E conforme se exarou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.07.2012 supra citado, não são meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente contra o direito e, muito menos, com o propósito específico de lesar alguém ou, acrescentemos nós, de obter benefício ilegítimo para si ou para terceiro. Em suma: Por tudo o exposto, e sem necessidade de outras considerações, julgamos ser totalmente improcedente o requerimento de abertura de instrução, não havendo nos autos indícios suficientes da prática pelos arguidos dos imputados crimes de denegação de justiça, de acesso indevido, de abuso de poder ou de qualquer outro ilícito criminal, considerando-se, com relevância, não indiciados os factos inscritos nos artigos 58., 65. a 70. no requerimento de abertura de instrução (bem como todos os que contrariem o teor do despacho de arquivamento deduzido). IV - Decisão Nestes termos, decide-se julgar improcedente o requerimento de abertura de instrução e, consequentemente, não pronunciar para julgamento AA e BB, pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução e crimes ali imputados.
C) Apreciação da questão em recurso.
Há ou não indícios da prática, pelos arguidos, dos crimes que a assistente lhes imputa?
Analisemos os factos que sustentariam a subsunção aos respectivos tipos legais e que constavam do requerimento de abertura de instrução:
Em Dezembro de 2020, foi recebida no Comando Geral da Guarda Nacional Republicana, uma carta provinda alegadamente de GG. Carta essa que imputava ao militar EE, do Posto Territorial ..., a prática de crimes de ameaça. Uma vez recebida a carta, os denunciados AA, na qualidade de chefe da Secção de Justiça e BB, na qualidade de instrutor a prestarem ambos serviço no Comando Territorial da GNR ... Não a remeteram ao Departamento ... competente, como lhes competia, mas antes iniciaram o processo de averiguações ..., o qual foi autuado em 1 1 de Janeiro de 2021. A partir de 1 1 de Janeiro de 2021 até Março de 2021, os Denunciados no âmbito do processo de averiguações levaram a cabo diligências que permitiram investigar pormenorizada a vida da Ofendida CC e da sua sociedade por si gerida, A..., LDA, as quais não fazem parte do quadro da Guarda Nacional Republicana. Nomeadamente, solicitaram informação sobre a propriedade da viatura de marca Mercedes Benz, modelo ..., com a matrícula ..-0G-.. e da viatura de marca Mercedes Benz, modelo ..., com a matrícula ..-RU-.., as quais são pertença da A..., Lda, Solicitaram informação da Ofendida CC e da A..., Lda ao DIAP de Albergaria-a-Velha e de Águeda, designadamente se existiam queixas/denúncias que recaíssem sobre a empresa A..., Lda; sobre a Ofendida, quanto a eventuais incumprimentos contratuais face a outros profissionais do setor da agricultura (na área de consultadoria de projetos) e eventual envolvimento por parte de militares do Comando Territorial ..., da GNR, em situações de ameaças para com profissionais do setor da agricultura, decorrente de projetos ligados à empresa A... ou à Sr. Engenheira CC. Tendo ambos os Departamentos de Investigação e Ação Penal fornecido as informações solicitadas pelos Denunciados. Solicitaram ainda os Denunciados informações à DRAP Centro; à DRAP Norte e IFAP, sobre a Ofendida CC e a sociedade A..., Lda, sendo que tais entidades responderam. E realizaram, contatos telefónicos com alegados clientes da Ofendida CC e da sociedade A..., Lda, designadamente com a Sr. II; Sr. HH; Sr. JJ e a Sr. KK. os Denunciados AA e BB, na qualidade de funcionários da Guarda Nacional Republicana, Comando Territorial ..., Seção de Justiça, no âmbito de processo de averiguações que foi convertido no processo disciplinar ..., amplamente conhecedores da tramitação destes processos, conscientemente e contra o direito, não remeteram a carta que denuncia a prática de crimes por um militar ao DIAP competente. Assim, os Denunciados ao não enviarem para o DIAP competente a carta que continha a denúncia de crimes relativamente a um militar desviaram-se dos seus deveres funcionais, violando o ordenamento jurídico e pondo em causa a administração da justiça. Os denunciados embora sabedores que não podiam aceder a informações relativas a uma pessoa que não é militar da GNR, acederem sem a devida autorização ou justificação, a dados pessoais da Ofendida CC e da sociedade por si gerida A..., Lda. Por último, os denunciados ao atuarem da forma supra descrita em relação à Ofendida e à A..., Lda, na qualidade de funcionários da GNR, violaram os deveres inerentes às suas funções, com o objetivo de causar prejuízo à Ofendida CC e à sociedade A..., Lda. Os Denunciados atuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente, Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
No final da decisão instrutória a Sr.º Juiz considerou como indiciariamente não provado que
Os arguidos AA, na qualidade de chefe da Secção de Justiça e BB, na qualidade de instrutor a prestarem ambos serviço no Comando Territorial da GNR ... não tenham remetido a carta ao Departamento ... competente, como lhes competia, mas antes iniciaram o processo de averiguações ..., o qual foi autuado em 1 1 de Janeiro de 2021.
Os Denunciados AA e BB, na qualidade de funcionários da Guarda Nacional Republicana, Comando Territorial ..., Seção de Justiça, no âmbito de processo de averiguações que foi convertido no processo disciplinar ..., amplamente conhecedores da tramitação destes processos, conscientemente e contra o direito, não remeteram a carta que denuncia a prática de crimes por um militar ao DIAP competente.
Assim, os Denunciados ao não enviarem para o DIAP competente a carta que continha a denúncia de crimes relativamente a um militar desviaram-se dos seus deveres funcionais, violando o ordenamento jurídico e pondo em causa a administração da justiça.
Os denunciados embora sabedores que não podiam aceder a informações relativas a uma pessoa que não é militar da GNR, acederem sem a devida autorização ou justificação, a dados pessoais da Ofendida CC e da sociedade por si gerida A..., Lda. Por último, os denunciados ao atuarem da forma supra descrita em relação à Ofendida e à A..., Lda, na qualidade de funcionários da GNR, violaram os deveres inerentes às suas funções, com o objetivo de causar prejuízo à Ofendida CC e à sociedade A..., Lda.
Os Denunciados atuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente.
Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
*
A Recorrente, no início da motivação apresentada, começa por dizer que “Ao decidir nos termos do despacho de não pronúncia ora em recurso, andou manifestamente mal o Tribunal "a quo", e com tal decisão não se conforma a ora Recorrente, que vem submetê-la à reapreciação deste Tribunal da Relação.”
Como se escreve no Acórdão da Relação de Lisboa de 03-04-2019, tirado no processo 3106/18.6T9LSB.L1-9 “I- O vício de erro notório na apreciação da prova, bem como os demais enunciados no nº 2, do artigo 410º, do CPP, são vícios relativos à sentença, não tendo aplicação à decisão instrutória a que se reporta o artigo 307º, do mesmo Código; II-E tal acontece porque dizem respeito à matéria de facto provada ou não provada, coisa que está ausente de uma decisão de instrução, a qual apenas pode concluir pela existência de matéria de facto suficientemente indiciada ou não indiciada, e que esses vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência, o que naturalmente exclui o recurso a quaisquer elementos externos à decisão, ainda que constantes do processo; III- Para a apreciação do recurso da decisão instrutória impõe-se a análise de todos os elementos indiciários constantes do processo, tanto os presentes no inquérito como os produzidos já na fase de instrução, para se concluir sobre a sua suficiência ou não com vista à prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, respectivamente, pelo que, a crítica à decisão sobre a existência ou inexistência dos indícios não é admissível pela invocação do vício de erro notório na apreciação da prova tal como no nosso ordenamento jurídico se encontra configurado no nosso ordenamento jurídico, artº 410 nº 2 al. c) do CPP.” (sublinhado nosso)
Alinhemos os factos constantes dos autos com relevância para a decisão a tomar:
- Este processo teve origem na sequência do “pedido de informação” de fls. 3-6 – posteriormente integrado como denúncia criminal a fls. 12-13 – por parte de CC, por si, e na qualidade de legal representante da A... SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA.
Deu aquela conhecimento e denunciou:
- No “pedido de informação”: tomou conhecimento de uma denúncia efectuada por via postal por um tal de GG dirigida ao Comandante-Geral da GNR, visando a própria “enquanto pessoa/profissional e a empresa que representa”, bem como o “agente EE”. Terá dado entrada em Dezembro de 2020 no Posto ..., tendo sido iniciado processo de “investigações” por parte da GNR ..., que solicitou informação a diversas entidades, e gerou comentários públicos.
- Na denúncia criminal: pretende se investigue a falsa denúncia contida na carta em questão (referindo serem afinal duas), e as acções e omissões que lhe seguiram com vista ao exercício do direito de queixa e defesa da honra e do bom nome, visando então os autores da carta (por denúncia caluniosa e difamação), contra incertos, por denegação de justiça e prevaricação, e contra quem tiver ordenado e instruído o processo de averiguações ... convertido no Processo Disciplinar ... que teve por base a mesma carta e onde foram cometidos actos de competência exclusiva jurisdicional, podendo estar em causa os crimes de denegação de justiça e prevaricação, e acesso indevido (art. 47.º da Lei n.º 58/2019, de 08/08). Salientou que foram remetidas duas cartas anónimas, uma ao Comandante do Posto Territorial da GNR ..., e outra, ao Comandante Geral da GNR “que deu origem, esta última, aos processos e diligências atrás mencionados”.
-A carta junta aos autos a fls. 16, dirigida ao Sr. Comandante do Posto Territorial da GNR ..., com carimbo de entrada de 15.12.2020, tem o seguinte teor. “serve esta carta para o informar que o seu agente EE, companheiro da engenheira CC persegue e ameaça promotores agrícolas e seus familiares. Isto porque a senhora em causa não cumpre com os seus deveres de consultora dos projectos que submeteu ao ...20, tendo deixado os promotores em situação muito crítica em relação ao IFAP e aos bancos. A consultora não faz os pedidos de pagamento na altura devida e em tempo útil e algumas vezes não os faz mesmo, sonega informações e não responde a emails, telefonemas, mensagens. Isto leva a que os promotores tenham de devolver dinheiros recebidos do IFAP e a ficar a vermelho no Banco de Portugal. É ao insistir com a consultora que os promotores são perseguidos e ameaçados. Como familiar de promotor e amigo de outros e sabendo da insegurança e medo que sentem, revolta-me esta situação, pelo que estou a informá-lo da conduta do seu agente. Enviei carta para o Comando Geral da GNR e para a Polícia Judiciária. Uma investigação junto dos promotores, desde a zona de ... para cima e toda a zona de abrangência da empresa A... em ... encontrará decerto provas disso, mas garanto que o medo que sentem é muito, e não me compete a mim dizer-vos como fazer o vosso trabalho, mas devem fazê-lo sem parecerem uma força da ordem.” (o bold é da nossa autoria)
- Esta carta deu origem ao processo de averiguações - PAV8/21CTAV, e depois, processo disciplinar - ....... Este processo encontra-se suspenso desde 12 de Março de 2021 a aguardar decisão judicial.
- AA, na qualidade de chefe da Secção de Justiça e BB, na qualidade de instrutor a prestarem ambos serviço no Comando Territorial da GNR ..., a partir de 11 de Janeiro de 2021 até Março de 2021, no âmbito do processo de averiguações, levaram a cabo diligências para de investigação relativamente à vida de CC e da sua sociedade por si gerida, A..., LDA, as quais não fazem parte do quadro da Guarda Nacional Republicana.
- Solicitaram informação sobre a propriedade da viatura de marca Mercedes Benz, modelo ..., com a matrícula ..-0G-.. e da viatura de marca Mercedes Benz, modelo ..., com a matrícula ..-RU-.., as quais são pertença da A..., Lda,
- Solicitaram informação da Ofendida CC e da A..., Lda ao DIAP de Albergaria-a-Velha e de Águeda, designadamente se existiam queixas/denúncias que recaíssem sobre a empresa A..., Lda; sobre a Ofendida, quanto a eventuais incumprimentos contratuais face a outros profissionais do setor da agricultura (na área de consultadoria de projetos) e eventual envolvimento por parte de militares do Comando Territorial ..., da GNR, em situações de ameaças para com profissionais do setor da agricultura, decorrente de projetos ligados à empresa A... ou à Sr. Engenheira CC. Os Departamentos de Investigação e Ação Penal fornecido as informações solicitadas pelos arguidos
- Solicitaram informações à DRAP Centro; à DRAP Norte e IFAP, sobre CC e a sociedade A..., Lda, e obtiveram resposta.
- Realizaram contatos telefónicos com alegados clientes de CC e da sociedade A..., Lda, designadamente com a Sr. II; Sr. HH; Sr. JJ e a Sr. KK.
Alinhados os factos, passemos à análise de cada um dos crimes.
Do crime de denegação de justiça e prevaricação.
A divergência, nos autos, prende-se com a interpretação /qualificação, dos actos praticados pelos arguidos.
A recorrente entende que aqueles praticaram um crime de denegação de justiça e prevaricação porque actuaram “contra direito”:
- o Regulamento da Disciplina da Guarda Nacional Republicana não prevê qualquer averiguação relativamente à prática de crimes mas apenas e tão só infrações disciplinares. - o Regulamento da Disciplina da Guarda Nacional Republicana não tem aplicação a quem não pertence à GNR. - estando em causa a denúncia da prática de 2 crimes deveria ter sido dada notícia ao Ministério Público no prazo máximo de 10 dias, cf. artigo 6.º da Lei 145/9, o que implica a suspensão do processo de averiguações/disciplinar na GNR — artigos 242.º, n.º 1, al. a) e 243º, n.º 3 do Código de Processo Penal. - mesmo que não fosse dada notícia ao Ministério Público relativamente ao militar, no que respeita aos factos imputados à Assistente, impunha-se dar conhecimento àquela entidade para prosseguir com a investigação, dado ser este quem tem competência para tal, estando vedada a prática de quaisquer atos de investigação em relação à Assistente por parte dos Arguidos.
O que foi escrito na Decisão Instrutória?
A sr. Juiz, secundando a opinião da Digna Magistrada do Ministério Público, defendeu que os factos que os arguidos não podiam praticar tiveram lugar, todos, num processo de averiguações.
Deste modo, não tendo sido os mesmos praticados no âmbito de qualquer inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar nunca poderiam integrar a prática do referido crime de denegação de justiça.
Apreciando.
O Regulamento da Disciplina da Guarda Nacional Republicana, Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, apenas se aplica a infrações disciplinares e, não, a crimes – cfr. Art. 4 nº 1.
No entanto, quando se inicia um processo de averiguações não se sabe, à cabeça, qual o resultado que daí advirá. Lendo o artigo 109º do regulamento são inúmeras as hipóteses colocadas pela Lei: cfr. nº 5 do citado artigo— Em face das provas recolhidas e do relatório do instrutor, a entidade referida no número anterior decide, ordenando ou propondo, consoante o seu grau de competência: a) O arquivamento do processo, se entender que não há lugar a procedimento disciplinar; b) A conversão do processo de averiguações em processo de inquérito se, confirmados os indícios da infração, se desconhecer, ainda, o seu autor ou, conhecido este, se mantiver a insuficiência daqueles indícios, sendo de presumir, em ambos os casos, a utilidade de novas diligências; c) A conversão do processo de averiguações em processo disciplinar, se se mostrar suficientemente indiciada a prática de infração e determinado o seu autor; d) A instauração de processo de sindicância, se entender que os factos apurados justificam, pela sua amplitude e gravidade, uma averiguação geral ao funcionamento do comando ou serviço. 6 — No caso de, na sequência de processo de averiguações, ser mandado instaurar inquérito ou processo disciplinar, aquele integra a fase de instrução dos mesmos, sem prejuízo dos direitos de audiência e de defesa do arguido.
Concluindo-se que o ilícito é do foro criminal, há que dar cumprimento ao artigo 6º do Regulamento, ou seja, dar conhecimento à competente autoridade judiciária ou administrativa.
Uma vez aberto o processo de averiguações, neste caso, como em qualquer outro, a intenção é perceber a actuação do "averiguado". Mas, parece-nos, não se atingirá tal objectivo sem contextualizar a referida actuação (como acontece em regra), sendo certo que aquela contende, apenas e tão só, com o trabalho da mulher, ora assistente.
Em face do teor da carta, não nos parece que qualquer averiguação relativa ao militar da GNR pudesse ser efetuada de forma “desgarrada” dos factos relativos à assistente.
Decorre daquele escrito que o militar, marido da assistente, terá perseguido e ameaçado promotores agrícolas e seus familiares, todos relacionados com o trabalho da pessoa com quem se encontra casado – a assistente, consultora dos projectos agrícolas.
Assim se percebem, dizemos nós, os telefonemas para alguns clientes da assistente no sentido de averiguar se, de facto, o relatado na carta tinha algum fundamento. As diligências levadas a cabo pelos arguidos - no exercício da comissão funcional e hierárquica de que foram incumbidos - têm adequação e cabimento face àquilo que era o objecto da denúncia, cuja gravidade e concretização também justificava a dita investigação.
Concordamos com a assistente quando diz que o Regulamento da Disciplina da Guarda Nacional Republicana não tem aplicação a quem não pertence à GNR. Porém, entendemos que a assistente não foi objecto de nenhum processo de averiguações.
As informações relativamente àquela apenas foram recolhidas para se conseguir "contextualizar" a participação do militar e conseguir prosseguir com a averiguação relativamente a este.
Deste modo, a nossa conclusão é a de que os arguidos não actuaram “contra direito”.
Mesmo a entender-se que os averiguadores extrapolaram das suas competências, tendo-se imiscuído na vida da Assistente, que não é GNR, existirão nos autos elementos para afirmar que os mesmos actuaram conscientemente contra direito?
O art. 369º do Código Penal estabelece que: “1 - O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias. 2 – Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até cinco anos”.
A este propósito citamos um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-09-2014, tirado no processo 89/13.2TRPRT.S1 e relatado pelo Sr. Conselheiro Santos Cabral. Ali pode ler-se: I - O crime de denegação de justiça e de prevaricação do art. 369.º do CP cobre uma multiplicidade de condutas, que se podem reconduzir a um étimo comum que consiste na actuação contra direito. II -Consequentemente, este crime enquadra-se no amplo sector dos crimes de funcionários, em que o factor de união reside na violação dos deveres funcionais decorrentes do cargo desempenhado, pelo que se configura como um típico crime específico (próprio). III -O agir contra direito abrange, em primeiro lugar, o conjunto de normas vigentes na ordem jurídica positiva, independentemente da sua origem ou modo de revelação, tenham cunho material ou processual, natureza pública ou privada, de criação estadual ou não, como também princípios jurídicos não directa ou expressamente consignados em normas positivadas, mas que delas decorrem e gozam de força cogente, como o princípio in dubio pro reo ou a proibição do venire contra factum proprium. IV -Agir contra direito significa a contradição da decisão com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes, mas tal contradição só por si nada mais significa do que a existência dum erro de direito, a justificar a alteração do decidido. V - A nota delimitadora deste crime é a consciência de tal contradição de agir contra o direito, ou seja, é o assumir da violação dos deveres profissionais em função de outras razões. VI -Se a aplicação de uma norma não se circunscreve à pura subsunção de uma fattispecie unívoca, mas se espalha por diversas vias juridicamente admissíveis de acordo com os cânones da metodologia jurídica, muitas vezes sancionadas pela doutrina e pelas mais altas instâncias judiciais, a escolha de uma delas pelo concreto aplicador conforma, em princípio, uma solução de acordo com o direito.
O núcleo típico deste crime verifica-se, assim, quando o agente realiza ou omite um comportamento contra direito. Tal conduta pode, naturalmente, assumir diversas formas. que, como refere o mesmo autor, pode passar por uma incorrecta aplicação das normas jurídicas, quer de direito substantivo quer processual, ou um falso ou erróneo estabelecimento da base factual que é pressuposto da aplicação normativa, ou, ainda, a violação da esfera de discricionariedade que, eventualmente, a norma comporte.Importa, ainda, para que aquela integração se verifique precisar se essência da prevaricação reside numa conduta tomada contra a convicção pessoal do agente sobre qual seja a verdade ou direito objectivo; ou, por último, na lesão dos deveres funcionais do agente impostos no interesse da descoberta da verdade e do direito. A resposta ensaiada a esta questão passa, como alude Medina de Seiça, por três teses fundamentais: a teoria subjectiva, a teoria objectiva e a teoria do (ou da violação do) dever. Para a primeira daquelas teorias o funcionário age contra direito quando a sua decisão (de promover ou não, etc.) diverge da decisão que, em sua convicção pessoal, corresponde à juridicamente correcta ou imposta. O mesmo vale por dizer que o critério aferidor da verificação do delito reside na subjectiva convicção do agente sobre o sentido ou conteúdo do direito). O crime de prevaricação expressaria, assim, um autêntico delito de convicção. Por seu turno os defensores da tese objectiva sustentam que existe prevaricação sempre que a decisão tomada pelo funcionário não for aquela que o direito objectivamente impunha ou que não corresponda à situação jurídica objectiva. Desta forma, para a realização do tipo objectivo da prevaricação é irrelevante se a decisão tomada corresponde ou não à convicção pessoal do funcionário. Para a teoria da violação do dever a prevaricação significa a violação dos deveres (de metódica jurídica) a que o funcionário, maxime o juiz, se encontra sujeito em ordem à efectivação do interesse que na realização da verdade e do direito). (…) No caso vertente a procedência da denúncia pressupõe, assim, em primeiro lugar, e independentemente de qualquer consideração sobre a vertente subjectiva que a iluminou, que exista uma decisão contrária ao direito e, só depois de tal demonstração, o esclarecimento sobre uma participação pessoal, ou seja, uma livre e subjectiva convicção de actuar contra o sentido correcto do agir. Como refere Medina de Seiça o juízo de antinormatividade do acto afere-se pela sua concreta exteriorização, pelo seu conteúdo de desvalor extrínseco - ainda que consequencial à leviandade do agente, ao desrespeito pelas leges artis, o juízo de ilicitude na prevaricação não se confunde com aquele desrespeito, tal como na ofensa corporal causada por um médico em virtude da violação das regras de cuidado da medicina, o dano objectivo afere-se pela amplitude da lesão. Porém, e na verdade, se a decisão tomada se incluía no possível âmbito hermenêutico do preceito aplicado, ela já não se mostra contra direito; pelo contrário, expressa uma solução de direito, por conseguinte refractária à censura normativa da presente incriminação. Se para a norma em causa, ou antes, se a aplicação ao caso concreto de uma norma não se circunscreve à pura subsunção de uma fattispecie unívoca (hipótese em que a prevaricação se afirma com a simples desconformidade da solução com o prescrito no comando legal), mas se espalha por diversas vias juridicamente admissíveis de acordo com os cânones da metodologia jurídica, muitas vezes sancionadas na sua contrastante variedade pelas mais altas instâncias judiciais e conceituada doutrina, parece-nos que a escolha de uma delas feita pelo concreto aplicador conforma, em princípio, uma solução de acordo com o direito.”
Regressemos ao nosso caso.
A Sr. Juiz, na decisão instrutória, deu como indiciariamente não provado o elemento subjetivo.
Porém, mesmo antes de aí chegarmos, entendemos que, em termos factuais, não resulta claro e evidente que os arguidos tenham agido conscientemente contra direito. A entender que existe algum indício dessa consciência, parece-nos ser tão ténue, que soçobraria, necessariamente, em julgamento.
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Do crime de acesso indevido.
Diz a Recorrente que os arguidos BB e AA (este último com uma relação controversa e de animosidade com o companheiro da Assistente, EE) aproveitaram uma "oportunidade" para remexer a vida da Assistente CC. Este acesso foi totalmente injustificado e teve apenas um objetivo: conhecer dados/informações que não estavam acessíveis e que dizem respeito à vida da Assistente, por motivos que são alheios à mesma, em concreto, alegados incumprimentos contratuais que a Recorrente pudesse ter (isto é, a sua situação profissional), saber a propriedade de veículos, saber os processos crime nos quais a Assistente é/era sujeito processual, saber junto de entidades que trabalham diariamente com a Assistente (DRAP Centro, Norte e IFAP) informações sobre a mesma, entre outros. O facto de serem mencionados incumprimentos contratuais da parte de CC na denúncia apresentada não legitima os funcionários da GNR a pesquisarem informações relativas à mesma.
O que foi escrito na Decisão Instrutória?
Diz a Sr. Juiz que, quanto ao imputado crime de acesso indevido, as informações que foram pedidas e os contactos telefónicos que foram efectuados tinham uma justificação concreta (em face do teor da denúncia que deu origem ao processo de averiguações), pelo que forçoso se torna concluir, como bem concluiu o Ministério Público, que os arguidos não levaram a cabo qualquer acção integradora de tal ilícito.
Apreciando
Preceitua o art. 47.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto que “1 - Quem, sem a devida autorização ou justificação, aceder, por qualquer modo, a dados pessoais é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - A pena é agravada para o dobro nos seus limites quando se tratar dos dados pessoais a que se referem os artigos 9.º e 10.º do RGPD. 3 - A pena é também agravada para o dobro nos seus limites quando o acesso: a) For conseguido através de violação de regras técnicas de segurança; ou b) Tiver proporcionado ao agente ou a terceiros benefício ou vantagem patrimonial”.
Ora, considerando nós, que havia uma justificação para o acesso aos dados pessoais da assistente, temos que concluir, como na decisão em crise, e não pronunciar os arguidos.
Do crime de abuso de poder
Estipula o artigo 382º do Código Penal que: “O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” .
Diz a Sr. Juiz que, relativamente ao imputado crime de abuso de poder, dir-se-á apenas que como decorre do que foi já explanado que não se indicia que os arguidos tenham actuado com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.
Não podemos deixar de concordar.
Não há um único indício nos autos que corrobore a afirmação da recorrente de que os arguidos “utilizando os poderes que detém em consequência da função que desempenham, remexeram a vida da Assistente, com o objetivo claro de a prejudicar, o que conseguiram, dado que as entidades com as quais trabalha diariamente (IFAP, DRAP-Centro e DRAP-Norte) e, bem assim, os seus clientes, começaram a desconfiar da mesma, olhando-a de lado.”
Concluindo, entendemos que não assiste qualquer razão à recorrente.
Nos termos do art. 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Por expressa remissão do n.º2 do art.308.º - «É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto no artigo 283.º, n.ºs 2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º1 do artigo anterior.». -, para o n.º 2 do art.283.º, este respeitante ao despacho de acusação, ambos do Código de Processo Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”.
Esta definição legal do que são indícios suficientes integra-se na orientação perfilhada pela doutrina e jurisprudência que era seguida no domínio de vigência do Código de Processo Penal de 1929, onde se realça, entre outras fórmulas, a de Luís Osório que referia: “devem considerar- se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”. Cfr. “Comentário ao Código de Processo Penal Português,” vol. IV, pág. 441.
Os indícios são as provas recolhidas no processo até ser proferida a acusação ou a decisão instrutória. Não parece haver aqui qualquer problema de interpretação.
Já o qualificativo de suficientes, relacionados com uma possibilidade razoável de condenação exige um esclarecimento do grau de probabilidade da condenação.
O Dr. Jorge Noronha e Silveira observa que na resposta à questão do que seja a possibilidade razoável de condenação podem distinguir-se, na doutrina e jurisprudência, três correntes fundamentais:
- uma primeira solução afirma que basta uma mera possibilidade, ainda que mínima, de futura condenação em julgamento;
- numa segunda resposta possível, é necessária uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição;
- e uma terceira via defende ser necessária uma possibilidade particularmente forte de futura condenação.
Depois de esclarecer que certos autores advogam esta terceira interpretação da suficiência de indícios como forte possibilidade de condenação sem verdadeiramente a autonomizar da segunda interpretação referida, adopta a terceira posição, mas com o sentido de que para a acusação, como para a pronúncia, se exige a mesma exigência de prova e de convicção probatória requerida pelo julgamento final, atendendo, designadamente, ao facto de naquelas primeiras fases processuais já se encontrarem recolhidas todas as provas da acusação e de o princípio da presunção da inocência vigorar para todo o processo penal. In Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág. 161.
Mais concretamente e no que respeita à fase da instrução, nesta não se pretende alcançar a demonstração da realidade dos factos; pretende-se, tão só, recolher indícios, sinais, de que um crime foi, ou não, cometido pelo arguido.
As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento.
No dizer do Prof. Germano Marques da Silva, nesta fase processual a lei «… não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.» Ou seja, «Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento para ser julgado pelos factos da acusação.». Cfr. “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, páginas 179 a 182.
O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º2 do art.283.º do C.P.P., aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação.
Seguindo a lição do Prof. Figueiredo Dias, proferida ainda na vigência do Código de Processo Penal de 1929, consideramos que continua a ser aceitável, na interpretação do conceito normativo indícios suficientes, considerar que «… os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.». Cfr. “Direito Processual Penal”, 1.º Vol. Coimbra Editora, 1974, pág. 133.
Por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação como uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Para a pronúncia, não obstante não ser necessária a certeza da existência da infracção, os factos indiciários deverão ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, consubstanciem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo um juízo de razoável probabilidade de condenação no que respeita aos factos que lhe são imputados
A decisão de pronúncia, tal como a de acusar, não pode ser proferidas de forma apressada ou precipitada, pois sujeitar alguém a um julgamento, para além do natural incómodo, pode ser causa, se não para o próprio, para outras pessoas, de desonra e de vergonha.
Na mente do julgador deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso do bom nome e reputação do cidadão.
A suficiência dos indícios de futura condenação do arguido, aferida por um juízo de alta probabilidade, em face das regras da experiência comum e livre apreciação da prova, tem de ser compatibilizada com o princípio in dubio pro reo, pelo menos para quem defenda, como é o nosso caso, que este vigora em todas as fases do processo penal. O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido; ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
O mesmo decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, que estatui que “ todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
Em suma e na perspectiva que seguimos, afigura-se-nos que o Juiz de Instrução, na fase de instrução, aquando da prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, deve ter presente na valoração da prova o princípio in dubio pro reo e, por outro lado, o tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o mesmo Juiz - e não os sujeitos processuais ou algum deles – ao valorar a prova chegou a um estado de dúvida insanável sobre a suficiência dos indícios para o arguido vir a ser condenado e, face a tal estado, escolheu a tese desfavorável ao mesmo, pronunciando-o e submetendo-o a julgamento.- ver Acórdão Relação de Coimbra de 23.05.2018.
Finalizando, em face dos indícios que existiam à data da decisão instrutória, bem andou a Sr.ª Juiz de Instrução ao ter proferido despacho de não pronúncia.
A “acusação” em causa, em julgamento, soçobraria.
Terminamos, seguindo o Sr. Procurador no Parecer junto aos autos e citando um acórdão - Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 28/03/2023 in www.dgsi.pt: «I. As decisões judiciais têm de ser claras, precisas e autossuficientes na sua compreensibilidade». Com efeito os termos concretos ou configuração específica da decisão sindicada são claros, simples e lineares, isto é – id est – a decisão revidenda na sua claríssima motivação da decisão de facto e de direito esclarece com toda a clareza as razões do sentido decisório num preclaro fio de raciocínio por todos entendível. Como diria ARISTÓTELES «…a simplicidade é a maior e melhor das sofisticações…» (bold nosso). Ora, a decisão sob escrutínio em apreciação, que se contesta nesta instancia recursória, não é transcendental ou problemática, pois não é necessário chamar algum xamã siberiano, guru ou sábio ameríndio para a entender, para além de não convocar qualquer exercício complexo de transformação de um problema teórico de ética e ontologia filosófica em qualquer problema prático de engenharia, e muito menos, interrogações ou dúvidas sobre a sua assertividade, bom senso, racionalidade, legitimação orgânica e funcional.”
III- DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela assistente CC, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela assistente/ recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Porto, 24 de Abril de 2024
(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)
Por expressa opção da relatora, não se segue o Acordo Ortográfico de 1990.
Raquel Lima
Pedro Afonso Lucas
Maria do Rosário Martins