MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
DECISÃO EUROPEIA DE INVESTIGAÇÃO
JULGAMENTO DE ARGUIDO RECLUSO NOUTRO ESTADO-MEMBRO
Sumário


1. O sistema relativo ao MDE implica um duplo nível de protecção para os direitos processuais e fundamentais de que a pessoa procurada deve beneficiar: a) a protecção judicial a um primeiro nível, em que é adoptada uma decisão judiciária nacional, por exemplo, um mandado de detenção nacional; b) e a protecção que é concedida a um segundo nível, em que um MDE é emitido
2. A autoridade judiciária de emissão deve sempre assegurar que foi proferida uma decisão judiciária nacional com força executiva previamente à emissão do MDE.
3. Este duplo nível de protecção jurisdicional não existe caso uma decisão judiciária nacional, que venha a servir de base ao MDE, não seja proferida por uma autoridade judiciária nacional antes de o MDE ser emitido.
4. O legislador constitucional de 1997 veio admitir expressamente a possibilidade legal da dispensa da presença do arguido na audiência de julgamento em determinadas situações, desde que assegurados os direitos de defesa do arguido (art. 32.º, n.º 6, da CRP).
5. Na situação em que o arguido a sujeitar a julgamento está em cumprimento de pena de prisão no estrangeiro, o arguido pode requerer ou consentir que a audiência tenha integralmente lugar na sua ausência (art. 334.º, n.º 2, do CPP).
6. Em princípio, se o arguido recluso no estrangeiro pode optar por não intervir de todo na audiência realizada na sua ausência, impor-se-á igualmente entender, numa interpretação a fortiori (a maiori, ad minus), que aquele arguido poderá igualmente optar por participar tão-só no julgamento através de videoconferência.
7. Por referência a arguido reclusos noutros Estados Membros da União Europeia, a possibilidade de audição de arguido por videoconferência na fase de julgamento está expressamente prevista no regime jurídico da decisão europeia de investigação aprovado pela Lei n.º 88/2017 (artigos 3.º, al. e), 4.º, n.º 3, e 35.º, n.º 2).
8. A medida de investigação de audição de arguido por videoconferência prevista nos artigos 35.º a 37.º da Lei n.º 88/2017 esgota-se na audição propriamente dita.
9. A Lei n.º 88/2017 não prevê que o arguido possa, através desta medida de investigação, não apenas prestar declarações, como ainda acompanhar todo o julgamento e comunicar com o seu Advogado.

Texto Integral


Processo n.º 33/20.0PFBRG-A.G1

Acordam os juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

1. Decisão recorrida

No âmbito do processo abreviado n.º 33/20...., que corre os seus termos no Juízo Local Criminal de Braga, foi proferido despacho judicial, datado de 23.01.2024, que determinou a emissão de mandado de detenção europeu para assegurar a comparência presencial do arguido AA – então em cumprimento de pena de prisão em Espanha – na audiência de julgamento a realizar em Portugal.

2. Recurso

Inconformado com esta decisão, o Ministério Público recorreu da mesma, tendo concluído a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):
(…)
1. No dia 19 de Junho de 2020, foi deduzida acusação pública, em processo abreviado e para julgamento perante Tribunal Singular, contra o arguido AA pela prática, como autor material e em concurso efectivo, de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181º e 184º, ambos do Código Penal, por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea l), do mesmo diploma legal, e de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alíneas a) e c), ambos do Código Penal, por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea l), do mesmo diploma legal.
2. Remetidos os autos à distribuição para julgamento, apurou-se que o arguido encontra-se detido em Espanha por D. Prev. nº 253/2020 del Juzgado de Primera Instancia e Instrucción nº 3 Sueca (cf. fls. 97).
3. Após várias tentativas frustradas de realização de audiência de discussão e julgamento, por despacho proferido no dia 27 de Setembro de 2023, a Mma. Juiz anteriormente titular dos autos designou como nova data para realização de audiência de julgamento o dia 23 de Novembro de 2023, pelas 09h30m.
4. Determinou ainda que fosse “o arguido notificado por via de carta rogatória para o E.P. espanhol onde se encontra detido, nos termos anteriormente determinados, com a informação de que deverá requerer a sua intervenção em julgamento por videoconferência ou enviar missiva a este tribunal, autorizando o julgamento na sua ausência.” (cf. fls. 282).
5. Nessa sequência, no dia 15 de Novembro de 2023, foi o arguido pessoalmente notificado daquele despacho e expressamente consentiu que a sua intervenção na audiência de discussão e julgamento se concretizasse através de videoconferência (ref. ...61).
6. Não obstante, por motivos estritamente técnicos e por não ter sido possível estabelecer ligação com o estabelecimento prisional no qual o arguido se encontra detido, a diligência foi dada sem efeito e reagendada para o dia 23 de Janeiro de 2024, pelas 09h30, tendo sido ordenada a notificação “(via email, para o E.P.), sendo o arguido notificado por via de carta rogatória para o E.P. espanhol onde se encontra detido, devendo, pelo mesmo meio, diligenciar-se pelo agendamento da videoconferência” ( (como se alcança do teor da acta datada de 23 de Novembro de 2023-cf. fls. 307 e 308).
7. Sucede que, uma vez que as autoridades competentes no Reino de Espanha não confirmaram a efectiva notificação do arguido para a data aprazada, por despacho proferido no dia 19 de Janeiro de 2024, a actual Mma. Juiz titular dos autos deu sem efeito a mesma (cf. fls. 325).
8. E por despacho proferido no dia 23 de Janeiro de 2024, designou para audiência de julgamento o dia 14 de Maio de 2024, pelas 15h30m, e em caso de adiamento, como segunda data, designou o dia 20 de Maio de 2024, pelas 15h30m.
9. Emitindo um Mandado de Detenção Europeu (MDE) para assegurar a presença do arguido neste Tribunal naqueles dias e horas, caso este não consentisse no julgamento na ausência.
10. A posição assumida pelo Tribunal a quo no sentido de emitir um mandado de detenção europeu para fazer comparecer pessoalmente o arguido nas datas agendadas para julgamento (quando o mesmo já havia prestado o seu consentimento para ser ouvido remotamente) não se afigura processualmente correcta.
11. Uma vez que o artigo 35º, nºs 2 e 3, da Lei nº 88/2017, de 21 de Agosto (que aprovou o regime jurídico da emissão, transmissão, reconhecimento e execução de decisões europeias de investigação em matéria penal, e transpôs para o ordenamento jurídico português a Diretiva 2014/41/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014 sem qualquer objecção), expressamente prevê a audição por videoconferência de arguido, desde que o mesmo preste o seu consentimento para o efeito (o que sucedeu nos presentes autos).
12. Esta medida permite a intervenção remota do arguido em tempo real durante todo o julgamento, não lhe sendo coartados quaisquer direitos de defesa, tanto mais que o artigo 36º, do sobredito diploma legal estabelece de forma muito clara e precisa as regras e procedimentos da audição por videoconferência.
13. Não se olvida que na sequência do despacho em crise foi o arguido notificado no dia 7 de Fevereiro de 2024 e declarou que pretende estar presente no julgamento (cf. fls. 334/verso).
14. Todavia, tal apenas ocorreu porque apenas lhe foi dada a possibilidade de ser julgado na ausência (alternativa a que o arguido sempre se opôs) ou estar fisicamente presente, descartando-se em absoluto a possibilidade de o mesmo ser ouvido por meio de comunicação à distância.
15. Mas, ainda que assim não se entenda, importa considerar que em face do teor do Considerando 25 da referida Directiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, a única forma de assegurar a presença física do arguido em julgamento será através da emissão de um mandado de detenção europeu (MDE).
16. Contudo, no caso dos autos, a sua emissão é legalmente inadmissível.
17. De facto, nos termos do disposto no artigo 8º, nº 1, alínea c), da Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho, e do artigo 3º, nº 1, alínea c), da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, o mandado de detenção europeu deve conter, entre outras , as seguintes informações “Indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva abrangida pelo âmbito de aplicação dos artigos 1.o e 2.o”.
18. Em relação ao requisito de “um mandado de detenção”, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) considerou que se não existir nenhum mandado de detenção nacional separado do MDE, este não satisfaz os requisitos quanto à legalidade prevista no referido preceito legal e a autoridade de execução deve recusar o cumprimento.
19. Veja-se a propósito o que ficou decidido no “Case C-241/15, Bob-Dogi, Judgment of 1 June 2016”.
20. E no “Case C-414/20 PPU, MM, Judgment of 13 January 2021”.
21. Atendendo aos crimes imputados ao arguido, às molduras abstractamente aplicáveis e ao disposto no artigo 202º, do Código de Processo Penal, constata-se que não é legalmente admissível a aplicação ao arguido da medida coactiva de prisão preventiva.
22. Motivo pelo qual não é possível a emissão de mandado de detenção nacional para o efeito, o que, consequentemente, à luz da jurisprudência comunitária supra citada, impede a emissão de um mandado de detenção europeu nos termos efectuados nos autos.
23. Pois o Estado Português não pode assegurar que o arguido permaneça detido em território português como ficou exarado no despacho em crise.
24. Acresce que, no caso em apreço, foi solicitada a entrega temporária do arguido ao abrigo do artigo 24º nº 2, da Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho.
25. A entrega temporária é uma forma de cooperação prevista na Decisão Quadro 2002/584/JHA (artigo 24º) transposta para a lei interna pelo artigo 31º, nº 3, da Lei 65/2003, de 23 de Agosto e pressupõe um MDE para entrega definitiva que, não podendo ser executado por se encontrar a pessoa indisponível, porque presa no Estado de execução, pode dar lugar a negociação entre a autoridade de emissão e a autoridade de execução, de forma a ser alcançado o tal acordo a que alude o artigo 31º, nº 3. O pedido de entrega temporária, no quadro de execução do mandado, não é uma forma de cooperação autónoma; pressupõe um MDE para procedimento criminal e um acordo de modo a obviar à inconveniência de uma entrega muito posterior.
26. Ainda que se admita que o MDE, nos termos em que foi emitido, corresponde a uma proposta de acordo, não pode ser descurada a forma como essas condições poderão ser executadas, em Portugal, durante a permanência do arguido em território nacional, Estado que tem jurisdição própria e autoridades judiciais soberanas.
27. No despacho em crise ficou consignado que “na alínea f) do formulário do MDE faça constar que o arguido deverá ser entregue oito dias antes da data designada para realização da audiência de julgamento e que o Estado Português se compromete a manter o arguido preso durante todo o tempo em que estiver em Portugal e a devolvê-lo às autoridades espanholas imediatamente após ter deixado de ser necessária a sua presença em Portugal para a realização da mencionada diligência.”.
28. Sucede porém, que o artigo 27º da Constituição da República Portuguesa, lei soberana que impera sobre todas as demais, instrumentos internacionais de cooperação incluídos, elenca as situações em que pode haver privação da liberdade em Portugal.
29. Desta norma retira-se, com aplicabilidade ao caso concreto de um arguido entregue temporariamente para prática de ato processual (intervenção em julgamento), num quadro de execução de um MDE, que o mesmo constitucionalmente apenas pode ser privado da sua liberdade durante um curto período de detenção (até 48 horas) ou se ficar sujeito à medida de coação de prisão preventiva (cf. artigo 27º, nº 3, alínea b); Já que a norma do artigo 27º nº3 al. c) identifica base constitucional apenas para a prisão provisória de pessoa contra a qual corra termos em Portugal um pedido de extradição ou um processo de expulsão e não para o caso de pessoas que entrem temporariamente em território nacional, em execução de decisão proferida num processo de entrega, que correu termos em território estrangeiro.
30. Ou seja, resulta do artigo 27º, da Lei Fundamental que um arguido, se for entregue temporariamente na sequência de acordo formal entre autoridade de emissão e execução, num quadro de execução de um mandado de detenção europeu, para poder ser cumprida a condição de manutenção em privação de liberdade e posterior devolução, uma vez submetido à jurisdição nacional, tem de ser obrigatoriamente submetido a medida de coação prisão preventiva à ordem do processo em sede do qual foi solicitada a sua entrega definitiva e negociada, sob condição, a sua entrega temporária.
31. Isto porque a decisão estrangeira, no caso em apreço proferida através da D.Prev. nº 253/2020 del Juzgado de Primera Instancia e Instrucción nº 3 Sueca, não produz diretamente efeito em território nacional nem, naturalmente, a Constituição lhe reconhece tais efeitos de validamente permitir a privação da liberdade de um arguido, que entra em território soberano nacional.
32. Sublinha-se, neste particular, que nem em sede do MDE, cujo regime assente no reconhecimento mútuo e corresponde a uma cooperação mais profunda, se prevê que uma pessoa, detida em Portugal em execução de um MDE, possa ficar detida, sem uma decisão de um Juiz nacional, in casu do Tribunal da Relação (artigo 15º, nº 1, da Lei 65/2003), a qual reconhece a decisão proferida por autoridade estrangeira e priva da liberdade a pessoa contra quem o processo de execução do MDE corre porque a Constituição assim o prevê e permite no artigo 27º, nº 3, alínea c).
33. Assim é forçoso concluir que um arguido que entra em Portugal entregue temporariamente, apenas pode permanecer privado da sua liberdade por decisão de um Juiz nacional, respeitadas as condições estabelecidas pelo artigo 27º da Constituição.
34. Não havendo previsão constitucional desta produção direta de efeitos de decisão estrangeira privativa da liberdade, a única forma de poder garantir que o arguido não será colocado em liberdade durante a sua permanência temporária em Portugal, será submetê-lo a medida de coação prisão preventiva, porque a Constituição assim o impõe.
35. Acontece que, no caso em análise, pelos motivos aduzidos supra, não é admissível a aplicação ao arguido da aludida medida de coacção detentiva.
36. Nesta senda, urge concluir que não permitindo os tipos legais de crime cuja
prática se imputa ao arguido a aplicação desta medida de coação, não obstante a pena aplicável ao crime de ameaça agravada atingir o limite mínimo a que alude o artigo 2º nº 1 da Lei 65/2003, não podem ser prestadas as garantias de manutenção em privação de liberdade e posterior devolução e, como tal, não é possível celebrar o Acordo que a Decisão Quadro e a Lei preveem, para que uma entrega temporária, em alternativa à entrega definitiva que um MDE visa obter, possa ter lugar, nem é possível emitir o MDE nos termos determinados no despacho em crise.
37. Conclui-se, portanto, que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 35º,
da Lei nº 88/2017, de 21 de Agosto, 8º, nº 1, alínea c) e 24º, nº 2, da Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho, 3º, nº 1, alínea c), da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, 202º, do Código de Processo Penal, e 27º, da Constituição da República Portuguesa.
Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e, concludentemente, ser a mesma substituída por outra que dê sem efeito o mandado de detenção europeu emitido nos autos e determine a emissão de DEI que permita a intervenção do arguido na audiência de discussão e julgamento agendada através do sistema de videoconferência.
(…)”

3. Resposta ao recurso

Após a admissão do recurso, o arguido respondeu a este recurso, concluindo (transcrição):
“(…)
O ARGUIDO corrobora na íntegra a motivação apresentada pelo Ministério Público, assim como as conclusões, fazendo suas as palavras utilizadas pelo mesmo, uma vez que o arguido havia concordado com a sua audição por videoconferência e não pode agora ser obrigado a comparecer presencialmente, só porque vais estar presente nesse tribunal aguarda de outro processo, indo contra decisão anteriormente tomada por esse Tribunal.
Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e, concludentemente, ser a mesma substituída por outra que dê sem efeito o mandado de detenção europeu emitido nos autos e determine a emissão de DEI que permita a intervenção do arguido em audiência de discussão e julgamento agendada através do sistema de videoconferência.
(…)”.

4. Tramitação subsequente

O despacho recorrido foi sustentado na primeira instância.

Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista ao Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, o qual emitiu parecer fundamentado pugnando pela procedência do recurso.
 
Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório e não foi apresentada qualquer resposta.

Efectuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

*
II – FUNDAMENTAÇÃO

A. Objecto do recurso

Em conformidade com o disposto no art.º 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim sendo, importa apreciar as seguintes questões:
· Emissão de mandado de detenção europeu para assegurar a mera comparência no julgamento de arguido em reclusão noutro Estado-Membro;
· Emissão de uma decisão europeia de investigação para assegurar a intervenção no julgamento, através de videoconferência, de arguido em reclusão noutro Estado-Membro.

B. Apreciação

1. A decisão recorrida

Definidas as questão a tratar, importa conhecer efectivamente a ratio decidendi da decisão recorrida ora colocada em crise.
           
A decisão recorrida apresenta o seguinte teor (transcrição):
“(…)
Conforme decorre dos autos e é do meu conhecimento funcional, o arguido AA encontra-se preso em Espanha, concretamente no Centro Penitenciário de ..., ..., Espanha.
Assim, a fim de possibilitar a sua comparência nas datas designadas para
realização da audiência de julgamento, determino que se proceda à emissão de Mandado de Detenção Europeu, a remeter directamente às autoridades judiciárias competentes de Espanha, solicitando a entrega temporária do arguido a fim de ser submetido a julgamento nas datas supra referidas, ao abrigo do artigo 24.º, n.º 2 da Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho.
Na alínea f) do formulário do MDE faça constar que o arguido deverá ser entregue oito dias antes da data designada para realização da audiência de julgamento e que o Estado Português se compromete a manter o arguido preso durante todo o tempo em que estiver em Portugal e a devolvê-lo às autoridades espanholas imediatamente após ter deixado de ser necessária a sua presença em Portugal para a realização da mencionada diligência.
O mandado de detenção europeu deverá ser enviado aos Juzgados Centrales de Instrucción de la Audiencia Nacional, C/Goya, 14, 28 001-Madrid, os quais serão os competentes para executar o referido mandado.
(…)”.

2. Síntese da tramitação verificada nos autos

Em 19.06.2020, foi deduzida acusação contra o arguido traduzida na imputação da co-autoria material e em concurso efectivo das seguintes infracções:
· Um crime de injúria agravada, p. e p. pelo artigos 181.º, 184.º, 132.º, al. l), 188.º, al. a), do Código Penal;
· Um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º, 1, 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), e 132.º, alínea l), do Código Penal.

Em Setembro de 2020, o processo foi remetido para julgamento e foi inicialmente designada a data de 7 de Dezembro de 2020 para o início do julgamento.

Entretanto, em finais de 2020, foi conhecido nos autos que o arguido se encontrava em cumprimento de pena de prisão em Espanha e, desde então, foram sendo designada e adiadas várias datas para a realização do julgamento até ser proferido o despacho recorrido acima transcrito.

Tais adiamentos fundaram-se ora na falta de notificação do arguido para o julgamento, ora na falta de consentimento do arguido para a realização do julgamento na respectiva ausência após as várias tentativas desenvolvidas para esse efeito próprio tribunal.

Mediante despachos proferidos em 06.06.2023 e em 27.09.2023, o tribunal decidiu notificar o arguido de que este poderia requerer a sua intervenção no julgamento através de videoconferência 

Em 15.11.2023, no âmbito da última carta rogatória expedida à Justiça Espanhola para a obtenção do consentimento para a realização do julgamento na ausência, o arguido solicitou expressamente a sua intervenção através de videoconferência, a partir do estabelecimento prisional espanhol, no início de julgamento então designado para dia 23.11.2023.

Sobreveio o dia 23.11.2023 e tal intervenção do arguido através de videoconferência frustrou-se e o início do julgamento foi novamente adiado para 23 de Janeiro de 2024, com manutenção da intervenção do arguido através de videoconferência.

Em 19.01.2024, em virtude da falta de confirmação da notificação do arguido para esta última data de realização do julgamento, foi então dada sem efeito esta última data.

Em 23 de Janeiro de 2024 veio a ser proferido o despacho ora recorrido (subscrito por Magistrada Judicial que não tinha proferido os referidos despachos datados de 06.06.2023 e 27.09.2023).

Mais resulta dos autos que nunca foi ordenada a emissão de qualquer mandado de detenção de âmbito nacional por referência ao arguido para efeito de aplicação de medidas de coacção ou para assegurar tão-só a respectiva comparência em julgamento.   
 
3. A emissão de mandado de detenção europeu (MDE)

3.1. No dia 23 de Janeiro de 2024, o tribunal a quo afastou a possibilidade anteriormente reconhecida e concedida nestes autos ao arguido para intervir no julgamento através de videoconferência a partir do estabelecimento prisional onde se encontra em cumprimento de pena de prisão e decidiu ordenar a emissão de um mandado de detenção europeu para assegurar a “entrega temporária do arguido a fim de ser submetido a julgamento (…) ao abrigo do art. 24.º, n.º 2, da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 Junho de 2002”.

O recorrente alega que tal decisão não é legalmente admissível à luz do disposto no art. 8.º, n.º 1, al. c), da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, e do art. 3.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 65/2003.

Antecipa-se que o recorrente tem toda a razão.

3.2. A al. c) do n.º 1 do art. 3.º da Lei n.º 65/2003 prescreve – em transposição do art. 8.º, n.º 1, al. c), da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI – que “o mandado de detenção europeu contém (…) a indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com força executiva (…)”.

A autoridade judiciária de emissão deve sempre assegurar que foi proferida uma decisão judiciária nacional com força executiva previamente à emissão do MDE.

Na verdade, o sistema relativo ao MDE implica um duplo nível de protecção para os direitos processuais e fundamentais de que a pessoa procurada deve beneficiar: a) a protecção judicial a um primeiro nível, em que é adoptada uma decisão judiciária nacional, por exemplo, um mandado de detenção nacional; b) e a protecção que é concedida a um segundo nível, em que um MDE é emitido (vide Ac. Tribunal de Justiça proferido no processo C-241/15, Bob Dogi).

Este duplo nível de protecção jurisdicional não existe caso uma decisão judiciária nacional, que venha a servir de base ao MDE, não seja proferida por uma autoridade judiciária nacional antes de o MDE ser emitido.

No caso concreto, importa verificar que o referido duplo nível de protecção jurisdicional não está efectivamente assegurado, pois não foi emitido qualquer mandado de detenção de âmbito nacional.

Acresce que os crimes concretamente imputados ao arguido nestes autos são todos puníveis com pena inferior a 3 anos de prisão e, por isso mesmo, são insusceptíveis de permitir a respectiva privação da liberdade em território nacional pelo projectado período de 8 dias de entrega temporária (art. 27.º, n.º 3, al. b), da CRP, e art. 202.º, n.º 1, do CPP). 

Tanto será suficiente para dispensar a análise de outros fundamentos.

3.3. Não obstante, não se deixar de analisar igualmente a referência feita na decisão recorrida à situação de entrega temporária e condicional prevista no art. 24.º, n.º 2, da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI.
 
O art. 24.º da referida Decisão-Quadro respeita ao incidente de entrega diferida ou condicional de pessoa procurada após a autoridade judiciária de execução já ter decidido a execução do mandado de detenção europeu que foi emitido pela autoridade judiciária de emissão para efeito de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativa de liberdade.  

Com efeito, o n.º 1 do art. 24.º da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI dispõe que “A autoridade judiciária de execução pode, após ter decidido a execução do mandado de detenção europeu, diferir a entrega da pessoa procurada, para que contra esta possa ser movido procedimento penal no Estado-Membro de execução ou, no caso de já ter sido condenada, para que possa cumprir, no seu território, uma pena em virtude de um facto diverso daquele que determina o mandado de detenção europeu.”

Por seu turno, o n.º 2 do art. 24.º da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI dispõe que “Em lugar de diferir a entrega, a autoridade judiciária de execução pode entregar temporariamente ao Estado-Membro de emissão a pessoa procurada, em condições a fixar por acordo mútuo entre as autoridades judiciárias de execução e de emissão. O acordo deve ser reduzido a escrito e as suas condições vinculam todas as autoridades do Estado-Membro de emissão

Ora, o MDE a emitir nestes autos tem por finalidade exclusiva assegurar a comparência do arguido num acto processual específico a executar em Portugal e não visa sequer a respectiva procura ou detenção em território espanhol. 

Assim sendo, a mera alusão antecipada à entrega condicional e temporária do arguido a decidir pelo Estado de Execução não faz qualquer sentido.  

3.4. Porquanto, o recurso é procedente nesta parte e impõe-se a revogação da decisão recorrida.

4. A emissão de uma decisão europeia de investigação (DEI)

4.1. Uma vez afastada a possibilidade de emissão do mandado de detenção europeu, o recorrente pugna pela emissão de uma decisão europeia de investigação para assegurar a intervenção do arguido no julgamento por meio de videoconferência, isto ao abrigo do disposto no art. 35.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 88/2017.

O arguido já tinha dado o seu consentimento a esta forma de intervenção em 15.11.2023 e reiterou expressamente a sua concordância com esta solução na resposta apresentada ao recurso.

Alega ainda o recorrente que a referida solução não coarcta os direitos de defesa do arguido na medida em que permite a intervenção remota do arguido em tempo real durante todo o julgamento.

4.2. É inquestionável que a lei processual penal consagrou a regra da obrigatoriedade da presença física do arguido no julgamento (art. 332.º. n.º 1, do CPP).

Contudo, o legislador constitucional de 1997 veio admitir expressamente a possibilidade legal da dispensa da presença do arguido na audiência de julgamento em determinadas situações, desde que assegurados os direitos de defesa do arguido (art. 32.º, n.º 6, da CRP).

Em conformidade com esta permissão constitucional, o CPP permite o início e a realização de julgamento na ausência do arguido – isto é, de julgamento realizado integralmente sem a presença física do arguido – nos casos em que o arguido regularmente notificado não comparece e a respectiva presença física não é reputada pelo tribunal como imprescindível para a descoberta da verdade (art. 333.º, n.º 1, do CPP)

Além disso, o CPP também permite que o arguido requeira ou consinta que a audiência tenha lugar na sua ausência nos casos em que este se encontrar praticamente impossibilitado de comparecer à audiência, nomeadamente por idade, doença grave ou residência no estrangeiro (art. 334.º, n.º 2, do CPP).
      
4.3. Na situação em que o arguido a sujeitar a julgamento está em cumprimento de pena de prisão no estrangeiro, a respectiva possibilidade de comparência no julgamento já não depende exclusivamente da sua vontade e, consequentemente, o tribunal não pode avançar sem quaisquer restrições para a realização do julgamento na sua ausência.

Nesta situação, o arguido pode requerer ou consentir que a audiência tenha integralmente lugar na sua ausência (art. 334.º, n.º 2, do CPP).

Em princípio, se o arguido recluso no estrangeiro pode optar por não intervir de todo na audiência realizada na sua ausência, impor-se-á igualmente entender, numa interpretação a fortiori (a maiori, ad minus), que aquele arguido poderá igualmente optar por participar tão-só no julgamento através de videoconferência.

Por referência a arguido reclusos noutros Estados Membros da União Europeia, a possibilidade de audição de arguido por videoconferência na fase de julgamento está expressamente prevista no regime jurídico da decisão europeia de investigação aprovado pela Lei n.º 88/2017 (artigos 3.º, al. e), 4.º, n.º 3, e 35.º, n.º 2).   
           
Contudo, a DEI só pode ser emitida se a medida de investigação a solicitar na DEI pudesse ter sido ordenada, nas mesmas condições, no âmbito de processos nacionais semelhantes. 

É certo que o Código de Processo Penal não prevê expressamente a audição do arguido no julgamento por videoconferência.  

Contudo, a lei adjectiva processual penal não se esgota no Código de Processo Penal e a unidade do sistema jurídico impõe a convocação de outros instrumentos normativos.

Ora, a audição por videoconferência de arguido que se encontre fora do território nacional está expressamente prevista no art. 145.º, n.º 1, al. d), e n.º 3, da Lei n.º 144/99.

Por conseguinte, nada obstaria à emissão de uma DEI para efeito de audição do arguido por videoconferência no julgamento a realizar nos presentes autos.
           
4.4. Sucede que o Digno Recorrente – no que é acompanhado pelo arguido – impetrou a emissão da DEI para efeito de assegurar a intervenção do arguido no julgamento por videoconferência no pressuposto de que esta medida de investigação permite a intervenção remota do arguido em tempo real durante todo o julgamento.

Ora, a medida de investigação de audição de arguido por videoconferência prevista nos artigos 35.º a 37.º da Lei n.º 88/2017 esgota-se na audição propriamente dita.

Na verdade, a Lei n.º 88/2017 não prevê que o arguido possa, através desta medida de investigação, não apenas prestar declarações, como ainda acompanhar todo o julgamento e comunicar com o seu Advogado.

Neste contexto, ignorando-se efectivamente e não se podendo presumir que o arguido se basta com esta mera possibilidade de audição no julgamento por videoconferência, nada se decidirá em matéria de DEI e o recurso terá necessariamente de improceder nesta parte, sem prejuízo de a questão dever ser revisitada e equacionada na primeira instância.

5. Conclusão

Concluindo, o recurso é procedente e, consequentemente, impõe-se a revogação da decisão recorrida, ainda que sem as consequências peticionadas em sede de DEI.

III – DECISÃO

Em função do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogam a decisão recorrida.

Sem tributação.
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Guimarães, 7 de Maio de 2024
(Texto elaborado em computador pelo relator e integralmente revisto pelos subscritores)
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(Paulo Almeida Cunha - Relator)
(Carlos Cunha Coutinho)
(Fátima Furtado)