CONTRAORDENAÇÃO
DESPACHOS INTERLOCUTÓRIOS
ÂMBITO DO RECURSO
Sumário

I–Só é admissível recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferido nos termos do art.º 64.º – cfr. art.º 73.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações (Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro).

II–As exigências éticas são bem menores nas sanções administrativas, como é o caso das contra-ordenações; por via deste entendimento, compreende-se as restrições em matéria de recurso para o Tribunal da Relação.

III–A jurisprudência do Tribunal Constitucional é no sentido que em processo contra-ordenacional não é constitucionalmente imposta a consagração da possibilidade de recurso de todas as decisões judiciais proferidas no decurso da impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória.

(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


Recurso do despacho interlocutório

No Juiz 2, do Juízo Marítimo do Tribunal Marítimo de Lisboa, foram proferidos, no dia 12.01.2023, os seguintes despachos:
- “Considerando que não se afigura essencial a inquirição da arguida, a mesma não será ouvida. Quanto ao mais, nada mais há a determinar para além do constante no despacho proferido em 04-01-2023, no qual já se tinha tomado posição relativamente às testemunhas faltosas. Notifique.”
- “ Não obstante a devolução das cartas de notificação das testemunhas indicadas pela arguida, o certo é que já constava dos autos a informação de que as mesmas não iriam comparecer e, na sequência do requerimento apresentado a fls. 154, foi proferido o despacho de fls. 157 no qual já nos pronunciámos sobre o adiamento da inquirição de tais testemunhas, as quais diga-se, nem sequer nos autos administrativos compareceram nas datas designadas para a sua inquirição.
Assim sendo, e não obstante a devolução das cartas de notificação, atenta a justificação apresentada para o não comparecimento das testemunhas agora não notificadas, reitera-se o despacho proferido a fls. 157, indeferindo-se a repetição das notificações, pelos motivos ali expostos.
Notifique”.

Inconformada, a arguida A. – Unipessoal, Lda. veio interpor recurso de tais despachos, oferecendo as seguintes conclusões:
I–O presente recurso tem por objecto o Despacho proferido em 04/01/2023 (Ref. Citius 535042), nem com as decisões proferidas na audiência de julgamento ocorrida em 12/01/2023 (vd. Acta com Ref. Citius 535730), por via dos quais o tribunal a quo veio negar à recorrente a possibilidade de produzir a prova testemunhal que esta havia requerido.
II–Essas decisões são ilegais, e com a sua prolação foram violados os direitos de defesa da arguida/recorrente – a um ponto tal que aquela, que naqueles termos se viu impossibilitada de produzir na totalidade a prova testemunhal por si requerida, considera ter ocorrido denegação de justiça.
III–Caso a recorrente não impugnasse, por via do presente recurso, os Despachos de 04/01/2023 e de 12/01/2023, poderia eventualmente, com fundamento em terem, entretanto, transitado em julgado as decisões ora recorridas, ser-lhe vedada a possibilidade de impugnar tais decisões no âmbito do recurso que possa vir a ter por objecto a Sentença final a proferir nestes autos.
IV–A tutela da posição jurídica de quem seja arguido e condenado em processo de contra-ordenação manifestamente integra o direito a um processo justo e equitativo, conforme resulta do art.º 20º-1-4-5 da CRP, aplicável ao direito de mera ordenação social ex vi da norma do art.º 32º-1-10 da lei fundamental; as quais impõem, no âmbito do ilícito de mera ordenação social, a consagração de um regime de recursos que, assegurando ao arguido os direitos de audição e defesa, incluindo o recurso, permita a tutela efectiva dos respectivos direitos e interesses atendíveis.
V–Tendo em consideração a falta de fundamento legal das decisões recorridas, que flagrantemente contrariam o normativo resultante das aludidas normas dos art.os 348º, 317º-1 e 275º-A-1 do CPP (ex vi art.º 41º-1 do RGCO); dos art.º 205º-1 da CRP e art.º 97º-4 do CPP; bem como do art.º 340º-1 do CPP e dos art.os 20º-1-4-5, 32º-1-10 e 202º-1-2 da CRP, que deveriam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido supra propugnado, o presente recurso sempre será de considerar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito e à promoção da uniformidade da jurisprudência (cfr. art.º 73º-2 do RGCO).
VI–A norma do art.º 73º-1-2 do RGCO, quando interpretada e aplicada no sentido de não ser admissível a um arguido em processo de contra-ordenação, e recorrente no subsequente processo de impugnação judicial de decisão de aplicação de coima, apresentar recurso, dirigido ao Tribunal da Relação, tendo por objecto decisões judiciais, que não a sentença final ou o despacho proferido nos termos do art.º 64º do RGCO, que lhes hajam indeferido a produção de prova testemunhal, sempre seria inconstitucional, por violação, designadamente, das normas dos art.os 20º-1-4-5, 32º-1-10 e 202º-1-2 da CRP.
VII–Para além do interesse “substantivo” na produção da prova por si requerida, foram razões de economia (designadamente economia processual) e simplificação da tramitação dos autos, que levaram a recorrente a requerer, em 03/01/2023, fosse designada outra data para a audiência de julgamento, após ter tomado conhecimento de que à mesma não poderiam ser ouvidas quatro das testemunhas que ela havia arrolado, pois reputava tais depoimentos como absolutamente necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
VIII–A recorrente, com o fim de permitir uma eficiente condução dos trabalhos, pretendia que a audiência de julgamento decorresse, se possível, numa única sessão, com o que se poderia evitar a multiplicação de deslocações de cerca de 500 Km entre Aveiro (zona onde a recorrente tem sede e onde o mandatário desta tem escritório) e Lisboa, bem como as inerentes despesas.
IX–Aliás, relativamente à testemunha PVV (que se encontrava ausente em campanha de pesca, em navio pertencente a uma outra armadora nacional), a relevância probatória do seu depoimento nem careceria de alegação, bastando para tanto atentar que na decisão administrativa de aplicação de coima se faz referência a que essa pessoa estava a bordo do navio “Novo Virgem da Barca”, de que então era capitão, aquando da autuação com que se iniciou o procedimento por contra-ordenação, pelo que certamente terá conhecimento directo da matéria dos autos.
X–As testemunhas RB (ausente em campanha de pesca, em navio pertencente a uma armadora espanhola, conforme documento junto com o requerimento de 03/01/2023) e MVA (doente no seu domicílio, com indicação de que dele só poderia ausentar-se para tratamentos, conforme documento junto com o requerimento de 03/01/2023), ambos oficiais da marinha mercante, foram tripulantes do mesmo navio.
XI–Esse requerimento foi indeferido, através do Despacho recorrido de 04/01/2023, no qual, infundadamente, se fez menção de não se considerar essencial a inquirição das testemunhas (o que é falso, como vem de referir-se), bem como de inexistência de qualquer justificação para os impedimentos alegados (não fazendo qualquer sentido falar-se em justificação para a falta de testemunhas que nem sequer haviam sido notificadas, como veio a apurar-se), e de que as testemunhas da recorrente não haviam comparecido nas datas designadas para sua inquirição na fase administrativa; tendo sido determinado que caso a Recorrente pretendesse a inquirição das testemunhas alegadamente impedidas, a respectiva inquirição seria feita por telefone (no caso dos embarcados) ou por webex (as demais referidas no requerimento de 03/01/2023) devendo, para tal a recorrente providenciar pelos meios necessários, facultando o endereços electrónicos e contactos telefónicos.
XIIDispondo o tribunal a quo dispõe de plenos poderes na apreciação de uma impugnação judicial de decisão administrativa de condenação em coima, o tramitado na fase administrativa do procedimento, mormente no que se refere a insuficiências da produção de prova da arguida, não releva nem deve ser levado como dado adquirido para a fase judicial de apreciação da impugnação da decisão final que nele tenha sido proferida.
XIII–Com efeito, o facto de determinada testemunha não ter prestado depoimento perante a autoridade administrativa, não significa que a mesma não venha a prestar depoimento (e por vezes com valor probatório decisivo) perante o tribunal onde decorra o recurso interposto de uma decisão administrativa condenatória – a própria natureza de órgão de soberania, bem como as garantias de independência e imparcialidade que são características dos tribunais (e que os particulares não esperam encontrar nas autoridades administrativas), levam a que, frequentemente, elementos probatórios decisivos, sejam documentos, sejam depoimentos, não sejam carreados para o processo administrativo, mas venham posteriormente a ser produzidos em juízo.
XIV–Através da determinação da prestação de depoimento através de telefone e de webex, foi imposta à recorrente uma forma de prestação de depoimento daquelas testemunhas que, para além de carecer de fundamento legal, viola as normas aplicáveis – cfr. art.os 348º, 317º-1 (que estabelece que as testemunhas indicadas por quem se não tiver comprometido a apresentá-los na audiência são notificados para comparência) e 275º-A-1 do CPP, ex vi do estatuído no art.º 41º-2 do RGCO.
XV–Acresce que aquela determinação do tribunal a quo pressupõe, não apenas (i) que as testemunhas dispusessem de meios tecnológicos e se encontrassem em local com cobertura de telefone ou de internet (incluindo a bordo de navios que se encontravam em campanhas de pesca em alto mar), sem o que nem sequer seria possível a sua inquirição; mas ainda (ii) que elas estivessem em condições (v.g., físicas, no que respeita à testemunha doente; mas também “geográficas”, no que respeita a todas as outras, quer as embarcadas quer a que se encontrava em gozo de férias, ignorando a recorrente em que locais e condições) de prestar depoimento; (iii) que a recorrente conseguisse, em tempo útil, entrar em contacto com as testemunhas para as inquirir sobre todas essas circunstâncias; sobre a respectiva disponibilidade para prestarem depoimento nesses termos e, na positiva, para lhes solicitar os respectivos contactos telefónicos (pertencentes a navios de armadores de pesca concorrentes directos da recorrente, o que desde logo deixa antever a dificuldade prática da efectivação de uma tal determinação) ou endereços electrónicos a facultar ao tribunal, e (iv) que elas aceitassem, mediante mero pedido da recorrente sem o peso de uma convocatória judicial, prestar declarações pela forma e nos termos impostos pelo tribunal recorrido.
XVI–Assim, para além de a determinação do tribunal a quo no sentido de que só admitiria o depoimento das testemunhas por telefone ou via webex carecer de fundamento legal, ainda que tais métodos pudessem ser usados, para tanto sempre o tribunal recorrido teria previamente de verificar se estavam ou não reunidas as concretas condições para que a inquirição se processasse dessas formas – o que não sucedeu.
XVII–Aberta a sessão da audiência de julgamento, foi dado conhecimento à recorrente de que estavam ausentes todas as testemunhas por ela arroladas.
XVIII–Perante a falta de notificação das convocatórias às testemunhas, a recorrente (i) declarou não prescindir da inquirição das testemunhas por ela arroladas; (ii) requereu que, tendo sido notificada da devolução daquelas cartas, fossem novamente enviadas convocatórias para as mesmas moradas, uma vez que desconhecia outras, e (iii) considerando absolutamente necessário para o esclarecimento da verdade e boa decisão da causa o depoimento das testemunhas que arrolou, requereu fosse designada data para as suas inquirições.
XIX–Sobre o assim requerido foram proferidas as decisões recorridas, de 12/01/2023, através das quais a recorrente foi definitivamente impedida de produzir a prova testemunhal que havia requerido, e que havia sido ordenada por douto Despacho de 25/11/2022.
XX–Tais decisões são tão mais ilegais se atendermos as que, na realidade, as testemunhas nem sequer tinham sido notificadas (vd. art.º 317º-1 do CPP).
XXI–Tendo a recorrente levado ao conhecimento dos autos que duas das testemunhas arroladas estavam embarcadas (o que aquela havia logrado apurar através da respectivas famílias) e uma estava em gozo de férias (facto apurado através da respectiva entidade patronal), o tribunal a quo não atentou sequer em que a devolução das convocatórias poderia ter sucedido em razão da ausência de tais pessoas em virtude dessas mesmas férias (ou de qualquer outro motivo atendível), e remeteu para o Despacho de 04/01/2023 quanto à fundamentação do indeferimento dos requerimentos formulados pela recorrente em Audiência de Julgamento.
XXII–O tribunal a quo não atentou sequer em que a devolução das convocatórias poderia ter sucedido em razão da ausência de tais pessoas em virtude do gozo de férias que a recorrente havia informado nos autos (ou de qualquer outro motivo atendível), e remeteu para o Despacho de 05/01/2023 quanto à fundamentação do indeferimento do requerimento formulado pela recorrente em Audiência de Julgamento.
XXIII–Quanto à testemunha JVM, também não notificada, mas que não figurava entre as «alegadamente, impedidas» a que se referia o Despacho de 04/01/2023, o tribunal recorrido nem sequer se pronunciou.
XXIV–Ora, relativamente à testemunha JVM nem sequer era aplicável a determinação de que as testemunhas embarcadas poderiam ser inquiridas por telefone e as demais por webex (vd. requerimento de 03/01/2023 e Despacho de 04/01/2023).
XXV–O certo é que, pelo menos quanto às testemunhas PV, RB, MA (marítimos que haviam feito viagens de pesca no navio em que sucedeu a autuação por contra-ordenação) e JVM (pai do legal representante da recorrente, e que havia acompanhado a compra do navio pela recorrente, bem, como a exploração que esta fazia do mesmo), havia razões para crer que as mesmas tinham conhecimento da matéria dos autos, pelo que os seus depoimentos eram necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, tal como reiteradamente a recorrente havia afirmado nos autos.
XXVI–Assim, para que estivesse habilitado a pronunciar-se positiva ou negativamente quanto à essencialidade do depoimento dessas testemunhas, sempre poderia o tribunal recorrido, v.g., determinar que a recorrente informasse sobre que concretos factos pretendia inquiri-las, bem como sobre a razão de ciência das mesmas – o que também não sucedeu.
XXVII–Carece, pois, de qualquer fundamento a afirmação de que o depoimento das testemunhas não seria essencial para a decisão a proferir.
XXVIII–Estando o tribunal a quo adstrito ao cumprimento do dever de fundamentação quanto ao proferimento das decisões recorridas (que não são de mero expediente, pois delas resultou a concreta impossibilidade de a recorrente fazer prova dos factos que alegou no recurso), tais decisões são ilegais, por violação do disposto no art.º 205º-1 da CRP e no art.º 97º-4 do CPP.
XXIX–Quanto à questão de as testemunhas alegadamente não terem comparecido nas datas designadas para a sua inquirição nos autos administrativos, a recorrente já supra demonstrou que, tendo em consideração os poderes de jurisdição plena do tribunal a quo no âmbito de um recurso de impugnação de decisão de aplicação de coima, bem como a própria natureza de órgão de soberania e as garantias de independência e imparcialidade que são características dos tribunais, o facto de determinada testemunha não ter prestado depoimento perante a autoridade administrativa, não significa que a mesma não venha a prestar depoimento (e por vezes com valor probatório decisivo) perante o tribunal.
XXX–Devendo, nos termos do disposto no art.º 340º-1 do CPP, o tribunal ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento seja necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa; se, através do indeferimento da emissão de novas convocatórias relativamente a todas as testemunhas arroladas pela recorrente, esta ficava, na prática, impedida de exercer os seus direitos de defesa (fazendo prova de factos que concorressem a seu favor, não apenas quanto à não prática de ilícitos contra-ordenacionais, mas também quanto à eventual fixação das coimas em montantes inferiores aos determinados pela autoridade administrativa), para que assim pudesse decidir, o tribunal recorrido deveria dispor de razões ou fundamentos fortes, consistentes e atendíveis – que não se verificaram.
XXXI–Caso tenha sucedido a prática de actos dilatórios ou inúteis nos autos, os mesmos não foram da autoria da recorrente (cfr. art.º 340º-4/d do CPP); e nenhum elemento nos autos permite alvitrar que as provas requeridas pela recorrente seriam irrelevantes ou supérfluas, ou que esses meios de prova fossem inadequados, de obtenção impossível ou muito duvidosa (art.º 340º-4-b/c do CPP).
XXXII–A celeridade, sendo desejável, não é um fim que deva ser alcançado ou promovido em atropelo à busca da verdade material e à subsequente boa e justa decisão da causa.
XXXIII–O legislador, inclusive o legislador constitucional, certamente não terá antevisto que uma arguida/recorrente, por as testemunhas por si arroladas não poderem comparecer (em razão de doença), ou não terem sido convocadas, para a primeira marcação do julgamento, pudesse desde logo ficar impedida de produzir prova testemunhal.
Por conseguinte,
XXXIV–O Tribunal a quo, ao ter proferido as decisões recorridas, nas quais foi determinado que a inquirição das testemunhas arroladas pela recorrente se efectuasse por telefone e por webex (Despacho de 04/01/2023), impôs à recorrente uma forma de prestação de depoimento que, para além de carecer de fundamento legal, viola as normas aplicáveis (cfr. art.os 348º, 317º-1 e 275º-A-1 do CPP, ex vi art.º 41º-1 do RGCO), sendo certo que ainda que tal meio pudesse ser usado, sempre o tribunal recorrido teria previamente de verificar se estavam ou não reunidas as concretas condições para que a inquirição se processasse dessa forma, o que não sucedeu; e,
XXXV–Tendo sido verificada a devolução das convocatórias enviadas às testemunhas para prestarem depoimento, e tendo a recorrente declarado delas não prescindir e requerido que fossem enviadas novas convocatórias para as mesmas moradas e designada nova data de Audiência de Julgamento, uma vez que a inquirição das mesmas se mostrava necessária para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, ao ter indeferido esse requerimento (através dos Despachos recorridos de 12/01/2023), sem que o tribunal tenha sequer tido o cuidado de indagar dos factos que através dessas inquirições a recorrente pretendia provar e das razões de ciência das testemunhas, assim impedindo a produção de toda a prova testemunhal requerida pela recorrente, o tribunal recorrido violou o dever de fundamentação a cujo cumprimento devia obediência (cfr. art.º 205º-1 da CRP e art.º 97º-4 do CPP); violou o disposto no art.º 340º-1 do CPP, que lhe impunha a produção de todos os meios de prova necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa; e impediu a recorrente de exercer os seus direitos de defesa, fazendo prova de factos que concorressem a seu favor, não apenas quanto à não prática de ilícitos contra-ordenacionais, mas também quanto à eventual fixação das coimas em montantes inferiores aos determinados pela autoridade administrativa, violando assim de forma grave o direito da recorrente a um processo justo e equitativo (cfr. art.os 20º-1-4-5, 32º-1-10 e 202º-1-2 da CRP).
XXXVI–Não tendo aplicado a lei no sentido expendido nas conclusões supra, o tribunal a quo fez uma má aplicação do direito, devendo consequentemente, na procedência deste recurso, ser determinada a revogação das decisões recorridas, com os efeitos legais.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, com as seguintes conclusões.
1.Vem a Recorrente invocar que, se o artigo 73 nº1 e 2 do RGCO impedisse o presente recurso, tal seria inconstitucional por violação dos artigos 20º nº. 1,4 e 5, 32.º nº. 1 e 10 e 202º nº1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
2.Acontece que apesar do recurso ter sido admitido, crê o Ministério Público que o artigo 73.º do RGCO, não permite o recurso de decisões interlocutórias, devendo o mesmo ser rejeitado.
3.Uma vez que, tem sido entendimento Jurisprudencial e Doutrinário que, no direito das contraordenações vigora o Princípio da irrecorribilidade das decisões, só sendo recorríveis as decisões cuja impugnabilidade esteja expressamente prevista - arts. 73º, nºs 1 e 2 e 63º, n.º 2 RGCO.
4.As razões deste regime, que se distancia do regime processual penal (onde a regra é a da recorribilidade das decisões), são, nomeadamente, o facto de que as decisões judiciais do processo de contraordenação serem de natureza de ilícito de mera ordenação social e das sanções (coimas que têm caracter somente económico-administrativo) a que lhe correspondem uma tutela eticamente neutra.
5.Para além de que, a admissibilidade deste recurso está em oposição com a natureza deste processo onde impera a celeridade e o menor formalismo, bem como os factos já terem sido objeto de um processo perante a autoridade administrativa no âmbito do qual a lei assegura plenas garantias de defesa. E, se a decisão proferida (no caso condenatória) já foi objeto de uma apreciação com todas as garantias do processo judicial, aceita-se que se limite o direito ao recurso das decisões proferidas para o Tribunal da Relação.
6.Donde que, não haja fundamento para admitir o recurso de despachos ou decisões interlocutórias.
7.E, nem o artigo 73.º do RGCO, interpretado neste sentido, é inconstitucional.
8.Aliás, esta interpretação não tem sido objeto de juízo de inconstitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional, o qual já por mais do que uma vez foi chamado a pronunciar-se sobre a questão.
9.Com efeito, o direito ao recurso, a que alude o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República é diferente do direito de audiência e defesa que o n.º 10 do mesmo preceito garante em processos de contraordenação e em quaisquer processos sancionatórios. Esta última norma significa que é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas.
10.Aliás o Tribunal Constitucional já se pronunciou de que o direito ao recurso consagrado no nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, enquanto meio de defesa contra a prolação de decisões jurisdicionais injustas, assegurando-se ao arguido a possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, não tem aplicação direta ao processo de contraordenação.
11.Também, das garantias gerais de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, vertidas, nomeadamente, no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, não decorre um direito ao recurso, ou seja, à reapreciação das decisões judiciais por um tribunal superior.
12.O direito ao acesso aos tribunais consagrado no artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente para a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem, apenas exigem que se possibilite a impugnação judicial da aplicação de sanções pela prática de contraordenações pelas autoridades administrativas e não uma dupla apreciação jurisdicional dessa impugnação.
13.Com efeito, o direito a uma segunda apreciação jurisdicional apenas se encontra constitucionalmente exigido em processo penal, não sendo esta exigência extensível aos processos contraordenacionais.
14.Mas, ainda que se admitisse a aplicação imediata ao processo contraordenacional do direito ao recurso garantido constitucionalmente apenas para o processo penal, tal não significaria in casu admitir a recorribilidade do despacho que indeferiu a diligência de prova.
15.Aliás, o Tribunal Constitucional tem recorrentemente respondido com a afirmação da «não aplicabilidade direta e global aos processos contraordenacionais dos princípios constitucionais próprios do processo criminal».
16. Assim, a interpretação do artigo 73.º do RGCO, no sentido de não permitir recurso do despacho que indeferiu uma diligência de prova requerida pela arguida no processo de contraordenação, não é incompatível com a Constituição.
17.No entanto, o presente recurso foi interposto tendo por base a melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
18.Acontece que, se por um lado, o artigo 73 nº2 do RGCO que admite esta válvula de segurança refere-se a «sentença», por outro lado, não se nos afigura que a questão suscitada e invocada pela Recorrente, para fundamentar a interposição de recurso, seja matéria de direito amplamente controversa na Doutrina e na Jurisprudência, não se vislumbrando assim que o recurso interposto seja manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito.
19.E, nem é invocado, para melhor aplicação do direito, qualquer entendimento jurisprudencial amplamente adotado e que tenha sido desconsiderado pelo Tribunal «a quo».
20.Acresce que, também, não se compreende a fundamentação de promoção da uniformidade da jurisprudência, uma vez que, a nosso ver, não nos encontramos perante matéria que seja alvo de controvérsia assinalável em sede Jurisprudencial.
21.E, nem a recorrente refere, indica ou exemplifica de forma expressa qualquer controvérsia na Jurisprudência sobre a mesma questão de direito, nem a necessidade de fixar Jurisprudência sobre questão jurisprudencialmente controvertida, ou que haja sido proferida decisão contrária à Jurisprudência anteriormente fixada.
Se ainda assim, Vas. Exas permitirem o recurso da decisão interlocutória, então sempre se diz que;
22.No domínio do direito das contraordenações a celeridade e a eficácia assumem relevância particular uma vez que os prazos de prescrição se revelam bastante curtos e, consequentemente as decisões judiciais devem refletir essa preocupação, sem dilações indevidas ou desproporcionadas.
23.Acontece que, o RGCO só admite expressamente o adiamento por falta do arguido, cujo interrogatório seja considerado necessário pelo Tribunal, sendo que a inquirição por falta de testemunhas só pode ser adiada uma vez, desde que o Tribunal considere necessária a inquirição para a descoberta da verdade.
24.No entanto, o aqui recorrente prescindiu da inquirição do representante legal da arguida.
25.E, como refere o despacho interlocutório: «no caso, não só inexiste qualquer justificação para o alegado impedimento da presença das 4 testemunhas, como inexiste qualquer garantia de que as mesmas estejam disponíveis nas datas sugeridas.», uma vez que se encontram embarcadas, não existindo data concreta para a sua volta.
26.E, se por um lado o Tribunal não considerou necessária a inquirição das testemunhas arroladas pela arguida: JVM, DGF, MVA, RB e PVV, por outro lado, agora, a recorrida só considera imprescindível para o esclarecimento da verdade e boa decisão da causa o depoimento das testemunhas: PVV, RB, MVA e JVM..
27.Acresce que, em sede de audiência de julgamento, a Recorrente refere somente que «a inquirição das testemunhas se mostra necessária para a descoberta da verdade e boa decisão da causa», não esclarecendo quando as mesmas estariam disponíveis para serem inquiridas, nem invocando o facto de as mesmas terem ou não conhecimento direto dos factos, ou os factos ou pontos que pretendia provar ou de que modo seriam de grande utilidade para a descoberta da verdade e cabal apuramento dos factos.
28.E, nem alvitrou datas possíveis para a inquirição, sabendo-se que as mesmas se encontram embarcadas (por vezes durante meses). Ou seja, tendo em conta a informação prestada pela recorrente, desconhecendo-se quando as testemunhas voltariam, facilmente se concluiu que o resultado de novo envio de notificação surtiria o mesmo efeito, perdendo-se, eventualmente, até a eficácia da prova entretanto produzida.
29.Para além de que, se as mesmas fossem essenciais ou necessárias à descoberta da verdade, teve a Recorrente a oportunidade de se pretendesse facultar outros meios para as mesmas serem ouvidas, nomeadamente por webex.
30. Não sendo, a realização da inquirição através de meios de comunicação à distância, designadamente teleconferência, videochamada, webex ou outro equivalente, qualquer meio ilegal, como pretende a recorrente.
31.Finalmente, quanto à invocada falta de fundamento das decisões recorridas, importa dizer que, para que uma decisão careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que seja falta absoluta. O que não se verifica.”.

Recurso da decisão final

No Juiz 2 do Juízo Marítimo do Tribunal Marítimo de Lisboa, foi proferida sentença a julgar improcedente o recurso interposto pela arguida A. – Unipessoal, Lda. e, consequentemente, a manter a decisão impugnada, nos seus exactos termos.

Inconformada, a arguida A. – Unipessoal, Lda. interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
I–O presente recurso tem por objecto a Sentença que nos autos foi em proferida 26/01/2023, na qual foi decidido julgar improcedente o recurso interposto pela recorrente e manter a decisão administrativa de condenação em coima impugnada, nos seus exactos termos.
II–A recorrente consigna manter interesse na apreciação do recurso por si interposto em 20/01/2023 (com a Ref. Citius 44470810), que tem por objecto a douta decisão proferida em 04/01/2023 (Ref. Citius 535042), bem com as decisões proferidas na audiência de julgamento ocorrida em 12/01/2023 (vd. Acta com Ref. Citius 535730).
III–A recorrente impugnou, por via do recurso que apresentou em 20/01/2023, os referidos Despachos de 04/01/2023 e de 12/01/2023, pois não pretendia que, caso viesse a delas recorrer apenas no recurso que viesse a ser interposto da Sentença final (o presente recurso), lhe viesse a ser oposto o transitado em julgado dessas decisões ora recorridas.
IV– Simetricamente, para o caso de se vir a entender que aquelas decisões não eram recorríveis autonomamente, mas apenas no âmbito do recurso da Sentença final, então a recorrente fará menção das razões pelas quais considera que tais decisões são ilegais e devem ser revogadas.
V–A tutela da posição jurídica de quem seja arguido e condenado em processo de contra-ordenação manifestamente integra o direito a um processo justo e equitativo, conforme resulta do art.º 20º-1-4-5 da CRP, aplicável ao direito de mera ordenação social ex vi da norma do art.º 32º-1-10 da lei fundamental; as quais impõem, no âmbito do ilícito de mera ordenação social, a consagração de um regime de recursos que, assegurando ao arguido os direitos de audição e defesa, incluindo o recurso, permita a tutela efectiva dos respectivos direitos e interesses atendíveis.
VI–Assim, seja através do recurso já interposto em 20/01/2023, seja através do presente recurso, sempre deve ser reconhecido à recorrente o direito de impugnar as decisões interlocutórias de 04/01/2023 e de 12/01/2023.
VII–Estas decisões são ilegais, e com a sua prolação foram violados os direitos de defesa da arguida/recorrente – a um ponto tal que aquela, que naqueles termos se viu impossibilitada de produzir a totalidade da prova testemunhal por si requerida, considera ter ocorrido denegação de justiça.
VIII–Para além do interesse “substantivo” na produção da prova por si requerida, foram razões de economia (designadamente economia processual) e simplificação da tramitação dos autos, que levaram a recorrente a requerer, em 03/01/2023, fosse designada outra data para a audiência de julgamento, após ter tomado conhecimento de que à mesma não poderiam comparecer três das testemunhas que ela havia arrolado, pois reputava tais depoimentos como absolutamente necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
IX–A recorrente, com o fim de permitir uma eficiente condução dos trabalhos, pretendia que a audiência de julgamento decorresse, se possível, numa única sessão, com o que se poderia evitar a multiplicação de deslocações de cerca de 500 Km entre Aveiro (zona onde a recorrente tem sede e onde o mandatário desta tem escritório) e Lisboa, bem como as inerentes despesas.
X–Aliás, relativamente à testemunha PVV (que se encontrava ausente em campanha de pesca, em navio de outra armadora), a relevância probatória do seu depoimento nem careceria de alegação, bastando para tanto atentar que na decisão administrativa de aplicação de coima se faz referência a que essa pessoa estava a bordo do navio “Novo Virgem da Barca”, de que então era capitão, aquando da autuação com que se iniciou o procedimento por contra-ordenação, pelo que certamente terá conhecimento directo da matéria dos autos.
XI–As testemunhas RB (ausente em campanha de pesca, em navio pertencente a uma armadora espanhola) e MVA (doente no seu domicílio, com indicação de que dele só poderia ausentar-se para tratamentos), ambos oficiais da marinha mercante, foram tripulantes do mesmo navio “Novo Virgem da Barca”.
XII–Aquele requerimento foi indeferido, através do Despacho de 04/01/2023, no qual, infundadamente, se fez menção de não se considerar essencial a inquirição das testemunhas (o que é falso, como vem de referir-se), bem como de inexistência de qualquer justificação para os impedimentos alegados (não fazendo qualquer sentido falar-se em justificação para a falta de testemunhas que nem sequer haviam sido notificadas, como veio a apurar-se), e de que as testemunhas da recorrente não haviam comparecido nas datas designadas para sua inquirição na fase administrativa; tendo sido determinado que caso a recorrente pretendesse a inquirição das testemunhas alegadamente impedidas, as embarcadas poderiam ser inquiridas por telefone e as demais por webex, devendo, para o efeito, a recorrente providenciar pelos meios necessários a tal, facultando o endereço electrónico das testemunhas que se encontrem em território terrestre e facultando os contactos telefónicos das embarcadas.
XIII–Dispondo o tribunal a quo dispõe de plenos poderes na apreciação de uma impugnação judicial de decisão administrativa de condenação em coima, o tramitado na fase administrativa do procedimento, mormente no que se refere a insuficiências da produção de prova da arguida, não releva nem deve ser levado como dado adquirido para a fase judicial de apreciação da impugnação da decisão final que nele tenha sido proferida.
XIV–Com efeito, o facto de determinada testemunha não ter prestado depoimento perante a autoridade administrativa, não significa que a mesma não venha a prestar depoimento perante o tribunal onde decorra o recurso interposto de uma decisão administrativa condenatória – a própria natureza de órgão de soberania, bem como as garantias de independência e imparcialidade que são características dos tribunais (e que os particulares não esperam encontrar nas autoridades administrativas), levam a que, frequentemente, elementos probatórios decisivos, sejam documentos, sejam depoimentos, não sejam carreados para o processo administrativo, mas venham posteriormente a ser produzidos em juízo.
XV–Através da determinação da prestação de depoimento através de telefone e de webex, foi imposta à recorrente uma forma de prestação de depoimento daquelas testemunhas que, para além de carecer de fundamento legal, viola as normas aplicáveis – cfr. art.os 348º, 317º-1 (que estabelece que as testemunhas indicadas por quem se não tiver comprometido a apresentá-los na audiência são notificados para comparência) e 275º-A-1 do CPP, ex vi do estatuído no art.º 41º-2 do RGCO.
XVI–Acresce que aquela determinação do tribunal a quo pressupõe, não apenas (i) que as testemunhas dispusessem de meios tecnológicos e se encontrassem em local com cobertura de telefone ou de internet (incluindo a bordo de navios que se encontravam em campanhas de pesca em alto mar…), sem o que nem sequer seria possível a sua inquirição; mas ainda (ii) que elas estivessem em condições (v.g., físicas, no que respeita à testemunha doente; mas também “geográficas”, no que respeita a todas as outras, quer as embarcadas quer a que se encontrava em gozo de férias) de prestar depoimento; (iii) que a recorrente conseguisse, em tempo útil, entrar em contacto com as testemunhas para as inquirir sobre todas essas circunstâncias; sobre a respectiva disponibilidade para prestarem depoimento nesses termos e, na positiva, para lhes solicitar os respectivos contactos telefónicos (os quais pertencem a navios de armadores de pesca concorrentes directos da recorrente) ou endereços electrónicos a facultar ao tribunal, e (iv) que elas aceitassem, mediante mero pedido da recorrente sem o peso de uma convocatória judicial, prestar declarações pelas formas e nos termos impostos pelo tribunal recorrido.
XVII–Assim, para além de a determinação do tribunal a quo no sentido de que só admitiria o depoimento das testemunhas via telefone e webex carecer de fundamento legal, ainda que tais métodos pudessem ser usados, para tanto sempre o tribunal recorrido teria previamente de verificar se estavam ou não reunidas as concretas condições para que a inquirição se processasse dessas formas – o que não sucedeu.
XVIII–Aberta a sessão da audiência de julgamento, foi dado conhecimento à recorrente de que estavam ausentes todas as testemunhas por ela arroladas, tendo sido devolvidas as convocatórias que lhes haviam sido enviadas (entretanto chegadas aos autos em 05/01/2023, do que foi dado conhecimento à recorrente por notificação elaborada em 06/01/2023).
XIX–Perante a falta de notificação das convocatórias às testemunhas, a recorrente (a) declarou não prescindir da inquirição das testemunhas por ela arroladas; (b) requereu que, tendo sido notificada da devolução das cartas enviadas para convocação das testemunhas para o julgamento, fossem novamente enviadas convocatórias para as mesmas moradas, uma vez que desconhecia outras, e (c) considerando absolutamente necessário para o esclarecimento da verdade e boa decisão da causa o depoimento das testemunhas que arrolou, requereu fosse designada data para as suas inquirições.
XX–Sobre esses requerimentos pronunciou-se o tribunal a quo através das decisões consignadas na Acta da Audiência de Julgamento de 12/01/2023, através das quais a recorrente foi definitivamente impedida de produzir a prova testemunhal que havia requerido, e que havia sido ordenada por douto Despacho de 25/11/2022.
XXI–Tais decisões são tão mais ilegais se atendermos as que, na realidade, as testemunhas nelas referidas nem sequer tinham sido notificadas (vd. art.º 317º-1 do CPP).
XXII–O tribunal a quo não atentou sequer em que a devolução das convocatórias poderia ter sucedido em razão da ausência de tais pessoas em virtude de estarem embarcadas ou em do gozo de férias, conforme a recorrente havia informado nos autos (ou de qualquer outro motivo atendível), e remeteu para o Despacho de 04/01/2023 quanto à fundamentação do indeferimento dos requerimentos formulado pela recorrente em Audiência de Julgamento.
XXIII–Quanto à testemunha JVM, também não notificada, mas que não figurava entre as «alegadamente, impedidas» a que se referia o Despacho de 04/01/2023, o tribunal recorrido nem se pronunciou, quando não lhe era sequer aplicável a determinação de que as testemunhas embarcadas poderiam ser inquiridas por telefone e as demais por webex.
XXIV–Tendo a recorrente alegado que os depoimentos das testemunhas eram absolutamente necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, para que estivesse habilitado a pronunciar-se positiva ou negativamente quanto à essencialidade do depoimento dessas testemunhas, sempre poderia o tribunal recorrido, v.g., determinar que a recorrente informasse sobre que concretos factos pretendia inquiri-las, bem como sobre a razão de ciência das mesmas – o que não foi determinado.
XXV–É assim infundada a afirmação de que os depoimentos dessas testemunhas não seriam essenciais para a decisão a proferir, pelo que, estando o tribunal a quo adstrito ao cumprimento do dever de fundamentação, tais decisões são ilegais, por violação do disposto no art.º 205º-1 da CRP e no art.º 97º-4 do CPP.
XXVI–Quanto à menção a que as testemunhas nunca haviam comparecido para prestar declarações no processo administrativo (o que nem sequer corresponde à verdade no que respeita à testemunha DF), tendo em consideração os poderes de jurisdição plena do tribunal a quo no âmbito de um recurso de impugnação de decisão de aplicação de coima, bem como própria natureza de órgão de soberania, e as garantias de independência e imparcialidade que são características dos tribunais, o facto de determinada testemunha não ter prestado depoimento perante a autoridade administrativa, não significa que a mesma não venha a prestar depoimento, e por vezes com valor probatório decisivo, perante o tribunal.
XXVII–Todavia, devendo, nos termos do disposto no art.º 340º-1 do CPP, o tribunal ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento seja necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa; se, através do indeferimento da emissão de novas convocatórias relativamente a todas as testemunhas arroladas pela recorrente, esta ficava, na prática, impedida de exercer os seus direitos de defesa (fazendo prova de factos que concorressem a seu favor, não apenas quanto à não prática de ilícitos contra-ordenacionais, mas também quanto à eventual fixação das coimas em montantes inferiores aos determinados pela autoridade administrativa), para que assim pudesse decidir, o tribunal recorrido deveria dispor de razões ou fundamentos fortes, consistentes e atendíveis – que não se verificaram.
XXVIII–Caso tenha sucedido a prática de actos dilatórios ou inúteis nos autos, os mesmos não foram da autoria da recorrente (cfr. art.º 340º-4/d do CPP); e nenhum elemento nos autos permite alvitrar que as provas requeridas pela recorrente seriam irrelevantes ou supérfluas, ou que esses meios de prova fossem inadequados, de obtenção impossível ou muito duvidosa (art.º 340º-4-b/c do CPP).
XXIX–O legislador, inclusive o legislador constitucional, certamente não terá antevisto que uma arguida/recorrente, por as testemunhas por si arroladas não poderem comparecer (em razão de doença), ou não terem sido convocadas, para a primeira marcação do julgamento, pudesse desde logo ficar impedida de produzir prova testemunhal.
XXX–Por conseguinte, o Tribunal a quo, ao ter proferido as aludidas decisões, nas quais foi determinado que a inquirição das testemunhas arroladas pela recorrente se efectuasse por telefone e por webex (Despacho de 04/01/2023), impôs à recorrente uma forma de prestação de depoimento que, para além de carecer de fundamento legal, viola as normas aplicáveis (cfr. art.os 348º, 317º-1 e 275º-A-1 do CPP, ex vi art.º 41º-1 do RGCO), sendo certo que ainda que tal meio pudesse ser usado, sempre o tribunal recorrido teria previamente de verificar se estavam ou não reunidas as concretas condições para que a inquirição se processasse dessa forma, o que não sucedeu; e,
XXXI–Tendo sido verificada a devolução das convocatórias enviadas às testemunhas para prestarem depoimento, e tendo a recorrente declarado delas não prescindir e requerido que fossem enviadas novas convocatórias para as mesmas moradas e designada nova data de Audiência de Julgamento, uma vez que a inquirição das mesmas se mostrava necessária para a descoberta da verdade e boa decisão da causa; ao ter indeferido esse requerimento (através dos Despachos de 12/01/2023), sem sequer ter o cuidado de indagar dos factos que através dessas inquirições a recorrente pretendia provar e das razões de ciência das testemunhas, assim impedindo a produção de toda a prova testemunhal requerida pela recorrente, o tribunal recorrido violou o dever de fundamentação a cujo cumprimento devia obediência (cfr. art.º 205º-1 da CRP e art.º 97º- 4 do CPP); violou o disposto no art.º 340º-1 do CPP, que lhe impunha a produção de todos os meios de prova necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa; e impediu a recorrente de exercer os seus direitos de defesa, fazendo prova de factos que concorressem a seu favor, não apenas quanto à não prática de ilícitos contra-ordenacionais, mas também quanto à eventual fixação das coimas em montantes inferiores aos determinados pela autoridade administrativa, violando assim de forma grave o direito da recorrente a um processo justo e equitativo (cfr. art.os 20º-1-4-5, 32º-1-10 e 202º-1-2 da CRP).
XXXII–Ao ter encerrado a produção de prova sem permitir o depoimento daquelas testemunhas, e ao ter, apenas com o depoimento de três testemunhas arroladas pelo Ministério Público, proferido a Sentença recorrida, esta encontra-se enferma dos mesmos vícios acima apontados àqueles Despachos de 04/01/2023 e de 12/01/2023, devendo consequentemente ser a Sentença revogada e substituída por decisão que ordene a notificação das testemunhas indicadas pela recorrente para serem ouvidas em audiência de julgamento, prosseguindo os autos até final.
XXXIII–Da decisão administrativa de aplicação de coima resulta que que, após a arguida/recorrente ter sido notificada para, ao abrigo do disposto no art.º 50º RGCO, se pronunciar sobre as infracções que lhe eram imputadas, e depois de esta ter apresentado a sua defesa, foram levadas a cabo diligências probatórias que por ela não haviam sido requeridas, e que nunca lhe foram notificadas – designadamente, foi junto aos autos um documento que a autoridade recorrida refere como sendo «relatório de peritagem à estação de radiocomunicações do navio».
XXXIV–Sob pena de violação do princípio do contraditório e das mais elementares garantias de defesa da recorrente (cfr. art.º 50º do RGCO e art.º 32º-10 da CRP), ainda que se tratasse de «relatório elaborado pelos técnicos da ANACOM que juntamente com o agente da PM interceptaram e fizeram a verificação do equipamento instalado a bordo da embarcação ‘Novo Virgem da Barca’, que, numa súmula, se encontra descrito no próprio auto de noticia», como se refere na Sentença, o teor de quaisquer elementos que não constavam dos autos quando a recorrente exerceu o seu direito de audição e defesa dos autos não podia ter sido levado em consideração na instrução do processo de contra-ordenação e na decisão administrativa que a condenou – como efectivamente o foi.
XXXV–Esse documento não foi dado a conhecer à arguida/recorrente, e o mesmo foi junto ao processo administrativo após a notificação prevista no art.º 50º do RGCO, após a subsequente apresentação do requerimento de defesa, e até após a produção da prova testemunhal requerida pela recorrente, sendo consequentemente absurda a menção, feita na Sentença recorrida, de que a recorrente «Nem mesmo quando prestou declarações referiu ou contestou a fiscalização técnica efectuada pelos técnicos da ANACOM» – se esse relatório pericial foi junto aos autos apenas posteriormente ao momento em que a recorrente «prestou declarações», e dessa junção nunca lhe foi dado conhecimento, nunca podia a recorrente ter referido ou contestado os resultados dessa fiscalização técnica.
XXXVI–Através da omissão da notificação dessa prova à recorrente, foi-lhe sonegada a possibilidade de impugnar, tanto a inclusão dessa matéria nos autos, como, v.g., a autenticidade, a veracidade ou a correcção técnica desse elemento probatório.
XXXVII–Destarte, com a omissão da notificação à arguida/recorrente dos elementos de prova que foram juntos ao procedimento administrativo por iniciativa da autoridade recorrida posteriormente à notificação para exercício do direito de audição e defesa, e mesmo à produção da prova requerida pela recorrente, e que inequivocamente foram levados em consideração na decisão administrativa, sem que previamente lhe tivesse sido facultada a possibilidade de analisar e se pronunciar sobre esses elementos probatórios, sobre eles requerendo, se assim o entendesse, a produção de nova prova, foi na realidade cometida uma nulidade insanável, acarretando a invalidade de todo o processado subsequente à junção daqueles elementos probatórios ao processo administrativo (cfr. art.º 50º do RGCO, art.º 32º-10 da CRP e art.º 119º-1/c do CPP, aplicável ex vi do disposto no art.º 41º-1 do RGCO).
XXXVIII–Ao assim não ter decidido, antes tendo julgado «improcedente a excepção da nulidade do procedimento administrativo por preterição do direito de defesa, designadamente no que respeita à prova pericial», o tribunal a quo aplicou mal o direito, o que deverá conduzir à revogação da Sentença recorrida, com os demais efeitos legais.
XXXIX–Ao ter impedido na totalidade a produção da prova testemunhal requerida pela recorrente, o tribunal recorrido impossibilitou a demonstração nos autos da matéria de facto por ela alegada no recurso de impugnação da decisão administrativa condenatória (cfr. artigos 31º-47º e 68º desse recurso).
XL–Feita essa prova, mesmo que daí não resultasse a absolvição da prática dos ilícitos em causa, poderiam eventualmente ter sido apurados factos que (v.g., militando no sentido da mitigação da culpa da recorrente, ou na desmonstração da sua difícil situação económica, favores de determinação da medida da coima nos termos previstos no art.º 8º- 1 do RGCO) viessem a conduzir à aplicação a esta de sanções menos gravosas que as aplicadas pela autoridade administrativa e mantidas pela Sentença recorrida.
XLI–Também por esse motivo, deverá a Sentença recorrida ser revogada, devendo os autos regressar ao tribunal recorrido para reabertura da audiência de julgamento, por forma a que na mesma possa ser produzida a prova testemunhal requerida pela recorrente.
XLII–Não tendo aplicado a lei no sentido expendido nas conclusões supra, o tribunal a quo fez uma má aplicação do direito, devendo consequentemente, na procedência deste recurso, ser determinada a revogação da decisão recorrida, com os efeitos legais.”

O Ministério Público apresentou Resposta, concluindo do seguinte modo:
1.A Recorrente vem manifestar interesse na apreciação do recurso interposto a 20.01.2023 cujo objeto são decisões interlocutória datadas de 04.01.2023 e 12.01.2023.
2.Acontece que, o RGCOC só prevê, uma segunda instância de recurso, admitindo a possibilidade de recurso para o Tribunal da Relação, das sentenças (ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º do mesmo diploma legal).
3.Assim, e salvo melhor entendimento, e apesar dos amplos poderes conferidos pela alínea a) do nº 2 do artigo 75º do RGCOC, ao Tribunal da Relação, está legalmente afastada a possibilidade de reapreciar os despachos interlocutórios.
4.Sendo entendimento Jurisprudencial e Doutrinário que, no direito das contraordenações vigora o Princípio da irrecorribilidade das decisões, só sendo recorríveis as sentenças/decisões finais cuja impugnabilidade esteja expressamente prevista.
5.Deste modo não devem os despachos interlocutórios ser apreciados no presente recurso.
No entanto se, porém, Vas. Exas. não forem deste entendimento então:
6.No domínio do direito das contraordenações, a celeridade e a eficácia assumem relevância particular pois que, os prazos de prescrição se revelam bastante curtos. Devendo esta configuração refletir-se na preocupação de obtenção de uma decisão definitiva sem dilações indevidas ou desproporcionadas.
7.Foi marcada a audiência de julgamento para o dia 12.01.2023.
8.Posteriormente, veio a arguida/recorrente dizer que as suas testemunhas: DGF, funcionário da arguida, encontra-se em férias, não tendo sido apresentado qualquer documentação comprovativa, e, muito estranhamento não identificação da data concreta em que o mesmo voltaria ao serviço; a testemunha MVA encontrava-se doente, sem data em que estaria disponível para prestar depoimento; a testemunha PVT, encontrava-se em alto mar, sem data de volta (não apresentando qualquer documentação comprovativa, aliás que protestou juntar e nunca o fez); a testemunha RB, somente apresentou a justificação de que o mesmo se encontrava embarcado desde 16.11.2022 e que previsivelmente só voltaria daí a 4 meses (sem juntar qualquer documentação comprovativa) e, finalmente quanto a testemunha JTM, não apresentou qualquer justificação (pressupondo-se que não estava impedida).
9.Tendo sido então proferido o despacho interlocutório de 04.01.2023, onde é referido para a realização do julgamento a Recorrente não garante a presença das testemunhas, alegadamente, ora impedidas, pois refere «previsivelmente» (…)»
10.Mas, caso a Recorrente pretendesse, efetivamente, a inquirição das testemunhas, alegadamente, impedidas, que poderiam ser inquiridas por telefone e as demais por webex, devendo, para o efeito, providenciar pelos meios necessários a tal, facultando o endereço eletrónico das testemunhas que se encontrem em território terrestre e facultando os contactos telefónicos das embarcadas.
11.Procedimento este, perfeitamente legal e deveras utilizado, uma vez que este Tribunal Marítimo tem competência territorial alargada, e que foi utilizado quanto a outras testemunhas na audiência de julgamento.
12.Por seu turno, insta salientar que, fundamental é a presença do representante legal da arguida na audiência de julgamento, sendo que confirmada a sua ausência se poderá marcar-se nova audiência (artigo 68.º do RGCOC)
13.No entanto, a recorrente prescindiu das declarações do legal representante legal da arguida, tendo a Mma. Juiz concordado por não se afigurar essencial a sua inquirição.
14.Já quanto ás testemunhas arroladas pela arguida, apesar de não ter disponibilizado qualquer meio de contacto, no dia de julgamento, não tendo sido alvitrada datas concretas em que as testemunhas estariam disponíveis, também só se afigura a sua inquirição se o Tribunal as considere necessária para a descoberta da verdade e terem justificado as faltas.
15.Acontece que, as notificações das testemunhas arroladas pelo arguido, foram devolvidas, encontrando-se aposta «não reclamado», apesar das cartas terem sido remetidas para as moradas indicadas pela recorrente, algumas delas coincidentes com a sede desta.
16.E, tendo sido notificado o Ex.mo Advogado da arguida da devolução das cartas remetidas, veio o mesmo requerer que a secretaria diligenciasse no sentido de enviar novas cartas, para a mesma morada das testemunhas, nunca fornecendo outras moradas ou indicando datas da disponibilidade destas.
17.Sendo manifesto que a arguida e as testemunhas tiveram o propósito de se eximirem às notificações, tentando utilizar um expediente dilatório, com a pretensão do entorpecimento da Justiça
18.Assim, apesar da inquirição das testemunhas nunca ter sido vedada em sede de impugnação judicial, com pretende fazer crer a arguida recorrente, o facto é que competia a esta referir as razões concretas, nem que de forma escassa, quanto à pertinência e utilidade, na perspetiva dos temas concretos da impugnação judicial da decisão administrativa, bem como indicar data em que as testemunhas estariam disponíveis.
19.Assim, o adiamento da audiência de julgamento iria transformar-se noutro adiamento, sendo esta uma forma de bloqueamento da execução da decisão condenatória, ou da decisão final e da realização do interesse público subjacente ao processo.
20.Assim, o Tribunal dispensou a inquirição das testemunhas arroladas, não se mostrando necessário a marcação de nova sessão de julgamento.
21.Adianta ainda a recorrente que, no procedimento que correu termos na Autoridade Marítima Nacional- Polícia Marítima - Comando Local de Aveiro, que, após a arguida/recorrente ter sido notificada para, ao abrigo do disposto no art.º 50º RGCO, depois de esta ter apresentado a sua defesa, e após a produção da prova testemunhal requerida (onde só foi ouvida uma testemunha, uma vez que as outras nunca compareceram nem justificaram as faltas) foi junto o «relatório de peritagem à estação de radiocomunicações do navio», tendo assim sido cometida uma nulidade insanável.
22.Acontece que como refere a sentença ora recorrida e que de modo sintético se reproduz: No mencionado auto de notícia foi referido que tinha ocorrido inspeção técnica ao equipamento e foram juntos os registos fotográficos. Do auto de diligências de fls. 13 (com data de 13/12/2021) consta que o capitão do navio acompanhou toda a operação levada a cabo pelos técnicos da ANACOM e foi informado dos procedimentos em vista da regularização da situação. Daí consta que o relatório da inspecção seria concluído e enviado ao Comando Local. Esse relatório datado de 22/10/2021 encontra-se a fls. 41. Dos autos consta ainda que a Recorrente apresentou a sua defesa em 14/12/2021, negando a prática dos factos e requerendo a sua audição e a inquirição de 5 testemunhas. Por requerimento de 29/12/2021 requer que o equipamento de segredo (SCRAMBLER CRY2001) seja retirado de bordo da embarcação ‘Novo Virgem da Barca’. Foram enviadas as notificações para 5 das testemunhas indicadas, mas 4 das mesmas não compareceram, tendo apenas comparecido DF o qual depôs e referiu que as demais testemunhas se encontravam em terra, com exceção de RB, cfr. fls. 69, 73. O legal representante da sociedade Arguida foi inquirido a 22/02/2022, cfr. fls. 62 Na sequência do requerido pela Arguida, procedeu-se à remoção do equipamento de segredo Scrambler, cfr. fls. 20 e 21, tendo esta requerido à sociedade Ria Radar que analisasse tal equipamento, o que foi feito a 09/01/2022. O relatório junto a fls. 41, constitui o relatório da inspeção efetuada ao equipamento na data da prática dos factos, a qual foi presenciada pelo comandante da embarcação, tendo a este sido explicado as irregularidades detetadas e as possíveis formas de regularizar a situação. A Recorrente teve acesso a todos os elementos probatórios constantes dos autos, sendo que a nulidade a que se refere no que respeita ao que designou por ‘prova pericial’, mais não constitui que o relatório elaborado pelos técnicos da ANACOM que juntamente com o agente da PM intercetaram e fizeram a verificação do equipamento instalado a bordo da embarcação ‘Novo Virgem da Barca’, que, numa súmula, se encontra descrito no próprio auto de noticia. Por outro lado, nunca a Arguida, após confrontada com o auto de notícia e após notificada para se pronunciar sobre a factualidade imputada e requerer a prova que entendesse, pediu a realização de qualquer tipo de perícia. Nem mesmo quando prestou declarações referiu ou contestou a fiscalização técnica efetuada pelos técnicos da ANACOM. Deste modo julgou-se improcedente a exceção da nulidade do procedimento administrativo por preterição do direito de defesa.
23.Finalmente importa dizer que, quanto à eventual demonstração da situação difícil económica da sociedade, esta só podia ter sido feita através de prova documental e cuja recorrente teve a possibilidade de apresentar, quer no âmbito do processo contraordenacional, quer na fase de impugnação. O nunca ocorreu!
24.Consequentemente nunca se poderia dar como provada a situação económica da empresa, como deficitária, sendo a aqui recorrente, a única responsável, por tal facto. Não merecendo a coima aplicada qualquer censura.”
*

O recurso interlocutório foi admitido através do presente despacho: Por ter legitimidade, estar em tempo, admito o recurso interposto a fls.166 e apenas no que concerne ao despacho proferido na audiência de julgamento, uma vez que o recurso do despacho proferido a fls. 157 no dia 04/01 e notificado a 05/01, é extemporâneo.  Assim, o recurso que ora se admite, subirá com o recurso da decisão final, caso à mesma haja lugar, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo, cfr. arts. 74º, 1, 2, 73º,2, do RGCO e arts. 399º, 401º, 1, b), 406, 1, 407, 2, a), 408, 1, 411º e 414º,1, todos do Cód. Proc. Penal.

O recurso da decisão final foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.

Uma vez remetidos a este Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da improcedência dos recursos.

Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
*

II–A)-Factos Provados
a)-A embarcação de pesca do alto denominado NOVO VIRGEM DA BARCA, com o conjunto de identificação A-3...N, pertence à Arguida A. – Unipessoal, Lda. Cfr. fls. 145
b)-No dia 22/10/2021, pelas 17:00 horas, o NOVO VIRGEM DA BARCA atracou na Ponte Cais ... Porto de Pesca do L...-A____, procedente de alto mar. cfr. auto de notícia de fls. 2.
c)-O então responsável pelo governo do NOVO VIRGEM DA BARCA era PVV, marítimo com a categoria de Piloto de 2ª classe, cfr. auto de notícia de fls. 2.
d)-A bordo encontrava-se instalada e em funcionamento uma estação de radiocomunicações composta por um equipamento de radicocomunicações emissor/recetor de marca SAILOR, modelo RT2..., com o número de série 3....1, a funcionar no modo de emissão/receção na faixa de frequências VHF consignadas ao serviço Móvel Maritimo e que se encontrava acopolado a um equipamento de dispositivo de segredo (scrambler) da marca SAILOR, modelo CRY2..., com o número de série 3....2, que não está averbado na Licença de Estação nº PT2....ORLS0.......1 e não possui qualquer autorização de funcionamento. Cfr. auto de notícia de fls. 2.
e)-Foi apreendido, sem remoção, o equipamento Scambler CRY 2001 de marca ‘Saylor Compact’ e foi nomeado depositário do mesmo PMV. Cfr. auto de apreensão de fls. 4 a 6.
f)-A Arguida, foi constituída em 26/06/2015 e tem por objecto social «Pesca de arrasto costeira, longínqua ou do alto; preparação, secagem e conservação de peixe e outros produtos de pesca, comercialização de peixe, crustáceos, moluscos e outros produtos alimentares frescos, congelados, salgados, secos e sucedâneos, importação e exportação de todos estes produtos. Cfr. certidão de fls. 63.
g)-A licença de Estação de Embarcação para os tipos de equipamento e as faixas das frequências permitidas [AIS nas faixas de frequência dos 161.0-162.0MHz, VHF DSC, VHF fixo e VHF Portátil nas faixas de frequências dos 156.0-162.0 MHz, Epirbe 406.0-121.5 MHz, Radar (banda X) e Radar SART 9200.0-9500.0 MHz, Radar (banda S) 2920.0-3100.0MHz, MF/HF DCS Radiotelefone 1605.0-27500.0KHz e SES Standard Mni C, SES Standard F e Sistema de Monotorização de Navios por Satélite C 1,6 GHz] foi emitido em 08/01/2021. Cfr. licença de fls. 9.
h)-A fiscalização efectuada a 22/10/2021 foi-o pelo autuante CV em conjugação com dois técnicos da ANACOM. Cfr. auto de notícia de fls. 2 e relatório de fls. 41.
i)-Tal fiscalização foi efectuada na sequência de várias queixas relativas a interferências prejudiciais nas comunicações ‘via rádio’, cfr. relatório de fls. 41.
j)-A embarcação ‘Novo Virgem da Barca’ é uma embarcação de Pesca-Largo, registada em nome da Arguida em 17/12/2015. (cfr. título de Propriedade de fls. 145).
k)-Para além do equipamento referido em d), também se encontrava instalado e em funcionamento um equipamento de radiocomunicações da marca JRC, modelo NCM-2..., com o número de série 5...9 que, quando usado na situação de recetor tinha possibilidade de intercetar todas as comunicações, mesmo as que não se enquadram no âmbito da actividade desenvolvida pelo navio, que decorram na faixa de frequências de 90,000KHz a 27,5 MHz e quando usado na condição de emissor permitia a utilização de qualquer frequência na faixa de 1,605 MHz a 27,5 MHz, em que se incluem as frequências em faixas condicionadas e de gestão militar destinadas a comunicações militares privativas. Cfr. relatório de fls. 41.
l)-A utilização do equipamento, na situação de emissão, era susceptível de provocar interferências prejudicais em faixas de frequências reservadas à operação de redes e serviços de comunicações electrónicas não acessíveis ao público, destinadas exclusivamente aos serviços MA (Móvel Aeronáutico); FIX (Fixo), MT (Móvel Terrestre), AM (Amador); AM-S (Amador por Satélite) e RAD (Radiodifusão Sonora), cfr. relatório de fls. 41.
m)-A empresa ‘Ria Radar’ elaborou o relatório de 09/01/2022 referindo que a situação foi regularizada no que concerne às frequências de rádio JRC, modelo 2150, nº 56779, tendo sido instalado novo software, tendo o equipamento sido reiniciado e foi verificado que o mesmo dispunha apenas das frequências autorizadas. Cfr. relatório de fls. 71.
n)-Em 31/12/2021, a pedido da Arguida, foi retirado da embarcação o equipamento de segredo (Scrambler) CRY2021. Cfr. fls. 24
o)-A Arguida quis colocar o navio em actividade sem se ter certificado que o equipamento instalado a bordo cumpria os normativos e a licença em vigor, tendo agido de forma desatenta e descuidada, sem observar a prudência e diligência a que estava obrigada e de que era capaz, e omitindo a prudência que a detenção de uma embarcação utilizada no alto mar para o exercício da pesca comercial, o exige, com total desrespeito pelas mais elementares regras de cuidado, que conhecia e tinha obrigação de observar e podia e devia ter adoptado de modo a evitar um resultado que devia prever, uso indevido de frequências para as quais não estava licenciado e possibilidade de encriptar comunicações.
p)-A Arguida sabia que tal conduta era proibida e punida por lei.
q)-A Arguida tem a correr contra si os seguintes processos contraordenacionais:
- 070.40.01-168/19, que corresponde ao processo judicial nº 47/20.0TNLSB.
- 070.40.01-239/19, que corresponde ao processo judicial nº 107/21.0TNLSB.
- 070.40.01-035/20, que corresponde ao processo judicial nº 54/22.9TNLSB.
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II–B)-Factos não Provados

i)-Que a Arguida desconhecesse a existência do equipamento e frequências de radiocomunicações que tinha a bordo.
ii)-Que a Arguida tivesse feito efectivo uso do mesmo.
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III–Objecto do recurso

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
O recurso interlocutório tem o seguinte fundamento: Revogação dos despachos proferidos em 12.01.2013.
Embora a arguida também tivesse recorrido do despacho de 04.01.2023, tal segmento do recurso não foi admitido, pelo que não será apreciado nesta parte.
O recurso da decisão final tem os seguintes fundamentos: a)–Do recurso das decisões proferidas em 04/01/2023 e em 12/01/2023; b)–Do recurso da Sentença proferida em 26/01/2023: i)-Quanto às nulidades decorrentes de omissão de notificação à recorrente dos elementos de prova produzidos por iniciativa da autoridade administrativa após a notificação para exercício do direito de audição e defesa, e de preterição dos direitos de defesa daquela; ii)-Quanto às questões de facto suscitadas pela recorrente
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IV–Fundamentação

(Do recurso das decisões proferidas em 12/01/2023)

São os seguintes despachos que estão em causa:
- “Considerando que não se afigura essencial a inquirição da arguida, a mesma não será ouvida. Quanto ao mais, nada mais há a determinar para além do constante no despacho proferido em 04-01-2023, no qual já se tinha tomado posição relativamente às testemunhas faltosas. Notifique.”
- “ Não obstante a devolução das cartas de notificação das testemunhas indicadas pela arguida, o certo é que já constava dos autos a informação de que as mesmas não iriam comparecer e, na sequência do requerimento apresentado a fls. 154, foi proferido o despacho de fls. 157 no qual já nos pronunciámos sobre o adiamento da inquirição de tais testemunhas, as quais diga-se, nem sequer nos autos administrativos compareceram nas datas designadas para a sua inquirição.
Assim sendo, e não obstante a devolução das cartas de notificação, atenta a justificação apresentada para o não comparecimento das testemunhas agora não notificadas, reitera-se o despacho proferido a fls. 157, indeferindo-se a repetição das notificações, pelos motivos ali expostos.
Notifique”.
Sustenta a recorrente que por via destes despachos o tribunal a quo veio negar à recorrente a possibilidade de produzir a prova testemunhal que esta havia requerido.

Vejamos.

Em primeiro lugar, a lei é clara. Só é admissível recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferido nos termos do art.º 64.º) – cfr. art.º 73.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações (Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro).

E percebe-se que assim seja.

Importa dizer que a culpa na prática das contraordenações não tem as exigências éticas da culpa penal. Nesta, e partindo sempre de um direito penal do facto, há que formar um juízo de censura sobre a conduta do agente por ter violado um dever ser ético, que lhe era exigido face aos bens jurídicos protegidos pela lei penal, em última análise assentes na dignidade da pessoa humana. Nas contraordenações, como se refere no preâmbulo do DL 433/82, o seu aparecimento “ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc.”.

Para a criminalização ser legítima é necessário não só a existência de um bem jurídico dotado de dignidade penal como igualmente verificar-se uma efectiva necessidade ou carência de tutela penal, pelo que "a violação de um bem jurídico penal não basta por si para desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta acepção o direito penal constitui, na verdade, a ultima ratio da política social e a sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária." - (in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito penal, Questões Fundamentais, A doutrina Geral do Crime, Coimbra editora, 2004, pp. 121, citado em Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.03.3009, processo n.º 36/03.3GCTCS.C1). Ainda nas palavras do citado Professor "Uma vez que o direito penal utiliza, com o arsenal das suas sanções específicas, os meios mais onerosos para os direitos e liberdades das pessoas, ele só pode intervir nos casos em que todos os outros meios da política social, em particular da política jurídica não penal, se revelem insuficientes e inadequados. Quando assim não aconteça, aquela intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violação do princípio da proibição do excesso (...) Tal sucederá, p. ex. quando se determine a intervenção penal para protecção de bens jurídicos que podem ser suficientemente tutelados pela intervenção dos meios civis (...), pelas sanções do direito administrativo (...), Como o mesmo sucederá sempre que se demonstre a inadequação das sanções penais para a prevenção de determinados ilícitos (...)" — (in id. lbid.).

Na lição de Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, 1.º volume, 2.ª edição, AAFDL, Lisboa, 1984, pág. 137, alude-se a uma "purificação" do Direito Penal, sublinhando-se que “liberta-o daqueles actos menos graves, menos importantes, que tradicionalmente eram chamadas as bagatelas penais, isto é, casos sem importância, e dá-lhe uma «dignidade» que é importante que ele tenha. Se está no direito penal tudo aquilo que é proibido, ou praticamente tudo aquilo que é proibido, isso pode até gerar nas pessoas a ideia de que aquilo que o direito penal pune não é até particularmente grave. No fundo, se tudo é proibido, as pessoas não sentem tanto a ameaça do direito penal”.

Tudo para referir que as exigências éticas são bem menores nas sanções administrativas, como é o caso das contra-ordenações. E, por via deste entendimento, se compreende as restrições em matéria de recurso para o Tribunal da Relação.
“Em processo contra-ordenacional não é constitucionalmente imposta a consagração da possibilidade de recurso de todas as decisões judiciais proferidas no decurso da impugnação judicial  da decisão administrativa sancionatória – Ac. do Tribunal Constitucional n.º 6589/2006, de 28.11.2006, tribunalconstitucional.pt.
A lei (…) apenas admite recurso, para o Tribunal da Relação, da sentença e do despacho judicial que, na 1.ª instância, tiverem conhecido da impugnação da decisão da autoridade administrativa e do despacho liminar que tiver rejeitado o recurso por ser extemporâneo ou por não respeitar as exigências de forma” – Ac. do TR Lisboa de 18.01.2007, recurso 5/2007-5, gde.mj.pt
Da disciplina dos recursos estabelecida no RGCO, mormente dos arts. 73.º, n.ºs 1 e 2 e 63.º, n.º 2, decorre que, em matéria contra-ordenacional, a regra é a da irrecorribilidade das decisões judiciais; apenas é admissível recurso das decisões finais, restrito a matéria de direito (art.º 75.º, n.º 1); a única excepção a esta regra encontra-se no n.º 2 do art.º 73.º, do RGCO” – Ac. TR Porto de 06.05.2009, processo n.º 0818030, gde.mj.pt/jtrp.
Não podemos ainda deixar de acolher, por plena concordância, toda a jurisprudência que, sobre esta matéria, o Ministério Público cita na sua exaustiva e bem fundamentada Resposta, apresentada em 05.02.2023.
Assim, não se tratando os despachos em causa de decisão final – sentença ou despacho prolatado nos termos do art.º 64.º, do RGCO – o recurso para este tribunal superior não deveria ter sido admitido.
Em segundo lugar, no dia 04.01.2023, foi proferido o seguinte despacho pelo tribunal a quo: “ Encontra-se designado o próximo dia 12/01/2023 para a realização da audiência de discussão e julgamento. Por requerimento entrado a 03/01/2023 veio a Recorrente requerer o adiamento daquela atento o impedimento de 4 testemunhas. Cumpre desde já esclarecer que não foi junto qualquer comprovativo do mencionado impedimento. Por outro lado, na sugestão das datas (em Março de 2023) para a realização do julgamento a Recorrente não garante a presença das testemunhas, alegadamente, ora impedidas, pois refere que ‘previsivelmente’ tais impedimentos já não ocorrerão nas datas sugeridas. Conforme escreve Paulo Pinto de Albuquerque em Comentário do Regime Geral das Contraordenações, 2ª ed., p. 335, «Atenta a sua natureza célere, o RGCO só admite expressamente um caso de adiamento de julgamento: o adiamento por falta do arguido, cujo interrogatório é considerado necessário pelo tribunal (artigo 68.º, n.º2).» Escreve o mesmo Autor em nota ao art. 44º, p. 230 ob. Cit. que «O RGCO não prevê um limite do número de vezes para o adiamento de inquirição de testemunhas, nem na fase administrativa, nem na fase judicial. Mas atenta a sua natureza célere, a regra é esta: a inquirição por falta de testemunha só pode ser adiada uma vez. Esta regra está submetida a duas condições: (1) a autoridade administrativa ou o tribunal considerarem necessária a inquirição para a descoberta da verdade e (2) a testemunha ter justificado a falta (exactamente neste sentido, o artigo 178.º, n.º1, do CE e o artigo 22.º do RPCLSS; na jurisprudência, o acórdão do TRP, de 10.5.2017, processo 6/17.0T8VGS.P1). Se a testemunha não justificou sequer a falta, não tem sentido tentar de novo ouvi-la, pois ela não pode ser detida para ser apresentada diante da autoridade judiciária.» Ora, no caso, não só inexiste qualquer justificação para o alegado impedimento da presença das 4 testemunhas, como inexiste qualquer garantia de que as mesmas estejam disponíveis nas datas sugeridas. Aliás, se atentarmos à tramitação dos autos administrativos conclui-se que nenhuma das testemunhas indicadas pela Arguida/Recorrente compareceram nas datas designadas para sua inquirição e nem sequer justificação das faltas existiu. Assim, atenta a celeridade que terá de ser imprimida a estes autos contraordenacionais (designadamente por ocorrência de eventuais prescrições), considerando o facto de não se considerar essencial a inquirição das testemunhas e ainda a inexistência de qualquer justificação para os impedimentos alegados, indefere-se o requerido adiamento do julgamento. Caso a Recorrente pretenda, efectivamente, a inquirição das testemunhas, alegadamente, impedidas, desde já se esclarece que as que estão embarcadas poderão ser inquiridas por telefone e as demais por webex, devendo, para o efeito, providenciar pelos meios necessários a tal, facultando o endereço electrónico das testemunhas que se encontrem em território terrestre e facultando os contactos telefónicos das embarcadas. Notifique.”.

Este despacho já transitou.

E os despachos interlocutórios de 12.01.2023, na parte relativa às testemunhas, remetem para tal despacho de 04.01.2023, pelo que também por aqui, e nesta matéria, a questão está transitada.

Finalmente, e apesar do que se disse, não deixaremos de aflorar, para as afastar, todas as questões que a recorrente traz ao recurso:
-A arguida veio requerer o adiamento da audiência, sem comprovar os motivos do impedimento das testemunhas que arrolou, que nem sequer justificaram as faltas;
-Nas datas que sugeriu para a posterior realização da audiência, também não garantiu que as testemunhas estivessem presentes, o que tornaria inútil o adiamento, num processo contra-ordenacional em que o regime de prescrição é muito mais apertado do que no direito penal; por isso é que o art.º 68.º, n.º 2, do RGCO, só prevê um único caso de adiamento da audiência: a ausência do arguido e só se o tribunal considerar necessário ouvi-lo; mas também temos que admitir um adiamento da audiência para ouvir uma testemunha faltosa, desde que esta justifique a sua ausência, dê garantias que comparecerá na nova data e, claro, só se o tribunal entender o depoimento como relevante para a descoberta da verdade;
-não faria sentido o tribunal oficiosamente determinar a inquirição das testemunhas, ao abrigo do art.º 340.º, do CPP, desde logo porque nunca foram ouvidas, nem quer em sede administrativa; e, depois, porque estando arroladas e não comparecendo, apesar de devidamente notificadas, nenhuma garantia havia que fossem a juízo; importa ainda dizer que se tentou ouvi-las à distância, o que só não foi possível porque a recorrente não indicou os contactos necessários para tal; e
-quanto ao representante legal da arguida, o tribunal considerou não essencial a sua inquirição, o que, como vimos, afasta o fundamento do adiamento da audiência, declarações que a recorrente inclusive veio prescindir.

Face ao exposto:
-não se admite o recurso interposto dos despachos interlocutórios;
-não obstante, sempre se adianta que improcederiam todos os fundamentos invocados pela recorrente.
*

(do recurso da decisão final)
A recorrente vem interpor recurso da sentença com os fundamentos que utilizou no recurso dos despachos interlocutórios, ou seja, formalmente veio recorrer da sentença mas toda a matéria tem a ver com a produção de prova.
É manifesto, assim, que o recurso não incide sobe matéria de direito relativa ao mérito da contra-ordenação, apreciado na sentença, o que seria já suficiente para rejeitar o recurso.
De outro modo, se foi intenção da arguida interpor recurso da sentença (e só desta seria possível, daí que não se tenha sequer abordado a questão no recurso dos despachos interlocutórios) ao abrigo do art.º 73.º, n.º 2, da RGCO, então também é de rejeitar, por não ter apresentado requerimento prévio a alegar factos demonstrativos da manifesta necessidade de melhorar a apreciação do direito ou de promover a uniformidade da jurisprudência.
Não obstante, sempre se adianta que a recorrente não tem razão.
Como vimos, o tribunal não considerou importante ouvir o representante legal da recorrente (declarações que a recorrente até prescindiu). E nem se pode dizer que, perante tal decisão, a arguida ficou impedida de se pronunciar sobre a matéria dos autos. Como refere Beça Pereira, em Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Anotação ao Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, 12.ª edição, p. 218, “é certo que este, ao interpor o recurso, nas suas alegações acaba sempre por tomar posição, mesmo que só parcialmente, quanto ao objecto do processo”.
Depois, as testemunhas arroladas pela recorrente foram todas notificadas para as moradas indicadas no respectivo rol. E as cartas vieram devolvidas, por não terem sido reclamadas. As testemunhas não foram levantá-las, não tiveram interesse. As moradas estavam correctas, tanto assim é que a recorrente pediu novas notificações para as mesmas moradas. Nada garantia ao tribunal que a situação não se repetiria em futuras notificações. Acresce que a recorrente não foi capaz de - ou não quis - responder à solicitação do tribunal, que tentou ouvir as testemunhas à distância, por meios tecnológicos, ou mesmo por telefone, mas nem assim conseguiu. Face ao exposto, não se pode minimamente censurar o tribunal, só a recorrente é responsável por não terem sido ouvidas as testemunhas que arrolou.
O tribunal a quo agiu bem ao não adiar a audiência, por não ter quaisquer garantias que não houvesse novo adiamento. Tudo foi feito de modo processualmente adequado e com respeito pela defesa da recorrente. As notificações foram enviadas para as moradas correctas. Só foram devolvidas porque não foram reclamadas. A recorrente não indicou contactos para possibilitar a inquirição à distância das testemunhas. Limitou-se a pedir novas cartas para as mesmas moradas. O que seria meramente dilatório.
Face ao exposto, o recurso deveria ter sido rejeitado, por não incidir sobre matéria de direito apreciada na sentença, sendo certo que, de qualquer modo, como vimos, todos os fundamentos decaem, pelo que sempre seria não provido.
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Uma última nota para a alegação da recorrente – em ambos os recursos - de que o processo não foi justo nem equitativo, e que houve falta de fundamentação, assim se violando os artigos 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 32.º e 205.º, todos da Constituição da República Portuguesa.

Para Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2005, Tomo I, p.192, “a exigência de um processo equitativo (...) se não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, impõe, antes do mais, que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e partes entre as partes na dialéctica que elas protagonizam; um processo equitativo postula, por isso, a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas”.

E Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição revista, p.415, “ o direito de acção ou o direito de agir em juízo terá de efectivar-se através de um processo equitativo (...) deve entender-se num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais (...) um dos princípios do processo equitativo e o direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias”.

O dever de fundamentação das decisões dos tribunais – art.º 205.º, n.º 1, da CRP – “obedece a várias razões extraídas do princípio do Estado de direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais; sob o ponto de vista da juridicidade estatal (princípio do Estado de direito), o dever de fundamentação explica-se pela necessidade de justificação do exercício do poder estadual, da rejeição do segredo nos actos do Estado, da necessidade de avaliação dos actos estaduais, aqui se incluindo a controlabilidade, a previsibilidade, a fiabilidade e a confiança nos actos do Estado; a estes exige-se clareza, inteligibilidade e segurança jurídica; sob o ponto de vista do princípio democrático, para além de algumas razões explicitadas a propósito do princípio da juridicidade, podem acrescentar-se as exigências de abertura e transparência da actividade judicial, de clarificação da responsabilidade jurídica (e política) pelos resultados da aplicação das leis, a indispensabilidade de aceitação das sentenças judiciais e dos seus fundamentos por parte dos cidadãos; finalmente, sob o prisma da teleologia dos princípios processuais, a fundamentação das sentenças serve para a clarificação e interpretação do conteúdo decisório, favorece o autocontrolo do juiz responsável pela sentença, dá melhor operacionalidade ao heterocontrolo efectuado por instâncias judicias superiores e, em último termo, contribui para a própria justiça material praticada pelos tribunais” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, Vol. I, 4.ª ed. revista e actualizada, pgs 526 e 527).

O dever de fundamentação das decisões, na sua vertente endoprocessual e extra-processual, decorre do art. 208º, nº1, da Constituição da República, sendo da maior relevância não só para que possa ser exercido controlo no julgamento da matéria de facto, como na decisão de direito – cfr. acórdão do STJ de 26.02.2019, processo n.º 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, dgsi.pt.

Assim, tudo visto, a recorrente não tem razão. O processo foi justo e equitativo e houve igualdade de armas, sem violação do princípio da igualdade, bem como a sentença está devidamente fundamentada.

A recorrente não foi impedida de exercer o seu direito de defesa. Recorreu da decisão administrativa. Indicou os seus argumentos. Arrolou prova. Houve lugar a audiência judicial. As testemunhas foram devidamente notificadas. Os respectivos impedimentos não foram comprovados, nem as faltas justificadas. A recorrente não disponibilizou os contactos das testemunhas para serem ouvidas à distância. O tribunal fez o que tinha que ser feito. Adiar a audiência e notificar as testemunhas para as mesmas moradas constituiria, apenas, uma diligência dilatória, por não haver qualquer garantia que comparecessem em juízo.

Resta dizer que é infundado dizer que “a norma do art.º 73º-1-2 do RGCO, quando interpretada e aplicada no sentido de não ser admissível a um arguido em processo de contra-ordenação, e recorrente no subsequente processo de impugnação judicial de decisão de aplicação de coima, apresentar recurso, dirigido ao Tribunal da Relação, tendo por objecto decisões judiciais, que não a sentença final ou o despacho proferido nos termos do art.º 64º do RGCO, que lhes hajam indeferido a produção de prova testemunhal, sempre seria inconstitucional, por violação, designadamente, das normas dos art.os 20º-1-4-5, 32º-1-10 e 202º-1-2 da CRP”. Como vimos, a jurisprudência do Tribunal Constitucional é no sentido que “em processo contra-ordenacional não é constitucionalmente imposta a consagração da possibilidade de recurso de todas as decisões judiciais proferidas no decurso da impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória”. Depois, e como também foi referido, os argumentos dos recursos são infundados, pelo que, também por aqui, a consequência seria a mesma: o não provimento.
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V–Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento aos recursos, declarando-os totalmente improcedente.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UCs.



Lisboa, 26 de Abril de 2023


Paulo Barreto
Manuel Advínculo Sequeira
Alda Tomé Casimiro