ERRO NA FORMA DE PROCESSO
DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
Sumário

I. O recurso de apelação tem por objeto uma decisão judicial, constituindo um modo de reapreciar esta de facto e/ou de direito.
II. Salvo quanto a questões de conhecimento oficioso, a apelação não visa apreciar questões novas, mas tão-só reexaminar questões de facto e/ou de direito já anteriormente suscitadas pelas partes e apreciadas pelo Tribunal recorrido.
III. O Tribunal da Relação não pode apreciar e decidir o erro na forma de processo e, como decorrência deste, a incompetência material do Tribunal recorrido, quando tais questões apenas tenham sido suscitadas em sede de recurso e este haja sido interposto da decisão que conheceu do mérito da causa.
IV. O diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação não pode ser apreciado e decidido no âmbito de um processo comum de declaração, devendo antes ser suscitado na execução para entrega de coisa certa, conforme artigos 864.º e 865.º do CPCivil, ou no procedimento especial de despejo, conforme artigos 15.º-N e 15.º-O do NRAU, enquanto incidente dos mesmos.

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
RELATÓRIO.
Neste processo comum de declaração, o A., VN, demanda o R., JA, pedindo que este seja condenado a:
«a) (…) a entregar-lhe a fração ocupada, livre e desembaraçada de quaisquer móveis ou utensílios;
b) (…) a pagar-lhe a título de ocupação da fracção sem qualquer título em valor nunca inferior a €25,00 (…) por dia, até que aquele lhe entregue as chaves da fracção».
Como fundamento do seu pedido, o A. alegou, em suma, que é dono da fração autónoma designada pela letra D, correspondente ao terceiro andar do prédio sito na Travessa …, n.º … freguesia de Santa Maria Maior, Lisboa.
Referiu igualmente que celebrou com o R. um contrato de arrendamento para habitação deste, pelo período limitado de cinco anos, com início em 01.08.2015.
Mencionou também que, por notificação judicial avulsa, em 10.12.2019 o A. comunicou ao R. a oposição à renovação do arrendamento, sendo que o R. nada disse e não entregou, entretanto, o locado ao A.
O R. foi citado e não apresentou contestação, sendo que o mesmo goza de apoio judiciário nas modalidades de nomeação e pagamento da compensação de patrono, bem como de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
O Tribunal de 1.ª instância considerou confessados os factos alegados pelo A. e notificou as partes para alegarem por escrito.
As partes apresentaram alegações escritas: o A. manteve o alegado na petição inicial, ao passo que o R. referiu, em suma, que tem 85 anos de idade, vive sozinho, com uma pensão mensal de €280,00, e tem muitas dificuldades de entendimento, não tendo por isso entendido devidamente os termos da notificação judicial avulsa que lhe foi feita, termos em que concluiu pedindo que não se decrete o despejo e, caso assim não se entenda, seja diferida a desocupação do locado.
O Juízo Local Cível de Lisboa proferiu sentença, na qual condenou o R. a restituir ao A. a referida fração autónoma livre de pessoas e bens, absolvendo no mais o R. do pedido.
Inconformado com tal decisão, dela recorreu o R., o qual apresentou as seguintes conclusões:
«a) Por sentença proferida em 18 de Janeiro de 2023, veio o Tribunal a quo julgar procedente a acção intentada pelo Recorrido, decretando o despejo do Recorrente.
b) Salvo o devido respeito, não tem razão o Tribunal a quo, não se conformando o Recorrente com a decisão do mesmo, pelos motivos que se passam a explicitar.
c) O Recorrido veio intentar a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra o Recorrente, pedindo que o mesmo fosse condenado na restituição do imóvel identificado nos autos, alegando para o efeito que é proprietário do imóvel, que celebrou com o Recorrente um contrato de arrendamento com início em 1 de Agosto de 2015 e termo em 31 de Julho de 2020, que em 10 de Dezembro de 2019 se opôs à renovação do contrato o que concretizou por meio de notificação judicial avulsa e que o Recorrente nunca procedeu à entrega do locado.
d) Para proceder ao despejo do Recorrente, o Recorrido deveria utilizado o procedimento próprio, após ter comunicado ao Recorrente a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento, isto é, o procedimento especial de despejo, previsto no art.º 15.º do NRAU, a intentar no Balcão Nacional do Arrendamento.
e) Conforme resulta do mencionado artigo 15º, nº 2, al. c) do NRAU, o procedimento especial de despejo é o meio processual indicado para efectivar a cessação do contrato de arrendamento, quando o arrendatário não desocupa o locado na data fixada, nomeadamente no caso de cessação por oposição à renovação.
f) No presente caso, o Recorrido intentou uma acção declarativa sob a forma de processo comum, tendo em visto proceder ao despejo do Recorrente.
g) De acordo com o disposto no artigo 15º do NRAU, o Recorrido deveria ter-se socorrido do procedimento especial de despejo, a intentar no Balcão Nacional do Arrendamento, por ser este o mecanismo próprio de que o mesmo dispunha para proceder ao despejo do Recorrente.
h) O Tribunal a quo era materialmente incompetente para julgar a presente causa, pois a mesma deveria ter sido intentada junto do Balcão Nacional do Arrendamento.
i) A incompetência material do Tribunal é uma excepção dilatória, nos termos da al. a) do artigo 577º do C.P.C., que levam à absolvição da instância do Réu.
j) Pelo que deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência ser o Recorrente absolvido da instância, com as demais consequências legais.
k) Caso não se entenda que estamos perante uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa, hipótese que se coloca para meros efeitos de raciocínio, sem conceder, sempre se dirá o seguinte:
l) O Recorrido veio com a presente acção peticionar o despejo do Recorrente, alegando para o efeito que por Notificação Judicial Avulsa o notificou da sua Oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado entre as partes em 1/08/2015 e com terminus a 31/07/2020.
m) Mais alega o Recorrido que findo o prazo dos 5 anos de duração do contrato e perante a oposição à renovação manifestada pelo mesmo, o Recorrente não procedeu à entrega do locado.
n) O Recorrente tem 85 anos de idade, vive sozinho, é analfabeto e tem muitas dificuldades de entendimento, não tendo quem lhe explicasse devidamente os termos da notificação que lhe foi feita.
o) O Recorrente vive numa situação económica e social muito precária e sobrevive com uma pensão de reforma mensal no valor de 280,00€.
p) Para efeitos de subsistência, o Recorrente tem o apoio da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior e da Associação “Mais Proximidade”.
q) O Recorrente, face à sua idade avançada e por ser analfabeto, não entendeu quais eram as intenções do Recorrido com a Notificação Judicial Avulsa que efectuou.
r) O Recorrente veio requerer aos autos o diferimento da desocupação do locado, pedido que foi indeferido pelo Tribunal a quo por o Recorrido não ter utilizado o Procedimento Especial de Despejo, sede própria onde tal pedido podia ser formulado.
s) Esta decisão do Recorrido de ter intentado uma acção de despejo pela via judicial implicou que o Recorrente não pudesse lançar mão de um instituto que lhe permitisse salvaguardar a sua situação, pelo menos até arranjar um sítio onde ficar.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente por provado, e em consequência, ser julgada procedente a excepção dilatória da incompetência material do Tribunal a quo, com a consequente absolvição da instância do Recorrente.
Caso assim não se entenda, contra o que se espera, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado e em consequência ser revogada a decisão do Tribunal a quo que condenou o Recorrente a restituir o imóvel ao Recorrido».
O A. contra-alegou, sustentando a manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir.
II.
OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pelo Recorrente, não havendo questões de conhecimento oficioso, nos presentes autos está em causa apreciar e decidir:
- Do erro na forma de processo e competência do Tribunal recorrido;
- Do diferimento da desocupação do locado.
Assim.
III.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Conforme decisão proferida pelo Tribunal recorrido, não impugnada pelo Recorrente, consideraram-se assentes os seguintes factos:
 1. Em 5 de agosto de 2015, o A., na qualidade de primeiro outorgante e senhorio, e o R., na qualidade de segundo outorgante e arrendatário, subscreverem o escrito junto pelo A. como documento n.º 4, com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido, denominado “Contrato de arrendamento para habitação por período limitado de cinco anos”.
2. Pelo escrito referido em 1., A. e R., declararam que:
“Entre si celebram o presente contrato de arrendamento de duração limitada para habitação, referente ao terceiro andar, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Travessa …, n.º …, em Lisboa, a que corresponde a fração D, inscrito na matriz urbana sob o artigo …, da freguesia de Santa Maria Maior, concelho de Lisboa e descrito na Conservatória do registo Predial de Lisboa, sob o número … (…), que se regulam pelas condições constantes nas cláusulas seguintes:
Cláusula Primeira
O prazo de duração do contrato de arrendamento limitado para habitação é de cinco anos, com início no dia 01 do mês de agosto do ano de 2015 e termo no dia 31 do mês de julho do ano de 2020, sendo as suas legais prorrogações por três anos.
Cláusula segunda
A renda mensal é de € 200,00 (duzentos euros) a pagar mensalmente no primeiro dia útil do mês a respeitar, e será paga através de transferência bancária (…).”
3. Em 10.12.019 o R. foi judicialmente notificado, no âmbito de procedimento de notificação judicial avulsa que correu termos sob o n.º …/… no Juízo Local Cível de Lisboa (J15), de que o A. “vem ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 1, do artigo 1097º do Código Civil comunicar formalmente a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento para habitação por período limitado a cinco anos, celebrado no dia 05 do mês de Agosto do ano de 2015, que teve início no dia 01 do mesmo mês e ano (…), impedindo a sua renovação automática.”
IV.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
São duas as questões suscitadas pelo Recorrente: (i) a incompetência material do Tribunal para a presente ação, dado que a mesma deveria constituir um procedimento especial de despejo e, por isso, deveria ter sido interposta no Balcão Nacional do Arrendamento, (ii) o diferimento da desocupação do arrendado, por entender estarem no caso reunidas as condições para tal.
Apreciemos.
1. Do erro na forma de processo e competência do Tribunal recorrido.
(Conclusões a) a j) das alegações de recurso).
1. Segundo o disposto no artigo 627.º, n.º 1, do CPCivil, «[a]s decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos».
Nos termos do artigo 644.º do mesmo diploma legal, o recurso de apelação incide sobre decisões proferidas por «tribunal de 1.ª instância». 
O recurso de apelação tem, assim, por objeto uma decisão judicial, constituindo um modo de reapreciar esta de facto e/ou de direito.
Salvo quanto a questões de conhecimento oficioso, a apelação não visa, pois, apreciar questões novas, mas tão-só reexaminar questões de facto e/ou de direito já anteriormente suscitadas pelas partes e apreciadas pelo Tribunal recorrido.
Como refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, edição de 2018, página 31, «[n]a fase de recurso, as partes e o Tribunal Superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objeto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. Por outro lado, a demanda do Tribunal Superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior, sem prejuízo da possibilidade de se suscitarem ou serem apreciadas questões de conhecimento oficioso (…)».
No mesmo sentido, refere Francisco Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, edição de 2019, página 463, que “[r]ecursos, «em sentido técnico-jurídico, são meios específicos de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se obtém o reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida»[1]. Meios que visam modificar as decisões recorridas, que não criam decisões sobre matéria nova, não podendo assim neles ser versadas questões que não hajam sido suscitadas perante o tribunal recorrido (isto salvas as questões de natureza adjetivo-processuais e substantivo-material que sejam de conhecimento oficioso)”.
In casu.  
O Recorrente veio suscitar em sede de recurso o erro na forma do processo e, como sua decorrência, a competência material do Tribunal recorrido.
Alegou, em suma, que «o Recorrido deveria ter-se socorrido do procedimento especial de despejo, a intentar no Balcão Nacional do Arrendamento», termos em que concluiu ser o Tribunal recorrido «materialmente incompetente para julgar a presente causa».
Ora, o erro na forma do processo e a competência material do Tribunal recorrido constituem questões novas, pois não foram anteriormente suscitadas no processo pelas partes, nomeadamente pelo aqui Recorrente, nem foram objeto de apreciação e decisão pelo Tribunal recorrido.
No caso em apreço, a questão do erro na forma do processo precede a questão da competência material do Tribunal recorrido, termos em que só se proceder aquela cumpre apreciar esta.
Ora, conforme decorre dos artigos 193.º, n.º 1, 196.º, 198.º, n.º 1, e 200.º, n.º 2, todos do CPCivil, o alegado erro na forma do processo mostra-se no caso sanado com a prolação da decisão recorrida, termos em que não pode ser suscitada pelo Recorrente em sede recursiva, nem pode ser apreciada oficiosamente por este Tribunal de recurso, com o que decorre prejudicada a apreciação da suscitada questão da incompetência material do Tribunal recorrido.
Não devendo aqui apreciar-se o invocado erro na forma do processo, sanado que se mostra o mesmo nos termos do apontado normativo, carece de sentido apreciar a competência material do Tribunal recorrido nos termos indicados pelo Recorrente, sendo que enquanto processo comum de declaração o Tribunal recorrido é materialmente competente, conforme disposto no artigo 117.º, n.º 1, a), e 130.º, n.º 1,, ambos da Lei n.º 62/2013, de 26.08.  
Em suma, sendo o invocado erro na forma de processo e a alegada incompetência material questões novas insuscetíveis de conhecimento oficioso por este Tribunal da Relação de Lisboa, carece de fundamento a pretensão do Recorrente na matéria, pelo que improcede o recurso nessa sede.
2. Do diferimento da desocupação do locado.
(Conclusões k) a s) das alegações de recurso).
Diversamente da questão anterior, trata-se agora de tema suscitada pelo R., aqui Recorrente, nas alegações a que se refere o artigo 567.º, n.º 2, do CPCivil e expressamente abordado na decisão recorrida em termos que não merecem qualquer censura por este Tribunal de recurso.
O diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação não pode ser apreciado e decidido no âmbito do presente processo comum de declaração, devendo antes ser suscitado na execução para entrega de coisa certa, conforme artigos 864.º e 865.º do CPCivil, ou no procedimento especial de despejo, conforme artigos 15.º-N e 15.º-O do NRAU, enquanto incidente dos mesmos.
Improcede, pois, também nesta parte o recurso.
*
Quanto às custas do recurso.
Segundo o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais, o recurso é considerado um «processo autónomo» para efeito de custas processuais, sendo que a decisão que julgue o recurso «condena em custas a parte que a elas houver dado causa», entendendo-se «que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção que o for».
Ora, in casu improcede a pretensão do Recorrente.
Na relação jurídico-processual recursiva o Recorrente configura-se, assim, como parte vencida, pois a improcedência do recurso é-lhe desfavorável.
Nestes termos, as custas do recurso devem ser suportadas pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

V. DECISÃO  
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso, pelo que mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas, na vertente de custas de parte, pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 6 de julho de 2023
Paulo Fernandes da Silva
Inês Moura
Higina Castelo
_______________________________________________________
[1] Cfr. J. RODRIGUES BASTOS, Notas, vol. III cit., p. 211, apud ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. V cit., p. 211 e demais AUTORES nesse lugar citados.