REGISTO PREDIAL
INSCRIÇÃO MATRICIAL
DIREITO DE PREFERÊNCIA DO ARRENDATÁRIO NÃO HABITACIONAL
Sumário

I - A situação jurídica de uma realidade fundiária descrita no Registo Predial é a que resulta deste registo, e não a que consta da inscrição matricial.
II - Da circunstância de a diferentes partes de um prédio descrito numa ficha do Registo Predial terem sido atribuídos pela Autoridade Tributária diferentes artigos matriciais não resulta o fracionamento do prédio nem a autonomização jurídica dessas partes.
III - O arrendatário não habitacional apenas de uma parte (não autonomizada) de um prédio não goza do direito de preferência na sua alienação (não estando este caso abrangido pela previsão do art. 1091.º, n.º 1, al. a), do Cód. Civil); menos ainda goza do direito de preferência na aquisição unicamente dessa parte não autonomizada do prédio alienado.

Texto Integral

Processo 3076/22.6T8PRT.P1 – Apelação
Tribunal a quo Juízo Local Cível do Porto – Juiz 1


Recorrente(s) AA
Recorrido(a/s) BB, CC, DD, EE, FF, GG e A..., L.da




Sumário
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:


I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

AA instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra BB, CC, DD, EE, FF, GG e A..., L.da, alegando que é arrendatário de um armazém com artigo matricial próprio, situado num prédio mais vasto descrito no Registo Predial. A quota de 1/3 deste prédio foi vendida pelos primeiros réus à 7.ª ré, não tendo sido respeitado o seu direito de preferência em tal aquisição, no que respeita ao referido armazém.
Conclui pedindo que deve “ser reconhecido ao autor o direito de preferência na compra da terça parte do prédio urbano identificado no artigo 1.º deste articulado, e, consequentemente, ser o autor declarado comprador, substituindo-se à assim 7.ª ré na sua compra, nas exatas condições em que a mesma ocorreu”.

Citados os réus, contestaram os réus DD e EE, alegando, designadamente, que inexiste direito de preferência do arrendatário em caso de venda de quota-parte do bem locado, e a ré A..., L.da, alegando além de tal fundamento, ainda que, por ser comproprietária de 1/3, o seu direito de preferência na alienação de 1/3 sobrepunha-se ao do autor arrendatário.

Na fase intermédia da ação (art. 595.º do Cód. Proc. Civil), o tribunal a quo julgou o pedido improcedente, dele absolvendo os réus.

Inconformado, o autor apelou desta decisão, apresentando as seguintes conclusões:
A) O autor é arrendatário desde de outubro de 2008, de um armazém, que integra na totalidade do artigo ...70;
B) O aludido armazém/artigo corresponde a 1/3 da quota parte, vendida pelos 6 réus á 7.ª ré.
C) O autor, só tomou conhecimento de facto da celebração da escritura pública a 14.01.2022,
D) Isto porque, os réus nunca forneceram a documentação a comprovar a transferência da propriedade e nem registaram na Conservatória do Registo Predial.
E) Assim, não foi concedido ao autor o direito de preferência na compra, pelos primeiros seis réus.
F) O artigo ...70, apesar de se encontrar inserido com vários artigos na mesma certidão permanente predial este é autónomo, corresponde unicamente e exclusivamente ao armazém arrendado pelo autor, conforme caderneta predial,
G) Sendo assim, não é possível a constituição da propriedade horizontal, sendo este único, não existindo mais nenhum edifício inserido neste artigo ...70.
H) Conforme se pode analisar pela caderneta predial (da autoridade tributária) junto aos autos.
I) Afastando assim a premissa, “Inexiste dissídio quanto ao facto de não ter disso constituída a propriedade horizontal relativamente ao imóvel onde se integra o armazém que o autor pretende preferir”.
J) Como também afasta “Importa apurar se o arrendatário não habitacional de uma parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal goza (ou não) do direito legal de preferência na aquisição dessa parte do prédio”, conforme descrito da Douta Sentença”.
K) Toda a formulação da sentença advém da junção de todos os artigos da certidão permanente predial, sendo um só artigo.
L) A interpretação errónea da douta sentença, recai essencialmente com base nas contestações oferecidas pelos réus.
M) Por subentender os réus, que os artigos são unos entre si, o que não corresponde à verdade, pelo facto de o armazém tem um artigo no contrato e os restantes edifícios constam arrendados noutro artigo.
N) O armazém alvo de preferência ocupa um artigo no seu todo, artigo ...70.
O) A pretensão do autor deverá ser procedente.
P) Importa enfatizar que se trata de um bem juridicamente autonomizável.
A ré A..., L.da, contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.


II – Questões a decidir:

A única questão de mérito a tratar diz respeito à verificação da existência do direito de preferência invocado pelo autor, a pretexto de ao espaço por si arrendado ter sido atribuído um artigo matricial pela Autoridade Tributária.
Acresce a decisão sobre a responsabilidade pelas custas.
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III – Fundamentação:

Factos provados

1 – Os réus BB, CC, DD, EE, FF e GG, na qualidade de herdeiros de HH, eram proprietários de uma terça parte do prédio urbano sito na Rua ..., Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º ...94/20060911.
2 – Esse prédio é composto por 15 edifícios ou armazéns, inscritos na respetiva matriz sob os arts. ...70, ...71, ...15, ...16, ...17, ...18, ...19, ...58, ...60, ...61, ...64, ...65, ...66, ...67 e ...68.
3 – Em 18 de setembro de 2008, por documento junto com a petição sob o n.º 3, o autor, tomou de arrendamento, para fins não habitacionais, o armazém n.º 3 situado naquele prédio urbano, armazém este inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...70.
4 – Por escritura de 30 de junho de 2021, os referidos 1.º a 6.º réus. venderam à 7.ª ré, A..., L.da, a terça parte indivisa de que eram proprietários naquele prédio.

Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Objeto de um direito real
2. Direito exercido pelo autor
3. Responsabilidade pelas custas

1. Objeto de um direito real

Conforme estabelece o n.º 1 do Cód. Reg. Predial, “o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”. Por força desta norma, estando uma realidade fundiária descrita no registo predial, a sua situação jurídica real é a que resulta desse registo.
Uma parcela de terreno, edificada ou não, apenas pode ser objeto de um direito de propriedade autónomo e distinto se estiver juridicamente individualizada, em conformidade com a realidade registal que incide sobre a sua área. De outro modo, será insuscetível de ser objeto de um direito de propriedade autónomo e distinto (do que incide sobre o restante prédio) – sob pena, aliás, de violação do princípio da inerência do direito de propriedade à totalidade da coisa.
Tal como sublinham Mónica Jardim e Dulce Lopes, “um direito real incide, em regra, sobre a totalidade da coisa que constitui o respetivo objeto [O direito português consagra o princípio superficies solo cedit]. // (…) [C]onforme decorre do n.º 2 do art. 408.º do Código Civil, os direitos reais só podem incidir sobre coisas certas, determinadas e autonomizadas juridicamente. // E, segundo a melhor doutrina, o conceito de coisa abarca, além de outros, os seguintes elementos: // – Objeto com existência autónoma e; – Objeto apropriável, suscetível de subordinação jurídica ao poder, ação ou disponibilidade exclusiva de alguém. // Assim, não cabe na noção jurídica de coisa um objeto que não tenha existência autónoma, isto é, que não tenha uma entidade distinta e separada ou que não esteja individualizado. O que equivale a dizer-se que sobre o que só existe como parte de um todo mais vasto não podem constituir-se relações jurídico-reais com individualidade própria” – cfr. Mónica Jardim e Dulce Lopes, «Acessão industrial imobiliária e usucapião versus destaque», in O Urbanismo, o Ordenamento do Território e os Tribunais, coord. de Fernanda Paula Oliveira, Coimbra, Almedina, 2010, p. 757 e segs., texto doravante citado na versão ampliada disponível em https://cenor.fd.uc.pt/, localização a que nos referiremos adiante, sem outra menção.
Em resumo – prosseguem Mónica Jardim e Dulce Lopes –, não é possível a constituição de um autónomo ius in re sobre uma parte de um bem, sem que se proceda à individualização ou separação dessa parte. // Pelo que respeita a prédios, é evidente que são fracionáveis e que, portanto, uma parcela de um prédio pode autonomizar-se e dar origem a um novo prédio. Mas a desafetação ou separação só pode ocorrer, obviamente, de acordo com a lei – idem, ibidem, sublinhado nosso.
Conforme sustenta o Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e do Notariado – R.P.113/2021SJ-CC –, uma “parte especificada pode separar-se do prédio de que constituía parte componente e tornar-se objeto de um direito diverso e autónomo, se respeitar também as normas do direito do urbanismo que permitem a operação de divisão fundiária para fins de edificação urbana vigentes à data do início da posse, constituindo a legalidade do fracionamento do prédio-mãe, “pressuposto (ainda que de verificação simultânea) dessa aquisição” – sublinhado nosso. E repisa: [o] fracionamento de um prédio urbano depende (…) da observância das normas do direito do urbanismo sobre a divisão do solo e a edificação urbana, cuja aplicação limita os poderes do proprietário sobre o prédio, proíbe a modificação do conteúdo do seu direito de propriedade e, consequentemente, impede a formação da nova unidade predial, em desrespeito por aquelas normas”.
Do exposto resulta que a autonomização jurídica de uma parcela de um prédio urbano, por iniciativa voluntária do proprietário em ordem à divisão fundiária, depende da verificação de pressupostos legais, quer se trate da constituição de propriedade horizontal, do destaque ou do loteamento. Ora, a atribuição pela Autoridade Tributária de um artigo matricial a uma determinada realidade física fundiária não tem, à luz da lei, o efeito de realizar o fracionamento jurídico do prédio do qual tal realidade constitui uma parte. A relação jurídica fiscal que justifica a inscrição matricial dessa parcela por parte da Autoridade Tributária nada releva, neste contexto, para a alteração da realidade jurídica civil do prédio.

2. Direito exercido pelo autor

Do exposto retira-se que o autor pretende exercer o (putativo) direito de preferência numa alienação limitado a uma parte da coisa alienada. Pelas razões judiciosamente expostas na sentença apelada, tal direito não lhe assiste.
Nada mais nos resta do que acompanhar a posição do tribunal a quo vertida na sentença, da qual se destacam os seguintes excertos:
[I]mporta apurar se o arrendatário não habitacional de uma parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal goza (ou não) do direito legal de preferência na aquisição dessa parte do prédio. [M]erece aplicação à situação em análise o disposto no art. 1091.º do CC, na versão introduzida pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, dado que este diploma entrou em vigor em 30-102018, nos termos do seu art. 3.º.
[D]ispõe o mencionado art. 1091.º do CC, na redação da referida Lei 64/2018, o seguinte: “1 – O arrendatário tem direito de preferência: // a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes”. // Seguimos na esteira das mais recentes decisões jurisprudenciais, designadamente, o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-3-2021, in “www.dgsi.pt”. // Aqui se decidiu, ainda que aplicando o art. 1091.º, n.º 1, al. a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, que “O art. 1091.º, n.º 1, al. a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, deve ser interpretado no sentido de só atribuir ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio ou fração autónoma dele, quando o arrendamento incida sobre a totalidade deste prédio ou fração autónoma dele, não contemplando os casos em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal”. (…)
A confirmar a bondade desta interpretação, note-se que a Lei n.º 64/2018, de 29/10, ao alterar o mencionado art. 1091.º do CC, veio atribuir ao arrendatário habitacional (sendo que no caso em apreço está em causa, recorde-se, um arrendamento não habitacional) de parte específica de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal o direito de preferência legal na transmissão do prédio (cfr. nº 8 do referido preceito). (…)
Finalmente, note-se que, tal como referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 124-2021, in “www.dgsi.pt”, “A circunstância de o local arrendado (…) mostrar-se inscrito na matriz como realidade fiscal autónoma é irrelevante para o exercício do direito de preferência, porque, enquanto não se proceder à constituição da propriedade horizontal [ou ao fracionamento jurídico do terreno, acrescente-se], a autonomia material dos espaços arrendados não têm qualquer significado jurídico, não podendo estes, nessas circunstâncias, ser objeto de negócio jurídico.”.
Na verdade, conforme sublinhado neste aresto, “Isso resulta bem evidente do próprio funcionamento do exercício do direito de preferência, pois que, por força desse exercício, o preferente substitui-se na posição do comprador na compra e venda, objeto da preferência. Ora, isso só pode suceder se o aludido objeto da preferência estiver legalmente autonomizado, não podendo ser objeto de compra e venda um espaço materialmente dividido de um prédio que não tenha individualização jurídica – cfr. arts. 202.º, 203.º e 408.º, n.º 2, do CC”.
Face ao exposto, dúvidas inexistem que o autor, enquanto arrendatário não habitacional de parte de prédio (…) [não autonomizada juridicamente], não tem direito de preferência, quer sobre essa parte sobre a qual incide o arrendamento, quer sobre a totalidade do prédio. (…) // Assim, importa julgar a presente ação, desde já, improcedente, não se justificando, porque inútil, o prosseguimento dos autos para realização da audiência final.

3. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Cus. Proc.).

A responsabilidade pelas custas (da causa e da apelação) cabe ao apelante, por ter ficado vencido (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).



IV – Dispositivo:

Pelo exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em confirmar a decisão recorrida.

Custas a cargo do apelante.
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Notifique.
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Porto, 18 de abril de 2024.
Ana Luísa Loureiro
Isabel Peixoto Pereira
Francisca Mota Vieira