O critério relevante para determinar se há, ou não, o grau mínimo de semelhança necessário para a protecção de uma marca de prestígio da União Europeia deverá ser um critério normativo, consonante com os fins de protecção do regime jurídico aplicável.
I. — RELATÓRIO
1. Bayerische Motorenwerke, AG, interpôs recurso para o Tribunal da Propriedade Intelectual da decisão do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) que admitiu o registo da marca nacional n.º 657862 correspondente ao seguinte sinal:
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2. O Tribunal da Propriedade Intelectual indeferiu o recurso interposto.
3. Inconformada, Bayerische Motorenwerke, AG, interpôs recurso de apelação.
4. O Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença recorrida.
5. O dispositivo do acórdão recorrido é do seguinte teor:
Pelo exposto, sem prejuízo da eliminação do facto único não provado da decisão do tribunal de primeira instância, acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
6. Inconformada, Bayerische Motorenwerke, AG, interpôs recurso de revista.
7. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1) A presente revista é interposta do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no dia 23.11.2022, que julgou improcedente o recurso de apelação e confirmou a sentença do TPI de 28.09.2022 e a decisão de concessão do registo da marca nacional n.º 657862 MCARS a favor da Recorrida.
2) O recurso vem interposto ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, alínea d) do CPC, porquanto o acórdão recorrido está em direta oposição com acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão), de 27.04.2022, proferido no processo n.º 68/21.2YHLSB.L1, o qual se debruçou sobre a mesma questão substancial de Direito que está em causa nestes autos, i.e., o âmbito da proteção jurídica conferida às marcas de prestígio, e os requisitos que resultam dessa proteção jurídica reforçada para fundamentar a recusa de um pedido de registo de sinal distintivo nos termos do disposto no artigo 235.º do CPI.
3) Para aplicar o fundamento de recusa de pedido de registo de sinal distintivo previsto no artigo 235.º do CPI, o acórdão fundamento considerou que não era necessário verificar-se um risco de confusão entre os sinais em confronto para que estes fossem semelhantes, ainda que minimamente. No acórdão fundamento considerou-se que a identidade ou semelhança com uma marca de prestígio dispensa a verificação do risco de confusão como requisito de proteção das marcas de prestígio da União Europeia, bastando que ocorra um grau mínimo de semelhança.
4) Ao invés, o acórdão recorrido partiu da premissa (errada) de que a semelhança dos sinais que releva para a aplicação dos critérios estabelecidos no artigo 235.º do CPI pressupõe um risco de confusão entre os sinais no espírito do consumidor.
5) As interpretações dos requisitos de aplicação do fundamento de recusa do registo de marca previsto no artigo 235.º do CPI levadas a cabo no acórdão recorrido e no acórdão fundamento são manifestamente divergentes e resultaram em decisões frontalmente opostas proferidas em quadros normativos substancialmente idênticos, pelo que se verificam os pressupostos de admissibilidade da revista ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, d) do CPC.
6) A BMW AG invocou a ilegalidade do despacho de concessão do registo da marca nacional n.º 657862 com base em dois fundamentos distintos, a saber: i) a infração das suas marcas M, que são marcas de prestígio na União Europeia; e ii) a imitação das marcas M.
7) Apesar de afirmar partir do pressuposto do reconhecimento do prestígio das marcas da BMW AG, feito pelo TPI, o acórdão recorrido não aplicou corretamente os critérios estabelecidos no artigo 235.º do CPI, remetendo a análise comparativa dos sinais para os critérios gerais do artigo 238.º, n.º 1, alínea c) do CPI, limitando-se a comparar os sinais e a analisar o risco de confusão ou associação das marcas à luz dos critérios gerais estabelecidos neste preceito. Salvo o devido respeito, ocorreu aqui manifesto erro de julgamento no acórdão recorrido.
8) Quando a marca anterior seja qualificada como de prestígio, é à luz dos critérios estabelecidos no artigo 235.º do CPI que deve ser aferido se o sinal posterior deve ou não ser registado. Tal como foi entendido no acórdão fundamento, os critérios estabelecidos no artigo 235.º do CPI são diferentes e muito menos exigentes do que aqueles que se encontram estabelecidos para a comparação de sinais quanto a marca anterior não beneficie desse regime excecional: quando o sinal prioritário tem prestígio, deve partir-se do pressuposto de que a existência de um grau semelhança entre os sinais sob comparação, ainda que mínimo, pode conduzir a que o uso da marca posterior gere associação com a marca de prestígio anterior no espírito dos consumidores e, desse modo, poder tirar partido indevido da marca de prestígio anterior ou prejudicar o prestígio ou a capacidade distintiva dessa marca.
9) No presente caso, existem semelhanças inegáveis e muito significativas entre a marca registanda e as marcas de prestígio anteriores que inevitavelmente suscitam uma associação entre os sinais no espírito do consumidor, nos termos definidos pela jurisprudência relevante do TJUE e acolhidos e aplicados no acórdão fundamento.
10) Mé o denominador comum a todas as marcas invocadas pela BMW AG em oposição ao registo da marcada Recorridae “M” encontra-se registada como marca a favor da BMW AG para assinalar automóveis e peças para os mesmos; acessórios para veículos automóveis, incluídos na classe 12 através do registo da marca da União Europeia n.º 7134158 M– cf. facto provado 4.
11) Já em MCARS, também a letra M é o elemento mais distintivo e, consequentemente, preponderante, porquanto“cars” é uma palavra inglesa que significa “carros” e que o consumidor português compreende perfeitamente e o elemento figurativo representa a silhueta de um automóvel, traduzindo de forma inequívoca o objeto dos serviços assinalados.
12) O elemento distintivo e predominante da marcada Recorrida –M–reproduz totalmente a marca da UE n.º 7134158 Mda BMW AG, como aliás notou o TPI na sentença recorrida (cf. pág. 12).
13) Mé mundialmente conhecida e reconhecia pelo público como pertencendo e estando associada à BMW AG, razão pela qual a Recorrida decidiu incorporar “M” na sua marca, reproduzindo ilegalmente a marca da UE n.º 7134158 M. Diga-se que a Recorrida podia ter escolhido qualquer outra letra do alfabeto como elemento distintivo a integrar na sua marca, mas não foi isso que sucedeu.
14) Acresce que MCARS adota precisamente a mesma lógica de construção que as marcas M Performance, MSport Package ou MSport da BMW AG, i.e., a combinação de Mcom outros elementos descritivos ou sugestivos de automóveis.
15) A incorporação da marca M em MCARS conduz a que se estabeleçam semelhanças entre as marcas, como aliás a sentença do TPI não deixou de notar, semelhanças essas que inevitavelmente levam à existência de um risco de associação ou evocação das marcas M da BMW AG, as quais foram reconhecidas nos autos como sendo marcas de prestígio.
16) Resulta provado pelos documentos juntos aos autos que a marca M da BMW AG adquiriu um elevado grau de conhecimento junto do público consumidor visado quanto a uma parte substancial da União Europeia. Resulta igualmente provado por documento que o prestígio das marcas M tem vindo a ser reconhecido e afirmado por autoridades administrativas com competência para conceder registo de marcas de diversos países, incluindo o EUIPO e o INPI.
17) A marca M adquiriu prestígio através do uso efetuado isoladamente ou como elemento independente de outras marcas prestígio na União Europeia em relação a automóveis e peças para os mesmos; incluídos na classe 12 [automóveis e peças para os mesmos; acessórios para veículos automóveis] em momento anterior à apresentação do pedido de registo da marca nacional n.º 657862 MCARS.
18) A BMW AG é titular de diversos registos de marca M, entre os quais o registo da marca da UE n.º 7134158 M registado em 24.11.2009 para assinalar automóveis e peças para os mesmos; acessórios para veículos automóveis, na classe 12, sendo incontroverso que a BMW AG é titular de registo de marca em relação aos produtos que lhe deram prestígio.
19) Tal como foi entendido no acórdão fundamento, no âmbito da aplicação da norma contida no artigo 235.º, n.º 1 do CPI cumpre considerar que, podendo existir risco de confusão ou associação, não é necessário que exista um grau de semelhança tal que exista espírito de confusão no espírito do consumidor, mas sim que permita que o consumidor estabeleça uma tal ligação entre o sinal e a marca de prestígio. Tal é o entendimento consistente da jurisprudência dos tribunais de direito da União Europeia em matéria de infração de marcas consideradas de prestígio (Acórdão Intel (C-252/07) do TJUE, parágrafos 57 a 63; Acórdão SABEL (C-251/95), parágrafos 20 a 24, ou o acórdão do Tribunal de Primeira Instância (Quinta Secção), (T‑215/03), parágrafo 41).
20) MCARS é manifestamente semelhante a M, destinando-se a assinalar serviços idênticos e/ou afins dos produtos e serviços assinalados pela marca M, existindo por isso manifesto risco de associação espontânea e imediata de MCARS às marcas M da BMW AG, as quais são evocadas no espírito do consumidor pela reprodução do elemento característico “M”. Consequentemente, o uso de MCARS reduz o carácter distintivo de M já que é apto a comprometer a associação imediata e intuitiva aos produtos da BMW AG.
21) O uso de MCARS em serviços de venda de automóveis e suas peças e acessórios espoleta a transferência da imagem e características que o consumidor associa a M para aquela e, desse modo, a Recorrida beneficiará injustificadamente da sua função publicitária, sem qualquer compensação financeira para a BMW AG. Os consumidores procurarão os serviços da Recorrida por referência aos produtos assinalados pelas marcas M, relacionando-a com a BMW AG. Tal corresponde à noção de aproveitamento indevido do prestígio ou da capacidade distintiva da marca, tal como definida pela jurisprudência europeia relevante.
22) O acórdão recorrido deveria ter analisado o risco de associação da marca em crise às prestigiadas marcas M à luz dos critérios específicos do artigo 235.º do CPI. Ao não o ter feito, o acórdão recorrido fez uma interpretação incorreta da norma jurídica aplicável à resolução do litígio, estando por isso ferido de ilegalidade e devendo ser revogado e substituído por acórdão que recuse o registo da marca nacional n.º 675862 nos termos do artigo 235.º do CPI.
23) Acresce que MCARS imita as marcas M da BMW AG, estando por isso verificados todos os requisitos previstos no artigo 238.º do CPI e, consequentemente, está também verificado o fundamento de recusa do registo da marca nos termos do artigo 232.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPI.
24) O Tribunal recorrido laborou em erro quanto ao terceiro requisito do conceito de imitação de marcas– semelhanças e confundibilidade das marcas.
25) Quer a jurisprudência do TJUE, como a jurisprudência do TG, têm afirmado consistentemente que a determinação do carácter distintivo de marcas compostas por apenas uma letra não está sujeita a critérios diferentes dos aplicáveis à determinação do carácter distintivo de quaisquer marcas meramente nominativas (vide o Acórdão TG, de 20.07.2017, processo T-521/15 e o Acórdão do TG, de 08.05.2012, processo T-101/11). De acordo com a jurisprudência do TJUE e do TG, o carácter distintivo de uma letra deve ser avaliado especificamente por referência aos produtos e assinalados pela marca (vide o Acórdão do TJUE, de 26.07.2017, processo C-84/16 “P”, parágrafo 73).
26) “M” não descreve nenhuma característica de veículos automóveis nem de peças ou acessórios para veículos automóveis! Acresce que a capacidade distintiva da marca M resulta ainda reforçada pelo uso reiterado e constante que a BMW AG tem feito dessa marca na União Europeia desde a década de 1980, (Docs. n.º 1 a 13), e do prestígio e reputação alcançados por essas marcas. Também o INPI já por diversas vezes reconheceu e confirmou expressamente a notoriedade e o prestígio das marcas da BMW, incluindo a marca M(Docs. n.º 14 a 19).
27) M é o denominador comum a todas as marcas da BMW aqui invocadas, sendo o único elemento da marca da UE n.º 7134158 M, o único elemento verbal da marca internacional n.º 1579102 e da marca da UE n.º 18222888 e, bem assim, o elemento mais distintivo das marcas M Performance, MPower e MSport.
28) Já em MCARS, também a letra “M” é o elemento mais distintivo e, consequentemente, preponderante, porquanto “CARS” é uma palavra inglesa que significa “carros” e que o consumidor português compreende perfeitamente, e o elemento figurativo representativo da silhueta de um carro traduz inequivocamente o objeto dos serviços assinalados.
29) A jurisprudência dos tribunais portugueses tem entendido de forma consistente que os elementos mais distintivos de uma marca são aqueles que mais facilmente são recordados pelos consumidores, que por norma raramente se encontram na situação de serem confrontados dois produtos ou serviços em simultâneo (vide o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.09.2020). Assim, a comparação das marcas sob cotejo deve centrar-se nos respetivos elementos predominantes e mais distintivos, os quais são exatamente o mesmo: M.
30) A comparação dos sinais levada a cabo na sentença recorrida está errada, pois desvalorizou a coincidência de M que é o elemento preponderante e mais distintivo das marcas em confronto, dando antes prevalência aos elementos secundários e de menor, ou nenhum grau, de distintividade, nomeadamente o termos “cars” e o elemento figurativo representativo de um automóvel na marca em crise.
31) A reprodução total de M resulta numa perfeita identidade gráfica e fonética dos elementos predominantes e distintivos das marcas sob comparação, os quais se escrevem e pronunciam exatamente da mesma maneira.
32) O risco de confusão e/ou associação resulta agravado pelo facto de a BMW AGter uma verdadeira Família de Marcas M, as quais gozam de especial notoriedade e prestígio junto do público da União Europeia. Por essa razão, as marcas M são de tal forma fortes e distintivas que o consumidor irá facilmente confundir os serviços da Recorrida comos produtos e serviços da BMW AG, confundindo-os ou associando-os.
33) Está verificado o terceiro requisito do conceito de imitação de marca previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 238.º do CPI e, consequentemente, verifica-se o fundamento de recusa do registo de marca previsto no artigo 232.º, n.º 1, alíneas a) e b) do mesmo Código.
34) Decorre do artigo 311.º, n.º 1, alínea a) do CPI que constitui concorrência desleal todo o ato de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de atividade económica, designadamente os atos suscetíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue.
35) As semelhanças manifestas que se verificam entre as marcas sob cotejo são aptas a interferir com a escolha do consumidor, que assumirá que todos os serviços têm idênticas características em função de uma origem comercial comum ou de algum tipo de parceria com a BMW AG. Nestes termos, a marca nacional n.º 657862 também não reúne as condições para ser registada em face do artigo 232.º, n.º 1, h) CPI.
36) Ao ter confirmado a concessão do registo da marca nacional n.º 657862, o acórdão recorrido violou também o disposto nos 232.º, n.º 1, alíneas a), b) e h) e n.º 4, 238.º, n.º 1 e 235.º, todos do CPI.
Nestes termos, e nos mais de Direito, requer-se a V. Exas., seja admitida a revista, por estarem verificados os pressupostos previstos na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, julgando-se o recurso procedente, por provado, e, em consequência, seja proferido acórdão que recuse o registo da marca nacional n.º 657862 na totalidade.
8. I... Unipessoal, Lda., contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
9. Em 22 de Fevereiro de 2023, foi proferida decisão singular, em que não se admitiu o recurso de revista, por não estarem preenchidos os pressupostos do art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil.
10. Inconformada, a Recorrente vem agora reclamar para a conferência.
11. Fá-lo nos seguintes termos:
A) Enquadramento
A Bayerische Motoren Werke Aktiengesellschaft (doravante apenas “BMW AG” ou “Recorrente”) apresentou reclamação contra o pedido de registo da marca nacional n.º 657862,apresentadopor I..., Unipessoal, Lda. (doravante, “Recorrida”), com fundamento na imitação das suas prestigiadas marcas M e na suscetibilidade de o registo da marca MCARS gerar um aproveitamento indevido e de diluir a capacidade distintiva das marcas de prestígio.
Por despacho proferido em 22.10.2021, o INPI indeferiu a reclamação e concedeu o pedido de registo da marca nacional n.º 657862.
Inconformada com aquele despacho, a BMW AG interpôs recurso para o TPI, o qual foi julgado improcedente na sentença proferida no dia 26.05.2022.
No dia 28.06.2022, a BMW AG interpôs recurso de apelação contra a referida sentença do TPI, tendo nas suas alegações arguido a nulidade da sentença por omissão de pronúncia relativamente a um dos fundamentos de recusa do registo da marca nacional n.º 657862 invocados, designadamente o fundamento previsto no artigo 235.º do CPI.
No dia 28.09.2022, a Mma. Juiz subscritora da sentença do TPI de 26.05.2022 proferiu decisão nos termos da qual determinou que, a fim de se suprir a arguida nulidade proferirei outra sentença, suprindo a falta assinalada (sic).
Porém, persistindo nos mesmos erros de julgamento incorridos na primeira sentença (proferida no dia 26.05.2022), através da sentença proferida no dia 28.09.2022 foi negado provimento ao recurso da BMW AG.
Inconformada com essa decisão, a BMW AG interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão proferido no dia 23.11.2022, julgou a apelação improcedente e manteve a sentença recorrida.
No dia 09.01.2023, a BMW AG interpôs recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa ao abrigo do disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea d) do CPC, invocando a contradição do acórdão recorrido com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, proferido no âmbito do processo n.º 168/21.2YHLSB.L1, em 27 de abril de 2022, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
No dia 22.02.2023 foi proferida a Decisão Singular de que ora se reclama, considerando que entre os dois acórdãos não existiria contradição, que não estariam verificados os pressupostos da alínea d) do n.º 2 o artigo 629.º do CPC e que, consequentemente, não admitiu o recurso de revista.
A BMW AG entende que a Decisão Singular reclamada assentou numa leitura superficial dos dois acórdãos, a qual conduziu a uma apreciação incorreta dos respetivos fundamentos, o que condicionou a conclusão alcançada erradamente de que aqueles acórdãos não estão em contradição entre si.
B) Da efetiva contradição de julgados
Na Decisão Singular reclamada entendeu-se que não existe contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, porquanto no acórdão fundamento considerou-se haver risco de associação entre o sinal registando e as marcas de prestígio, enquanto o acórdão recorrido considerou que, ainda que estivesse em causa uma marca de prestígio, não havia qualquer risco de associação ou de ligação entre os sinais.
Salvo o devido respeito, a Decisão Singular reclamada laborou no mesmo erro que foi incorrido no acórdão recorrido relativamente ao conceito de risco de confusão ou associação subjacente à imitação de marca (previsto e consagrado na alínea c) do n.º 1 do artigo 238.º do CPI), que é diferente e assenta em pressupostos distintos do conceito de risco de associação exigido pelo regime de proteção legal atribuído às marcas de prestígio (refletido no artigo 235.º do CPI).
Com efeito, o risco de confusão, que compreende o risco de associação das marcas, consagrado no artigo 238.º, n.º 1, alínea d) do CPI implica a suscetibilidade de o consumidor ser induzido em erro e, nessa medida:
• seja impedido de distinguir os produtos e/ou serviços assinalados por uma marca dos produtos e/ou serviços assinalados por outra marca – risco de confusão em sentido estrito; ou
• acredite que os produtos e/ou serviços assinalados pelas marcas em questão têm a mesma origem comercial, ou são provenientes de entidades com alguma relação entre si.
Por seu turno, a associação com a marca de prestígio que é requisito da aplicação da proteção legal reforçada daquelas marcas traduz-se na possibilidade de o consumidor estabelecer uma relação entre a marca registanda e a marca de prestígio, relação essa que pode ser por simples alusão ou “trazer à memória”.
É precisamente quanto a esta questão fundamental de direito que o acórdão recorrido está em manifesta contradição com o acórdão fundamento, não obstante em ambos os arestos:
• as marcas prioritárias invocadas terem sido consideradas marcas de prestígio da União Europeia;
• os sinais sob comparação apresentarem graus de semelhanças, ainda que em reduzido grau.
Com efeito, ao contrário do que resulta da Decisão Singular reclamada, importa notar que nos presentes autos foi reconhecido que a marca registanda apresenta de facto semelhanças, mesmo que de grau reduzido, com as marcas de prestígio da Recorrente, semelhanças essas que resultam da reprodução da letra M caracterizadora de todas as marcas da BMW AG:
“O único ponto de encontro entre os sinais em confronto consiste no elemento verbal “M”. Ora, relativamente à reprodução fonética existe, efetivamente, similitude quanto à pronunciação verbal da letra em causa (…) – cf. 2.º parágrafo da pág. 13 da sentença do TPI de 28.09.2022.
Porém, resulta da leitura atenta do acórdão recorrido que, apesar de identificar pontos comuns / semelhanças entre os sinais, o risco de associação apreciado e levado em conta nessa decisão foi o que se engloba no conceito lato de risco de confusão consagrado no artigo 238.º, n.º 1, alínea c) do CPI, e não o risco de associação próprio do regime de proteção das marcas de prestígio, como deveria ter ocorrido.
Quer isto dizer que no acórdão recorrido, o Tribunal levou em conta o critério do risco de confusão, ou seja, procurou aferir se as semelhanças que marcas apresentam entre si são suscetíveis de gerar confusão entre elas no espírito do consumidor.
Com efeito, no acórdão recorrido lê-se o seguinte:
Não se vê assim que do ponto de vista gráfico exista qualquer semelhança, identidade ou mesmo risco de confusão para o consumidor, ainda que este não seja confrontado com os sinais em simultâneo, como acontece na maioria dos casos. Relativamente ao elemento nominal M, também não se pode considerar que se verifique risco de confusão. No contexto de grafismo em que o sinal misto da marca registanda se apresenta – já que se trata de marca mista - o confronto entre os sinais evidencia diferenças insofismáveis, pelo que não vislumbramos que exista o risco de que o consumidor do público relevante tome o sinal registando pelos registados, ou assuma a mesma proveniência quanto aos serviços e produtos fornecidos (cf. pág. 37 do acórdão recorrido, sublinhado nosso).
Da passagem citada resulta confirmado que o acórdão recorrido reconhece a semelhança das marcas sob cotejo no que respeita à reprodução da letra “M”.
Porém, a análise comparativa das marcas efetuada no acórdão recorrido foi feita à luz do critério do risco de confusão que é próprio do conceito de imitação de marca estabelecido no artigo 238.º do CPI, e não do critério da semelhança tout court, mesmo que em grau mínimo [no caso essa semelhança resulta da reprodução da “M”], que releva para os efeitos do regime previsto no artigo 235.º do CPI.
Assim, o acórdão recorrido contraria frontalmente o entendimento perfilhado no acórdão fundamento, o qual recusou, nos termos do artigo 235.º do CPI, o registo do logótipo n.º 50654
para distinguir uma entidade prestadora de serviços de manutenção e reparação de veículos automóveis, com fundamento na infração das marcas de prestígio da União Europeia
n.º 17451162
que protegem ambas serviços de manutenção e reparação automóvel na classe 37 da Classificação de Nice.
Num primeiro momento, o acórdão fundamento procedeu a uma extensa e detalhada análise do regime de proteção jurídica reforçada conferida às marcas de prestígio que se encontram registadas como marca da União Europeia (cf. artigo 9.º, n.º 2, alínea c) do Regulamento sobre a Marca da União Europeia), e, seguidamente, o Tribunal concluiu que estavam verificados os requisitos do fundamento de recusa de um pedido de registo de sinal distintivo de âmbito nacional previstos no artigo 235.º do CPI.
Tendo como assente o carácter de prestígio das marcas prioritárias ali invocadas (que já vinha reconhecido na sentença do TPI, tal como no presente caso) e o regime de proteção reforçada conferido às marcas da União Europeia de prestígio, lê-se no acórdão fundamento quanto aos critérios que devem pautar a comparação do sinal apresentado a registo com as marcas de prestígio:
56. Na verdade, tal como será explicado a seguir, a proteção reforçada das marcas de prestígio da União Europeia não tem como requisito a existência de risco de confusão dos sinais em conflito no espírito do público, mas depende antes da verificação dos requisitos previstos no artigo 9.º n.º 2 – c) do RMUE, que não foram devidamente levados em conta pelo INPI, nem pelo Tribunal recorrido – pág. 16 do acórdão fundamento (destaque e sublinhado nossos) (…)
69. Quanto à segunda questão acima enunciada no parágrafo 68, é forçoso constatar que, com base no considerando (11) e na letra do artigo 9.º n.º 2 alíneas a), b) e c), do RMUE, a semelhança ou identidade dos sinais e o risco de confusão no espírito do público, são dois fatores distintos e, se o primeiro é exigido para conferir proteção à marca de prestígio da União, já o segundo não é. Na verdade, o artigo 9.º n.º 2 – c) do RMUE exige a identidade ou semelhança dos sinais, mas prescinde do risco de confusão, como requisito de proteção. Por isso, excecionalmente, no caso das marcas de prestígio, a noção de semelhança não deve ser interpretada em função do risco de confusão, como acontece com a generalidade das marcas (aqui designadas também por marcas normais) mas apenas em função do risco de associação, como será explicado a seguir. Trata-se de um desvio à condição regra de proteção da marca mencionada no considerando (11) do RMUE (cf. Código da Propriedade Industrial Anotado, Coordenação: Luís Couto Gonçalves, Almedina, página 940, notas V e VI).
70. Assim, não há que apreciar se existe risco de confusão no espírito do público para conferir a proteção devida às marcas de prestígio aqui em causa. Pelo que, nessa parte, tem razão a recorrente. De entre os fatores enunciados no considerando (11) do RMUE basta que exista identidade ou, como sucede no caso em análise, semelhança dos sinais em conflito.
71. (…) Assim, seguindo a interpretação do TJUE, este Tribunal julga que os graus de semelhança entre os sinais em conflito exigidos pelas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 9.º do RMUE, são diferentes. A alínea c) do n.º 2 do artigo 9.º do RMUE (tal como o n.º 5 do artigo 8.º do RMUE) limita-se a exigir que a semelhança existente possa conduzir o público relevante, não a confundir os sinais, mas a fazer uma associação entre eles. Por isso, quando está em causa uma marca de prestígio, uma vez detetada uma certa semelhança entre os sinais em conflito, importa verificar se, tendo em conta outros fatores, como o grau de prestígio da marca anterior, o público relevante consegue estabelecer uma relação entre os sinais (cf. págs. 19 e 20 do acórdão fundamento, destaques no original).
Note-se que a alínea c) do n.º 2 do artigo 9.º do Regulamento sobre a Marca da União Europeia escrutinado nas passagens citadas do acórdão fundamento contém a previsão dos requisitos de aplicação dos direitos de exclusivo conferidos ao titular de registos de marca de prestígio, os quais têm plena correspondência nos requisitos do fundamento de recusa de pedidos de registo de marca previsto no artigo 235.º do CPI analisado no acórdão recorrido:
Artigo 9.º, n.º 2, alínea c) RMUE | Artigo 235.º do CPI |
2 - Sem prejuízo dos direitos dos titulares adquiridos antes da data de depósito ou da data de prioridade da marca da UE, o titular dessa marca da UE fica habilitado a proibir que terceiros, sem o seu consentimento, façam uso, no decurso de operações comerciais, de qualquer sinal em relação aos produtos ou serviços caso o sinal seja:
c) Idêntico ou semelhante à marca da UE, independentemente de ser utilizado para produtos ou serviços idênticos, ou afins àqueles para os quais a marca da UE foi registada, sempre que esta última goze de prestígio na União e que a utilização injustificada do sinal tire indevidamente partido do caráter distintivo ou do prestígio da marca da UE ou lhe cause prejuízo. |
Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, o pedido de registo é igualmente recusado se a marca, ainda que destinada a produtos ou serviços sem identidade ou afinidade, constituir tradução, ou for igual ou semelhante, a uma marca anterior registada que goze de prestígio em Portugal ou na União Europeia, se for marca da União Europeia, e sempre que o uso da marca posterior procure tira partido indevido do caráter distintivo ou do prestígio da marca, ou possa prejudicá-los. |
Trata-se exatamente dos mesmos requisitos de aplicação da proteção jurídica especial e reforçada conferida às marcas de prestígio, ainda que num caso enquanto pressupostos dos direitos exclusivos conferidos pela alínea c) do n.º 2 do artigo 9.º do RMUE, e, no outro caso, quanto pressupostos do fundamento de recusa de um pedido de registo de marca previsto no artigo 235.º do CPI.
Ou seja, as normas aplicadas nos dois acórdãos apresentam um enquadramento normativo substancialmente idêntico,
… mas foram objeto de interpretações divergentes!
No acórdão fundamento procedeu-se à aplicação do artigo 235.º do CPI, ex vi do artigo 289.º, n.º do CPI e recusou o registo do sinal distintivo em crise com aquele fundamento: Em consequência, a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que revoga a decisão do INPI e recusa o registo do logótipo da recorrida com base no disposto nos artigos 289.º n.º 2 e 235.º do CPI, por tal logótipo não respeitar os direitos conferidos pelo artigo 9.º n.º 2 – c) do RMUE às marcas de prestígio da União Europeia de que é titular a recorrente – cf. artigos 43.º n.º 4, 45.º n.º 1 do CPI (cf. pág. 25 do acórdão fundamento, sublinhado e destaque nossos).
Para aplicar o fundamento de recusa de pedido de registo de sinal distintivo do artigo 235.º, o acórdão fundamento considerou que não era necessário verificar-se um risco de confusão entre os sinais em confronto para que estes fossem semelhantes, ainda que minimamente:
73. Perante estas semelhanças, a questão que se coloca é a de saber se deve ser conferida proteção às marcas da recorrente, pelo facto de serem marcas de prestígio, mesmo que os sinais em conflito apresentem um grau de semelhança mínimo, no caso em análise, um grau de semelhança como o acima apontado, que não gera risco de confusão, como julgou a decisão recorrida.
74. A resposta a esta questão é positiva e tem por base a jurisprudência do TJUE no acórdão C-603/14 (cf. parágrafo 42 desse acórdão) na medida em que, segundo a interpretação do TJUE, o exclusivo das marcas de prestígio não só abrange um leque mais amplo de produtos, como também abrange um espectro mais vasto de sinais semelhantes, desde que possam, ainda que em grau mínimo, ser associados ou relacionados com a marca de prestígio. O que deve ser aferido em função da intensidade do prestígio da marca anterior (cf. pág. 20 do acórdão fundamento, destaques no original, sublinhado nosso).
Ao invés, no acórdão recorrido, a aplicação do artigo 235.º foi afastada por se ter considerado que as marcas sob comparação não eram confundíveis:
Não se vê assim que do ponto de vista gráfico exista qualquer semelhança, identidade ou mesmo risco de confusão para o consumidor, ainda que este não seja confrontado com os sinais em simultâneo, como acontece na maioria dos casos. Relativamente ao elemento nominal M, também não se pode considerar que se verifique risco de confusão. No contexto de grafismo em que o sinal misto da marca registanda se apresenta – já que se trata de marca mista - o confronto entre os sinais evidencia diferenças insofismáveis, pelo que não vislumbramos que exista o risco de que o consumidor do público relevante tome o sinal registando pelos registados, ou assuma a mesma proveniência quanto aos serviços e produtos fornecidos (cf. pág. 37 do acórdão recorrido, sublinhado nosso).
(…)
Em conclusão, não assiste razão à apelante em pretender ver recusado o registo com fundamento no prestígio das suas marcas (cf. pág. 38 do acórdão recorrido).
Aqui chegados, resulta evidente que as interpretações dos requisitos de aplicação do fundamento de recusa do registo de marca previsto no artigo 235.º do CPI levadas a cabo no acórdão recorrido e no acórdão fundamento são manifesta e frontalmente opostas:
O acórdão recorrido partiu da premissa (errada) de que a semelhança dos sinais que releva para a aplicação daquela norma pressupõe um risco de confusão no espírito do consumidor;
Enquanto no acórdão fundamento se afirma expressamente que a identidade ou semelhança com uma marca de prestígio dispensa a verificação do risco de confusão como requisito de proteção das marcas de prestígio da União Europeia, bastando que ocorra um grau mínimo de semelhança.
Deste modo, o acórdão recorrido apreciou a mesma questão fundamental de direito essencial para o sentido da decisão – os requisitos da proteção jurídica das marcas de prestígio enquanto fundamento de recusa do pedido de registo de marca previstos no artigo 235.ºdoCPI - de forma totalmente contrária ao que foi feito no acórdão fundamento.
ABRANTES GERALDES elenca e explica de forma clarividente que os requisitos da contradição de julgados que justifica a interposição de recurso ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, alínea d) do CPC são os seguintes:
• contradição do acórdão recorrido com acórdão de um Tribunal da Relação já transitado em julgado;
• oposição frontal das decisões tomadas nos arestos;
• a divergência jurisprudencial deve dizer respeito a uma questão de direito, sendo irrelevantes eventuais divergências quanto a questões de facto, i.e., deve haver identidade entre as questões de direito apreciadas nos arestos em confronto, não sendo necessário que ocorra identidade integral entre o objeto (factos) dos dois processos;
• a questão de direito sob controvérsia deve ser essencial para o resultado das decisões tomadas nas decisões judiciais;
• a decisão recorrida adotou uma decisão diversa da que foi tomada no acórdão fundamento;
• a divergência deve verificar-se num quadro normativo substancialmente idêntico.
Conforme ficou demonstrado, todos os pressupostos elencados acima estão verificados in casu, pelo que estão cumpridos os requisitos de admissibilidade da revista nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC.
Nestes termos, e nos mais de Direito, requer-se a V. Exas.:
a) seja revogada a Decisão Singular reclamada, e substituída por Acórdão que admita a revista nos termos do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC;
b) seja revogado o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.11.2022, e substituído por acórdão que recuse o registo da marca nacional n.º 657862 na totalidade.
12. A Recorrida respondeu à reclamação, pugnando pelo seu indeferimento.
II. — FUNDAMENTAÇÃO
13. O art. 45.º do Código da Propriedade Industrial é do seguinte teor:
1. — Da sentença proferida cabe recurso, nos termos da legislação processual civil, para o tribunal da Relação territorialmente competente para a área da sede do tribunal de propriedade intelectual, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
2. — As decisões do tribunal de propriedade intelectual que admitam recurso, nos termos previstos no Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE) e nos artigos 80.º a 92.º do Regulamento (CE) n.º 6/2002, do Conselho, de 12 de dezembro de 2001, e nos artigos 123.º a 133.º do Regulamento (CE) n.º 2017/1001, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, são impugnáveis junto do tribunal da Relação territorialmente competente para a área da sede do tribunal de propriedade intelectual.
3. — Do acórdão do tribunal da Relação não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que este é sempre admissível.
14. Em concreto, o Tribunal de 1.º instância pronunciou-se sobre o recurso de uma decisão do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI, IP), e o Tribunal da Relação pronunciou-se sobre a decisão proferida pelo Tribunal de 1.º instância.
15. O acórdão recorrido está, por isso, sujeito ao regime do art. 45.º, n.º 3, do Código da Propriedade Industrial — o presente recurso de revista só deveria admitir-se desde que se estivesse perante algum dos casos em que é sempre admissível recurso.
16. Ora os casos em que é sempre admissível recurso encontram-se no art. 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:
a) Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado;
b) Das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;
c) Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça;
d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.
17. O Recorrente alega que se está perante o caso previsto na alínea d) — o acórdão recorrido estaria em contradição com o acórdão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 27 de Abril de 2022, no processo n.º 68/21.2YHLSB.L1.
18. A contradição estaria em que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 27 de Abril de 2022, no processo n.º 68/21.2YHLSB.L1, considerou que a protecção das marcas de prestígio da União Europeia dispensa o requisito do risco de confusão e em que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa nos presentes autos teria considerado que a protecção das marcas de prestígio da União Europeia não o dispensaria.
19. O texto do art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo deve analisar-se distinguindo os três requisitos essenciais do recurso: que o acórdão recorrido esteja em contradição com algum acórdão anteriormente proferido pela Relação, denominado de acórdão fundamento; que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; e que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito [1] [2].
20. Interpretando-o, o Supremo Tribunal de Justiça tem exigido, constantemente, que a contradição seja frontal [3] e que a questão, sobre que a contradição recai, seja uma questão fundamental ou essencial para a decisão do caso [4]:
21. “A contradição de julgados relevante para a aplicação do art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil […]”, diz-se, p. ex., em acórdão do STJ de 2 de Maio de 2019, “tem de referir-se a questões que se tenham revelado essenciais para a sorte do litígio em ambos os processos, desinteressando para o efeito questões marginais ou que respeitem a argumentos sem valor determinante para a decisão emitida”.
22. Ora, entre os dois acórdãos não há contradição alguma — e, ainda que alguma contradição houvesse, nunca seria fundamental ou essencial para a decisão do caso.
23. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Abril de 2022, deduzido como acórdão fundamento, considerou que, desde que estivesse em causa uma marca de prestígio, o requisito do risco de confusão devia ser substituído pelo requisito do risco de associação ou ligação entre os sinais, “que é tanto maior quanto maior for o prestígio das marcas”.
24. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de Novembro de 2022, agora recorrido, considerou que, ainda que estivesse em causa uma marca de prestígio, não havia qualquer risco de associação ou de ligação entre os sinais.
25. Entre as passagens relevantes do acórdão recorrido está a de que há um distanciamento entre os sinais tal que “não se verifica qualquer risco de associação”.
26. Em primeiro lugar, não haveria qualquer risco de associação ou ligação entre os elementos gráficos dos sinais.
27. O Tribunal da Relação explica que o elemento gráfico do sinal da Autora, agora Recorrente, Bayerische Motorenwerke, AG, é mais abstracto (mais geométrico): “[o]s grafismos das marcas [da Autora] evidenciam grande preponderância de elementos geométricos, traduzidos nas linhas rectas, que se compõem de maneira a formar figuras geométricas”; entre os corolários do geometrismo está o de que “a letra M [é] integrada de forma lógica e contínua na imagem, transmitindo um sentido de movimento”.
28. Em contraste com o elemento gráfico do sinal da Autora, agora Recorrente, o elemento gráfico do sinal da Ré, agora Recorrida, seria muito mais concreto — “destaca[ndo-se], de forma relevante, uma imagem concreta e reconhecível, o esboço simples de um carro sobre um fundo negro, acrescido da designação Mcars”.
29. Em segundo lugar, não haveria qualquer risco de associação ou de ligação entre os elementos nominais:
“No contexto de grafismo em que o sinal misto da marca registanda se apresenta […] o confronto entre os sinais evidencia diferenças insofismáveis, pelo que não vislumbramos que exista o risco de que o consumidor do público relevante tome o sinal registando pelos registados, ou assuma a mesma proveniência quanto aos serviços e produtos fornecidos”.
30. A Recorrente alega que o critério de semelhança relevante para efeito da protecção da marca tem uma extensão mais reduzida, por pressupor o risco de confusão, e que o critério de semelhança relevante para efeito da protecção reforçada de uma marca de prestígio da União Europeia tem uma extensão mais ampla, por pressupor, tão-só, o risco de associação resultante de um grau mínimo de semelhança.
“O acórdão recorrido partiu da premissa (errada) de que a semelhança dos sinais que releva para a plicação daquela norma pressupõe um risco de confusão no espírito do consumidor;
Enquanto no acórdão fundamento se afirma expressamente que a identidade ou semelhança com uma marca de prestígio dispensa a verificação do risco de confusão como requisito de proteção das marcas de prestígio da União Europeia, bastando que ocorra um grau mínimo de semelhança”.
31. Em todo o caso, ainda que devesse aceitar-se a interpretação dos dois critérios preconizada pela Recorrente, sempre a aplicação de qualquer um dos dois regimes pressuporia um grau mínimo de semelhança entre os sinais.
32. O critério relevante para determinar se há, ou não, um grau mínimo de semelhança sempre terá de ser um critério normativo, consonante com os fins de protecção do regime da protecção reforçada das marcas de prestígio da União Europeia [5].
33. A Recorrente considera que está preenchido o requisito do grau mínimo de semelhança entre os dois sinais, pelo simples facto de estar em causa a reprodução da letra M.
34. O problema está em que o acórdão recorrido decidiu que o simples facto de estar em causa a reprodução da letra M não era suficiente para que estivesse preenchido o requisito do grau mínimo de semelhança e em que o acórdão fundamento não decidiu em sentido contraditório — não decidiu ou, em todo o caso, não decidiu explicitamente que o simples facto de estar em causa a reprodução de uma letra do alfabeto fosse suficiente para que estivesse preenchido o requisito do grau mínimo de semelhança entre os sinais [6].
35. Em consequência, não estão preenchidos os pressupostos do art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil.
III. — DECISÃO
Face ao exposto, indefere-se a presente reclamação e confirma-se o despacho reclamado.
Custas pela Recorrente Bayerische Motorenwerke, AG.
Lisboa, 27 de Abril de 2023
Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)
José Maria Ferreira Lopes
Manuel Pires Capelo
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[1] Cf. acórdão do STJ de 28 de Março de 2019 — processo n.º 413/14.0TBOAZ.P2.S2: “Exige-se, ao reconhecimento da contradição de julgados, a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente diversa, dos mesmos normativos legais ou institutos jurídicos, sendo que as soluções em confronto, necessariamente divergentes, têm que ser encontradas no ‘domínio da mesma legislação’, de acordo com a terminologia legal”.
[2] O termo questão de direito abrange, em primeiro lugar, as questões relacionadas com a interpretação de conceitos jurídicos ou de noções jurídicas e, em segundo lugar, as questões relacionadas com a interpretação, à integração e à aplicação de normas jurídicas [vide, p. ex., o acórdão do STJ de 11 de Julho de 2019 — processo n.º 83/18.7YHLSB.L1.S1].
[3] Cf. designadamente o acórdão do STJ de 2 de Maio de 2019 — processo n.º 1650/06.7TBLLE.E2.S1 —: “A contradição de julgados relevante para a aplicação do art. 629º, nº 2 d), do CPC tem de ser uma oposição frontal, não bastando uma oposição implícita ou pressuposta…”.
[4] Cf. designadamente os acórdãos do STJ de 7 de Março de 2017 — processo n.º 1512/07.0TBLSD.P2.S1 — e de 2 de Maio de 2019 — processo n.º 1650/06.7TBLLE.E2.S1.
[5] Como expressamente admite o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Abril de 2022, deduzido como acórdão fundamento: “71. Existindo semelhanças entre os sinais em conflito, como foi reconhecido pela sentença recorrida e será a seguir enunciado, as mesmas devem ser apreciadas à luz do risco de associação com a marca de prestígio […]”.
[6] Os termos em que está redigido o n.º 72 do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Abril de 2022, deduzido como acórdão fundamento, sugerem que a reprodução de uma letra do alfabeto não é, só por si, suficiente. O acórdão declara que, “no presente caso existem na verdade semelhanças entre os sinais em conflito […] que se afiguram suficientes para preencher o terceiro requisito […] exigido pelo artigo 9.º n.º 2 c) do RMUE (identidade ou semelhança dos sinais). Tais semelhanças resultam dos seguintes factores: uso da letra P alongada; letra i imediatamente a seguir ao P; mesma estratégia visual ao colocar o remanescente da palavra por baixo do alongamento da letra P; incorporação, no logótipo em crise, da letra P alongada que, embora inclinada no logótipo, corresponde à totalidade de uma das marcas da recorrente e é, pelo tamanho e posição, um elemento dominante na outra”. Ora, o facto de se atender à “estratégia visual” sugere que a reprodução da letra, como tal, é insuficiente para que se dê como preenchido o requisito da semelhança dos sinais.