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DESPACHO DE PRONÚNCIA
CRIME DE BURLA
RESPONSABILIDADE CRIMINAL DAS PESSOAS COLETIVAS
OMISSÃO DE IMPUTAÇÃO DO FACTO A AGENTE DA PESSOA COLETIVA
ADULTERAÇÃO DA QUILOMETRAGEM DO VEÍCULO
Sumário
I - A responsabilidade criminal da pessoa coletiva exige sempre o nexo de imputação do facto a um agente da pessoa coletiva, que será aquele que nela exerce liderança ou um seu subordinado nas condições prescritas na lei (artigo 11º, n.º 2 alíneas a) e b) do Código Penal). II - Se no despacho de pronúncia, não estão identificadas nem referenciadas as pessoas físicas ou órgãos responsáveis pelo crime de burla nem os administradores do conselho de administração ou qualquer agente da sociedade arguida que atuou em sua representação à data dos factos, que procedeu, colaborou ou teria ordenado a adulteração da quilometragem do veiculo, e se omite ainda o dolo especifico exigido pelo crime de burla (a intenção de obter para si ou para terceiros enriquecimento ilegítimo), impõe-se a não pronuncia da arguida. III - E esta omissão não é suscetível de ser colmatada em julgamento por via dos mecanismos legais que especialmente tratam da alteração não substancial e substancial dos factos previstos nas normas dos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal. IV - O que está em causa nestas circunstâncias não é uma questão de indiciação, mas uma impossibilidade legal de imputação objetiva dos factos à sociedade arguida.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Texto Integral
Proc. n.º 264/19.6PAGDM-A.P1 Tribunal de origem: Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos – J1 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
No âmbito do processo de instrução n.º 264/19.6PAGDM-A a correr termos no Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos foi proferida decisão instrutória relativamente à arguida “A..., Ld.ª”, nos seguintes termos: “(…). Pelo exposto e decidindo, nos termos dos art.ºs 307.º, n.º 1 e 308.º, do Código de Processo Penal, pronuncio “A..., Ld.ª”, com sede na Rua ..., ..., r/c dto, ... Fafe, com o NIPC ..., (…), terá incorrido na prática de um crime de burla, previsto e punível pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal”.
Desta decisão veio o Ministério Público interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 27 a 43 dos presentes autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
1. Recorre-se da decisão judicial proferida em 26.09.2023, que pronunciou a arguida “A..., Ldª” pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo art.º 217.º, n.º 1 do Código Penal.
2. Os presentes autos iniciaram-se com uma queixa apresentada por AA contra a sociedade “A..., Ldª” por, no período compreendido entre 07.07.2017 e 30.07.2019, ter permitido a alteração da quilometragem ao veículo automóvel com a matrícula ..-OZ-.., propriedade da denunciada, que o denunciante adquiriu em leilão, na Leiloeira “B..., Ld.ª”, sita em ..., pelo preço de € 8.984,62, tendo sido enganado em tal negócio pois adquiriu o veículo julgando que o mesmo tinha uma quilometragem inferior à real.
3. Por a factualidade ser passível de, em abstrato, integrar a prática de um crime de burla, da previsão do art.º 217.º, n.º 1 do Código Penal, foram realizadas as diligências de investigação entendidas como necessárias e úteis ao esclarecimento dos factos e descoberta dos seus autores; findo o inquérito, foi determinado o seu arquivamento, à luz do disposto no art.º 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
4. Inconformado, o ora assistente requereu a abertura de instrução no sentido da pronúncia da sociedade “A..., Ld.ª” pela prática de um crime de burla.
5. O requerimento de abertura de instruçãofoi rejeitado e dessa decisão coube recurso, tendo sido proferido o douto acórdão pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, na sequência de cuja decisão foi declarada aberta a instrução.
6. Nesta fase foram realizadas várias diligências, nomeadamente, tomada de declarações ao assistente, inquirição de testemunhas e recolha e junção de vários documentos.
7. Após debate, foi proferida decisão de pronúncia quanto à sociedade comercial arguida “A..., Ld.ª”, onde se lê “A arguida “A..., Ldª” concretizou ou permitiu a redução da quilometragem do veículo de matrícula ..-OZ-.. para que o veículo “parecesse” menos desgastado, mais novo, e com maior valor económico quando procedesse à sua venda. A sociedade arguida atuou do modo descrito, e fê-lo de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que tal conduta era proibida por lei. Ao assim atuar, incorreu a arguida “A..., Ldª”, terá incorrido na prática de um crime de burla, previsto e punível pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal”.
8. Salvo o devido respeito pelo douto despacho, o Ministério Público entende que deveria ter sido proferido despacho de não pronúnci, pelos fundamentos que explanaremos.
9. Dispõe o art.º 11.º do Código Penal: 1 - Salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas singulares são suscetíveis de responsabilidade criminal. 2 - As pessoas coletivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 144.º-B, 150.º, 152.º-A, 152.º-B, 156.º, 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 177.º, 203.º a 206.º, 209.º a 223.º, 225.º, 226.º, 231.º, 232.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285.º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 359.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 377.º, quando cometidos: a) Em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) Por quem aja em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem. 3 - (Revogado.) 4 - Entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa coletiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua atividade, incluindo os membros não executivos do órgão de administração e os membros do órgão de fiscalização. (…). 7 - A responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes nem depende da responsabilização destes. (…)”.
10. Como se pode ler no douto Ac. do TRL de 11.12.2018 (disponível em www.dgsi.pt): “É ponto assente que as pessoas coletivas representam um “real construído” e atuam necessariamente através dos seus órgãos ou representantes. O modelo vigente não é de responsabilidade “direta” da sociedade e, para que o crime seja imputado à sociedade (para que se possa validamente afirmar que “a sociedade cometeu o crime”), é necessário, pelo menos em princípio, que o representante também o seja, ou possa ser, dado que o facto e a culpa do agente físico são componentes essenciais e pressupostos da imputação da pessoa coletiva (Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Lisboa 2009, p. 296-297).(…).Assim é que a imputação jurídico-penal dos entes coletivos assenta numa culpa erigida através do facto e da culpa das pessoas físicas e a responsabilidade da pessoa coletiva só existe quando a pessoa física (agente singular que detenha uma posição de liderança, ou um agente subordinado em virtude da violação de deveres de vigilância ou controlo) tenha agido (ou omitido o comportamento devido) em nome e no interesse coletivo.Por isso, a existência de um nexo de imputação do ato ilícito típico (ou facto de conexão) a um elemento da sociedade com posição de liderança na organização constitui um pressuposto essencial para imputação do crime à pessoa coletiva e depende da "identificação funcional" do líder autor do facto concretamente acontecido (Teresa Quintela de Brito, Fundamento da responsabilidade criminal de entes coletivos: articulação com a responsabilidade individual, Direito Penal Económico e Financeiro, Conferências do Curso Pós Graduado de Aperfeiçoamento, Coimbra, 2012, p. 205 e 206 e RPCC, Ano 20 nº 1, Janeiro-Março 2010, p. 41 a 71). Assim, embora não seja exigível que o agente singular seja efetivamente condenado (artigo 11.º nº 7 Código Penal), é necessário que pelo menos seja apurada a culpa das pessoas físicas que atuam em nome e no interesse da pessoa coletiva; A contrário, se a pessoa que ocupa a posição de liderança dever ser declarada sem culpa, a pessoa coletiva beneficiará também da exoneração da responsabilidade (Germano Marques da Silva Responsabilidade Penal das Pessoas Coletivas, Revista do CEJ, 1º semestre 2008, nº 8, Almedina, p. 94)”.
11. No caso em apreço, conforme resulta da análise do despacho de pronúncia, não é imputada a qualquer pessoa física a prática material do facto típico – a alteração da quilometragem – não se descreve que o facto típico foi praticado por pessoa que na sociedade ocupava uma posição de liderança ou por pessoa que agisse sob a autoridade daquela em virtude de uma violação dos deveres de vigilância, nem se alega que o facto foi praticado em nome e no interesse coletivo, tendo-se atribuído à sociedade uma responsabilidade criminal de forma direta, como se de uma responsabilidade objetiva se tratasse, o que viola o disposto no art.º 11.º do Código Penal.
12. Com efeito, na decisão de pronúncia é descrita a forma como o queixoso adquiriu o veículo automóvel, as inspeções a que o mesmo foi sujeito, os valores apurados de quilometragem e a viciação de vontade sofrida pelo queixoso; relativamente aos autores da alteração do conta quilómetros a atuação da sociedade arguida apenas consta que “A arguida A..., Ld.ª concretizou ou permitiu a redução da quilometragem do veículo de matrícula ..-OZ-.. para que o veículo “parecesse” menos desgastado, mais novo, e com maior valor económico quando procedesse à sua venda. A sociedade arguida atuou do modo descrito, e fê-lo de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que tal conduta era proibida por lei”.
13. É certo que, conforme resulta do n.º 7 do citado normativo, a responsabilidade criminal das pessoas coletivas não exige necessariamente a responsabilização individual do respetivo agente; em causa, estarão situações como os casos de morte do agente, de prescrição quanto a ele do procedimento, ou de impossibilidade de se determinar qual, de entre vários, é o agente responsável pela prática dos factos, nomeadamente, em pessoas coletivas onde várias pessoas ocupavam uma posição de liderança.
14. Nestas hipóteses, pese embora a pessoa física não seja condenada, é necessário, para que a pessoa coletiva seja criminalmente responsável, estabelecer e demonstrar, em termos objetivos, o nexo de imputação do facto ao agente e que este estava numa das condições previstas em qualquer das alíneas do n.º 2 do art.º 11.º, do Código Penal. Nestes casos, verificados os restantes pressupostos da imputação (crime cometido em seu nome e interesse), a pessoa coletiva pode ser responsabilizada independentemente da condenação ou absolvição dos seus agentes.
15. Na situação em análise, verificou-se a pronúncia da pessoa coletiva, sem que se tenha apurado e feito constar na decisão de pronúncia s factos materiais e concretos de que, de acordo com as disposições legais aplicáveis, depende a sua responsabilização criminal, nos termos do art.º 11.º, n.º 2, a) ou b) do Código Penal.
16. Concretamente, na decisão não se alega que os factos foram praticados pelo respetivo sócio-gerente ou outra pessoa que ocupasse uma posição de liderança, por alguém que agiu sob a autoridade daquele em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que incumbiam àquele, bem como não se alega que tal foi feito em nome e no interesse da sociedade.
17. E tal resultou, no nosso entender, da circunstância de, pese embora as diligências efetuadas, não existirem indícios suficientes quanto à identidade da pessoa que procedeu (ou ordenou que se procedesse) à alteração da quilometragem.
18. Ora, conforme acima se expôs, a responsabilidade criminal de uma pessoa coletiva no nosso ordenamento jurídico não é autónoma da responsabilidade individual, de uma pessoa física, dependendo, desde logo, de se verificar a prática de um ilícito típico por um seu órgão ou representante. Entendendo-se que as sociedades não são, em si, capazes de ação e culpa, a responsabilidade da sociedade é definida em função da ação e culpa dos que atuam por ela.
19. Esta responsabilização possui assim, como pressuposto formal, que os atos sejam praticados por pessoas que na sociedade ocupem uma posição de liderança, ou por quem aja em nome ou por conta da sociedade e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas que ocupam uma posição de liderança, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo; como pressuposto material, exige-se que o ato seja praticado por conta e no interesse da sociedade em nome da qual age.
20. Ora em face dos termos em que os factos se mostram descritos na decisão de pronúncia, nunca poderá a sociedade arguida incorrer em responsabilidade criminal e ser objeto de condenação, por não se verificarem os pressupostos legais de que esta depende, razão pela qual se afirma uma violação do disposto no art.º 308.º, n.s 1 e 2 e 283.º, n.ºs 2 e 3 do Còdigo de Processo Penal.
21. Diga-se ainda que, fixando a decisão instrutória o objeto do processo, a falta de descrição de todas as circunstâncias de que depende a responsabilização penal de pessoa coletiva, que se verifica, não poderá ser colmatada na fase subsequente, de julgamento, uma vez que importaria uma alteração substancial dos factos (cf. art.º 359.º, do Código de Processo Penal).
22. Assim, conclui-se que a decisão em causa não contém, desde logo, os elementos objetivos necessários para a responsabilização criminal da sociedade arguida, e uma vez que não foram apurados indícios suficientes que permitam imputar a prática do ilícito típico a qualquer pessoa física, deverá ser a decisão revogada e substituída por oura no sentido da não pronúncia.
23. Pelo exposto, atendendo às considerações supra tecidas, entendemos que a decisão recorrida violou o disposto no art.º 11.º, n.ºs 2, 4, 6 e 7, do Código Penal e os art.ºs 308.º, nºs 1 e 2 e 283.º, n.ºs 2 e 3, do Còdigo de Processo Penal.
Termina pedindo seja dado provimento ao recurso e, em consequência, seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra no sentido da não pronúncia da arguida.
Ao recurso apresentado, veio o assistente apresentar a sua resposta, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 45 a 54 dos presentes autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
1- Foi interposto recurso pelo Ministério Público da decisão de pronúncia que encerrou a instrução, tendo sido pronunciada “A..., Ld.ª”, pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal.
2- Da douta pronúncia resulta entre outros que o assistente AA veio requerer a abertura de instrução por não se conformar com o despacho de arquivamento do inquérito registado a fls. 49 a 53 dos autos.
3- Alegou o que melhor consta do requerimento registado a fls. 60 a 86 dos autos no sentido da pronúncia da “A..., Ldª” pela prática de um crime de burla previsto e punível pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal.
4- Na sequência do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, registado a fls. 147 a 164, foi declarada a abertura da instrução.
5- Foram tomadas declarações ao assistente e inquiridas testemunhas (cf. fls. 280 a 281, 305 e 306.
6- Foi apresentada prova documental, nomeadamente os documentos juntos com o requerimento de abertura de instrução – a fls. 66 a 86- e os documentos juntos a fls. 185, 186, 196 a 199, 214 a 218, 222 a 231, 236 a 248, 255 a 260, 299 a 300.
7- Após debate, foi a “A..., Ld.ª” pronunciada por um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217.º, do Código Penal.
8- Do despacho de pronúncia consta que “Compulsada toda a prova produzida no inquérito e na instrução, com especial destaque para os documentos de fls. 9 a 19, 66 a 86”, e bem assim os suprarreferidos em 6, “e os depoimentos do assistente AA e das testemunhas BB, CC e DD, concluímos que os factos imputados à sociedade arguida podem efetivamente vir a provar-se em julgamento”.
9- Mais consta que “Estas duas últimas testemunhas, funcionários na oficina de mecânica dos veículos da empresa, inquiridas a fls. 305 e 306, relataram uma conversa com o gerente da empresa “A..., Ld.ª” em que este teria manifestado que uma das viaturas teria muitos quilómetros, comparativamente com as outras, o que poderia desvalorizá-la”.
10- Naquele dia o gerente da empresa manifestou a opinião que o número registado no conta quilómetros de uma das viaturas poderia desvalorizá-la na sua venda, o que pode indiciar algum interesse ou motivação para alterar, para menos, o registo total da quilometragem, indicada no conta quilómetros.
11- Mais resultou provado que os registos das inspeções periódicas obrigatórias indiciam uma alteração da contagem ou medição do conta quilómetros; a luz do motor estava acesa e o volante muito gasto, o que levou o queixoso a fazer a “revisão” ao carro que comprou na marca, na “C...”, em Vila Nova de Gaia, tendo constatado na ficha do veículo os quilómetros feitos num ano (escola de ensino de condução) de cerca de 59.052, sendo que em condições normais, a viatura em 2018, devia ter uma quilometragem de cerca de 180.000km, e nunca a que aparecia no conta quilómetros no dia da compra (08.08.2018, de 129.381km).
12- Mais se provou pela análise das fichas de inspeção obrigatória feitas na “D...” (centro com o Código ...) que o “...” tinha, em 07.07.2017, 158.107km percorridos e, em 21.06.2018, registava 124.329km, o que equivale a dizer que, entre o ano de 2017 e 2018, o veículo ficou com menos 33.778km.
13- Em 21.06.2018 a inspeção na “D...” foi paga pela “A..., Ld.ª”, conforme consta do recibo junto aos autos a fls. 186, apesar do seu gerente Sr. EE ter dito que entregou os veículos usados à “E...” em meados de maio de 2018 (troca de frota).
14- Na ponderação da prova produzida afigurou-se ao tribunal decisor ser possível provar em julgamento, os factos alegados pelo assistente no RAI, pelo que pronunciou a “A..., Ld.ª” por um crime de burla.
15- O Ministério Público sustenta que o despacho deveria ter sido em sentido contrário, de não pronúncia, pois que “a responsabilidade da pessoa coletiva só existe quando a pessoa física tenha agido (ou omitido) em nome e no interesse coletivo”.
16- Mais sustentando que “as sociedades não são, em si, capazes de ação e culpa, a responsabilidade da sociedade é definida em função da ação dos agentes que atuam por ela”
17- e que do despacho de pronúncia não resulta a imputação a qualquer pessoa física da prática material do facto típico – in casu – alteração da quilometragem.
18- Não assiste razão ao recorrente pois que, do despacho de pronúncia (fls. 2 toda a prova produzida no inquérito e instrução) resultam elementos incriminatórios do gerente EE, pois foi este que, ouvido em sede de inquérito mentiu, sustentando que em meados de maio de 2018 entregou os veículos à “E...” para troca da frota; quando em 21.06.2018 o veículo foi levado à inspeção periódica obrigatória na “D...”, sita em Guimarães, com o Código ..., e o recibo foi pago pela arguida “A..., Ld.ª” – fls. 186 dos autos.
19- Foi o gerente EE que teve um conversa com as testemunhas CC e DD, que à data dos factos eram mecânicos na oficina que a “A..., Ld.ª” tinha/tem para assistência às suas viaturas ligeiras, pesadas e de duas rodas, conversa essa em que aquele manifestou que uma das viaturas teria muitos quilómetros comparativamente com as outras, o que poderia desvalorizá-la,
20- o que pode indiciar algum interesse ou motivação para alterar, para menos, o registo total da quilometragem indicado no conta quilómetros.
21- Em 10.07-2018 na ficha de avaliação do ..-OZ-.. da “E...”, junta aos autos, a “A..., Ld.ª” consta como proprietária, donde se retira que nessa data o veículo continuava na posse e disponibilidade da sociedade arguida.
22- E sendo o Sr. EE o gerente (a pessoa que numa sociedade tem como função, planear, controlar e definir estratégias de negócios entre outras funções) a pessoa que dava ordens, o mesmo, usando a sua posição de liderança, deu ordens com vista à alteração para menos na quilometragem do veículo adquirido pelo queixoso,
23- e, pese embora, como sustenta o assistente no seu RAI (replicado no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto) “dado o ilícito em causa, é consabido que o recorrente não viu o Sr. EE em tal dia a tal hora a mexer no conta quilómetros do veículo que comprou, não o ouviu a dar ordens nesse sentido, não sabe quem lhe mexeu, se foi o eletricista, ou o mecânico, ou outro interveniente qualquer, o que sabe é que tal conduta ocorreu entre 07.07.2017 e 21.06.2018, lapso temporal em que a pronunciada era proprietária do veículo”; a sociedade arguida tinha o domínio de facto sobre a viatura e a motivação para promover a redução da quilometragem, não se tendo apurado qualquer outro interveniente com interesse em produzir uma alteração idêntica,
24- pela que a decisão recorrida não fez errada aplicação da lei, devendo manter-se a pronuncia da arguida.
Termina pedindo seja negado provimento ao recurso, mantendo-se a pronúncia da arguida.
Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, e que se encontra a fls. 63 a 67 dos presentes autos, pugna pela procedência do recurso interposto, acompanhando-o.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada mais veio a ser acrescentado com relevo para a decisão em causa.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II- Fundamentação: Fundamentação de facto A) Com data de 11.01.2020, foi proferido pelo Ministério Público o seguinte despacho de arquivamento, constante dos presentes autos a fls. 4/8: “I. Não se vislumbrando a necessidade de realização de quaisquer outras diligências úteis para a descoberta da verdade material, declara-se encerrado o inquérito – ao abrigo do disposto no art. 276º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
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II. Os presentes autos de Inquérito tiveram origem no Auto de Denúncia (cfr. fls. 4), no qual o AA relata a seguinte factualidade contra a empresa denominada A..., Lda., sita em Fafe, por ter permitido a alteração da quilometragem (no período compreendido entre 07.07.2017 e 30.07.2019), ao veículo automóvel categoria ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-OZ-.., que adquiriu em leilão, na Leiloeira B..., Lda., sita em ..., no valor de €8.984,62 – cf. fls. 10. Porquanto, na inspeção realizada em 17.07.2017 e o veículo ostentava a marcação de 158.107 Km, conforme ficha ... e na inspeção efectuada no dia 30.07.2019 marcava 146.179 Km – cfr. fls. 9. Comprou o veículo falsificado nos quilómetros.
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A) Tais factos, são suscetíveis de integrar, em mero juízo abstrato na prática de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217º, n.º 1, do Código Penal.
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III. Procedeu-se a inquérito, tendo sido realizadas as diligências que se afiguraram possíveis à descoberta da verdade e ao esclarecimento dos factos. AA, foi inquirido (cfr. fls. 40 a 43), que confirmou o teor do auto de denuncia e esclareceu que comprou o veículo no dia 09.08.2018, pelo valor de €8.984,62 por acreditar nos quilómetros que apresentava. Apurou-se que os quilómetros foram adulterados e sente-se enganado, pois não comprava o veículo caso soubesse que os quilómetros não eram reais. FF, inquirido na qualidade de representante legal da empresa denominada Leiloeira B..., Lda. (cfr. fls. 30 a 32), que confirmou que o veículo dos autos esteve nas instalações da empresa e deu entrada no parque em 25.07.2018 com a quilometragem de 129.381 – cfr. fls. 33 Que o veículo foi colocado em leilão após ter sido rececionado a F..., deduzindo que foi uma retomada da denunciada à aquisição de outros veículos. EE, inquirido na qualidade de representante legal da empresa denominada A..., Lda. (cfr. fls. 48), que declarou que o veículo foi de sua propriedade até meados de maio de 2018. Que nessa altura, e sendo cliente C..., o concessionário da C... da E..., no Porto, na pessoa do chefe de vendas BB, entrou em contacto com o depoente para renovar a frota de ensino do ora depoente. Que esta situação se devia ao facto da C..., a partir desta altura, iria deixar de fabricar ligeiros de passageiros a diesel e por isso, se o negócio se justificasse, iria assim renovar o seu parque auto. Desta forma, foi feita a aquisição de novos veículos e os que tinha foram retomados pela C.... Que se recorda, estes veículos nunca tiveram qualquer anomalia e ou incidente que justificasse a troca do painel dos quilómetros. Questionado, disse que nada tem a ver com qualquer ilicitude criminal. Questionado sobre a inspeção que o veículo fez em meados de 21.06.2018, diz que nessa altura já não teria esses carros, sendo que os mesmos já estariam na posse da C....
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IV. Cumpre apreciar e decidir Foram realizadas as diligências que se afigurassem úteis, pertinentes e possíveis à descoberta da verdade e ao esclarecimento dos factos, nomeadamente à identificação do(s) autor(es) do ilícito criminal. Cumpre proceder a uma apreciação dos indícios recolhidos em ordem a uma decisão de acusação ou de arquivamento dos autos. Entendemos que das diligências efetuadas se apuraram apenas os seguintes factos: A viciação dos quilómetros, pois o veículo já tinha mais quilómetros, dos que os que constavam do conta-quilómetros quando o veículo foi adquirido. Assim como o prejuízo de AA pelo erro criado, nomeadamente, dos quilómetros, pensou que estava conforme o que constava no conta quilómetros do veículo, o que foi factor relevante para a aquisição do mesmo, uma vez que dada a marca e modelo em causa, fez o AA sentir-se seguro quanto ao bom estado de funcionamento do mesmo. Contudo, não foi possível apurar, quem adulterou o conta-quilómetros do veículo, visando dar a aparência enganosa de que o veículo só tinha circulado aqueles quilómetros. Verifica-se que não reúnem os autos quaisquer indícios suficientes sobre a identidade do autor dos factos participados. Em ordem a definir os parâmetros da decisão, algumas considerações afiguram-se úteis. "O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação" (artigo 262º, n.º 1, do Código de Processo Penal). No final desta fase processual, por regra, cumpre ao Ministério Público arquivar ou deduzir acusação (n.º 1, do artigo 276º). Acusará apenas quando "tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente" (artigo 283º, n.º 1, do Código de Processo Penal), sendo indícios suficientes aqueles que, uma vez formulado um juízo de previsão em relação ao que se passará em sede de audiência de julgamento, permitam concluir pela existência de "uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena" (n.º 2 do mesmo artigo). Estas normas têm sido interpretadas e aplicadas, pela jurisprudência, no sentido de se declarar que os factos indiciários devem ser suficientes por forma a que, logicamente relacionados e conjugados, forneçam um dado persuasivo de culpabilidade e importem um juízo de probabilidade de que o arguido tenha praticado o crime que lhe é imputado. Realizadas as diligências de inquérito de que dão mostras os autos, muito embora se valide a mais que provável ocorrência da falsidade/engano por tal o evidenciar os documentos juntos, já quanto à suscetibilidade da sua apreciação penal o caso muda de figura pela consideração da ausência de prova minimamente consistente quanto à respetiva autoria. Tal estado de coisas resulta da não interceção de suspeito, as dúvidas são grandes e difíceis de superar. No atual momento, o que consta dos autos é mera situação de “pode ter acontecido assim”, que não é suficiente. E a circunstância da posse da viatura se ter verificado, por diferentes empresas e ao desconhecimento da data em concreto da viciação, perante este estado de coisas, facilmente se conclui não poder deduzir-se acusação, por ausência de provas que a fundassem. As suspeitas trazidas a juízo pelo denunciante não lograram materializar-se em prova de natureza e grau consentâneos com o nível imposto pelas normas processuais acima citadas. Os parcos elementos carreados para os autos, não nos permite por ora identificar os autores, ou potenciais suspeitos. Não há outra(s) testemunha(s) dos factos, nem suspeitos. Não existindo prova relevante que viabilize a realização de diligências suplementares que se afigurem virtualmente úteis ao apuramento indiciário dos factos, arquivam-se os autos.
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V. Em conformidade com a fundamentação de facto e de direito acima aduzidas e não se afigurando úteis quaisquer outras diligências probatórias, determino o arquivamento dos autos, nos termos do art. 277º, n.º 2, do Código de Processo Penal e sem prejuízo de uma eventual reabertura no caso de surgirem novos elementos de prova.
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VI. Notifique o presente arquivamento com observância do disposto no art. 277º, n.º 3 e n.º 4, do Código de Processo Penal. (…)” B) Com data de 24.10.2023, o assistente apresentou requerimento de abertura de instrução, constante a fls. 9 a 20 dos presentes autos, nos seguintes termos: Questão Prévia: da nulidade da acusação /da falta de legitimidade do MP: “AA, denunciante melhor identificado nos presentes Autos, vem junto de v/ exª, requerer a abertura de instrução, nos termos do preceituado no art.º 287.º nº 1 b) do C.P.P, quanto ao crime de Burla, p. e. p. pelo artº217º nº 1 do Código Penal, porquanto: 1.º Por Douto Despacho de fls. notificado ao denunciante, foi o crime de Burla de que o mesmo se queixou, arquivado, 2.º por falta de indícios “Verifica-se que não reúnem os autos quaisquer indícios suficientes sobre a identidade do autor dos factos participados” (…). 3.º “Os parcos elementos carreados para os autos” (…). 4.º Contudo, o denunciante não concorda com tal arquivamento, pois que os indícios existem, como se provará. 5.º Antes de mais, e porque o denunciante/lesado, quando apresentou queixa na PSP ..., Gondomar em 04-09-2019, tinha-se dirigido ao Posto com o intuito de se inteirar de algumas informações, relacionadas com o ... aqui em causa, por si comprado, sendo que o Sr. Agente, dados os factos relatados pelo queixoso, de alteração da quilometragem, começou a “lavrar a Queixa”, 6.º e iniciou-se aí o procedimento criminal. 7.º Foi dito ao denunciante que o mesmo iria ser “Chamado pelo Tribunal”, sendo certo que, foi chamado para depor na GNR ...-Fls. 40 a 43 dos autos, a 28-11-2019, 8.º ao que lhe foi dito no fim da diligência que, “o processo seguiria o seu curso normal”, ficando o queixoso a “aguardar” que o chamassem a Tribunal. 9.º Mais lhe foi dito aquando da apresentação da Queixa, que o carro iria ser inspecionado, e que aguarda-se, ficando o queixoso nessa expectativa, 10.º pelo que o mesmo ficou a aguardar; nunca lhe foi pedida mais documentação além da que juntou; recebeu, entretanto, o Despacho de Arquivamento. 11.º O denunciante é enfermeiro de profissão, encontrando-se coletado e tendo dado início de atividade em 29-08-2016 , no ramo de Comércio de Veículos Automóveis Ligeiros, a que corresponde o CAE Principal ...-Doc. nº 1 e Doc. nº 2 que se juntam e se têm por reproduzidos para todos os efeitos legais. 12.º Desde 2016 que tem comprado alguns veículos, que destina à revenda, sendo esse o contexto da compra do veículo em causa nos Autos, o ..., com a matrícula ..-OZ-.., que comprou em Leilão em 9-8-2018, á G..., tendo pago o preço de € 8 984,62, conforme Documento junto aos Autos a Fls. 10. 13.º O queixoso comprou o veículo, atendendo ao preço do mesmo e aos quilómetros que apresentava no quadrante entre 120.000 e 130.000 Km, porque se lhe afigurou um negócio razoável. Se o mesmo soubesse que “os quilómetros não eram reais”,-declarações do queixoso de fls. 40 a 43 dos autos-, não o teria comprado. 14.º Aquando da compra, no preço total supra referido em 10 desta peça, pago pelo queixoso, já está incluído o custo do registo automóvel a favor do novo proprietário “que estranhou” o atraso na remessa do novo Documento Único em seu nome, que só lhe chegou por carta em abril de 2019, ou seja, 8 (oito) meses a pós a aquisição do veículo-Documento nº 3 que se junta. 15.º O veículo tinha a “luz do motor acesa” e o volante apresentava-se muito gasto, 16.º pelo que, em 29-11-2018, o queixoso decidiu fazer a “Revisão” ao carro, na marca, para o que se dirigiu á C..., na Avenida ..., ..., Vila Nova de Gaia. 17.º Foi feita a revisão, verificada a luz de avaria acesa (poderia dever-se ao filtro de partículas obstruído) o queixoso pagou o custo da mesma-Doc. nº 4 e 5 que se juntam. 18.º Quando o queixoso foi levantar o seu carro e pagar a revisão, pediu se lhe davam uma cópia da “ficha do veículo ... com a matrícula ..-OZ-.. que lhe foi entregue, e que aqui se junta como Documento nº 6, resultando da análise desse documento, lendo de baixo para cima que: -em 14-01-2015 o carro tinha 16.590 Km; -em 16-04-2015 o veículo tinha 32.244 Km; -em 16-07-2015 o veículo tinha 47.239 Km; -em 07-10-2015 o veículo tinha 62.037 Km; -em 28-12-2015 o veículo tinha 75.642 Km; Resulta que no ano de 2015 o veículo fez 59.052 Quilómetros (tratava-se de um veículo de uma escola de condução, para ensinar alunos); -em 08-04-2016 o veículo tinha 91.740 Km; -em 04-08-2016 o veículo tinha 107.265 Km; -em 28-11-2018 na revisão feita pelo aqui queixoso, o veículo apresenta 136.303 Km. 19.º Ora, analisando o Documento nº 6, e tratando-se de um carro de uma escola de condução, e se no ano de 2015 circulou 59.052 Km, é expectável que nos anos de 2016;2017 e parte de 2018 (ano da venda em leilão) o carro fizesse cerca de 59.000 km ano, 20.º O que daria uma quilometragem de aproximadamente de 180 000 Km, e nunca a que aparecia no Conta quilómetros no dia da compra pelo queixoso (8-8-2018) de 129.381 km como resulta do Documento da G..., que se junta como Documento nº 7 e se tem por reproduzido para todos os efeitos legais, juntando-se 3 fls. de um lote de folhas/ informação que é dado a cada participante no Leilão (só para revendedores) onde constam os carros á venda/ características/ ano de matrícula/ Km/ preço. 21.º Desse documento nº 7, o Veículo nº 64 ... de 2014, é o aqui comprado pelo queixoso, que consta como tendo: -129,381 km -preço € 8.100,00; 22.º Mais constando o veículo nº 23 ... de 2014, que foi comprado no leilão, por outro comprador no mesmo dia (encontra-se á venda no stand H... em Gaia) marcando 191.144 quilómetros, preço 8.100,00. 23.º Ambos os veículos da mesma marca, modelo, ano de matrícula, e que pertenciam á mesma proprietária, a aqui denunciada “A..., Ldª, com sede em Fafe, ambos seguramente a andar na estrada com alunos da escola de condução, apresentavam uma diferença de quilómetros de -61.763 Km, 24.º O que vai no sentido de confirmar o que o queixoso suspeitou, de que “os quilómetros foram adulterados e sente-se enganado”, conforme consta do Despacho de Arquivamento a fls. 25.º Ademais, analisando o Documento junto aos Autos a fls. 9, junto pelo queixoso, (que o foi Requerer ao IMT-Instituto de Mobilidade e dos Transportes IP, e que pagou o seu custo de € 30,00 em 1 de Agosto de 2019) consta que, em 07-07-2017 o veículo faz uma Inspeção no Centro de Inspeções com o Código do Centro ..., marcando Km 158107, 26.º E no ano a seguir, faz a inspeção no mesmo Centro com o Código ..., no dia 21-06-2018 e o veículo tem menos quilómetros passa a ter ..., 27.º Ora, Meritíssimo Srº Drº Juiz de Instrução, só por aqui, pela junção deste documento, se retira que tiraram quilómetros ao carro, 28.º E esta prova esta no processo, desde o início, 29.º E se em Declarações prestadas o Sr. EE, ouvido a fls. na qualidade de Gerente da A...Ldª, diz que “ “o veículo foi de sua propriedade até meados de Maio de 2018” nada prova nesse sentido, e em Direito não basta dizer, é preciso provar, 30.º Diz ainda que “em 21-06-2018, nessa altura já não teria esses carros, sendo que os mesmos já estariam na posse da C...”. 31.º Como é que se compagina esse facto-de os carros já estarem na posse da C...-, com o facto da inspeção obrigatória de 21-06-2018 continuar a ser feita no Centro com o Código ... (como as anteriores, 2015,2016,2017) que corresponde á D..., S.A., com sede na Rua ..., ... que se junta e se tem por reproduzido para todos os efeitos legais.( ler com o Doc. de fls. 9 do Processo). 32.º “A C... da E... no Porto” (Despacho de Arquivamento a fls.) deslocava-se do Porto a Guimarães para fazer uma Inspeção Periódica a um veículo que retomou de um cliente? 33.º Porque não fez a inspeção obrigatória num centro mais próximo da sua localização-Cidade do Porto? 34.º O recibo do pagamento desta inspeção- a que se refere o Documento nº 8 agora junto, prova quem a mandou fazer, pelo que se Requer a V/ Exª, se digne OFICIAR/ORDENAR à D..., S.A. para que junte esse recibo aos Autos. A regra, é que quem manda fazer a inspeção e a paga, é o dono da viatura, é o que resulta das regras de experiência comum, e de acordo com os ditames do usual. 35.º Nesta ordem de ideias, e como ressalta do Documento de fls. 9, a Inspeção Obrigatória de 30-07-2019, foi mandada fazer e paga, pelo aqui queixoso, e atual dono da viatura, que a fez no Centro de Inspeção com o Código ..., que é a I... Ldª, com sede na Rua ..., ... ..., Gondomar, 36.º Como consta do respetivo Recibo, documentos que se juntam como Doc.s nºs 9 e 10 e se têm por reproduzidos para todos os efeitos legais. 37.º Em janeiro do corrente ano, o queixoso dirigiu-se á Conservatória do Registo Automóvel de Valongo, pedindo um histórico do registo automóvel do ..., donde resulta que” a anterior proprietária do veículo-A..., Ldª, com sede em Fafe, cancelou a reserva que onerava o veículo, apenas em 14/03/2019, ou seja, -Documento nº 11 que se junta e se tem por reproduzido para todos os efeitos legais, 38.º quando o colocou á venda na G..., (em 25 de julho de 2018- despacho de arquivamento a fls.) e foi comprado pelo aqui queixoso, ainda havia um ónus sobre o veículo, daí a demora do Documento único em chegar às mãos do queixoso. 39.º Desse documento resulta que o veículo foi propriedade da E..., depois do Banco 1..., pois a viatura terá ser comprada com reserva de propriedade) depois da Denunciada nos Autos A...Ldª, e após cancelamento do ónus, só em 14-3-2019 ,foi registada a favor do queixoso. 40.º Assim, resulta que a adulteração dos quilómetros da viatura foi feita no período em que a mesma era pertença da denunciada, devendo esta ser responsabilizada pela adulteração dos quilómetros, tendo concretizado ou permitido essa adulteração (sendo dona é responsável pela coisa) devendo ser pronunciada por um crime de burla, p.e.p .pelo artigo 217.º nº 1 do C.P. Termos em que requer a V/ Exª a abertura da instrução e em consequência a pronúncia da arguida A..., Ld.ª com sede na Rua ..., Fafe, por um crime de Burla, previsto e punido pelo artigo 217.º n.º 1 do Código Penal. Pelo que se requer, se proceda aos atos de instrução, nomeadamente: 1 – ordenado o envio de Ofício a notificar a D..., S.A., com sede na Rua ..., ..., ... Guimarães, para juntar aos Autos cópia do recibo de pagamento da Inspeção a que se reporta o Documento nº 8 aqui junto, realizada em 21-06-2018, a fim de apurar quem a pagou. 2-Tomada de Declarações ao queixoso; 3- Tomada de novas Declarações ao gerente da denunciada EE. 4- Chamada ao processo do Gerente da C... da E... no Porto, para esclarecer quem era dono do ... matrícula ..-OZ-.., propriedade do queixoso, a partir de maio de 2018; 5-Acareação entre as pessoas mencionadas em 3 e 4, em substituição das declarações, caso V/ Exª entenda pertinente. Prova testemunhal: GG, residente na Alameda ..., ...,3º, dtº, Posterior, ... Vil Nova de Gaia. Junta:11 (onze) documentos.
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AA, divorciado, enfermeiro, residente na Rua ...,... ..., Vem deduzir ACUSAÇÃO, e Requerer Julgamento em Processo Comum, com intervenção de Tribunal Singular de A... Ld.ª, com sede na Rua ..., ... Fafe, Porquanto: 1-Em 09-08-2018 o queixoso comprou o veículo ..., matrícula ..-OZ-.., pelo preço total de 8.984,62, conforme fls.10 dos Autos, veículo esse que pertencia á denunciada (fls. 11 dos Autos). 2-Tal compra foi feita na G..., sita em ..., onde o mesmo, que se dedica ao comércio de veículos automóveis ligeiros, encontrando-se coletado para esse efeito desde o ano de 2016 (doc. nº 1 do Requerimento de abertura de Instrução), se deslocou, 3-Em data que não consegue precisar, mas antes da compra do veículo por si efetuada (09-08-2018), a quilometragem do veículo foi alterada/adulterada, sendo que, como resulta do Documento junto aos Autos a fls.9, que é uma Certidão emitida pelo IMT-Instituto de Mobilidade e dos transportes Terrestres, IP, em 07-07-2017, o veículo foi sujeito a uma inspeção no Centro com o Código ..., com o nº de ficha ... marcando 158 107 quilómetros- Doc. de fls 9. 4- No ano seguinte, em 21-06-2018, no mesmo Centro com o Código ... o veículo do queixoso fez inspeção, com o nº de ficha ..., marcando 124 329 Km (ou seja, o veículo ficou com menos 33.778 km). 5-Tal Centro de Inspeções com o Código ..., corresponde á D..., S.A. com sede na Rua ..., ..., Guimarães (Doc. nº 8 do requerimento de abertura de Instrução). 6-O queixoso só comprou o veículo em causa, por acreditar que o mesmo tinha os quilómetros que constavam do conta quilómetros e dos documentos entregues pela G..., onde o adquiriu e onde foi colocado para venda no ano de 2018, constando que o veículo tinha 129.381 km (doc. nº 7 do requerimento de abertura de instrução). 7-O queixoso esteve oito meses à espera do documento único averbado em seu nome, estranhando tal demora, resultando de documento por si pedido na Conservatória do registo Automóvel de Valongo, que o mesmo esteve registado a favor da C...; depois a favor do Banco 1..., S.A., posteriormente a favor da aqui denunciada e em 16-4-2019 é que foi averbado em seu nome, após cancelamento de ónus (documento nº 11 junto ao requerimento de abertura de instrução). 8-Assim, o mesmo foi enganado, tendo comprado um veículo que tem mais quilómetros que aqueles que marcava no conta quilómetros no dia da compra, pelo que sendo dona do veículo no lapso temporal anterior á compra, a aqui denunciada, A...,Ldª,é responsável por ter concretizado, ou ter permitido a alteração da quilometragem, 9-o que fez para que o veículo “parecesse “menos desgastado, mais novo, e com maior valor económico. 10-A arguida atuou do modo descrito, e fê-lo de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que tal conduta era proibida por lei. 11-Ao assim atuar, incorreu a arguida A..., Ldª, na prática de um crime de Burla, previsto e punido pelo artigo 217º nº 1 do Código Penal. Prova documental: Toda a prova constante dos Autos (fls. 9,10,11, Certidão Permanente da arguida, e ainda onze documentos juntos com o Requerimento de Abertura de Instrução. Prova testemunhal: Declarações do queixoso, que apresentou requerimento de constituição de assistente e pagou a competente taxa; A mesma testemunha indicada no requerimento de abertura de Instrução, e aí melhor identificada. (…)”. C) Em 06.03.2020 foi proferido despacho de indeferimento da requerida abertura de instrução, cuja certidão consta a fls. 21 a 22 dos presentes autos, nos seguintes termos: “Requerimento de fls. 87: Nos termos do artigo 68.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, admito a intervenção do requerente AA como assistente nestes autos. Notifique.
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Da requerida abertura de instrução: O assistente veio requerer a abertura de instrução por não se conformar com o arquivamento dos autos, alegando o que melhor consta de fls. 60 a 65 no intuito de obter a pronúncia da sociedade comercial "A..., Lda." pela prática de um crime de burla previsto e punível pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. Cumpre-nos considerar que nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b). O artigo 283.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal preceitua que “a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”. O requerimento de abertura de instrução em apreço não reúne aqueles requisitos legais. O assistente não alega os factos materiais e concretos necessários à responsabilidade penal de uma pessoa coletiva, nos termos do artigo 11.º, n.º 2, al. a) ou al. b), do Código Penal, nomeadamente as pessoas singulares que cometeram os factos que o assistente pretende imputar à requerida sociedade. O requerimento de abertura de instrução baseia-se em alegações vagas e genéricas: "A adulteração foi feita no período em que [a viatura] era pertença da denunciada, devendo esta ser responsabilizada pela adulteração dos quilómetros, tendo concretizado ou permitido essa adulteração. A denunciada (sendo dona) "é responsável por ter concretizado ou permitido a alteração da quilometragem". Conforme tem sido afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, as imputações genéricas devem ser consideradas nulas, legalmente inadmissíveis, por não permitirem aos arguidos um efetivo exercício dos seus direitos de defesa. Assim, o requerimento de abertura de instrução não contém os elementos necessários para a abertura e realização de instrução. Pelo exposto, indefere-se a requerida abertura da instrução, determinando-se o arquivamento dos autos. Não há lugar a tributação. Notifique. (…)”. D) Da decisão referida em C) foi interposto recurso, tendo sido proferido, em 14.10.2020, acórdão neste Tribunal da Relação, onde consta, para além do mais, “(…). Posto isto analisado o RAI pode constatar-se de uma forma que diríamos até clara o que está em causa. O assistente/ recorrente apresentou as suas razões de discordância relativamente ao despacho de arquivamento que findou o Inquérito. Existem nos autos indícios suficientes consubstanciando a adulteração do conta-quilómetros do veículo comprado pelo recorrente em 9-8-2018, sendo o documento junto a fls. 9 do Inquérito a prova disso mesmo, certidão obtida pelo recorrente junto do IMT-Instituto da mobilidade e dos transportes, IP, em 1 de agosto de 2019. Da mesma se colhe que em 7-7-2017 (e não como erradamente a Srª procuradora que proferiu Despacho de arquivamento a fls 2, apondo a data de 17.07.2017) o veículo que o recorrente comprou (á Leiloeira- G...- sita em ..., concelho de santo Tirso) marcava no quadrante do conta-quilómetros 158 107 (nº de ficha ...). No ano seguinte apresentava a quilometragem de 124 329, ou seja -foram retirados ao veículo, entre o ano de 2017 e 2018, 33 778 (trinta e três mil setecentos e setenta e oito quilómetros). Analisando este documento de fls 9, com o Documento da Conservatória do registo Automóvel de Valongo junto como o requerimento de abertura de instrução com o Documento nº 11, do mesmo consta que a propriedade do ... matrícula ..-OZ-.., só foi averbada em nome do recorrente em 16/04/2019, --o que equivale a dizer que o mesmo comprou e pagou em 9 de Agosto de 2018, (fatura junta a fls 10 do inquérito) e só em 16/04/2019 o veículo foi averbado em seu nome, ou seja, tal registo a favor do novo proprietário, promovido pela G..., demorou oito meses. Desse mesmo documento nº 11 do RAI (requerimento de abertura de instrução) consta que o veículo aqui em causa, foi registado a favor da denunciada A... Ld.ª só em 14/03/2019, provavelmente quando terminou a Reserva de propriedade a favor da Banco 1.... Ora, tudo sopesando e compaginando os dois documentos, está documentalmente indiciariamente demonstrado que a denunciada foi dona do veículo até ao dia em que o vendeu ao aqui recorrente, ou seja, em 8-8-2018, Sendo que registralmente a prova da sua titularidade como dona, vai mais longe, vai até 14/03/2019. Mais resulta que o EE, representante legal da denunciada, e ouvido nessa qualidade, quando prestou declarações em sede de inquérito –fls. 3 do despacho de arquivamento “declarou que o veículo foi de sua propriedade até meados de Maio de 2018. Tal afirmação parece ser falsa, pois foi dono até ao dia em que o veículo foi entregue ao atual proprietário aqui recorrente em 8-8-2018-Documento nº 11 do RAI. Apesar de ter negado resulta que o veículo da Escola ... parece ter passado desta diretamente para a Leiloeira de veículos, G.... Não foi realizada inspeção ao veículo em causa a fim de confirmar a alegada adulteração. Ora, o assistente ao imputar os factos à A..., sendo pessoa coletiva e agindo por força da lei por intermédio do seu gerente, não carecia de mencionar expressamente o nome do mesmo, tal resulta claramente da documentação junta a fls. 12. Não obstante, o Juiz “a quo” ter afirmado que “ o RAI não reúne os requisitos da lei, quanto á narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de pena ou medida de segurança; designando se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática….”, concorda-se com o recorrente quando este afirma “Dado o ilícito em causa, e consabido que o recorrente não viu o Sr. EE em tal dia a tal hora, a mexer no conta quilómetros do veículo que comprou; não o ouviu a “dar ordens” nesse sentido; não sabe quem lhe mexeu, se foi o eletricista ou o mecânico, ou outro interveniente qualquer; o que sabe é que tal conduta ocorreu entre 7-7-2017 e 21-6- 2018, lapso temporal em que a denunciada era proprietária do veículo (veja- se novamente documento nº 11 junto ao RAI). É de todo impossível, o recorrente saber quem foram as pessoas singulares que efetivamente alteraram a quilometragem do veículo que comprou; objeto viciado; com menos valor económico do que aquele que o mesmo pagou e que consta da fatura junta a fls 10 do Inquérito.” Por sua vez a leitura atenta da acusação permite perceber a trama descrita, como foi detetada a adulteração, o sentimento de engano, a quem foi imputada essa adulteração, veja-se o ponto 8 e os motivos do engano, ver ponto 9 e as vantagens e consequente prejuízo decorrentes de tal comportamento, ou seja, o assistente pagou mais do que devia por um automóvel que lhe foi apresentado como menos desgastado, logo mais valorizado e muito provavelmente poderia, com os dados verdadeiros, não ter comprado ou ter comprado por preço inferior, ver ponto 6. Tendo procedido á aquisição da viatura para a revender (atividade para a qual está coletado-doc.s 1 e 2 do RAI) e tendo pago a carga fiscal relativa a essa compra e venda, não o pode vender, sabendo da adulteração que o mesmo sofreu. Diz-nos igualmente a experiência comum que o que leva o agente a “tirar” quilómetros a um veículo usado, é “torna-lo mais novo” com um valor económico superior, mais apelativo, de molde a possibilitar um “enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou.” Ao alterar ou consentir na adulteração do conta-quilómetros, o representante da arguida sabia que o fazia em benefício próprio e em prejuízo de terceiros, pondo em causa a credibilidade do aparelho que mede a quilometragem do veículo, uma vez que é idóneo a certificar o estado do veículo e desgaste do mesmo. Portanto, a narração fáctica não é, a nosso ver, genérica, imprecisa e vaga, pelo contrário, é clara e bastante suficiente para alicerçar uma acusação, sendo aliás precedida de uma explicação clara das razões da discordância para com o arquivamento. O recorrente fez uma acusação separada de molde a dar cumprimento ao estatuído na lei- art.º 283.º nº 3 do C.P.P: procedendo à identificação da arguida; narrando os factos, conducentes á aplicação de pena ou medida de segurança; situou os factos no tempo; juntou documentos para sustentação do factualismo ilícito (documentos fls.9 do inquérito; doc. 11 do RAI, demais do inquérito, e procedeu á junção de mais onze documentos) indicou o tipo de crime em causa, e referiu no ponto 3 da sua peça: “Em data que não consegue precisar, mas antes da compra do veículo por si efetuada…”, a data possível. Requereu para esclarecimento da verdade dos factos: - notificação da D... sita em Guimarães, para prova de quem pagou a inspeção que o representante legal da denunciada afirma ter sido feita pela C... (E...), por terem retomado a frota; e tomada de declarações; e uma acareação e indicou uma testemunha. Em face do exposto, por terem sido cumpridos no RAI os requisitos mínimos legais do disposto no art. 287º, n º 2 e 283º, n º 3, al.b) ambos do CPP. deve o despacho de que se recorre, ser substituído por outro, que declare aberta a fase da instrução, ordenando as diligências que considere pertinentes. Decisão. Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo assistente revogando-se a decisão que rejeitou o requerimento da abertura da instrução. Sem custas. Notifique. (…)”. E) Em 11.07.2023 foi realizado debate instrutório, conforme consta da ata de fls. 24/25 dos presentes autos e com data de 26.09.2023 foi proferida decisão instrutória nos seguintes termos (cf. fls. 58/60 dos presentes autos): “Despacho de pronúncia proferido nos autos de instrução n.º 264/19.6PAGDM: O assistente AA veio requerer a abertura da instrução por não se conformar com o despacho de arquivamento do inquérito registado a fls. 49 a 53 dos autos. Alegou o que melhor consta do requerimento registado a fls. 60 a 86 dos autos no sentido da pronúncia da arguida “A..., Ld.ª” pela prática de um crime de burla previsto e punível pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. Na sequência do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, registado a fls. 147 a 164, foi declarada a abertura da instrução. Foram tomadas declarações ao assistente e inquiridas testemunhas, cf. fls. 280 a 281, 305 e 306. Foi apresentada prova documental, nomeadamente os documentos juntos com o requerimento de abertura de instrução a fls. 66 a 86, e os documentos juntos com o requerimento de abertura de instrução a fls. 66 a 86, e os documentos juntos a fls. 185, 186, 196 a 199, 214 a 218, 222 a 231, 236 a 248, 255 a 260, 299 e 300. Procedeu-se a debate instrutório. O Tribunal é competente. Inexistem quaisquer questões prévias ou incidentais que ora cumpra conhecer. Como é sabido, a instrução visa a comprovação judicial da suficiência ou insuficiência de indícios para a pronúncia do arguido em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – artigos 286.º, 308.º e 277.º do Código de Processo Penal. Assim, o artigo 308.º do Código de Processo Penal preceitua que se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos, caso contrário profere despacho de não pronúncia. Luís Osório, no seu Comentário ao CPP Português, Vol. IV, pág. 441, afirma que “devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer, em quem os aprecia, a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”. Compulsada toda a prova produzida no inquérito e na instrução, com especial destaque para os documentos de fls. 9 a 19, 66 a 86, 214 a 218, 236 a 248, 256 a 260, e os depoimentos do assistente AA e das testemunhas BB, CC e DD, concluímos que os factos imputados à sociedade arguida podem efetivamente vir a provar-se em julgamento. Estas duas últimas testemunhas, funcionários na oficina de mecânica dos veículos da empresa, inquiridas a fls. 305 e 306, relataram uma conversa com o gerente da empresa A... em que este teria manifestado que uma das viaturas teria muitos quilómetros, comparativamente com as outras, o que poderia desvalorizá-la. Ou seja, naquele dia, o gerente da empresa manifestou a opinião que o n.º registado no conta quilómetros de uma das viaturas podia desvalorizá-la na sua venda, o que pode indiciar algum interesse ou motivação para alterar, para menos, o registo total da quilometragem, indicado no conta quilómetros. Por outro lado, os registos das inspeções periódicas obrigatórias à referida viatura indiciam uma alteração ca contagem ou medição do conta quilómetros. O veículo tinha a “luz do motor acesa” e o volante apresentava-se muito gasto, pelo que, em 29.11.2018, o queixoso decidiu fazer a “revisão” ao carro, na marca, para o que se dirigiu à C..., na Avenida ..., ..., Vila Nova de Gaia. Quando o queixoso foi levantar o seu carro e pagar a revisão, pediu uma cópia da “ficha” do veículo ... com a matrícula ..-OZ-.., que lhe foi entregue e reproduzida a fls. 78 dos autos, resultando da mesma, lida de baixo para cima, que: - Em 14.01.2015 o veículo tinha 16.590km; - Em 16.04.2015 o veículo tinha 32.244 km; - Em 16.07.2015 o veículo tinha 47.239km; - Em 07.10.2015 o veículo tinha 62.030km; - Em 28.12.2015 o veículo tinha 75.642km; - Em 08.04.2016 o veículo tinha 91.740km; - Em 04.08.2016 o veículo tinha 107.265km; - Em 28.11.2018, na revisão feita pelo aqui queixoso, o veículo apresentava 136.203km. No ano de 2015 o veículo tinha percorrido 59.052 quilómetros (tratava-se de um veículo de uma escola de condução, para ensinar alunos). Em condições normais de utilização como viatura de ensino de condução, o mesmo devia ter em 2018 uma quilometragem de cerca de 180.000km, e nunca a de 129.381km que aparecia no conta quilómetros no dia da compra pelo queixoso (08.08.2018). Com efeito, em 07.07.2017, o veículo de matrícula ..-OZ-.. tinha sido sujeito a uma inspeção no Centro com o Código ..., com o n.º de ficha ..., registando 158.107 quilómetros percorridos, cf. doc. de fls. 9. No ano seguinte, em 21.06.2018, no mesmo Centro com o Código ..., o mesmo veículo de matrícula ..-OZ-.., apresentado à inspeção, com o n.º de ficha ..., marcava somente o registo de 124.329km (ou seja, o veículo registava no hodómetro ou conta quilómetros menos 33.778km do que aqueles que registava em 07.07.2017). E em 10.07.2018, data da ficha de avaliação do veículo de matrícula ..-OZ-.. na E..., S.A., reproduzida a fls. 215 dos autos, o mesmo apresentava 129.381 km segundo inscrição manuscrita num dos campos relativos à identificação da viatura. Naquela altura o referido veículo continuava na posse e disponibilidade da sociedade arguida. Assim, afigura-se-nos possível provar, em julgamento, que a sociedade arguida, tinha o domínio de facto sobre a viatura, e a motivação, para promover a redução da quilometragem do conta quilómetros, não se tendo apurado qualquer outro interveniente com interesse em produzir uma alteração idêntica. Na ponderação do conjunto da prova produzida, afigura-se-nos que os factos alegados pelo assistente no seu requerimento de abertura de instrução podem efetivamente ser provados em julgamento. Pelo exposto e decidindo, nos termos dos artigos 307.º, n.º 1 e 308.º do Código de Processo Penal, pronuncio: A... Ld.ª, com sede na Rua ..., r^/c Dt.º, ... Fafe, com o NIPC ...; Porquanto indiciam suficientemente os autos: O queixoso, aqui assistente, AA, é enfermeiro de profissão, encontrando-se coletado e tendo dado início de atividade em 29.08.2016, no ramo de Comércio de Veículos Automóveis Ligeiros, a que corresponde a CAE Principal .... Em 09.08.2018 o queixoso comprou o veículo ..., matrícula ..-OZ-.., pelo preço total de 8.984,62, conforme doc. de fls.10 dos autos, veículo esse que pertencia à sociedade “A... Ld.ª”. Tal compra foi feita na G..., sita em ..., onde o mesmo se deslocou para o efeito, O queixoso comprou o veículo atendendo ao preço do mesmo e aos quilómetros que apresentava no quadrante hodómetro entre 120.000 e 130.000 km porque se lhe afigurou um negócio razoável. Se o mesmo soubesse que o registo dos quilómetros percorridos não era real, não teria comprado o veículo. Conforme registado no documento junto a fls. 9 do processo, em 07.07.2017, o veículo foi levado à inspeção no Centro de Inspeções com código do Centro ..., com o Código ..., apresentando o registo de 158.107 km. No ano a seguir, o mesmo veículo, seguinte, apresentado à inspeção no mesmo Centro com o Código ..., no dia 21.06.2018, apresentou apenas 124 329 Km no conta quilómetros. Em data que não foi possível precisar, anterior a 19.07.2018 e antes da compra do veículo efetuada pelo assistente, em 09.08.2018, a quilometragem do veículo foi alterada/adulterada. Com efeito, em 07.07.2017, o veículo de matrícula ..-OZ-.. foi sujeito a uma inspeção no Centro com o Código ..., com o n.º de ficha ... registando 158.107 quilómetros, cf. doc. de fls. 9. No ano seguinte, em 21.06.2018, no mesmo Centro com o Código ..., o mesmo veículo de matrícula ..-OZ-.., apresentado à inspeção, com o n.º de ficha ..., marcava somente o registo de 124.329 Km (ou seja, o veículo registava no hodómetro ou conta quilómetros menos 33.778 km do que aqueles que registava em 07.07.2017). O Centro de Inspeções com o Código ..., corresponde à D..., S.A. com sede na Rua ..., ..., Guimarães. O queixoso só comprou o veículo em causa, por acreditar que o mesmo tinha os quilómetros que constavam do respetivo conta quilómetros e dos documentos entregues pela G..., onde o adquiriu e onde foi colocado para venda no ano de 2018, constando que o veículo tinha 129.381 km. O queixoso esteve à espera do documento único averbado em seu nome, o que só sucedeu em 16.04.2019. O queixoso foi enganado, tendo comprado um veículo que tem mais quilómetros que aqueles que marcava no conta quilómetros no dia da compra. A arguida A..., Ld.ª concretizou ou permitiu a redução da quilometragem do veículo de matrícula ..-OZ-.. para que o veículo “parecesse” menos desgastado, mais novo, e com maior valor económico quando procedesse à sua venda. A sociedade arguida atuou do modo descrito, e fê-lo de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que tal conduta era proibida por lei. Ao assim atuar, incorreu a arguida “A..., Ld.ª”, na prática de um crime de burla, previsto e punível pelo artigo 217.º n.º 1 do Código Penal. Prova: Documentos: os documentos de fls. 9 a 19, 66 a 86, 214 a 218, 236 a 248 e 256 a 260 dos autos. Assistente; AA, id. a fls. 280; Testemunhas: BB, mais bem id. a fls. 280; CC, mais bem id. a fls. 305; DD, mais bem id. a fls. 306. Notifique e oportunamente remeta os autos à distribuição como processo comum, com intervenção do Tribunal singular. (…)”.
*
Fundamentos do recurso: Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).
A questão que cumpre apreciar é a de saber se o despacho de pronúncia viola o disposto no art.º 11.º, do Código Penal.
Vejamos.
Alega o recorrente que o despacho de pronúncia viola o disposto no art.º 11.º do Código Penal, pois não descreve que o facto típico foi praticado por pessoa que na sociedade ocupava uma posição de liderança ou por pessoa que agisse sob a autoridade daquela em virtude de uma violação dos deveres de vigilância, nem se alega que o facto foi praticado em nome e no interesse coletivo, tendo-se atribuído à sociedade uma responsabilidade criminal de forma direta, como se de uma responsabilidade objetiva se tratasse.
Dispõe o artigo 11.º, do Código Penal, sob a epígrafe «Responsabilidade das pessoas singulares e coletivas», que: 1 - Salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas singulares são suscetíveis de responsabilidade criminal. 2 - As pessoas coletivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 144.º-B, 150.º, 152.º-A, 152.º-B, 156.º, 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 177.º, 203.º a 206.º, 209.º a 223.º, 225.º, 226.º, 231.º, 232.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285.º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 359.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 377.º, quando cometidos: a) Em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) Por quem aja em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem. 3 - (Revogado.) 4 - Entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa coletiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua atividade, incluindo os membros não executivos do órgão de administração e os membros do órgão de fiscalização. 5 - Para efeitos de responsabilidade criminal consideram-se entidades equiparadas a pessoas coletivas as sociedades civis e as associações de facto. 6 - A responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas é excluída quando o agente tiver atuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito. 7 - A responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes nem depende da responsabilização destes. 8 - A cisão e a fusão não determinam a extinção da responsabilidade criminal da pessoa coletiva ou entidade equiparada, respondendo pela prática do crime: a) A pessoa coletiva ou entidade equiparada em que a fusão se tiver efetivado; e b) As pessoas coletivas ou entidades equiparadas que resultaram da cisão. 9 - Sem prejuízo do direito de regresso, as pessoas que ocupem uma posição de liderança são subsidiariamente responsáveis pelo pagamento das multas e indemnizações em que a pessoa coletiva ou entidade equiparada for condenada, relativamente aos crimes: a) Praticados no período de exercício do seu cargo, sem a sua oposição expressa; b) Praticados anteriormente, quando tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou entidade equiparada se tornou insuficiente para o respetivo pagamento; ou c) Praticados anteriormente, quando a decisão definitiva de as aplicar tiver sido notificada durante o período de exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento. 10 - Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos do número anterior, é solidária a sua responsabilidade. 11 - Se as multas ou indemnizações forem aplicadas a uma entidade sem personalidade jurídica, responde por elas o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associados.
Considerando o disposto no citado preceito legal, e citando Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 3.ªedição atualizada, Universidade Católica Editora, “O critério de imputação da responsabilidade criminal às pessoas coletivas e equiparadas é duplo: ou reside no cometimento da infração criminal em nome e no interesse da pessoa coletiva por pessoa singular colocada em posição de liderança na pessoa coletiva ou equiparada, sendo esta posição de liderança baseada na sua pertença a um órgão da pessoa coletiva competente para tomar decisões em nome desta ou a um órgão da pessoa coletiva competente para fiscalizar aquelas decisões ou ainda na atribuição de poderes de representação pela pessoa coletiva àquela pessoa singular; ou reside no cometimento da infração criminal em nome e no interesse da pessoa coletiva por qualquer pessoa singular que ocupe uma posição subordinada na pessoa coletiva ou equiparada e o cometimento do crime se tenha tornado possível em virtude de uma violação pelas pessoas que ocupam uma posição de liderança dos seus deveres de controlo e supervisão sobre os respetivos subordinados”
Neste sentido também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.12.2018, proferido no âmbito do processo n.º 364/16.4T9SNT.L1-3 e referido pelo Ministério Público nas suas alegações de recurso, que, referindo-se à imputação jurídico-penal dos entes coletivos, defende que “É ponto assente que as pessoas coletivas representam um “real construído” e atuam necessariamente através dos seus órgãos ou representantes. O modelo vigente não é de responsabilidade “direta” da sociedade e, para que o crime seja imputado à sociedade (para que se possa validamente afirmar que “a sociedade cometeu o crime”), é necessário, pelo menos em princípio, que o representante também o seja, ou possa ser, dado que o facto e a culpa do agente físico são componentes essenciais e pressupostos da imputação da pessoa coletiva (Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Lisboa 2009, p. 296-297). Assim é que a imputação jurídico-penal dos entes coletivos assenta numa culpa erigida através do facto e da culpa das pessoas físicas e a responsabilidade da pessoa coletiva só existe quando a pessoa física (agente singular que detenha uma posição de liderança, ou um agente subordinado em virtude da violação de deveres de vigilância ou controlo) tenha agido (ou omitido o comportamento devido) em nome e no interesse coletivo. Por isso, a existência de um nexo de imputação do ato ilícito típico (ou facto de conexão) a um elemento da sociedade com posição de liderança na organização constitui um pressuposto essencial para imputação do crime à pessoa coletiva e depende da "identificação funcional" do líder autor do facto concretamente acontecido (Teresa Quintela de Brito, Fundamento da responsabilidade criminal de entes coletivos: articulação com a responsabilidade individual, Direito Penal Económico e Financeiro, Conferências do Curso Pós Graduado de Aperfeiçoamento, Coimbra, 2012, p. 205 e 206 e RPCC, Ano 20 nº 1, Janeiro-Março 2010, p. 41 a 71). Assim, embora não seja exigível que o agente singular seja efetivamente condenado (artigo 11.º n.º 7 Código Penal), é necessário que pelo menos seja apurada a culpa das pessoas físicas que atuam em nome e no interesse da pessoa coletiva; A contrário, se a pessoa que ocupa a posição de liderança dever ser declarada sem culpa, a pessoa coletiva beneficiará também da exoneração da responsabilidade (Germano Marques da Silva Responsabilidade Penal das Pessoas Coletivas, Revista do CEJ, 1º semestre 2008, nº 8, Almedina, p. 94). Sendo por isso de entender que só pode haver responsabilização criminal da sociedade se os elementos necessários ao estabelecimento desse nexo de imputação objetivo e subjetivo forem objeto de acusação, de prova e de decisão. (…)”.
Considerando o que se deixa exposto e vertendo para o presente caso, verificamos que os factos imputados indiciariamente e constantes da decisão de pronúncia, ao assentar a responsabilidade da sociedade de uma forma “direta”, sem estabelecer qualquer nexo entre o “facto” típico (alteração da quilometragem do veículo) e a atuação de uma pessoa física em nome da pessoa coletiva e no interesse coletivo, se revela insuficiente para a responsabilização criminal da sociedade arguida.
Não obstante da descrição da decisão de pronúncia permitir perceber a trama descrita, designadamente como foi detetada a adulteração, o sentimento de engano, os motivos do engano, as vantagens e consequente prejuízo decorrentes de tal comportamento, ou seja, que o assistente pagou mais do que devia por um automóvel que lhe foi apresentado como menos quilometragem, logo mais valorizado e muito provavelmente poderia, com os dados verdadeiros, não ter comprado ou ter comprado por preço inferior, a verdade é que dos factos indiciados não consta, como deveria constar, que o alterar ou consentir na adulteração do conta quilómetros, o representante da arguida sabia que o fazia em benefício próprio e em prejuízo de terceiros, pondo em causa a credibilidade do aparelho que mede a quilometragem do veículo, uma vez que é idóneo a certificar o estado do veículo e desgaste do mesmo.
Dos factos indiciados na decisão de pronúncia apenas consta no que à imputação jurídico-penal respeita “A arguida A..., Ld.ª concretizou ou permitiu a redução da quilometragem do veículo de matrícula ..-OZ-.. para que o veículo “parecesse” menos desgastado, mais novo, e com maior valor económico quando procedesse à sua venda.A sociedade arguida atuou do modo descrito, e fê-lo de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que tal conduta era proibida por lei.Ao assim atuar, incorreu a arguida “A..., Ld.ª”, na prática de um crime de burla, previsto e punível pelo artigo 217.º n.º 1 do Código Penal.
Ora, estes factos imputados indiciariamente e constantes da decisão de pronúncia, ao assentar a responsabilidade da sociedade de uma forma “direta”, sem estabelecer qualquer nexo entre o “facto” típico (alteração da quilometragem do veículo) e a atuação de uma pessoa física em nome da pessoa coletiva e no interesse coletivo, tal como acima já o dissemos, revela-se insuficiente para a responsabilização criminal da sociedade arguida e viola o disposto no art.º 11.º, do Código Penal.
Nem se poderia aqui colmatar a insuficiência pelo aditamento de factos referentes ao comportamento do legal representante da sociedade arguida, pois, ao não lhe ter sido feita menção nos factos indiciariamente apurados e descritos na decisão de pronúncia, é pessoa estranha ao objeto do processo fixado no despacho de pronúncia.
Com efeito, a modificação que se traduzisse na inclusão de contributos individuais para a prática do facto imputado à coletividade diferentes dos constantes da pronúncia, constituiria uma intolerável alteração substancial dos factos, por implicar a atribuição de um “crime diverso” à pessoa coletiva – artigos 1º, alínea f) e 359.º, ambos do Código de Processo Penal.
Nos termos do disposto no art.º 286.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de acusação ou da decisão de arquivamento do processo. Tem lugar no processo comum, quando requerida, dado o seu carácter facultativo, estando excluída dos processos especiais (cf. art.º 286.º, n.ºs 2 e 3, do Cód. Proc. Penal.
De acordo com o n.º 2 do art.º 287.º do Cód. Proc. Penal, o requerimento para abertura de instrução não está sujeito formalidades especiais, devendo conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação, a indicação dos atos de instrução a levar a cabo e dos respetivos meios de prova e, tratando-se de requerimento formulado pelo assistente, é-lhe aplicável o disposto no artigo 283º, n.º 3, als. b) e d) do Cód. Proc. Penal, isto é, “b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…); d) A indicação das disposições legais aplicáveis;(…)”.
Da articulação de ambos os preceitos legais resulta claro que, embora sem sujeição a formalidades especiais, o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente deve conter a narração (ainda que sintética) dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, a motivação do agente e o seu grau de participação, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Do exposto decorre que o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente tem a estrutura de uma acusação e está, nessa medida, sujeito aos respetivos requisitos. Por esse motivo, tal requerimento delimita o objeto do processo (como se estivéssemos perante uma acusação), tornando, desde logo, nula a decisão instrutória “na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.” (art.º 309.º do Cód. Proc. Penal).
No requerimento para abertura da instrução tem o assistente, forçosamente, de indicar os factos concretos (integradores dos elementos objetivo e subjetivo do(s) tipo(s) de crime que imputa ao arguido) que entende indiciados ou pretende vir a fazer indiciar no decurso da instrução requerida. A descrição dos factos é, por conseguinte, determinante para a definição do objeto do processo, uma vez que a decisão instrutória só pode recair sobre factos que foram objeto da instrução, ficando o objeto do processo delimitado pela indicação feita naquele requerimento de instrução formulado pelo assistente.
Na fase de instrução, que aqui nos interessa, os poderes do juiz são funcionais em relação à finalidade da instrução (cf. art.º 286.º n.º 1 do Cód. Proc. Penal), pelo que os limites materiais da investigação por si operada são os decorrentes do objeto do processo fixado na acusação ou no requerimento para abertura da instrução (cf. art.º 303.º n.º 3 e 309.º n.º 1, do Cód. Proc. Penal).
Em resumo, o Juiz de Instrução Criminal está tematicamente vinculado à factualidade descrita na acusação do Ministério Público, do assistente e no requerimento de abertura de instrução (cf. arts. 303.º e 309.º, n.º l do Cód. Proc. Penal).
Assim, só a verificação dos elementos constitutivos objetivos e subjetivos é passível de integrar o preenchimento do tipo legal incriminador. Pelo que é imperioso, porque imprescindível, que constem da acusação/requerimento de abertura de instrução (neste, em caso de arquivamento), sem os quais não é a mesma fundada, porque insuscetível de suportar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (cf. art.º 283.º, n.º 3, al. b), do Cód. Proc. Penal).
No sentido apontado não poderemos deixar de recordar dois importantes Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência:
- O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 4 de novembro [publicado no Diário da República n.º 212/2005, Série I-A de 04.11.2005] que fixou jurisprudência no sentido de que «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 28.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido»;
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 [publicado no DR Série I, de 27.01.2015] que fixou jurisprudência no sentido que: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
Vertendo o que se deixa exposto para o caso concreto, verificou-se a pronúncia da pessoa coletiva sem que se tenha feito constar da decisão de pronúncia os factos materiais e concretos de que, de acordo com as disposições legais aplicáveis, depende a sua responsabilização criminal, nos termos do artigo 11.º, n.º 2, al. a) ou b) do Código Penal.
Entendendo-se que as sociedades não são, em si, capazes de ação e culpa, a responsabilidade da sociedade é definida em função da ação e culpa dos que atuam por ela.
Assim, em face dos termos em que os factos se mostram descritos na decisão de pronúncia, por reporte aos factos descritos na acusação constante do requerimento de abertura de instrução apresentada pelo assistente, nunca poderá a sociedade arguida incorrer em responsabilidade criminal e ser objeto de condenação, por não se verificarem os pressupostos legais de que esta depende, razão pela qual se verifica uma violação do disposto no art.º 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. E fixando a decisão instrutória o objeto do processo, a falta de descrição de todas as circunstâncias de que depende a responsabilização penal da pessoa coletiva não poderá ser colmatada na fase subsequente, de julgamento, uma vez que importaria uma alteração substancial dos factos (cf. art.º 359.º, do Código de Processo Penal).
Uma vez que a matéria de facto descrita na decisão de pronúncia não permite a responsabilização criminal da sociedade, impõe-se a sua revogação e a substituição por outra que não pronuncie a arguida.
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar a decisão instrutória e substituí-la por outra que não pronuncie a sociedade arguida.
Sem custas.
Porto, 24 de abril de 2024
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Paula Natércia Rocha
Paula Guerreiro
Maria Luísa Arantes