I - Se o contrato de prestação de serviços não contém clausulado de onde resulte uma previsão para a possibilidade de revogação/desistência do acordado na situação concreta, deve recorrer-se ao disposto nas regras do contrato de mandato.
II - A revogação unilateral do contrato de prestação de serviços não tem efeito retroativo.
III - Se o cliente já tinha pago o serviço constante do contrato o qual foi, entretanto, licitamente revogado por si, acabando por não se realizar esse mesmo serviço, tem direito a ver-lhe restituído o preço adiantado, por força do instituto do enriquecimento sem causa.
João Venade.
Paulo Duarte Teixeira.
Isabel Rebelo Ferreira.
AA, residente na Rua ..., Vivenda ..., Condomínio ..., ..., propôs contra
A..., Lda., com sede na Avenida ... n.º ..., 14º- S. ... e ..., Porto
Ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, pedindo que seja reconhecida a resolução, por si, do contrato celebrado com a Ré e que esta seja condenada a devolver-lhe a quantia paga de 6 150 EUR.
O sustento dos pedidos assenta na desistência atempada do procedimento que contratou com a Ré, que implica a devolução integral do que pagou.
Pede a condenação do Autor como litigante de má-fé em multa e indemnização, de valor não inferior a 500 EUR.
O Autor opôs-se a tal condenação.
Realizou-se audiência de julgamento, sendo proferida sentença a julgar parcialmente procedente a ação, condenando a Ré a devolver ao Autor a quantia de 5900 EUR, absolvendo-o do pedido de condenação como litigante de má-fé.
«I. O presente recurso tem como objeto a matéria de Direito da decisão proferida nos presentes autos que julgou a presente Acão parcialmente procedente e, consequentemente, condeno a R. “A..., Lda.” a pagar ao A. AA a quantia de 5 900 € (cinco mil e novecentos euros).
II. Quanto à matéria de facto, a Recorrente aceita-a na íntegra.
III. Não podendo, no entanto, aceitar aquilo que o douto Tribunal a quo dela retira, conforme demonstrará.
IV. Quanto à matéria de direito, desde logo, relativamente à subsunção do contrato celebrado entre as partes, no âmbito do regime das cláusulas contratuais gerais ao abrigo do facto provado n.º 5,
V. não poderá a aqui Recorrente conformar-se.
VI. Porquanto, com a subsunção do contrato ao regime das cláusulas contratuais gerais, o douto Tribunal a quo decide ao abrigo do art.º 11 n.º 2 do DL 446/85, de 25/10.
VII. Decisão essa que se encontra assente em critérios de equilíbrio da balança contratual, no âmbito dos contratos de adesão – aos quais efetivamente se aplica o regime das cláusulas contratuais gerais.
VIII. No entanto, as partes nunca se pronunciaram sobre a negociação ou não das cláusulas contratuais,
IX. apenas tendo sido transposto para a matéria de facto que:
«5 – Nessa ocasião, o A. apôs a sua assinatura na frente e no verso, depois das “Condições Gerais” aí descritas, do documento junto à contestação sob o nº 2, denominado “Formulário de Adesão”, que lhe foi entregue pela funcionária da R. que então o atendeu.» e que
«10 - A funcionária que atendeu o A. no referido dia 23-6-2022 entregou-lhe o aludido “Formulário de Adesão”, tendo-lhe concedido o tempo que este pretendesse para o ler antes do assinar.
11 – Aquando da entrega do “Formulário de Adesão”, a funcionária que atendeu o R. não lhe falou sobre as condições do contrato, designadamente quanto à sua resolução ou quanto à possibilidade de devolução das quantias que viessem a ser pagas em caso de desistência.»
X. Factos dos quais não se retira que as partes nunca negociaram as cláusulas contratuais, mas sim que naquele exato momento as cláusulas não foram negociadas - o que não implica que não tenham sido previamente negociadas pelas partes.
XI. Pelo que nunca o contrato em crivo deveria ser subsumido ao regime das cláusulas contratuais gerais, sem antes, as partes serem ouvidas em relação ao facto da negociação ou não do mesmo, facto que deverá ser transposto para a matéria de facto,
XII. e sem o qual a decisão se monstra manifestamente infundada, quer por falta de justificação, quer por excesso de pronúncia,
XIII. evidenciando-se evidente error in procedendo, nos termos e para os efeitos do art.º 615 n.º1 b) e d) do C.C.
XIV. sobre isso, o Ac. do S.T.J. (Proc. 05S2137) datado de 29-11-2005.
XV. Assim, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 615.º n.º1 b) e d) do C.P.C. e, ainda, do artigo 1.º do DL 446/85, de 25/10, preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido de que não há prova suficiente que permita a aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais,
XVI. e de que as cláusulas do contrato não deverão ser entendidas em favorecimento do «Aderente» - vide art.º 11 n.º 2 DL 446/85, de 25/10.
XVII. Mas antes entendido que o teor do clausulado contratual é claro o suficiente no sentido de que qualquer modificação ou resolução contratual efetuada com menos de 30 dias de antecedência da intervenção médico-cirúrgica resulta na obrigação do pagamento do preço integral da mesma.
XVIII. Pelo exposto, ao decidir como decidiu – i. e., dando tais factos, indemonstrados que foram, não provados e cuja prova incumbia aos Recorridos, como «factos» relevantes à decisão da causa – o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 405.º, 1156.º e seguintes, e ainda 342.º n.º 2, todos do CC, o artigo 615.º n.º 1 b) e d) do C.P.C., e ainda o artigo 1.º do DL 446/85, de 25/10, preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido não aplicar o regime das clausulas contratuais gerais, e interpretar corretamente o texto contratual.».
Pede assim que se declare a sentença nula, substituindo-se por outra que que absolva a Ré do pedido.
. nulidade da decisão;
. determinar se o Autor tem direito a reaver o valor do preço que pagou pela intervenção contratada mas não realizada.
2.1). De facto.
Resultaram provados os seguintes factos:
«1 – No dia 23-6-2022, o A. deslocou-se às instalações da R. sitas em Lisboa, depois de ter solicitado informações no “site” da R. e na sequência de contacto telefónico por esta ulteriormente realizado.
2 – Nesse dia, nas instalações da R., o A. acordou com a R. a realização de um transplante capilar.
3 – Acordaram ainda A. e R. que aquele pagaria a esta a quantia de 5 900 € pela realização do procedimento de transplante capilar, bem como 250 € relativos à reserva do bloco onde tal procedimento seria realizado e 35 € para análises clínicas.
4 – Nessa ocasião, o procedimento de transplante ficou marcado para o dia 27-6-2022.
5 – Nessa ocasião, o A. apôs a sua assinatura na frente e no verso, depois das “Condições Gerais” aí descritas, do documento junto à contestação sob o nº 2, denominado “Formulário de Adesão”, que lhe foi entregue pela funcionária da R. que então o atendeu.
6 – Consta da cláusula 9ª das “Condições Gerais” do referido “Formulário de Adesão” o seguinte:
“Em caso de desistência por parte do paciente, perderá o valor da reserva do bloco operatório, que é estipulado como sinal e início do pagamento do preço do procedimento”
7 - Consta da cláusula 10ª das “Condições Gerais” do referido “Formulário de Adesão” o seguinte:
“Em caso de desistência ou alteração da data marcada por parte do paciente, em qualquer momento a partir do 15º dia a contar da data de celebração do contrato mas anterior a uma antecedência de 30 (trinta) dias relativamente à data marcada para o procedimento médico-cirúrgico e, para além do disposto no ponto anterior, haverá lugar ao pagamento do valor correspondente a 50% do valor acordado para o procedimento.
Ocorrendo a desistência ou alteração da data marcada em momento inferior a uma antecedência de 30 dias relativamente à data marcada para o procedimento médico-cirúrgico, haverá lugar ao pagamento do valor correspondente à integralidade do valor acordado para o procedimento.”
8 - Consta da cláusula 11ª das “Condições Gerais” do referido “Formulário de Adesão” o seguinte: “O pagamento do procedimento será efectuado até 15 dias antes do mesmo (…).”
9 – Consta da parte final das “Condições Gerais” que “O Paciente declara expressamente que tomou conhecimento, concorda e aceita o conteúdo do presente documento e dos documentos que lhe estão anexos, que serão por si assinados ou rubricados.
10 – A funcionária que atendeu o A. no referido dia 23-6-2022 entregou-lhe o aludido “Formulário de Adesão”, tendo-lhe concedido o tempo que este pretendesse para o ler antes de o assinar.
11 – Aquando da entrega do “Formulário de Adesão”, a funcionária que atendeu o R. não lhe falou sobre as condições do contrato, designadamente quanto à sua resolução ou quanto à possibilidade de devolução das quantias que viessem a ser pagas em caso de desistência.
12 – Nesse dia 23-6-2022, o A. realizou as análises.
13 – No dia 23-6-2022, o A. entregou à R., através de pagamento em Multibanco, a quantia de 285 €, relativa à reserva do bloco e às análises clinicas.
14 – No dia 24-6-2022, o A. entregou à R., através de transferência bancaria, a quantia de 5900 €, com vista ao pagamento do procedimento de transplante.
15 - Em 26-6-2022, o A. enviou um “e-mail” à R., junto como doc. 4 à petição, informando-a que, por motivos profissionais, teria que desmarcar o procedimento agendado para o dia 27-6-2022.
16 – Após, tendo o A. chegado à conclusão que não pretendia realizar o transplante em causa, por não se sentir confortável com o mesmo, comunicou à R., por “e-mail” de 5-7-2022, junto como doc. nº 5 à petição, que pretendia a “anulação” e o “cancelamento” do procedimento de transplante capilar, mais solicitando o ressarcimento do valor de 6 150 € por si entregue.
17 – A R. rejeitou o pedido de devolução do pagamento, disponibilizando-se para a proceder a novo agendamento do transplante.
18 – Por carta de 24-10-2022, junta como doc. 6 à petição, a Ilustre Mandatária do A. solicitou à R. a devolução dos referidos 6150 €..
E resultou não provado:
«1 – Quando assinou o “formulário de Adesão”, o A. ficou convicto que não tinha celebrado qualquer contrato.».
*
2.2). Do mérito do recurso.
A). Da nulidade da decisão.
A recorrente alega que a sentença é nula por força do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do C. P. C. por se ter aplicado o regime legal das cláusulas contratuais gerais (Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10) sem antes as partes serem ouvidas em relação ao facto da negociação ou não do mesmo, facto (negociação) que deveria ser transposto para a matéria de facto.
O referido artigo 615.º, nas alíneas em causa, dispõe que a sentença é nula quando:
«b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;».
Quanto à primeira situação, é patente que a sentença especifica os fundamentos de facto e de direito da decisão, pelo que, não ocorrendo a absoluta falta dessa fundamentação, não ocorre a apontada nulidade.
No que se refere à segunda situação, tal como o juiz do tribunal recorrido mencionou ao pronunciar-se sobre a nulidade, o tribunal não está vinculado à apreciação jurídica que as partes trazem aos autos; pode, com base nos mesmos factos, atingir uma outra solução jurídica. E aqui, tudo dependerá de aferir se se trata de uma solução previsível para as partes (no mesmo tipo de contrato ou em contrato similar) ou se, ao invés, se partiu para uma qualificação que pode surpreender as partes, o que implicar que se tenham de ouvir antecipadamente as mesmas para se evitar a denominada decisão surpresa.
No caso concreto, o tribunal, com base nos factos provados, entendeu que se estava perante um contrato de adesão e dessa conclusão partiu para outra: a interpretação de uma cláusula contratual deveria ser feita ao abrigo do regime daquelas mesmas cláusulas.
Aqui, à partida, não vislumbramos que se tivesse de ouvir previamente as partes pois está em causa a regra de interpretação de uma cláusula do mesmo contrato, não se determinando qualquer outro tipo de consequência ao que foi acordado – por exemplo, da aplicação do regime previsto no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10, não se conclui que a cláusula é proibida ou que não foi comunicada -; ou seja, apenas se buscou um fator de auxílio de interpretação de uma cláusula, interpretação essa que sempre teria de ser realizada.
Outra questão é saber se dos factos se pode retirar que não houve negociação prévia sobre o clausulado e assim se pode concluir que se está perante um quadro negocial padronizado que se encaixa naquele regime legal; mas esta questão irá versar sobre o julgamento da ação, aferindo se os factos permitem essa conclusão, não se tratando de um excesso de pronúncia.
Por outro lado, toda esta questão de aplicação do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10 acabará por se tornar irrelevante pois, na nossa visão, não é necessário recorrer ao mesmo para se interpretar a cláusula 10.ª que é o centro da discórdia entre as partes.
Improcede assim esta argumentação.
Atendendo ao que resulta provado, temos que foi celebrado um acordo entre as partes através do qual a Ré se obrigou realizar um procedimento de transplante capilar ao Autor.
Não estando em causa um contrato de prestação de serviços nominado (empreitada, mandato…), tal como mencionado pelo tribunal recorrido, as partes celebraram entre si um contrato de prestação de serviços inominado, nos termos do artigo 1154.º, do C. C. (contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição).
Ao mesmo aplicam-se as regras constantes do próprio contrato e, na sua falta, o que resultar da aplicação do regime do contrato de mandato – artigo 1157.º, do C. C. (as disposições sobre o mandato são extensivas, com as necessárias adaptações, às modalidades do contrato de prestação de serviço que a lei não regule especialmente).
A única questão que divide as partes atém-se a saber se, por força do clausulado no contrato, o preço já pago pelo Autor/recorrido à Ré/recorrente para esta realizar o implante capilar tem de ser devolvido àquele já que o mesmo, primeiro pediu para desmarcar a data da intervenção e depois desistiu da mesma.
Vejamos então.
O contrato foi celebrado no dia 23/06/2022 – factos 1 e 2 -.
A intervenção foi marcada para o dia 27/06/2022 (quatro dias depois da celebração do contrato) – facto 4 -.
Em 26/06/2022 (três dias depois da celebração do contrato), o Autor/recorrido comunica à Ré/recorrente que não vai poder estar presente no dia 27/06/2022, dia marcado para a realização da intervenção – facto 15 -.
Em 05/07/2022 (doze dias depois da celebração do contrato), por não querer realizar o transplante capilar, comunicou à Ré/recorrente por mail, que pretendia a anulação e o cancelamento do mesmo procedimento, solicitando o ressarcimento do valor de 6 150 EUR por si entregue – facto 16 -.
Temos assim que a intervenção foi marcada para quatro dias depois da celebração do contrato e que o Autor/recorrente, numa primeira vez (três dias depois da celebração do contrato), pediu a desmarcação dessa data e, numa segunda vez (doze dias depois da celebração do contrato), comunicou que não pretendia realizar a intervenção.
O contrato tem regras próprias para as situações de alteração de data e desistência, a saber:
Na cláusula 9.ª consta que em caso de desistência por parte do paciente, perderá o valor da reserva do bloco operatório, que é estipulado como sinal e início do pagamento do preço do procedimento.
Na cláusula 10.ª menciona-se que:
«em caso de desistência ou alteração da data marcada por parte do paciente, em qualquer momento a partir do 15º dia a contar da data de celebração do contrato mas anterior a uma antecedência de 30 (trinta) dias relativamente à data marcada para o procedimento médico-cirúrgico e, para além do disposto no ponto anterior, haverá lugar ao pagamento do valor correspondente a 50% do valor acordado para o procedimento.
Ocorrendo a desistência ou alteração da data marcada em momento inferior a uma antecedência de 30 dias relativamente à data marcada para o procedimento médico-cirúrgico, haverá lugar ao pagamento do valor correspondente à integralidade do valor acordado para o procedimento.».
Por fim, conforme cláusula 11.ª, o pagamento do procedimento será efetuado até 15 dias antes do mesmo (…).» - factos 7 e 8 -.
Do clausulado, pensamos que se pode concluir que:
. se a alteração de data ou a desistência da intervenção for efetuada a partir do 15.º dia depois da celebração do contrato mas antes de 30 dias da data da intervenção, o paciente tem de pagar 50% do preço.
Ou seja, se o paciente quiser mudar a data da intervenção depois de 15 dias da celebração do contrato mas ainda faltarem mais de 30 dias para a sua realização, tem então, desde logo, de pagar metade do preço. E dizemos desde logo pois só teria de pagar o preço, no máximo, no 15.º dia anterior à intervenção. Há aqui uma antecipação de pagamento de metade do preço.
. se a alteração da data ou a desistência da intervenção ocorre a menos de 30 dias da sua realização, então o paciente tem de pagar todo o preço (ali, na alteração, dependendo se se está antes ou depois do 15.º dia antes da intervenção, pode haver uma antecipação do pagamento ou apenas a determinação de que a referência para a data de pagamento acaba por ser a primeira data e não a que resulta da remarcação; aqui, na desistência, porventura como sanção para uma tardia desistência, a clínica entende que deve cobrar todo o preço da intervenção).
Ora, para nós, a situação dos autos não encontra definição através destas regras contratuais pois a intervenção foi marcada para quatro dias depois da celebração do contrato; essa dilação impede toda a aplicação destas regras pois:
. não há prazo prévio a 15 dias depois da celebração do contrato (por exemplo, no 5.º dia depois do contrato ser celebrado) que permita ao cliente desistir livremente do acordado. Na verdade, se depois do 15.º dia da celebração do contrato teria o cliente desistente de pagar 50% do preço, então é porque antes não teria de pagar qualquer valor (concordamos assim com esta análise efetuada pelo tribunal recorrido);
. nem há possibilidade de desistir (ou pedir alteração de data) antes do 30.º dia anterior à realização da intervenção, o que permitiria ou nada pagar, se o fizesse antes de se perfazerem 15 dias depois da celebração do contrato ou pagar apenas metade do preço se o fizesse depois desse 15.º dia.
Ao estipular-se que o preço deve ser pago até ao 15.º dias anterior à realização da intervenção, é porque se pressupõe que pelo menos essa dilação vai existir entre a celebração do contrato e a realização da intervenção; de outro modo, o pagamento acabaria sempre por ser extemporâneo – no caso concreto, o pagamento foi efetuado no 3.º dia anterior (facto 14), muito para além do 15.º anterior à data marcada para o procedimento -.
Mas, aceitando as partes o pagamento neste último circunstancialismo, prescindindo o cliente e a prestadora do serviço, respetivamente, de um prazo mais alargado para pagar e para receber o preço, inexiste qualquer entrave à manutenção do contrato pois houve uma aceitação recíproca nesse sentido.
Mas aceitar que se pague depois da data que se prevê no contrato não significa que se tenha aceite que, nesse caso, diferente do expressamente previsto, se aplique uma regra que não visou esta situação. Na realidade, apesar de o preço estar pago, o certo é que, ao celebrar-se o contrato com aquela diferença temporal em relação ao procedimento, não encontra aplicação o previsto na cláusula 10.ª que tem como pressuposto que há mais de 30 dias de diferença entre a celebração do contrato e a realização do procedimento.
As partes, nomeadamente a Ré/recorrente, não previram as consequências para o cliente pedir a alteração de data do procedimento quando entre este e a celebração do contrato decorreram menos de 30 dias. O que previram foi um graduar de sanções consoante o cliente atua antes do 30.º dia ou atua depois desse prévio 30.º dia; não se prevê o caso em que o cliente não tem possibilidade de desmarcar ou desistir antes do indicado 30.º dia.
E daí que nem é caso de o cliente/autor poder, pelo teor do contrato, desistir sem consequências por ser antes do 15.º dia após a celebração do contrato pois a intervenção marcada surgia a menos de 30 dias nem de a prestadora/Ré exigir, pelo mesmo teor, o pagamento da totalidade do preço por faltarem menos de 30 dias para a realização da intervenção pois tal teria de se reportar a uma situação em que essa dilação existia, o que não foi o caso.
Não tendo sido acordada entre as partes o que sucederia se, numa marcação de uma intervenção a ocorrer em quatro dias após a celebração do contrato (ou em qualquer outra dilação que não se encaixe nos parâmetros do acordado), há então que recorrer às regras gerais, previstas no contrato de mandato, como acima referimos. E nestas prevê-se, no artigo 1170.º, do C. C., que:
«1. O mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação.
2. Se, porém, o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.».
Deste modo, o contrato será livremente revogável por qualquer das partes a não ser que o contrato também tenha sido celebrado no interesse do mandatário/Ré clínica ou de terceiro. Pensamos que esta revogação se integra no conceito usado no contrato de desistência, ou seja, a parte pretende, sem ter que o fundamentar, cessar os efeitos do contrato (é uma figura muito semelhante à denúncia unilateral – veja-se Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, II, 3.ª, página 730, o mencionado e o quadro junto em Da resolução do contrato, Menezes Cordeiro, página 451, Ordem dos Advogados, https://portal.oa.pt/media/132086/antonio-menezes-cordeiro.pdf -).
Este interesse do mandatário ou de terceiro não se radica no mero direito em ser retribuído pelo serviço pois não há equivalência entre cercear-se o direito a uma livre revogação e a proteção do interesse patrimonial direto na celebração do contrato; tal interesse radicará mais em outra relação contratual que una o mandatário/prestador de serviço ao mandante/cliente ou a terceiro e que, com a revogação do mandato/prestação de serviço possa trazer-lhe algum tipo de prejuízo (Antunes Varela, na ob. Citada, páginas 730 e 731 e, a título de mero exemplo, Ac. da R. L. de 06/02/2024, processo n.º 2812/19.2T8OER.L1-7, www.dgsi.pt).
Inexiste esse outro interesse no caso pois a relação é única e bilateral, ou seja, só as duas estas partes celebraram o contrato, não decorrendo dos autos que exista algum outro interesse da Ré/recorrente/mandatária para além de obter a execução deste contrato.
Assim, o Autor podia revogar/desistir livremente da celebração do contratado; é certo que nos termos do artigo 1172.º, do C. C. pode haver lugar a indemnização ao mandatário/Ré, a saber:
«A parte que revogar o contrato deve indemnizar a outra do prejuízo que esta sofrer:
a) Se assim tiver sido convencionado;
c) Se a revogação proceder do mandante e versar sobre mandato oneroso, sempre que o mandato tenha sido conferido por certo tempo ou para determinado assunto, ou que o mandante o revogue sem a antecedência conveniente;» (são estas as duas únicas situações que, para nós, têm de ser analisadas no caso concreto).
Ora, como já dissemos, esta específica situação de desistência/revogação do contrato (com esta dilação temporal) não foi prevista pelas partes pelo que não se pode analisar se os valores mencionados no contrato são ou não estipulações de compensações por prejuízo previamente calculado e aplicar os mesmos in casu [(afasta-se assim a citada alínea a)].
Quanto à alínea b), poderia estar em causa uma desistência sem a devida antecedência mas, seja porque a própria antecedência da intervenção em relação ao contrato já era diminuta seja porque não constam dos factos prejuízos sofridos pela Ré/recorrente, não vemos que valor se possa impor pelo Autor/cliente a título de indemnização por tal tipo de danos.
Deste modo, verifica-se que não é necessário qualquer recurso a critérios de interpretação específicos do regime das cláusulas contratuais gerais (Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10) mormente o previsto no artigo 11.º[1] para aferir se o contrato podia ou não ser livremente denunciado pois, repete-se, as cláusulas constantes do contrato não são aplicáveis à situação em análise.
Desta desistência/revogação unilateral, o tribunal recorrido retirou desde logo que havia a obrigação de pagamento do valor recebido pela Ré/recorrente ao Autor/recorrido, aqui também cliente, ainda que sem mencionar expressamente a base legal. Ora, a revogação unilateral de um contrato não opera retroativamente (ex tunc), como sucede com a resolução de um contrato (artigo 433.º, do C. C.). Os efeitos produzem-se para o futuro (ex nunc), ou seja, as partes consideram-se desvinculadas da prática de atos futuros (vejam-se os dois Autores acima citados, no mesmo local).
No caso concreto, a Ré/recorrente ficou desvinculada de realizar a intervenção que tinha sido acordada e que ainda não tinha data reagendada; e o Autor, caso não tivesse pago o preço da intervenção, também ficaria desvinculado a esse pagamento, sem prejuízo de lhe ser imputado algum valor indemnizatório que servisse para ressarcir a Ré.
Sucede que o preço da intervenção já tinha sido pago antes de se efetivar a denúncia do contrato pelo que não será, na nossa visão, pelo regime decorrente da mesma que o Autor terá direito a receber o valor que pagou por uma atuação que não se vai verificar.
Para nós, não havendo outro instituto jurídico que permita reaver aquele valor, o Autor só tem direito a ver-lhe restituído o valor do preço que pagou (os 5 900 EUR fixados na decisão) ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa. O artigo 473.º, do C. C. dispõe que:
1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou. – nosso realce -.
À Ré foi entregue pelo Autor um valor correspondente ao preço de uma intervenção cirúrgica; quando ocorreu essa entrega, havia causa para a mesma – a referida intervenção acordada entre as partes/contrato bilateral -; mas, depois da revogação, licitamente efetuada, essa causa deixou de existir pois a Ré já não tem de efetuar o procedimento por o Autor também já não o desejar. Se a Ré, sem efetuar a intervenção, fizesse sua aquela quantia, enriquecia, agora, à custa do Autor que não viu prestado na sua pessoa o correspondente serviço, assim empobrecendo.[2]
Não há qualquer prova de que o recorrido tenha atuado com má-fé: arrependeu-se da sua decisão e manifestou a vontade de desistir do acordado. Em virtude da pouca dilação temporal acordada com a recorrente, e aceite por esta, a sua desistência pôde considerar-se válida. Não resulta assim afastado o instituto do enriquecimento sem causa ao abrigo do disposto no artigo 475.º, do C. C..
Deste modo, para evitar esse enriquecimento injusto, a Ré tem de restituir ao Autora o valor de 5900 EUR que tinha recebido, restituição essa que será apenas clarificada na decisão de modo a que resulte essa natureza, advinda do instituto do enriquecimento sem causa.
Assim, conclui-se que a decisão de restituição do preço pago pelo Autor proferida pelo tribunal recorrido (que optou por uma condenação a pagar) se deve manter, improcedendo deste modo o recurso.
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso intentado pela Ré e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida, clarificando-se que a Ré é condenada a restituir ao Autor os mencionados 5900 EUR.
Custas do recurso pela recorrente.
Registe e notifique.
Porto, 2024/04/18.
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
Isabel Ferreira
____________
[1] (Cláusulas ambíguas)
1 - As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real.
2 - Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.
[2]No Ac. do S.T.J. de 22/01/2022, processo n.º 15184/15.5T8LSB.L2.S1, www.dgsi.pt, considerou-se, na situação aí em análise, não ser necessário analisar se os efeitos da revogação eram retroativos pois: 44. Os termos da alternativa são dois, e só dois: ou bem que a revogação tem efeito retroactivo e o enriquecido fica obrigado a restituir o que tiver sido prestado por virtude de uma causa que não existia, ou bem que a revogação não tem efeito retroactivo e o enriquecido fica obrigado a restituir o que tiver sido prestado por virtude de uma causa que deixou de existir.