I - A reconvenção é admissível em processo laboral: (i) quando o pedido do réu emerge do facto jurídico (causa de pedir) que serve de fundamento à ação; (ii) quando o pedido do réu está relacionado com a ação por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência; (iii) quando o réu invoca a compensação de créditos (artigos 30.º, n.º 1 do CPT, e 126.º, alíneas n) e o), da Lei 62/2013 – pretérito artigo 85.º, alíneas o) e p), da Lei n.º 3/99).
II- Quando o réu invoca a compensação de créditos, a reconvenção é admissível sem necessidade de se verificarem os demais requisitos, até ao limite do valor do crédito do autor que for reconhecido pelo réu.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Valongo - Juiz 2 Tribunal:
Autora: AA
Ré: A..., Lda.
_______
Nélson Fernandes (relator)
Eugénia Pedro
Teresa Sá Lopes
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
1. AA propôs ação declarativa, de processo comum, contra A..., Lda., peticionando o seguinte:
“a) Que seja fixado o términus do contrato de trabalho em 04 de Agosto de 2023;
b) A Ré ser condenada no pagamento dos salários do mês de Julho e Agosto de 2023, a fixar por este douto Tribunal;
c) A Ré ser condenada no pagamento da quantia de 2.454,54€ referente ao pagamento do prémio de produtividade do ano de 2022. a ser liquidado ao longo do ano de 2023.
d) A Ré ser condenada no pagamento da quantia de 5.191,16€ referente ao pagamento das férias vencidas e não gozadas e ao valor proporcional ao tempo trabalhado, das férias e subsídios de Férias e de Natal;
e) A Ré ser condenada no pagamento da quantia de 6.480,00€ referente a diferenças salariais de todo o ano de 2022;
f) A Ré ser condenada no pagamento da quantia de 2.272,0% referente a diferenças salariais dos primeiros seis meses do ano de 2023;
g) E ainda, ser a Ré condenada em custas, procuradoria condigna e tudo o mais que for legal.”
Frustrada a conciliação em sede de audiência de partes, depois de notificada para o efeito: apresentou a Ré contestação, na qual concluiu que deve ser considerada improcedente a ação, sendo absolvida do pedido de pagamento das diferenças salariais nos anos de 2022 e 2023, nomeadamente, os pedidos elencados nas alíneas c), e), f); deduziu ainda reconvenção, peticionando que, sendo julgado essa procedente, “ser compensado o crédito da A. (designadamente retribuições e componentes remuneratórias de julho e agosto de 2023, férias vencidas em 1 de janeiro de 2023 e não gozadas (9 dias), bem como, os direitos emergentes com a cessação do contrato de trabalho) com o valor que a mesma deve à R. no que respeita ao montante aqui reclamado de € 8.945,00.”
Respondeu a Autora, sustentando, no que aqui importa, a inadmissibilidade da reconvenção deduzida.
2. Em despacho prévio ao saneador stricto sensu, foi proferida decisão com o teor seguinte:
“Pretendendo a ré operar a compensação com o crédito da autora, ao abrigo do disposto no artigo 30.º, n.º 1 do CPT, admito a reconvenção deduzida.”
O valor da causa foi fixado, invocando-se o disposto nos artigos 297.º, n.º 1, 299.º, n.º 1 e 2 e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 49.º, n.º 2 do CPT”, em €19.973,64.
2.1. Apresentou a Autora requerimento de interposição de recurso, finalizando as alegações com as conclusões seguintes:
a) O Tribunal a quo andou mal, quando admitiu o pedido reconvencional formulado pela Ré.
b) O Tribunal a quo é incompetente para apreciar do pedido reconvencional da entidade patronal (Ré), assente em factos determinantes de responsabilidade criminal do trabalhador que não tem uma relação de conexão com questões emergentes da relação de trabalho, que serviram de base à presente acção.
c) O n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho, com a remissão para a alínea o) do citado artigo 126.º, prevê três situações de admissibilidade da reconvenção:
(i) quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção;
(ii) quando o pedido reconvencional está relacionado com o pedido do autor por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência;
(iii) quando o réu invoca a compensação de créditos.
d) No caso em apreço, a A. vem peticionar os seus créditos laborais, após ter denunciado unilateralmente o seu vínculo laboral, com aviso prévio, denuncia que foi devidamente aceite pela R., que não teve origem a qualquer processo disciplinar, e que deu origem à interposição da presente acção de processo comum emergente de contrato de trabalho.
e) Já quanto ao pedido reconvencional, a causa de pedir assenta num suposto apropriamento indevido de quantias, ou seja, como referido pela R. no seu artigo 31º da contestação, “que configuram a prática de crimes, designadamente, do crime de abuso de confiança…”, e conforme posteriormente referido no requerimento de 30 de Janeiro de 2024.
f) O pedido reconvencional nada tem a ver com o fundamento da acção, os créditos laborais, emergentes da denúncia do contrato, os pedidos - da acção e da reconvenção – nem sequer têm um ponto comum, que seria a celebração de um contrato de trabalho, e a sua posterior denúncia, o fundamento da Reconvenção não é a celebração do contrato de trabalho mas antes um suposto ilícito criminal da A., que nem devidamente provado se encontra.
g) Todo o exposto, basta para que se possa concluir que o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, como se exige na primeira parte do n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho.
h) Nestes termos, a reconvenção, tal como se encontra formulada pela ré, não é admissível face ao disposto no n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho, conjugado com o estipulado nas alíneas o) e p) do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
i) Por outro lado, o pedido reconvencional enquadra-se na suposta responsabilidade criminal, quando a R. dispõe dos meios próprios para fazer valer a sua pretensão, não existindo qualquer sentença condenatória da A. no que a R. alega.
j) Daqui resulta manifesto que o pedido reconvencional não se funda em nenhuma dessas causas de pedir concretas que constituem o cerne da presente acção.
k) Funda-se antes em causa de pedir autónoma, relacionada com alegados danos causados pela A., ou seja, não emerge, de forma alguma, de facto jurídico que serve de fundamento à acção, veja-se nesse sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de Maio de 2016, Processo nº 1056/15.7T8CLD-A.C1, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Outubro de 2008 (Albertina Pereira – Processo nº 0844404)
l) Ao invés o pedido reconvencional representa um aproveitamento da Ré para deduzir um pedido autónomo baseado em factos jurídicos diversos e desconectados com os fundamentos da acção, sem qualquer ligação com o reclamado pela autora.
m) Relativamente ao segundo segmento da norma em causa (art. 30.º n.º 1 do CPT) remete para a alínea o) do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013 e do qual resulta que as relações de conexão, para que operem, devem estabelecer-se entre as questões reconvencionais e a acção, ou seja, o pedido reconvencional tem de estar relacionado com o pedido do autor por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência.
n) Nos presentes autos e tendo presente as considerações expostas, será de concluir, que não existe qualquer relação de conexão objectiva entre os pedidos da autora e o pedido da ré, pois para tal não é suficiente a mera existência de um contrato de trabalho entre as partes, sendo certo que o pedido indemnização alicerçado na prática de suposto ilícito criminal pela Autora para com o empregador, não tem qualquer ligação com os pedidos formulados pela autora.
o) Não existe qualquer complementaridade ou acessoriedade entre os pedidos formulados na acção e o pedido reconvencional, nada tem a ver com o fundamento da acção.
p) Pelo que andou mal o Tribunal a quo quando admitiu o pedido reconvencional pela Ré, já que os Tribunais do Trabalho são materialmente incompetentes para apreciar um pedido reconvencional da entidade patronal, assente em factos determinantes de responsabilidade criminal do trabalhador que não tenham uma relação de conexão com questões emergentes da relação de trabalho, por conjugação das alíneas n) e o) do nº 1 do Artigo 126º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, veja-se nesse sentido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 01de Outubro de 2007 (Paula Leal de Carvalho – Processo nº 0742027).”
Conclui que o recurso deve proceder, não sendo admitido o pedido Reconvencional deduzido pela Ré.
2.1.1. Contra-alegou a Ré, fazendo constar no final as seguintes conclusões:
“I. A reconvenção é admissível em processo laboral quando o réu invoca a compensação de créditos.
II. O art.º 126.º n. 1 da Lei da Organização do Sistema de Justiça estabelece que “compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível: o) Das questões reconvencionais que com a acção tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão”.
III. Como mostram os documentos juntos aos autos e, que não deixam margem para dúvidas, a A. constituiu um produto financeiro, designado, Fidelidade Savings, em seu nome, com o dinheiro da R. no valor de €8.945, 00 e não procedeu à entrega desses montantes à R. tendo transferido tal valor para uma conta bancária que lhe pertence.
IV. A R., Recorrida, apenas não pagou as retribuições de julho, agosto e os direitos resultantes da cessação do contrato de trabalho devido aos valores que a A., Recorrente, se apropriou, ilegitimamente, no exercício das suas funções.
V. A R., Recorrida, circunscreveu o seu pedido reconvencional ao valor do produto financeiro criado em nome da A. e transferido para a sua conta bancária.
VI. A apropriação por parte da A. de dinheiro da R. aconteceu na pendência da relação laboral, no local de trabalho, através das funções que desempenhava e na sequência dos poderes que lhe foram dados enquanto trabalhadora.
VII. O valor da compensação que invocou destina-se a compensar o crédito da A. que a R. reconheceu.
VIII.A R. considera que o seu crédito deverá ser compensado pelo crédito da A, designadamente quanto às retribuições e componentes remuneratórias de julho e agosto de 2023, férias vencidas em 1 de janeiro de 2023 e não gozadas (9 dias), bem como, os direitos emergentes com a cessação do contrato de trabalho), respeitando-se assim, o limite do valor do crédito da A. que é reconhecido pela R.
IX. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 12-01-2022 refere que é admissível reconvenção da ré empregadora para exercer compensação de créditos de que é titular contra os autores trabalhadores com créditos por estes peticionados na acção (art.ºs 30.º, n.º 1 do CPT e 126.º n. 1, alínea o) da LOSJ), na situação em o trabalhador teve acesso aos meios que lhe permitiram apropriar-se ilegitimamente de quantias.
X. tendo a R. invocado expressamente a compensação, nem sequer tem de demonstrar conexão dos pedidos, existindo ampla jurisprudência nesse sentido.
XI. Os "créditos" a invocar para sustentar uma compensação de créditos, não têm de ser créditos indiscutíveis ou já definitivamente reconhecidos judicialmente perecendo a argumentação da A. aqui Recorrente, quando alega que o pedido se enquadra em responsabilidade criminal e que ainda não existiu uma sentença condenatória.
XII. No processo laboral e desde que o valor da causa exceda a alçada do tribunal, o que se verifica, a reconvenção é sempre admissível quando o réu pretenda obter a compensação dos créditos por ele reclamados com os créditos reclamados pelo autor.
XIII. O pedido reconvencional emerge da situação laboral, pois conduta alegada pela R. foi enquanto trabalhadora, no exercício das suas funções, no local e horário de funcionamento da entidade empregadora através dos poderes e acessos que tinha enquanto trabalhadora.
XIV. É patente que todos os atos praticados pela R. e da qual emerge o pedido reconvencional se encontram intimamente ligados à relação laboral existente entre as partes, designadamente à violação dos deveres da A. enquanto trabalhadora, pelo que, esta ação sempre seria o momento ideal para que a R. possa ser compensada por tal violação.
XV. Areconvenção foi deduzida discriminadamente, o tribunal é competente para conhecer do pedido reconvencional, há identidade subjetiva das partes, o pedido emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação e o valor da causa excede a alçada do Tribunal.
XVI. Razão pela qual, deverá ser admitido o pedido reconvencional nos exatos termos em que se encontra formulado porque primeiramente peticiona expressamente a compensação de créditos, sem que seja exigido qualquer conexão entre a causa principal e o pedido reconvencional,
XVII. Ainda assim, considera-se que é igualmente uma questão que se encontra intimamente ligada com a questão jurídica / pretensão da A., ou seja, emerge de facto jurídico que serve de fundamento a ação,
XVIII. Concluindo-se que estão preenchidos os requisitos de admissibilidade da reconvenção quer pela via da conexão estabelecida pelo art.º 30.º do CPT, quer por se tratar de caso referido na alínea o) do n.º 1 do artigo 126,º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agasto.
XIX. Pelo que, deverá manter-se o douto despacho recorrido, admitindo-se a reconvenção da R.”
Conclui que se deve confirmar o despacho recorrido, admitindo a reconvenção, , nos exatos termos em que foi formulada.
2.2. O recurso foi admitido em 1.ª instância como apelação, com subida imediata e em separado.
3. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, fazendo constar designadamente o seguinte:
“(…) 6. Salvo melhor opinião, neste caso, o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, factos que constituem a causa de pedir da acção, nos termos do douto despacho recorrido, “que, como vem sendo defendido pela doutrina e jurisprudência, é o facto jurídico concreto e específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão (cfr. artigo 581º, nº 4, do Código de Processo Civil).”
O pedido formulado pela Ré, na verdade, não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, os créditos laborais, emergentes da denúncia do contrato, nem têm sequer uma base comum, que seria a celebração de um contrato de trabalho, e a sua posterior denúncia.
Funda-se, antes, em causa de pedir autónoma, relacionada com alegados danos causados pela A., num suposto ilícito criminal da Autora, nem sequer comprovado, ainda (v. Acs. TRC de 12 de Maio de 2016, Proc. nº 1056/15.7T8CLD-A.C1, e TRP, de 27 de Outubro de 2008, Proc. nº 0844404, citados).
E, como se disse, o pedido reconvencional só poderá assentar em facto jurídico que serve de fundamento à acção e nunca em factos que sirvam, apenas, de suporte à defesa. (…)”
3.1. Respondeu a Apelada, divergindo do referido parecer, citando ainda jurisprudência, para concluir como nas contra-alegações que apresentou.
3.2. Respondeu também a Recorrente, aderindo por sua vez ao parecer emitido, para concluir pela procedência do recurso.
Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do NCPC – aplicável “ex vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, a única questão a decidir passa por saber se a reconvenção deduzida pela Ré é ou não admissível.
A) Os factos a considerar constam da decisão recorrida e do relatório que antes se elaborou.
1. Admissibilidade do pedido reconvencional deduzido
Em sede de recurso, vem a Apelante pugnar pela inadmissibilidade da reconvenção, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, por entender que no caso essa não é admissível.
Apreciemos:
Sob a epígrafe Reconvenção, o artigo 30.º do CPT estipula:
1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 98.º-L, a reconvenção é admissível quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção e nos casos referidos na alínea p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, ou na alínea p) do artigo 118.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, desde que, em qualquer dos casos, o valor da causa exceda a alçada do tribunal.
2 - Não é admissível a reconvenção quando ao pedido do réu corresponda espécie de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor.
Por sua vez, dispunha o artigo 85.º da Lei 3/99, de 13 de Janeiro (Lei da Organização do Sistema Judiciário) – que encontra hoje exata correspondência respetivamente, nas alíneas n) e o) do artigo 126 da Lei n.º 62/2013, que revogou a Lei n.º 3/99:
1-Compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível:
(...)
n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente;
o) Das questões reconvencionais que com a ação tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão; (...).
Ora, face às conclusões da Recorrente, passando a solução da questão colocada à apreciação desta Relação, necessária e fundamentalmente, pela interpretação das normas conjugadas dos citados artigos 30.º, n.º 1, do CPT, e alíneas n) e o) do artigo 126 da Lei 62/2013, somos assim remetidos para as regras da interpretação da lei, plasmadas no artigo 9.º do Código Civil (CC)[1], enquanto norma fundamental que proporciona uma orientação legislativa para tal tarefa, importando assim fixar, de entre os sentidos possíveis das mencionadas normas, qual é então o respetivo sentido e alcance decisivos, como aponta Manuel de Andrade[2], para o que importará ter presente, desde logo, o elemento gramatical ou textual (a “letra da lei”) – com uma função desde logo negativa, eliminando todos os sentidos que não encontrem qualquer apoio, correspondência ou ressonância no texto –, mas sempre em necessária ligação / correspondência com o elemento lógico – pois que a interpretação gramatical tem de ser obrigatoriamente lógica –, integrado pelos elemento sistemático – que compreende a consideração das demais disposições integram o quadro legislativo em que se insere a norma e, ainda, as disposições que regulem situações paralelas (unidade do sistema jurídico) –, racional ou teleológico – a ratio legis, ou seja, o fim pretendido com a elaboração da norma, a sua razão de ser – e histórico – o contexto em que as normas foram elaboradas, incluindo a sua evolução histórica e as suas fontes, ou seja, as circunstâncias em que essas normas foram elaboradas. Assim, como dito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de maio de 2016 (fixação de jurisprudência), que nesta parte se segue de perto, por apelo aos ensinamentos de Baptista Machado[3], frisando ainda que a interpretação tem também que ser atualista (“tendo… as condições específicas do tempo em que é aplicada”).
Pronunciando-se exatamente sobre a questão que se aprecia – muito embora então a respeito da previsão do artigo 85.º da Lei 3/99, mas que, como antes dito, encontra hoje exata correspondência respetivamente, nas alíneas n) e o) do artigo 126 da Lei n.º 62/2013 –, assim a interpretação das supra citadas normas, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de 22 de Novembro de 2006[4], o seguinte:
“(...) Resulta, assim, das citadas disposições que a reconvenção é admissível: (i) quando o pedido do réu emerge de facto jurídico que serve de fundamento à acção - e não também à defesa, como consta da alínea a) do nº 2 do artº 274º do CPC -; (ii) quando o réu se propõe obter a compensação, (iii) e, ainda, quando entre a acção e a reconvenção intercedam as relações de conexão referidas na citada alínea p) por remissão para alínea o), ou seja, quando o pedido reconvencional está relacionado com o pedido do autor por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência (neste sentido o ac. Do STJ de 3.05.2006, in revista nº 251/06).
Precisemos estes requisitos.
"O facto jurídico que serve de fundamento à acção" é a causa de pedir.
No artº 498º-4 do CPC, o legislador especifica certas causas de pedir: naa acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade especifica que se invoca para obter o efeito pretendido.
Daqui conclui Vaz Serra (in RLJ 109/313):
"Causa de pedir é (...) o facto jurídico concreto ou específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão". Esta concretização ou especificidade destina-se, além do mais, "a impedir que o demandado seja compelido a defender-se de toda e qualquer possível causa de pedir, só tendo de defender-se da concretamente invocada pelo autor..."
E é desse concreto fundamento invocado – processualmente designado por causa de pedir - que o autor faz derivar o direito que se arroga, com vista a obter um determinado efeito jurídico (em que se traduz o pedido). Assim, se o senhorio pretende obter o pagamento da renda, invoca (como causa de pedir) o contrato de arrendamento. Se pretende obter a resolução do contrato (despejo) invoca o fundamento de resolução. Se pretende ser indemnizado (por conduta ilícita do inquilino) invoca o facto (ilícito) gerador do dano. Isto para dizer que, embora todas as situações ocorram no âmbito do mesmo contrato, são diferentes as causas de pedir nas diferentes acções.
Outro laço substantivo que legitima o pedido reconvencional é ter por objecto a compensação de créditos. Neste caso, além de invocar um contracrédito (que satisfaça os requisitos previstos no artº 847º do CC), tem que formular na contestação a declaração de compensação (artº 848º-1 do CC).
A reconvenção é ainda admissível quando haja uma especial conexão entre o pedido reconvencional e a acção (acessoriedade, complementaridade e dependência).
A relação de acessoriedade e a relação de dependência pressupõem que haja um pedido principal (uma relação principal). Tanto o pedido acessório como o dependente estão objectivamente subordinados a esse pedido (principal). A diferença está na intensidade do nexo de subordinação. O pedido dependente não subsiste se desligado da relação principal.
A relação de complementaridade pressupõe que o pedido reconvencional seja um "complemento" do pedido formulado na acção. Não há subordinação, mas interligação. A discussão daquele pedido "completa", toca a relação jurídica (ou relações jurídicas) subjacente(s) à acção. Se estiverem em causa diferentes direitos de créditos - na acção e na reconvenção - é relativamente a tais relações de crédito, objectiva e subjectivamente consideradas, que se tem que aferir se existe a apontada complementaridade (...).” (fim de citação)
No mesmo sentido, apreciando a mesma questão e designadamente a interpretação das aludidas normas, o Acórdão do mesmo Tribunal de 12 de Setembro de 2007[5], em que se pode ler, para além do mais, que “o sentido da expressão «facto jurídico que serve de fundamento à acção» empregue no primeiro segmento do preceito em exame, pelo seu exacto teor literal e pela sua inserção sistemática em capítulo intitulado «Instância», em que é regulada a cumulação sucessiva de pedidos e de causas de pedir (artigo 28.º), só pode ser entendido como referindo-se, precisamente, à causa de pedir, isto é, «ao facto jurídico concreto e específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão» (cf. n.º 4 do artigo 498.º do Código de Processo Civil; também, VAZ SERRA, Revista de Legislação e Jurisprudência, 109.º, p. 313) (...).
E, sobre o segmento da norma que remete para o caso referido na alínea p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99, aí se acrescenta o seguinte:
A remissão supõe uma regulação per relationem a outra regulação: a norma de remissão refere-se a outra ou outras disposições de forma tal que o conteúdo destas deve considerar-se parte integrante da normação que inclui a norma remissiva; o conteúdo do objecto da remissão incorpora-se ou estende a sua aplicabilidade ao âmbito de vigência da norma remissiva.
Como já se referiu, a alínea p) do citado artigo 85.º reporta-se às «questões reconvencionais que com a acção tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão».
Por sua vez, a sobredita alínea anterior, ou seja, a alínea o) do mesmo artigo 85.º, alude às «questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente».
Deste modo, por remissão para a alínea p) do citado artigo 85.º, o antedito artigo 30.º prevê a admissibilidade da reconvenção, quando intercedam as relações de conexão aludidas na alínea o) do mesmo artigo 85.º entre o pedido reconvencional e a acção, e quando o réu invoca a compensação de créditos.
Que relações de conexão estão previstas nas referidas alíneas do artigo 85.º?
Em primeira linha, essas relações de conexão, pelo próprio teor literal da alínea p) do antedito artigo 85.º, devem estabelecer-se entre as enunciadas questões reconvencionais e a acção.
Doutro passo, a história dos preceitos vertidos nas alíneas em apreço revela que as mesmas reproduzem as alíneas o) e p) do artigo 66.º da Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), embora, mais impressivamente, a redacção adoptada na alínea o) daquele artigo 66.º fizesse anteceder cada um dos tipos de conexão pela preposição «por», referindo competir aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria cível, «[d]as questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente».
Assim, o que se extrai do texto das conjugadas alíneas o) e p) do antedito artigo 85.º é que as relações de conexão aí em causa são as que emergem entre as questões reconvencionais e a acção, por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência.
Tudo para concluir que o n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho, com a remissão para a alínea p) do citado artigo 85.º, prevê três situações de admissibilidade da reconvenção: (i) quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção; (ii) quando o pedido reconvencional está relacionado com o pedido do autor por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência; (iii) quando o réu invoca a compensação de créditos.
E não se diga, como faz o recorrente, que o pedido reconvencional deveria ter sido admitido para «não desvirtuar o propósito com que a norma foi criada e por forma a não permitir que dela se prevaleça a ora Recorrida, que, atento o escopo da norma, nunca por ela devia ser protegida em sacrifício do Recorrente».
É que o elemento racional ou teleológico é apenas um dos aspectos a ter em conta na tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal da norma, sendo certo que, em matéria de interpretação das leis, o artigo 9.º do Código Civil comanda que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2) e, além disso, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.º 3).” (fim de citação)
Também esta Secção do Tribunal da Relação do Porto tem afirmado o mesmo regime, podendo ler-se, apenas considerando as pronúncias mais recentes e que foram objeto de publicação:
- No sumário do Acórdão de 27 de novembro de 2023[6]: “I- Em processo laboral comum, a dedução de pedido reconvencional, só é admissível: (i) quando o pedido do réu emerge do facto jurídico (causa de pedir) que serve de fundamento à ação; (ii) quando o pedido do réu está relacionado com a ação por acessoriedade, por complementaridade ou dependência; (iii) quando o réu invoca a compensação de créditos [cfr. artigos 30.º, n.º 1 do CPT e artigo 126.º, alíneas n) e o) da Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto]. (…) IV – Não é admissível reconvenção deduzida pelo empregador, cuja causa de pedir assenta no abandono do trabalho, quando o trabalhador fundamentou a ação na ilicitude do despedimento promovido sem a precedência de procedimento disciplinar, sendo que o empregador não excecionou a compensação de créditos”;
- No Sumário do Acórdão de 23 de janeiro de 2023[7]: “I- Em processo laboral, comum, atento o disposto no art. 30º, nº 1 do CPT e art. 126º, al. o) da Lei nº 62/2013, de 26/08, a dedução de pedido reconvencional, só é admissível, quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, ou quando tenha com o facto jurídico que serve de fundamento à acção uma relação de conexão por acessoriedade, complementaridade ou dependência, salvo no caso de compensação, em que a conexão é dispensada. (…)”;
- No sumário do Acórdão de 3 de outubro de 2022[8]: “(…) III- Em processo laboral a reconvenção, desde que o valor da causa exceda a alçada do tribunal, apenas é possível: i) quando o pedido reconvencional emerge de facto jurídico que sirva de fundameno à acção; ii) quando a questão reconvencional tenha com a acção uma relação de conexão por acessoriedade, complementaridade ou dependência; iii) quando seja pedida a compensação, caso em que é dispensada a referida conexão. (…) VI- A situação referida em iii) tem por objecto os casos em que é, reconvencionalmente (cfr. art. 266º, nº 2, al. c), do CPC/2013), pedida a compensação de créditos, a qual apenas se torna efectiva mediante declaração de uma das partes à outra (art. 848º nº 1, do Cód. Civil)”.
No mesmo sentido, para além de outra, veja-se a jurisprudência citada pela Apelada, a qual se dá por reproduzida, em que se inclui o Acórdão da Relação de Lisboa de 12 de janeiro de 2022[9], em que se fez constar: “(…) Por seu turno, com o pedido reconvencional pretendeu a apelante ré exercer a compensação, pelo que não restam dúvidas de que lhe assiste razão.[2] Aliás, deve dizer-se que terá sido mesmo por lapso da Mm.ª Juiz a quo que não admitiu a reconvenção pois que na fundamentação da sua decisão não questionou a admissibilidade quando se pretender exercer a compensação de créditos, antes deu por suposto que nesse caso a lei nem sequer exige "as relações de conexão referidas na alínea anterior".[3]”; ainda, o Acórdão da Relação de Évora de 02 de outubro de 2018[10], resultando do respetivo sumário: (i) A reconvenção é admissível em qualquer uma destas situações: (…) ii) Quando o réu invoca a compensação de créditos, a reconvenção é admissível sem necessidade de se verificarem os demais requisitos, mas apenas até ao limite do valor do crédito do autor que for reconhecido pelo réu”.
Esclarecendo-se, aliás, que os Arestos indicados nas alegações pela Recorrente o não contrariam – pois que incidiram sobre casos em que não se invocou a compensação –, aqui reafirmamos que acompanhamos integralmente o entendimento afirmado nos citados Acórdãos, no sentido de que resulta das citadas normas aqui aplicáveis que, a par de outros de carácter processual ou adjetivo – referentes à forma do processo e à competência do tribunal –, a admissibilidade da reconvenção em processo laboral, mas sem prejuízo dos casos em que se pretende obter a compensação, está também dependente da verificação de requisitos de natureza substantiva, traduzidos na exigência de uma certa e específica relação de conexão entre o pedido principal e o pedido reconvencional – do que resultam evidenciadas diferenças claras neste âmbito entre o CPC e o CPT, pois que enquanto a alínea a) do n.º 2 do artigo 266.º do CPC (pretérito artigo 274.º) admite a reconvenção “(q)uando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa”, já o citado n.º 1 do artigo 30.º do CPT, diversamente, restringe essa admissibilidade às situações em que o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação. Dito de outro modo, no domínio do processo laboral não é admissível a reconvenção com base no facto jurídico que serve de fundamento à defesa, restrição essa que, segundo Leite Ferreira[11], visa claramente “evitar que o réu, normalmente a entidade patronal, se servisse da acção contra si proposta, em regra, por um trabalhador, para, fora do campo da defesa directa ou propriamente dita, passar a atacar este com uma contra-acção (...)”.
Deste modo, como resulta também, como já dito, das considerações anteriores, a referida relação de conexão, exigida nos demais casos, já não é exigida quanto se pretenda obter a compensação de créditos, como salvaguardado na parte final da alínea o) da norma antes citada – “Das questões reconvencionais que com a ação tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão” –, previsão essa a respeito da qual se escreve no citado Acórdão do Supremo Tribunal de 22 de Novembro de 2006, que se está então perante um outro “laço substantivo que legitima o pedido reconvencional”, que não exige pois a conexão que é exigida na primeira parte da referida alínea, desde que, como se refere também nesse Acórdão, para além de invocar um contracrédito (que satisfaça os requisitos previstos no artigo 847.º do CC), tenha formulado na contestação a declaração de compensação (artº 848º-1 do CC).
Ora, no caso que se aprecia estamos precisamente perante o regime que acabámos de referir, pelo que, salvo o devido respeito, por direta aplicação da previsão da norma mencionada, pretendendo a Ré / aqui Apelada exercer a compensação de créditos, intenção essa que declarou expressamente na contestação (como resulta, para além de outros, desde logo expressamente dos artigos 33.º e 56.º, bem como do pedido formulado a final em B), a reconvenção é, como decidido pelo Tribunal recorrido, admissível.
Deste modo, improcede o presente recurso.
Por decaimento, a responsabilidade pelas custas do recurso impende sobre a Recorrente (artigo 527.º, do CPC).
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Em face das razões expostas, acordam os juízes que integram a Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em declarar improcedente o recurso, confirmando, por decorrência, a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Porto, 18 de abril de 2024