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PERDÃO DA LEI Nº 38-A/2023 DE 2 DE AGOSTO
PENA DE PRISÃO SUPERIOR A OITO ANOS
CÚMULO JURÍDICO
Sumário
(da responsabilidade da relatora) I- As medidas de clemência, atenta a sua natureza de providências excecionais, devem ser interpretadas nos precisos termos em que estão redigidas, sem ampliações nem restrições, não comportando aplicação analógica (cf. artigo 11º do Código Civil), embora sempre com a salvaguarda dos princípios constitucionais de igualdade e proporcionalidade. II- É de considerar contida na discricionariedade constitucionalmente reconhecida ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer um limite máximo para as penas suscetíveis de beneficiar de perdão – com o natural e óbvio propósito de excluir de tal medida de graça situações punidas com penas severas, que tendencialmente se referirão a factos especialmente gravosos, relativamente aos quais a sociedade teria dificuldade em compreender o recuo do ius puniendi do Estado. III- Nos termos previstos nos n os 1 e 4 do artigo 3º da Lei nº 38-A/2023, o arguido condenado em pena única superior a 8 anos de prisão não poderá beneficiar do perdão de pena decretado pela referida Lei, mesmo que as penas parcelares que integraram o referido cúmulo sejam, todas elas, inferiores a 8 anos de prisão.
Texto Integral
Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I. Relatório
O arguido AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia de ..., no concelho de ..., nascido em ........2000, solteiro, titular do cartão de cidadão n.º …, residente na ..., foi julgado no processo comum singular nº 2872/17.0T9PDL do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Local Criminal de Ponta Delgada – Juiz 3, tendo sido condenado, por sentença datada de 29.01.2021, pela prática, como autor material, de um crime de evasão do artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) meses de prisão.
No apenso nº 2872/17.0T9PDL.1, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada – Juiz 2, foi, em ........2021, realizado cúmulo jurídico entre as penas aplicadas nos processos nos 2872/17.0..., 1737/17.0..., 198/17.9... e 2158/17.0..., fixando-se a pena única imposta ao arguido AA em 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão…a que acrescerá a pena 40 dias de multa à taxa diária de €5,00, já convertida em 26 (vinte e seis) dias de prisão subsidiária.
Neste apenso foi proferida, em ........2023, decisão que, aplicando a Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto, declarou perdoado 1 (um) ano de prisão, a descontar na pena única aplicada ao arguido, e integralmente perdoada a pena de prisão subsidiária à pena de multa.
Discordando desta decisão, dela veio o Ministério Público interpor recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
“1. A discordância com a decisão do Tribunal a quo ocorre, por este ter aplicado 1 ano de perdão numa pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.
2. Tal despacho violou o artigo 3.º n.º 1 e 4 da Lei n.º 38-A/2023 de 02/08, pelo que deve ser concedido provimento ao recurso, em consequência deverá o despacho em crise ser alterado por outro que negue a aplicação do perdão, mantendo-se a pena única em 8 anos e 6 meses de prisão.
Assim se fazendo JUSTIÇA”
*
O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal, com subida imediata, em separado e efeito suspensivo.
Notificado nos termos previstos no artigo 411º, nº 6 do Código de Processo Penal, o arguido AA nada disse.
*
Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta apresentou parecer, subscrevendo a posição expressa na 1ª instância, e aditando:
“2. Posição do Ministério Público no TRL
Concordamos inteiramente com os fundamentos do recurso interposto pelo nosso Colega na 1.ª instância, pois o perdão de 1 ano nas penas de prisão até 8 anos, a que se refere o n.º 1 do art. 3.º da Lei 38-A/2023, de 02/08, tratando-se de penas resultantes de cúmulo jurídico, como é o caso, opera sobre a pena única até 8 anos, como resulta do n.º 4 deste dispositivo e diploma legal, não relevando que as penas parcelares sejam inferiores, como parece ter entendido o Tribunal a quo.
Em face do exposto, somos de parecer que o recurso merece provimento.”
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
Proferido despacho liminar (no qual se corrigiu o efeito atribuído ao recurso), colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada, a única questão a examinar e decidir é a de saber se deve, ou não, ser aplicado o perdão de pena decretado pela Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto.
*
III. Da decisão recorrida Com interesse para a decisão do recurso, consta da decisão recorrida:
“Da aplicação ou não da Lei nº.38-A/2023, de 2 de agosto
(Perdão)
1.
Nestes autos, temos como arguido:
1.1.
AA (= AA), nascido em ........2000…por isso com 30 anos de idade atém 14.10.2031.
Por decisão transitada em julgado, tal arguido está aqui condenado:
1.1.a.
Por factos praticados entre ........2017 e ........2017, integradores de 4 crimes de furto qualificado [artºs.203º, nº1 e 204º, nº.2, al.e), todos do CP] e 3 crimes de condução sem habilitação legal [artº.3º, nºs.1 e 2 do Dl 2/93, de 3 de janeiro], nas penas parciais de prisão de 2 anos e 2 meses; 2 anos e 2 meses; 2 anos e 2 meses; 2 anos e 2 meses; 2 meses, 2 meses e 2 meses, respetivamente;
1.1.b.
Por factos praticados entre ........2017 e ........2017, integradores dos crimes de furto, furto qualificado e condução sem habilitação legal [artºs.203º, nº1 e 204º, nºs.1, al. f) e 2, al. e), todos do CP e artº.3º, nºs.1 e 2 do Dl 2/93, de 3 de janeiro], nas penas de prisão de 2 anos e 10 meses; 2 anos e 10 meses; 1 ano e 2 meses; 1 ano; 8 meses; 8 meses; 8 meses; 3 meses; 3 meses; 1 ano e 2 meses e 1 ano; e
1.1.c.
Por factos praticados em ........2017, integradores do crime de condução sem habilitação legal (artº.3º, nºs.1 e 2 do Dl 2/93, de 3 de janeiro), na pena 40 dias de multa à taxa diária de €5,00, multa que foi convertida em 26 dias de prisão subsidiária.
1.1.d
A pena única foi fixada em 8 anos e 6 meses de prisão, acrescida da pena 40 dias de multa à taxa diária de €5,00, já convertida em 26 dias de prisão subsidiária.
*
2.
Nos termos do artº.2º da lei a que vimos fazendo referência, estão por ela abrangidas, para o que nos importa, as infrações praticadas até às 00:00 horas de dia 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
É o caso do arguido, pois, efetivamente, tinha menos de 30 anos à data da prática dos factos a que se reportam os crimes que lhe estão imputados e elencados acima em 1.1.a. a 1.1.d.
*
3.
Nos termos da mesma lei, art.º 7º:
3.a.
Não beneficiam do perdão e da amnistia:
3.a.a.
No âmbito dos crimes contra as pessoas:
3.a.a.1.
Os crimes de homicídio e infanticídio, previstos nos artºs. 131º a 133º e 136º do Código Penal (= CP);
3.a.a.2.
Os crimes de violência doméstica e de maus-tratos, previstos nos artºs.152º e 152º-A do CP;
3.a.a.3.
Os crimes de ofensa à integridade física grave, de mutilação genital feminina e de ofensa à integridade física qualificada, previstos nos artºs.144º, 144º-A e na al. c) do nº.1 do art.º 145º do CP;
3.a.a.4.
Os crimes de coação, perseguição, casamento forçado, sequestro, escravidão, tráfico de pessoas, rapto e tomada de reféns, previstos nos artºs.154º a 154º-B e 158º a 162º do CP; e
3.a.a.5.
Os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artºs. 163º a 176º-B do CP.
3.a.b.
No âmbito dos crimes contra o património:
3.a.b.1.
Os crimes de abuso de confiança ou burla, nos termos dos artºs. 205º, 217º e 218º do CP, quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artºs.256º a 258º do CP e por roubo em residências ou na via pública cometido com arma de fogo ou arma branca, previsto no artº.210º do CP;
3.a.b.2.
Os crimes de extorsão, previsto no art.º 223º do CP.
3.a.c.
No âmbito dos crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal:
3.a.c.1.
Os crimes de discriminação e incitamento ao ódio e à violência e de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, incluindo na forma grave, previstos nos artºs. 240º, 243º e 244º do CP.
3.a.d.
No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade:
3.a.d.1.
Os crimes de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, de incêndio florestal, danos contra a natureza e de poluição, previstos nos artºs. 272º, 274º, 278º e 279º do CP;
3.a.d.2.
Os crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artºs. 291º e 292º do CP; e
3.a.d.3.
Os crimes de associação criminosa, previsto no art.º 299º do CP.
3.a.e.
No âmbito dos crimes contra o Estado:
3.a.e.1.
Os crimes contra a soberania nacional e contra a realização do Estado de direito, previstos nas secções i e ii do capítulo i do título v do livro ii do CP, incluindo o crime de tráfico de influência, previsto no artº.335º do CP;
3.a.e.2.
Os crimes de evasão e de motim, previstos nos artºs.352º e 354º do CP;
3.a.e.3.
Os crimes de branqueamento, previsto no art.º 368º-A do CP;
3.a.e.4.
Os crimes de corrupção, previstos nos artºs.372º a 374º do CP; e
3.a.e.5.
Os crimes de peculato e de participação económica em negócio, previstos nos artºs.375º e 377º do CP.
3.a.f.
No âmbito dos crimes previstos em legislação avulsa:
3.a.f.1.
Os crimes de crimes de terrorismo, previstos na Lei nº.52/2003, de 2 de agosto, na sua redação atual;
3.a.f.2.
Os crimes previstos nos artºs.7º, 8º e 9º da Lei nº.20/2008, de 21 de abril, que cria o novo regime penal de corrupção no comércio internacional e no setor privado, dando cumprimento à Decisão Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de julho de 2003;
3.a.f.3.
Os crimes previstos nos artºs. 8º, 9º, 10º, 10º-A, 11º e 12º da Lei nº.50/2007, de 31 de agosto, que estabelece um novo regime de responsabilidade penal por comportamentos suscetíveis de afetar a verdade, a lealdade e a correção da competição e do seu resultado na atividade desportiva;
3.a.f.4.
Os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado e de fraude na obtenção de crédito, previstos nos artigos 36.º, 37.º e 38.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, que altera o regime em vigor em matéria de infrações antieconómicas e contra a saúde pública;
3.a.f.5.
Os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado e de fraude na obtenção de crédito, previstos nos artºs.36º, 37º e 38º do Decreto-Lei nº.28/84, de 20 de janeiro, que altera o regime em vigor em matéria de infrações antieconómicas e contra a saúde pública;
3.a.f.6.
Os crimes previstos nos artºs.36º e 37º do Código de Justiça Militar, aprovado em anexo à Lei nº.100/2003, de 15 de novembro;
3.a.f.7.
Os crimes de tráfico e mediação de armas, previsto no art.º 87º da Lei nº.5/2006, de 23 de fevereiro, que aprova o regime jurídico das armas e suas munições;
3.a.f.8.
Os crimes previstos na Lei nº.109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Cibercrime;
3.a.f.9.
Os crimes de auxílio à imigração ilegal, previsto no art.º 183º da Lei nº.23/2007, de 4 de julho, na sua redação atual;
3.a.f.10.
Os crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artºs.21º, 22º e 28º do Decreto-Lei nº.15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual;
3.a.f.11.
Os crimes previstos nos artºs. 27º a 34º da Lei nº. 39/2009, de 30 de julho, que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança;
3.a.g.
Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artº.67º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei nº.78/87, de 17 de fevereiro;
3.a.h.
Os condenados por crimes praticados enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas, designadamente aqueles previstos na Lei nº.34/87, de 16 de julho, que determina os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções;
3.a.i.
Os condenados em pena relativamente indeterminada;
3.a.j.
Os reincidentes;
3.a.k.
Os membros das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários relativamente à prática, no exercício das suas funções, de infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena;
3.a.l.
Os autores das contraordenações, as que forem praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.
3.b.
As medidas previstas na lei a que vimos fazendo referência, não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções – art.º 7º, nº.2.
3.c.
A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artº.3º e da amnistia prevista no artº.4º relativamente a outros crimes cometidos, devendo, para o efeito, proceder-se a cúmulo jurídico, quando aplicável – art.º 7º, nº.3.
*
4.
Os artºs. 4º e 6º…dizem-nos que são amnistiadas:
. As infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa; e
. As infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.
*
5.
Do art.º 5º da lei a que vimos fazendo referência, resulta que são perdoadas as sanções acessórias relativas a contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda €1.000,00.
*
6.
Aqui chegados, percebemos que o arguido está condenado, como resulta acima do ponto 1., por crimes que não figuram nas exclusões a que se reportam os números 3.a.a. a 3.a.f.11. acima…nem é pessoa das que estão apontadas nos números 3.a.g a 3.c. Mais sabemos que os crimes por ele cometidos não podem ser amnistiados face a respetiva moldura pena
Logo, há agora, que ter em conta o que decorre:
6.a.
Do artº.3º…que nos diz:
6.a.1.
Sem prejuízo do disposto no artº.4º, é perdoado um ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 (oito) anos…sendo certo que, no caso de a pena surgir de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (nº.4 do artº.3º);
6.a.2.
São, também, perdoadas:
. As penas de multa fixadas em até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;
. A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa (até 120 dias);
. A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa (até 120) de substituição; e
. As penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova;
6.a.3.
O perdão previsto no nº.1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena;
6.a.4.
O disposto no nº 1 abrange a execução da pena em regime de permanência na habitação;
6.a.5.
O perdão previsto no presente artigo é materialmente adicionável a perdões anteriores.
*
7.
Olhando para o que vem de se apontar, percebemos que o arguido:
. beneficia, uma vez que se tratada de penas até 8 anos, do perdão de 1 (um) ano a descontar na pena única alcançada e por reporte aos crimes que temos acima em 1. 1.1.a e 1.1.c., o que declaro;
. beneficia do perdão integral correspondente à prisão subsidiária de multa a que se reporta o crime que está acima em 1., 1.1.d., o que declaro.
Perdão que, nos termos do artº.8º da lei a que vimos fazendo referência lhe é concedido sob as condições resolutivas de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da presente lei, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acrescerá a pena ou parte da pena perdoada.
8.
Com o perdão ora concedido tem o arguido a exaurir a pena de 7 anos e 6 meses de prisão…para o que haverão os autos de ser apresentados ao MºPº para que refaça a liquidação da pena que está nos autos que, em razão deste perdão, perdeu acuidade, o que determino.
Comunique ao TEP este despacho.
Remeta boletins ao registo.
Notifique.”
*
IV. Fundamentação
Como acima se assinalou a questão trazida a este tribunal de recurso é a de saber se deve, ou não, ser aplicado o perdão de pena decretado pela Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto. Vejamos, então.
Tal como se referiu na decisão recorrida, através da Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto, foi estabelecido um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artigo 1º), abrangendo as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (artigo 2º, nº 1).
Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional nº 488/20082, “O perdão de penas constitui uma medida de clemência ou de graça “do príncipe” que é aplicada em função das penas em que as pessoas foram condenadas.
Como medida de clemência, o perdão emerge de um acto político, tornado fonte jurígena de efeitos sobre as penas aplicadas (sobre a compreensão da clemência como virtude do legislador, cf. Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas, tradução de José Faria Costa, 2.ª edição da Fundação Calouste Gulbenkian, p. 161).
Ele impede a execução da pena aplicada pela prática de crimes (cf. sobre a acepção do conceito e das figuras afins, entre outros, Pedro Duro, «Notas sobre alguns limites do poder de amnistiar”, Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano II, n.º 3, 2001, pp. 323 e segs. e Francisco Aguilar, Amnistia e Constituição, Almedina, pp. 37 e segs).
Na medida em que se traduz num irrelevar, para efeitos do seu cumprimento, da pena concretamente aplicada pela prática de um crime tipificado e cominado na lei – ou visto de outro ângulo, numa desconsideração, total ou parcial, da pena aplicada que foi abstractamente adstringida pelo legislador à violação dos bens jurídico-penais que a definição do tipo legal encerra – o perdão genérico de penas é, por regra, por isso, decretado pelo órgão com competência para definir esse ilícito criminal.
Nesta perspectiva, ele é, ainda, um meio específico de concretização da política criminal referente à efectivação das penas aplicadas pela prática dos crimes definidos na lei.
Tratando-se de uma medida de clemência geral que é aplicada a todos em função das penas aplicadas, o perdão é um perdão geral.”
No caso dos autos, todos os factos pelos quais o arguido foi condenado (recordamos, nos processos n.ºs 2872/17.0T9PDL, 1737/17.0PBPDL, 198/17.9PBPDL e 2158/17.0PBPDL), foram praticados antes de 19.06.2023, não contando o arguido mais de 30 anos na data da prática de tais factos (posto que conta atualmente 23 anos de idade). Assim, em princípio deveria o mesmo considerar-se abrangido pela medida de clemência decretada pela referida Lei.
Porém, pese embora nenhum dos crimes pelos quais foi condenado se mostre excluído da aplicação do perdão genérico decretado (vd. artigo 7º do diploma em referência), certo é que, de acordo com o artigo 3º, nº 1 da referida Lei nº 38-A/2023, o mencionado perdão só é aplicável a penas de prisão até 8 anos.
E, sendo verdade que nenhuma das penas parcelares em que o arguido foi condenado é superior a 8 anos de prisão, importa ter em conta que o nº 4 do mesmo artigo 3º dispõe que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
Tal disposição não constitui inovação legislativa já que, a partir da Lei nº 16/86, de 11 de junho, nas várias leis de amnistia e perdão, sempre foi estipulado que, em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares3.
Como, bem, notou o Digno recorrente, a pena única em que foi condenado o arguido AA após a realização de cúmulo jurídico é de 8 anos e 6 meses de prisão.
Ora, as medidas de clemência, atenta a sua natureza de providências excecionais, devem ser interpretadas nos precisos termos em que estão redigidas, sem ampliações nem restrições, não comportando aplicação analógica (cf. artigo 11º do Código Civil), embora sempre com a salvaguarda dos princípios constitucionais de igualdade e proporcionalidade.
É vasta a jurisprudência do Tribunal Constitucional versando sobre o princípio da igualdade (cf. artigo 13º da Constituição da República Portuguesa), podendo ver-se a respeito, designadamente, o acórdão TC nº 232/20034, do qual citamos: “[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.]”.
Adicionalmente, como se refere no supracitado acórdão do Tribunal Constitucional nº 488/2008, a propósito da do perdão genérico de penas, “[…] cabendo a sua edição na competência do legislador ordinário, tomada no campo da política criminal, não pode deixar de se lhe reconhecer discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo.
Referindo-se à circunstância de as Leis n.ºs 23/91, de 4 de Julho, 15/94, de 11 de Maio e 29/99 não terem contemplado, nos perdões genéricos concedidos, a medida de segurança de internamento, disse-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/02, disponível em www.tribunalconstitucional.pt:
“Neste domínio, o Tribunal Constitucional vem entendendo, com significativa reiteração, que, nos óbvios parâmetros do Estado de direito democrático, a liberdade de conformação legislativa goza de alargado espaço onde têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d’Etat”.
Mas essa discricionariedade normativo-constitutiva não é ilimitada: ela tem de respeitar as normas e os princípios constitucionais.”
Não obstante, como também se adianta no mencionado aresto – e constitui jurisprudência reiterada do nosso Tribunal Constitucional – “Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas – o quantum do perdão –, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis.”
Face aos termos em que se mostra redigida a disposição em questão, não podem considerar-se postos em causa os mencionados princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade: a norma aplica-se a todos os que se encontrem da situação visada (mostrando-se, por isso, de aplicação geral) e é, nos termos em que se deixou exposto, de considerar contida na discricionariedade constitucionalmente reconhecida ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer um limite máximo para as penas suscetíveis de beneficiar de tal perdão – com o natural e óbvio propósito de excluir de tal medida de graça situações punidas com penas severas, que tendencialmente se referirão a factos especialmente gravosos, relativamente aos quais a sociedade teria dificuldade em compreender o recuo do ius puniendi do Estado.
Em suma, não existe fundamento para recusar a aplicação dos nos 1 e 4 do artigo 3º da Lei nº 38-A/2023, com o sentido de que, tendo o arguido sido condenado em pena única superior a 8 anos de prisão, não poderá beneficiar do perdão de pena decretado pela referida Lei.
Cremos, aliás, face aos termos em que se mostra redigida a decisão recorrida – que não equaciona, em momento algum, o afastamento da norma em questão (designadamente, com fundamento na respetiva inconstitucionalidade), nem toma posição no sentido de considerar o perdão aplicável às penas parcelares – que terá ocorrido lapso no respetivo proferimento, não tendo o Tribunal a quo atentado devidamente na medida da pena única imposta ao arguido.
Verifica-se, pois, manifesto erro de direito.
Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, é de reconhecer razão ao Digno recorrente, impondo-se, por isso, revogar a decisão recorrida.
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V. Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar a decisão recorrida e declarar que à pena única de 8 anos e 6 meses de prisão em que foi condenado o arguido AA não é aplicável o perdão de pena decretado pela Lei nº 38-A/2023, de 03 de agosto, devendo ser cumprida na íntegra, sem prejuízo da oportuna concessão de liberdade condicional se e quando a ela houver lugar.
Sem custas.
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Lisboa, 23 de janeiro de 2024 (texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
Mafalda Sequinho dos Santos
Sara Reis Marques
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1. Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art.º 412.º, n.º 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
2. De 07.10.2008, relatado pelo Conselheiro Benjamim Rodrigues, acessível em www.tribunalconstitucional.pt.
3. “O perdão referido no n.º 1 abrange as penas de prisão fixadas em alternativa a penas de multa e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena unitária, sendo materialmente adicionável a perdões anteriores.” (cfr. art.º 13.º, n.º 2, da Lei n.º 16/86, de 11 de junho);
“O perdão referido nas alíneas a) e b) do n.º 1 abrange as penas de prisão fixadas em alternativa a penas de multa e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena unitária, sendo materialmente adicionável a perdões anteriores” (cfr. art.º 14.º, n.º 3, da Lei n.º 23/91, de 04 de julho);
“Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e é materialmente adicionável a perdões anteriores, sem prejuízo do disposto no artigo 10.º” (cfr. art.º 8.º, n.º 4, da Lei n.º 15/94, de 11 de maio); e
“Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e é materialmente adicionável a perdões anteriores, sem prejuízo do disposto no artigo 3.º” (cfr. art.º 1.º, n.º 4, da Lei n.º 29/99, de 12 de maio); e
“O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única” (cfr. art.º 2.º, n.º 3, da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril).
4. Publicado no Diário da República I Série-A, de 17 de junho de 2003.