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PROCESSO DE INVENTÁRIO
PARTILHA SUBSQUENTE A DIVÓRCIO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
RECURSO DE APELAÇÃO
CASO JULGADO
Sumário
I – A decisão proferida no incidente de relação contra a relação de bens é passível de apelação autónoma. II – Tendo a interessada se conformado com o decidido no dito incidente de relação contra a relação de bens, pelo que o assim decidido, transitado em julgado, passou a ter a força e a autoridade do caso julgado, cfr. art.º 619.º do C.P.Civil. III - No inventário subsequente de divórcio devem considerar-se, no que ao passivo concerne, quer os créditos da responsabilidade de ambos os cônjuges, quer os créditos entre cônjuges, que tenham sido originados no âmbito do casamento.
Texto Integral
Processo n.º 3878/21.0 T8AVR-A.P1 Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Família e Menores de Aveiro - Juiz 2 Apelação
Recorrente – AA Recorrido – BB
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Alexandra Pelayo
Desemb. Fernando Vilares Ferreira
Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)
I – Nos presentes autos de inventário para separação das meações do dissolvido casal constituído por AA e BB, antes casados segundo sob o regime da comunhão geral de bens, casamento dissolvido por divórcio, por sentença de 12.12.2000 - tendo a respetiva ação sido instaurada em 17.05.1999 - transitada em julgado em 4.01.2001, proferida no âmbito do processo de Divórcio Litigioso/Mútuo Consentimento, instaurado a requerimento da interessada AA e onde BB desempenha as funções de cabeça-de-casal e, por isso, juntou aos autos a necessária relação de bens.
A interessada AA, notificada da mesma, veio dela reclamar, alegando, em suma, que nada tem a opor ao relacionamento do imóvel que efetivamente constitui bem comum do casal; impugnou o valor de abate do veículo GX-..-.., que deve ser comprovado documentalmente pelo cabeça-de-casal e constitui dívida deste, e de forma idêntica alegou quanto ao valor do trator com a matricula VE- ..-...
Mais disse nada ter a opor quanto ao relacionamento da fresa, embora o cabeça de casal deva identificar melhor o equipamento, devendo também identificar o atrelado, dizendo qual a respetiva marca e matrícula.
Finalmente, alegou que as pretensas dívidas da ora requerente referidas na alínea B), são uma total fantasia do cabeça-de-casal, que impugna frontalmente, bem como os documentos com que pretensamente se pretendem justificar.
Por despacho de 11.10.2018, depois de produzida e analisada a prova apresentada, foi decidido: “No que concerne aos valores do veículo automóvel de matrícula GX-..-.. (verba n.º 2 do ativo) e do trator de matrícula VE-..-.. (verba n.º 3 do ativo), tendo sido indicado na relação de bens no valor de €49,88 para cada um, correspondente ao valor de 10.000$00 indicado pelas partes na relação de bens comuns apresentada aquando da conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento, considerando que se tratam de veículos bastante antigos, o automóvel inclusivamente já abatido, e que a interessada reclamante não indicou qualquer valor em substituição daqueles nem requereu qualquer meio de prova, afigura-se-nos não haver fundamento para deferir a reclamação, pelo que se mantêm tais valores. 6.2 Quanto à completa identificação da fresa (verba n.º 4 do ativo) e do atrelado (verba n.º 5 do ativo), a questão mostra-se ultrapassada por o cabeça de casal ter vindo completar a descrição que deles é feita na relação de bens, fornecendo os dados em falta. 6.3 No que respeita às dívidas da responsabilidade da interessada reclamante para com o cabeça de casal (verbas n.ºs 1 a 11 do passivo), cuja existência aquela impugnou, mostram-se já excluídas da relação de bens as dívidas relacionadas sob as verbas n.ºs 4, 5 e 9 e metade da dívida relacionada sob a verba n.º 6, por o cabeça de casal ter reconhecido que, afinal, as benfeitorias que deram origem a tais créditos foram realizadas em prédio bem próprio seu e não no prédio comum do casal, relacionado sob a verba n.º 1 do ativo. Quanto à dívida relacionada sob a verba n.º 1, relativa ao crédito da Banco 1... sobre o casal, dos documentos juntos aos autos, mormente a livrança em branco e a respetiva autorização de preenchimento, assinadas por ambos os interessados, a declaração da referida entidade bancária, na qualidade de titular da inscrição hipotecária que incidia sobre o imóvel relacionando na verba n.º 1, no sentido de que já não tem interesse na garantia, pelo que autoriza o respetivo cancelamento, e a carta enviada pela mesma entidade ao próprio cabeça de casal, remetendo-lhe os referidos documentos, com a menção de que o empréstimo se encontra liquidado, documentos estes em poder do cabeça de casal e por ele juntos aos autos (inseridos no sistema informático de tramitação do processo de inventário com a referência 745480), resulta demonstrada a existência do aludido crédito e a sua liquidação integral pelo cabeça de casal, conforme foi também corroborado pela testemunha CC, que, na qualidade de amigo do cabeça de casal, demonstrou conhecimento de este, após o divórcio, com a ajuda do pai, ter liquidado o empréstimo contraído pelo casal na Banco 1..., donde emerge a relacionada dívida da interessada reclamante para com o cabeça de casal, em metade desse valor. O mesmo sucede com a dívida relativa ao crédito da A..., Ld.ª sobre o casal, cuja existência e liquidação pelo cabeça de casal resulta suficientemente demonstrada pela letra sacada por aquela sociedade, aceite por ambos os interessados, na pendência do casamento, relativa a transação comercial e presentemente em poder daquele, que a juntou aos autos (inserida no sistema informático de tramitação do processo de inventário com a referência 745482), bem como pela declaração emitida pela mesma sociedade, junta com a resposta à reclamação (inserida no sistema informático de tramitação do processo de inventário com a referência 785783), sendo que também a testemunha DD, irmã do cabeça de casal, demonstrou conhecimento da existência do referido crédito, titulado pela dita letra. Quanto às dívidas relacionadas sob as verbas n.ºs 6 (metade), 7 e 8, correspondentes a benfeitorias (zona designada por corredor, silo novo e cobertura do zona de exercício dos animais bovinos e nitreira) realizadas pelo cabeça de casal no imóvel relacionado sob a verba n.º 1, a prova testemunhal produzida foi contundente no sentido de tais obras terem sido efetivamente realizadas e custeadas pelo cabeça de casal, posteriormente ao divórcio, mormente as já referidas testemunhas DD e CC, e ainda a testemunha EE (que realizou tais obras e confirmou os valores pagos pelo cabeça de casal). Por seu lado, a dívida relacionada sob a verba n.ºs 10, relativa a honorários e despesas com o projeto das mencionadas benfeitorias (€1.259,10), apenas em parte se mostra suficientemente demonstrada, concretamente pela nota de honorários (no valor de €703,50) e pelas guias de pagamento (nos valores de €13,60 e €52,00), juntas com a relação de bens, impondo-se, pois, proceder à redução do valor dessa verba para €384,55, correspondente a metade da soma daqueles valores (€769,10). Note-se que o documento junto pelo cabeça de casal, contendo a soma de várias parcelas, perfazendo o montante global de €1.259,10, não passa de um mero manuscrito, sem identificação do respetivo autor e sem relevo para demonstrar a existência da dívida relativa às parcelas que não tem qualquer suporte documental. Já quanto à dívida relacionada sob a verba n.º 11, relativa ao custo da licença camarária das indicadas benfeitorias, no valor de €631,40, não foi junta qualquer prova documental, não havendo, pois, elementos suficientes para proceder ao seu reconhecimento, com a consequente exclusão dessa verba n.º 11. Refira-se que, apesar de a testemunha DD ter afirmado saber que o cabeça de casal, seu irmão, despendeu €1.259.10 com o projeto e €631,40 com a licença camarária, tal depoimento, só por si, desacompanhado de qualquer corroboração, mormente de ordem documental, não teve a virtualidade de permitir reconhecer a existência da dívida. Também no que concerne à dívida relacionada sob a verba n.º 3 referente à diferença entre o lucro (venda dos animais [3 vacas em gestação e 3 vitelos] e leite produzido por aquelas [vacas em gestação mais 3 vacas leiteiras que vieram a falecer]) e a despesa total de gastos de alimentação e trato dessas 3 vacas em gestação, desses 3 vitelos e, ainda, dessas 3 vacas leiteiras que o casal possuía e que faleceram (sem terem sido vendidas), valor esse alegadamente pago pelo cabeça de casal, exclusivamente com dinheiro seu e posteriormente à data da propositura da ação de divórcio, refira-se não ter sido produzida qualquer prova sobre tais factos, o que impede o reconhecimento da divida em questão, por não se dispor de elementos mínimos para o efeito, com a consequente exclusão da referida verba n.º 3. 6.4 - Por fim, quanto aos bens cuja falta foi acusada pela interessada reclamante, esta não apresentou qualquer meio de prova tendente a demonstrar a sua existência e a necessidade de serem relacionados por serem bens comuns do casal. Ao invés, o próprio cabeça de casal é que logrou produzir abundante prova documental, extraída do aludido processo de arrolamento, entretanto julgado extinto, no sentido de tais bens serem próprios seus, nomeadamente faturas e vendas a dinheiro relativas à aquisição de grande parte desses bens, em data posterior ao divórcio, bem como o registo em seu nome de alguns bens móveis sujeitos a registo, para além de que também as testemunhas CC e FF depuseram de modo a confirmar tais factos, identificando vários desses bens como tendo sido adquiridos pelo cabeça de casal já depois do divórcio ou como sendo pertencentes do seu pai. «Nos termos e pelos fundamentos expostos, determina-se: a) Que a descrição das verbas n.ºs 4º e 5º do ativo da relação de bens seja completada com os elementos fornecidos pelo cabeça de casal nos artigos 11º e 12º da sua resposta à reclamação (inserida no sistema informático de tramitação do processo de inventário com a referência 785783). b) Que sejam excluídas da relação de bens as verbas n.ºs 3, 4, 5, 9 e 11 do passivo. c) Que o valor da verba n.º 6 do passivo seja reduzido a de metade, por a benfeitoria aí identificada só em parte ter sido realizada no prédio comum do casal. d)Que o valor da verba n.º 10 do passivo seja reduzido para €384,55, correspondente a metade da soma das parcelas de €703,50, €13,60 e €52,00 (€769,10). Mantendo-se, quanto ao mais, a relação de bens”. (negrito nosso)
Por despacho de 5.12.2019 foi o cabeça-de-casal notificado para apresentar nova relação de bens, em que refletisse as alterações determinadas pela supra referida decisão, bem como a atualização do valor patrimonial do bem imóvel descrito sob a verba n.º 1, por aplicação do coeficiente 1,35 (Anexo à Portaria 1337/2003 de 5.12, de onde resulta um valor de €2.346,58.
Em 14.12.2018, o cabeça-de-casal apresentou nova relação de bens e nela foram descritos em conformidade com a referida decisão:
- como ativo, cinco verbas um imóvel, valor de automóvel entretanto abatido, um trator,
uma fresa e um atrelado;
- como passivo, descritas seis verbas: as duas primeiras correspondentes a créditos do cabeça-de-casal correspondentes a metade do valor liquidado de verbas comuns; as três seguintes correspondentes a créditos do cabeça-de-casal referentes ao custo de benfeitorias e a última verba correspondente a “honorários e guias juntas com a anterior relação de bens”.
Em suma, nesta nova relação de bens foi relacionada ainda uma nova verba de passivo - correspondente a “honorários e guias juntas com a anterior relação de bens sobre a qual não foi proferida qualquer decisão”.
Realizou-se a conferência de interessados, e ambos apresentaram propostas em carta fechada para as verbas n.ºs 3, 4 e 5, sendo que, em relação a todas elas, as de maior valor foram as apresentadas pela interessada AA.
Ao cabeça-de-casal foi adjudicada a verba n.º 1 pelo valor de €80.002,00.
A interessada AA, após a respetiva abertura das propostas solicitou que fosse admitida a retirar as mesmas, o que foi aceite pelo interessado cabeça-de-casal, o qual requereu que os bens descritos em tais verbas lhe fossem adjudicados, pelo valor das propostas por si apresentadas, ao que a interessada AA declarou nada ter a opor.
Assim, as verbas n.ºs 3, 4 e 5 foram adjudicadas ao interessado e cabeça-de-casal, BB, pelos valores de, respetivamente, €500,00, €150,00 e €301,00.
De seguida, foi proferida decisão de saneamento do processo e, relativamente ao passivo, consta, além do mais “(…) 7. No caso dos autos, como se viu, o passivo foi impugnado pela interessada. Na sequência da prova oferecida foi entendido que os autos reuniam os elementos necessários à decisão que foi proferida no sentido (já atrás transcrito) de reconhecer os créditos do cabeça de casal correspondentes a: - dívida relacionada sob a verba n.º 1, relativa ao crédito da Banco 1... sobre o casal reconhecida como dívida da interessada reclamante para com o cabeça de casal em metade desse valor, dada a demonstrada existência do aludido crédito e a sua liquidação integral pelo cabeça de casal; - dívida relativa ao crédito da A..., Ld.ª: reconhecida como dívida da interessada reclamante para com o cabeça de casal em metade desse valor, dada a demonstrada existência do aludido crédito e a sua liquidação integral pelo cabeça de casa; - dívidas relacionadas sob as verbas n.ºs 6 (metade), 7 e 8, correspondentes a benfeitorias (zona designada por corredor silo novo e cobertura da zona de “exercício“ dos animais bovinos e “nitreira”) realizadas pelo cabeça de casal no imóvel relacionado sob a verba n.º 1; - €384,55, da dívida relacionadas sob a verba n.ºs 10, relativa a honorários e despesas com o projeto das mencionadas benfeitorias. 8. Face à decisão já proferida reconhecendo as referidas verbas do passivo, quanto a estas verbas do passivo nada mais resta do que considerá-las para efeitos da forma e mapa de partilha e apreciar o requerido quanto à compensação com o crédito de tornas na interessada devedora daquelas verbas, não podendo agora ser (re)aberta a discussão sobre a existência, exigibilidade das mesmas sob pena de violação do caso julgado formal. Assim sendo serão as referidas verbas do passivo consideradas, sem mais, na partilha a realizar. 9. Quanto à dívida reclamada, mas ainda não apreciada, - correspondente a «honorários e guias juntas com a anterior relação de bens» - entende-se que a sua natureza implica a sua discussão noutra sede, nomeadamente em eventual prestação de contas, pois que corresponde a uma (alegada) dívida decorrente de atos de administração do património comum. Tal verba do passivo não deverá assim ser considerada. 10. A questão da alegada compensação deverá ser apreciada apenas após a realização das operações necessárias a averiguar da existência de tornas, sendo prematura”.
De seguida foi proferido despacho sobre a forma à partilha, decidindo-se: “11.1- as verbas do ativo a considerar são as constantes da relação de bens apresentada a 14.12.2018, somando-se as mesmas e dividindo-se o resultado por dois, o que corresponderá à quota-parte de cada um dos dois interessados. 11.2 - à quota parte da interessada AA deverá ser deduzido o valor do passivo reconhecido como sendo da sua exclusiva responsabilidade no despacho proferido a 11.10.2018 (atrás resumido no ponto 7 do presente despacho); 11.3 - Na composição dos quinhões deverá atender-se ao decidido na conferência realizada e despacho subsequente, a que se refere o ponto 5 do presente despacho”.
Finalmente, foi elaborado o mapa da partilha, objeto de retificação oficiosa, por lapso do Sr. funcionário e, notificado o mesmo às partes, dele veio a interessada AA reclamar, pedindo que:
“a) Não ser deduzido o passivo da quota parte da requerente, devendo, ao invés, receber tornar no valor de €40.476,50.
Ou caso assim não se entenda,
b) Serem as despesas relacionadas como benfeitorias na verba 1, não serem devidas ao cabeça-de-casal, por lhe ter sido adjudicada tal verba e, assim, ter o benefício exclusivo ou mais-valia que nela produziu e, assim, a requerente, receber tornas no valor de €31.087,65”.
Ouvido o cabeça-de-casal, foi proferido o seguinte despacho: “Requerimento da interessada AA junto a 20.09.2022: No requerimento em análise vem a interessada questionar a inclusão no mapa da partilha de créditos do cabeça de casal. Sobre o passivo já foi proferida, no despacho sobre a forma da partilha, decisão. Como se refere no Ac. do TR de Coimbra de 24.05.2022: A “estruturação sequencial e compartimentada do processo envolve logicamente a imposição às partes de cominações e preclusões, anteriormente inexistentes, levando naturalmente em reforço de um princípio de auto responsabilidade das partes na gestão do processo a que (como aliás constitui princípio geral em todo o processo civil) as objeções, impugnações ou reclamações tenham de ser deduzidas, salvo superveniência, na fase procedimental em que está previsto o exercício do direito de contestação ou oposição”. O despacho sobre a forma da partilha foi proferido a 20.01.2022 e, devidamente notificado às partes por expediente de 21.01, não foi objeto de impugnação. Nos termos do disposto no artigo 1123.º n.º 2 b) do CPC cabe recurso autónomo das decisões sobre a forma da partilha. Assim sendo a decisão quanto ao passivo (como aliás todas as demais decisões constantes do aludido despacho sobre a forma da partilha) transitaram em julgado. Como também se escreve no citado Acórdão «Por se estar na etapa da “elaboração do mapa de partilha”, e mais concretamente depois de já ter sido determinada a elaboração deste, ter sido ordenada a notificação dos interessados para reclamarem de alguma desconformidade na atinente elaboração pela secretaria, operou-se a preclusão de serem suscitadas questões ainda respeitantes à antecedente fase da partilha». A questão referente a desconformidade formal do mapa de partilha foi também já decidida tendo-se determinado a sua retificação (cfr. despacho de 27.12.22). Face ao exposto, indefere-se o requerido pela interessada AA no seu requerimento em análise. Custas do incidente pela interessada reclamante fixadas no mínimo. Notifique nos termos e para efeitos do disposto no artigo 1121.º do CPCivil”.
Inconformada com tal decisão, dela veio a interessada AA recorrer de apelação, pedindo a sua revogação e a substituição por outra que
ordene a correção do mapa de partilha, através da supressão das verbas do passivo do esquema de compensações.
A apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
1. Elaborado o mapa de partilha no âmbito dos presentes autos, o Tribunal fez operar a compensação entre as tornas devidas à recorrente e as verbas relacionadas como passivo relativas a despesas contraídas após a dissolução do casamento.
2. Apresentada a reclamação, o Tribunal manteve o mapa de partilha, alegando, em suma, que a decisão sobre o passivo foi proferida no âmbito da reclamação à relação de bens e novamente no despacho sobre a forma de partilha.
3. Não pode a recorrente concordar com tal entendimento, porquanto se encontram violadas regras elementares do Direito Civil, as quais não podem ser ignoradas pelo Tribunal.
4. Pois que, como é já unânime na jurisprudência, as despesas feitas com imóveis que integrem a comunhão após a dissolução do casamento deverão ser apreciadas e pagas em sede de prestação de contas e não de passivo no inventário.
5. Mas ainda que assim não fosse, pelo menos relativamente às benfeitorias efetuadas pelo recorrido no imóvel correspondente à verba 1 da relação de bens, estas nunca poderiam ser imputadas à recorrente, tendo em conta que foi o recorrido que adjudicou o respetivo imóvel.
6. Ora, a recorrente não beneficiou dessas benfeitorias, nem irá beneficiar, sendo o recorrido que irá (em proveito exclusivo) gozar o benefício das obras efetuadas.
7. Aliás, sendo aquele imóvel um estabelecimento comercial de agropecuária, após o divórcio, o recorrido foi o único que desenvolveu a respetiva atividade, auferindo os respetivos lucros com a venda do leite produzido.
8. Estes lucros não entraram no ativo do inventario.
9. Ou seja, a recorrente era proprietária para pagar as despesas, mas não o era para auferir os lucros.
10. A manter-se o esquema de compensações tal como consta do mapa de partilha, a recorrente estará a pagar por obras no imóvel, das quais nunca usufruiu e sem ter auferido os lucros decorrentes da atividade.
11. Não só o Tribunal proferiu decisão «contra legem», como criou uma situação de enriquecimento sem causa do recorrido à custa do prejuízo da recorrente.
12. Pelo exposto, foram violadas as normas contidas nos artigos 473.º e 1697.º do CPC.
O cabeça-de-casal juntou aos autos as suas contra-alegações onde pugna pela confirmação da decisão recorrida.
II – Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os que estão enunciados no supra elaborado relatório, pelo que, por razões de economia processual, nos dispensamos de os reproduzir aqui.
III – Como é sabido o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
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Ora, visto o teor das alegações da interessada é questão a apreciar no presente recurso:
- da forma à partilha, concretamente no que respeita ao passivo.
Vejamos então.
O presente inventário foi instaurado no competente Cartório Notarial em 15.07.2016 e por despacho de 17.09.2020, deferindo o requerimento das partes, foi ordenada a sua remessa para o tribunal competente, nos termos previstos no n.º 1 do art.º 13.º da Lei n.º 117/2019, de 13.09.
Ora a Lei n.º 117/2019, de 13.09 (que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2020), que reviu o Código de Processo Civil e que introduziu neste o Título XVI, no Livro V, denominado “Do Processo de Inventário”, no qual se consagra o novo regime do processo de inventário, o qual se mostra integralmente aplicável aos presentes autos. Este novo modelo do processo de inventário, aprovado pela Lei n.º 117//2019, introduziu alterações profundas no modelo antes em vigor, assentando agora o processo de inventário em fases processuais relativamente estanques (articulados, saneamento e partilha), em relação às quais se encontra consagrado o princípio da preclusão, o que não deixou de se repercutir no regime jurídico dos recursos.
No caso concreto dos autos, há que ter em atenção o que preceitua o n.º3 do supra referido art.º 13.º da Lei n.º 117/2019, de 13.09, ou seja, “É aplicável à tramitação subsequente do processo remetido a juízo nos termos dos números anteriores o regime estabelecido para o inventário judicial no Código de Processo Civil“.
E assim sendo não se pode olvidar que “in casu” apresentada a relação de bens à mesma a interessada/apelante reagiu deduzindo reclamação contra a mesma. E oportunamente foi proferido decisão nesse incidente da reclamação à relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, e concretamente no que respeitava às verbas relacionadas de passivo, foi decidido, além do mais – “b) Que sejam excluídas da relação de bens as verbas n.ºs 3, 4, 5, 9 e 11 do passivo. c) Que o valor da verba n.º 6 do passivo seja reduzido a de metade, por a benfeitoria aí identificada só em parte ter sido realizada no prédio comum do casal. d) Que o valor da verba n.º 10 do passivo seja reduzido para €384,55, correspondente a metade da soma das parcelas de €703,50, €13,60 e €52,00 (€769,10)”.
Dúvidas não podem restar de que a decisão proferida nesse incidente da reclamação à relação de bens éuma decisão que determina os bens a partilhar no âmbito do processo de inventário, ao definir esses bens, pelo que não há dúvida que a decisão que eliminou e que reduziu as verbas supra referidas verbas do passivo na relação de bens, saneou o processo, determinando quais os bens a partilhar, pelo que, de tal decisão, inserindo-se na al. b) do n.º 1 do art.º 1123.º do C.P.Civil, na redação introduzida por aquela Lei n.º 117/2019, cabia apelação autónoma.
Ora, como se pode ver dos autos, as partes, mormente a interessada/apelante conformou-se com o decidido no dito incidente de relação contra a relação de bens, pelo que o assim decidido, transitado em julgado, armou-se como a força e a autoridade do caso julgado, cfr. art.º 619.º do C.P.Civil.
Veja-se neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, pág. 139, onde referem que “no âmbito do regime que esteve consagrado no CPC/61, constituía entendimento geral que a decisão sobre a reclamação quanto à relação de bens não era qualificada como incidente autónomo para efeitos de interposição de recurso de apelação com subida imediata (…). Tal solução encontra-se agora prejudicada face à diversa opção que decorre explicitamente do n.º 2, al. b), segmento em que se alude à decisão sobre a “determinação de bens a partilhar”, que inclui quer a decisão sobre a reclamação de bens (cfr. art.ºs 1104.º, n.º 1, al. d), e 1105.º, n.º 3), quer a decisão do incidente de sonegação de bens (art.º 1105.º, n.º 4). Considerou-se que tal matéria se revela crucial para a subsequente fase do processo de inventário, devendo ser sujeita a reapreciação imediata, como forma de conferir utilidade e eficácia à tramitação processual posterior”.
Em suma, não tendo a interessada/apelante interposto recurso daquela decisão, que era autónoma e imediatamente recorrível, a mesma transitou em julgado, não podendo ser agora mais questionada a questão do passivo a partilhar.
Prosseguindo os autos, foi proferido despacho de saneamento conforme preceitua o art.º 1110.º do C.P.Civil, onde resolveu todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, onde concretamente e no que concerne ao passivo, consignou o que já se encontrava decidido nos autos e não mais poderia ser discutido, e proferiu despacho sobre o modo como devia ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada um dos interessados, tendo-se concretamente consignado para melhor perceção dos interessados que: “8. Face à decisão já proferida reconhecendo as referidas verbas do passivo, quanto a estas verbas do passivo nada mais resta do que considerá-las para efeitos da forma e mapa de partilha e apreciar o requerido quanto à compensação com o crédito de tornas na interessada devedora daquelas verbas, não podendo agora ser (re)aberta a discussão sobre a existência, exigibilidade das mesmas sob pena de violação do caso julgado formal”.
De seguida e à luz do preceituado no art.º 1120.º n.º2 do C.P.Civil, e considerando o que havia sido decidido em sede de conferência de interessados e, no que releva no presente recurso, o que havia sido decidido quanto ao passivo relacionado, foi proferido despacho sobre a forma da partilha, ou seja - “11.1- as verbas do ativo a considerar são as constantes da relação de bens apresentada a 14.12.2018, somando-se as mesmas e dividindo-se o resultado por dois, o que corresponderá à quota-parte de cada um dos dois interessados. 11.2 - à quota parte da interessada AA deverá ser deduzido o valor do passivo reconhecido como sendo da sua exclusiva responsabilidade no despacho proferido a 11.10.2018 (atrás resumido no ponto 7 do presente despacho); 11.3 - Na composição dos quinhões deverá atender-se ao decidido na conferência realizada e despacho subsequente, a que se refere o ponto 5 do presente despacho”.
E nesta decisão foi tomada em consideração a questão da compensação de créditos entre os interessados (tornas e responsabilidade proporcional pelo passivo). Ora, é exatamente quanto a esta questão sequencial decidida em 1.ª instância que a interessada/apelante se insurge agora, mas sem o mínimo de razão.
Uma das formas de extinção das obrigações que a lei prevê é a compensação. Preceituando o art.º 847.º do C.Civil que quando duas pessoas estejam reciprocamente obrigadas a entregar coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade, é admissível que as respetivas obrigações sejam extintas, total ou parcialmente, pela dispensa de ambas de realizarem as suas prestações ou pela dedução de uma das prestações da prestação devida pela outra parte.
A compensação traduz-se na extinção de duas obrigações, sendo o credor de uma delas devedor na outra e o credor desta última, devedor da primeira.
Tem-se por judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à ação de cumprimento e à execução do património do devedor, cfr. art.º 817.º do C.Civil, requisito que se não se verifica nas obrigações naturais, cfr. art.º 402.º do C.Civiil, nem nas obrigações sob condição ou a termo, quando a condição ainda se não tenha verificado ou o prazo ainda se não tenha vencido.
O requisito da exigibilidade judicial do crédito não se reporta a créditos já reconhecidos por via judicial, bastando apenas que o contra-crédito esteja reconhecido pela contraparte, ou seja, suscetível de ser reconhecido em ação de cumprimento, podendo vir a ser declarado na própria oposição à execução. Em suma, exigibilidade judicial e reconhecimento judicial são realidade distintas, sendo apenas a primeira o requisito para a declaração de compensação.
Como é sabido o objetivo último do inventário subsequente a divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos ex-cônjuges, mas também a liquidar definitivamente a responsabilidade entre eles, envolvendo a partilha a satisfação de um sobre o outro, estabelecendo a regra da metade, participando nessa proporção no ativo e no passivo. Neste sentido, escreveu-se no Ac. do STJ de 3.10.2019, in www.dgsi.pt que “O processo especial de inventário destina-se a obter a partilha dos bens, ou mais concretamente, a partilha de bens que formam o acervo comum do casal dissolvido em consequência do divórcio, inexistindo qualquer motivo, quer de ordem material, quer de ordem adjetiva, para integrar na tramitação especial do processo de inventário uma pretensão de natureza puramente declarativa, que se traduza na condenação de um dos cônjuges no pagamento de uma determinada quantia correspondente a uma obrigação própria deste”.
E nesta conformidade, escreveu-se no despacho de saneamento do processo que: “Face à decisão já proferida reconhecendo as referidas verbas do passivo, quanto a estas verbas do passivo nada mais resta do que considerá-las para efeitos da forma e mapa de partilha e apreciar o requerido quanto à compensação com o crédito de tornas na interessada devedora daquelas verbas, não podendo agora ser (re)aberta a discussão sobre a existência, exigibilidade das mesmas sob pena de violação do caso julgado formal”.
Como refere Cristina M. Araújo Dias, in “Do regime da responsabilidade (pessoal e patrimonial) por dívidas dos cônjuges (problemas, críticas e sugestões)”, pág 582, no que concerne às responsabilidades entre os cônjuges, há que distinguir as compensações stricto sensu dos simples créditos entre cônjuges e assim, “A compensação aparecerá, no momento da liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça injustamente em detrimento e à custa de outra”. Isto porque, como é sabido, as compensações dão-se só nos regimes de comunhão e verificam-se quando há movimentos entre o património comum e os patrimónios próprios dos cônjuges: quando um destes patrimónios (um património próprio ou o património comum) responde por dívidas de outro património (o comum, se o que respondeu foi um património próprio, ou um património próprio se o que respondeu foi o património comum). Exemplo de tal situação ocorre quando um dos cônjuges responde por dívidas que a ambos responsabilizava: este tem direito a ser reembolsado de metade do montante global de tais pagamentos, surgindo um crédito de compensação a seu favor, o qual só é exigível no momento da partilha dos bens do casal; esta compensação tem lugar preferencialmente na meação do cônjuge devedor no património comum, cfr. art.ºs 1697.º n.ºs 1 e 2, 1730.º, 524.º, 1697.º e 1689.º n.º 3, todos do C.Civil.
Logo nenhuma censura nos merece a compensação de créditos operada na definição da forma à partilha, (e não relegar tal questão para ação de prestação de contas) sendo que se não pode olvidar, contrariamente ao que a interessada/apelante agora alega que a mesma efetivamente beneficiou com as benfeitorias feitas pelo cabeça-de-casal no imóvel constante do ativo como verba nº. 1, já que ao nele serem incorporadas tais benfeitorias, indiscutivelmente foi aumentado, nessa medida, o seu valor que, por sua vez, se refletiu no montante pelo qual o mesmo foi licitado e adjudicado ao cabeça-de-casal, de onde ressoltaram tornas a seu favor.
Na verdade, as dívidas em apreço, são dívidas relativas a um bem comum do casal – verba n.º1 - e não relativas a bens próprios de um deles, logo “in casu” tratando-se de um crédito entre os ex-cônjuges relativa a um bem comum do ex-casal e contraída durante a comunhão, integra o respetivo passivo e não será objeto de qualquer ação de prestação de contas, cfr. art.º 941.º do C.P.Civil.
Finalmente, sempre se dirá ainda que, contrariamente ao aventado pela apelante, nos autos não foi relacionado qualquer estabelecimento agropecuário de vacas leiteiras, ou algo idêntico, pelo que não tem qualquer sentido o assim invocado por aquela.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos, improcedem as conclusões da apelante.
Sumário:
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar as presentes apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Porto, 2024.04.09
Anabela Dias da Silva
Alexandra Pelayo
Fernando Vilares Ferreira