CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RENOVAÇÃO DO CONTRATO
RENOVAÇÃO AUTOMÁTICA
MORA DO ARRENDATÁRIO
Sumário

I – A norma constante do art. 1096º, nº 1, do Código Civil, respeitante à renovação automática dos contratos de arrendamento para habitação com prazo certo, é de natureza supletiva, mesmo na sua redacção actual, introduzida pela Lei nº 13/2019, de 12/02.
II – Existindo divergência entre as partes quanto à data da cessação do contrato de arrendamento, por força de diferente entendimento quanto ao prazo de renovação do contrato, apoiado na existência de jurisprudência e doutrina também divergentes quanto a esta questão, e estando pendente acção judicial para dirimir a controvérsia, não existe mora dos arrendatários pela falta de entrega do locado nos termos do nº 2 do art. 1045º do Código Civil.
III – Nessa situação, os arrendatários estão unicamente obrigados ao pagamento do valor da renda estipulada até ao momento da restituição do locado nos termos do nº 1 do mesmo artigo.

Texto Integral

Processo nº 3966/21.3T8GDM.P1
(Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Gondomar – Juiz 3)

Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Deolinda Varão
2ª Adjunta: Isoleta Costa

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I AA e mulher, BB, intentaram, no Juízo Local Cível de Gondomar do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, acção declarativa, com processo comum, contra “A..., S.A.”, pedindo a condenação desta a:
a) reconhecer que os períodos de renovação de contrato de arrendamento terão de ser de igual período ao de duração inicial, por obediência ao disposto no n.º 1 do art. 1096º do Código Civil, com a consequente declaração de execução neste momento do primeiro período de renovação de cinco anos;
b) caso assim não se entenda, mantendo-se o período de renovação constante do aludido contrato, seja verificada a intempestividade da comunicação de oposição de renovação do contrato, com a consequente ineficácia da mesma e manutenção de vigência do contrato de arrendamento em causa.
Alegaram para tal que em 1 de Janeiro de 2015 outorgaram com “B..., SA”, na qualidade de representante de “C... para Arrendamento Habitacional”, um contrato de arrendamento da fracção autónoma onde residem, pelo prazo de cinco anos, com início nessa data e termo em 31 de Dezembro de 2019, renovável por iguais e sucessivos períodos de um ano, salvo se denunciado por qualquer das partes, que, através de carta registada com aviso de recepção datada de 29 de Junho de 2021, foram informados de que a R. adquiriu essa fracção e de que deveriam efectuar os pagamentos a esta, e que, por meio de carta registada com aviso de recepção datada de 28 de Julho de 2021, esta os notificou da intenção de não renovar o aludido contrato com efeitos à data de 31 de Dezembro de 2021, sendo que na data da notificação o contrato durava há já 6 anos e 7 meses, pelo que o prazo de comunicação da oposição à renovação do contrato era de 240 dias, que não foi cumprido.
A R. contestou, impugnando os argumentos de facto e de direito invocados pelos AA. para fundamentar a sua pretensão. E deduziu reconvenção, alegando que o contrato de arrendamento cessou a sua vigência em 31/12/2021 e não lhe foi entregue o locado, onde pede a condenação dos AA. a procederem à entrega imediata do locado à R., livre e devoluto de pessoas e bens, com excepção dos bens que já ali estivessem instalados à data da celebração do contrato de arrendamento, e a pagarem-lhe uma indemnização mensal de € 1.028,04 por cada mês decorrido desde Janeiro de 2022 até à efectiva entrega do imóvel.
Os AA. replicaram, impugnando os factos invocados pela R. para fundamentar a sua pretensão e alegando que o pedido reconvencional de entrega do imóvel não carece de ser formulado, pois tal já resultaria da eventual improcedência da acção, aduzindo ainda que não há fundamento para pagamento da renda elevado ao dobro.
Foi dispensada a realização da audiência prévia, foi elaborado despacho saneador e foi admitida a reconvenção, sendo, de seguida, proferido despacho onde, “considerando que os autos estão dotados de todos os elementos indispensáveis à imediata prolação de decisão de mérito, uma vez que apenas se suscitam questões jurídicas”, se determinou a notificação das partes para, em 10 dias, querendo, alegarem por escrito.
Os AA. pronunciaram-se, por intermédio do requerimento de 30/05/2022, mantendo a posição assumida na petição inicial e na réplica, defendendo que o art. 1096º, nº 1, do Código Civil tem carácter imperativo, sendo a renovação do contrato necessariamente por períodos de cinco anos, e que, de todo o modo, não foi cumprido o prazo para comunicação da oposição à renovação, no caso de 240 dias, e requerendo a procedência do pedido, principal ou subsidiário, e a improcedência do pedido reconvencional.
A R. pronunciou-se, por intermédio do requerimento de 01/06/2022, mantendo a posição assumida na contestação, defendendo que o art. 1096º, nº 1, do Código Civil não tem carácter imperativo, podendo ser estipulado período diferente de renovação do contrato, e que a antecedência de comunicação da oposição à renovação era de 120 dias, que foi cumprida, pois o que releva é a duração inicial ou da renovação e não a soma do tempo decorrido desde o início do contrato e requerendo a improcedência do pedido formulado pelos AA. e a procedência do pedido reconvencional.
Após, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção procedente, condenando a R. a reconhecer que os períodos de renovação do contrato de arrendamento são iguais ao período de duração inicial, e improcedente a reconvenção, absolvendo os AA. dos pedidos reconvencionais.
Desta decisão veio a R. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1. Em 01/01/2015, entre a entidade designada por C... para Arrendamento Habitacional, representado pela B...,S.A, e os Recorridos foi celebrado um contrato de arrendamento para habitação com prazo certo, o primeiro na qualidade de senhorio e os segundos na qualidade de arrendatários.
2.Nos termos da cláusula 1ª do referido contrato, fizeram as partes constar que o contrato de arrendamento é com prazo certo nos termos do artigo 1095º do Código Civil, de cinco anos, com início em 01/01/2015 e termo em 31/12/2019.
3.Dispõe a cláusula 3ª do contrato que “…..no fim do prazo convencionado o contrato renova-se por períodos sucessivos de um ano enquanto não for denunciado por qualquer das partes.
4.Em 29/06/2021, os Recorridos foram informados por carta registada com aviso de receção da venda do imóvel em causa, à Recorrente e de que deveriam realizar os pagamentos a esta.
5.E em 28/07/2021, a Recorrente por meio de carta registada com aviso de receção, notificou os Recorridos da intenção de não renovar o aludido contrato de arrendamento com efeitos a 31/12/2021.
6.Refere a cláusula 3ª do aludido contrato que “o senhorio pode denunciar o contrato de arrendamento mediante comunicação ao inquilino feita com a antecedência de 120 dias sobre o fim do contrato ou da renovação em curso, através de carta registada com aviso de receção” e, não 240 dias como defenderam os Recorridos.
7.E ainda, o que consta da cláusula 3ª que…” quando o senhorio se opuser à renovação do presente contrato nos termos do artigo 1097º do Código Civil e o inquilino não restituir o locado no prazo legal, este fica obrigado, a titulo de indemnização, a pagar por cada mês ou fração que decorrer até à restituição, o dobro da renda estipulada, bem como as despesas judiciais e/ou extrajudiciais decorrentes desse incumprimento.
8. Ou seja e para o que agora releva, imperativo nos termos do artigo 1096º na redação dada pela Lei 13/2019 é que o contrato de arrendamento tenha a duração mínima de um ano e, que neste caso, a renovação deverá ser de três anos.
9. Não se demonstrando essa imperatividade, quer pela letra quer pelo espírito da Lei, vigora o princípio da liberdade contratual, estabelecido no art. 405º do Código Civil, no sentido de que as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos ou incluir neles as cláusulas que lhes aprouver, podendo inclusivamente reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.
10. Admitindo a natureza supletiva da nova redação do artigo 1096.° do Código Civil, mostra-se assim válida a oposição à renovação do contrato, por parte da Recorrente, com efeitos a 31/12/2021 e, por conseguinte, nesta data cessado o contrato de arrendamento.
11.Bem como tempestiva, pois foi efetuada com a antecedência de 120 dias exigida pelo art. 1097º, nº1, b) do Código Civil.
12. Por outro lado, não tendo os Recorridos entregue o locado na data de 31/12/2021, tem a Recorrente direito a ser ressarcida pelos prejuízos causados na mora dessa entrega e, por conseguinte direito à respetiva indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada prevista no art. 1045 do Cód. Civil, abrange todos os danos resultantes desse atraso e, em princípio, está limitado pelo critério consignado nesse preceito, com exclusão das regras gerais dos art. 562º e seguintes do mesmo Código.
13. Pelo que deveria ter sido julgado procedente o pedido Reconvencional peticionado pela Recorrente e, em consequência condenados os Recorridos a entregar o locado e, não à condenação da Recorrente em reconhecer que o contrato se renovou por cinco anos.
14. O Tribunal de 1ª Instância fez errada apreciação e interpretação do artigo 1096 do Código Civil, ao decidir pela procedência da ação, com a prolação de decisão de que o contrato se renovou por mais cinco anos e ao absolver os Recorridos do pedido reconvencional.
15.Ao celebrar-se o contrato, que este terá, necessariamente, uma duração de cinco anos, prorrogando-se, no seu termo, por sucessivas renovações, de dois ou de um ano, quatro ou cinco, como enfim se pretender..." (Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, Almedina, 2019, página 579, vigorando o princípio da liberdade contratual das partes e, bem assim o princípio da boa fé na celebração do contrato.
16. O legislador pretendeu que as partes fossem livres não apenas de afastar a renovação automática do contrato, mas também que fossem livres de, pretendendo que o contrato se renovasse automaticamente no seu termo, regular os termos em que essa mesma renovação ocorrerá, podendo estipular prazos diferentes - e menores - dos supletivamente fixados pela lei, e não, conforme poderia também interpretar-se da letra do preceito em análise - cuja redação pouco precisa gera estas dúvidas .
17. O legislador, ao definir um período mínimo de renovação, pretendeu conferir uma maior proteção ao arrendatário, mas da alteração legislativa introduzida pela lei 13/2019, apenas se retira um efeito:
-nos contratos de arrendamento de duração inicial inferior a três anos, a renovação automática dos mesmos (quando opera), verifica-se por um período sucessivo de três anos (necessariamente superior ao período inicial).
18. A limitação temporal mínima de três anos, do período de duração do contrato de arrendamento, após a sua renovação (constante do artigo 1096º do Código Civil) na redação dada pela lei 13/2019 de 12 de fevereiro) não assume natureza imperativa, podendo por isso, ser reduzido esse período até um ano, por acordo das partes, estando tal acordo inserido no contrato.
19. A decisão recorrida é ilegal, por errada interpretação da lei, violando o artigo 9° e, consequentemente, os artigos 1080°, 1096° n°1 e 3, e 1097° n°3, todos do Código Civil.
Assim, com o Douto Suprimento do Tribunal ad quem, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão que julgou totalmente procedente a ação, sendo a mesma substituída por outra que verifique a caducidade do contrato de arrendamento em 31/12/2021 (por produção de efeitos da oposição tempestiva à sua renovação por parte do senhorio) e, procedente o pedido reconvencional de entrega do locado, com todas as consequências legais decorrentes da mora nessa entrega e, consequentemente condene os Recorridos nos pedidos formulados, fazendo-se assim, inteira e sã JUSTIÇA».
Os AA. apresentaram contra-alegações, pugnando pelo não provimento do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – O objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões, como decorre dos arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C..
Especificamente o art. 635º, nº 4, do C.P.C. dispõe que nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso.
A “eventual restrição do objeto do recurso, em comparação com o âmbito mais alargado resultante do requerimento de interposição, pode ser expressamente formulada pelo recorrente nas conclusões, identificando aí os segmentos decisórios sobre os quais demonstra efectivamente o seu inconformismo”.
“Mas a restrição do objeto do recurso pode ainda ser tácita quando se verifique a falta de correspondência entre a motivação e as alegações, isto é, quando, apesar da maior amplitude decorrente do requerimento de interposição de recurso, e até da sua motivação, o recorrente restrinja o seu objeto através das questões identificadas nas respectivas conclusões” (cfr. Recursos em Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, pág. 135).
No caso, embora sem retirar daí quaisquer consequências ou apresentar qualquer pedido, a recorrente aludiu na sua motivação de recurso, sob a epígrafe “B) Omissão de Pronúncia”, a “Factos sobre os quais Tribunal nem sequer se pronunciou e, que se entende que deveria ter-se pronunciado”, referindo-se a excertos da cláusula 3ª do contrato de arrendamento em causa nos autos.
Essa questão não consta das conclusões de recurso, sendo que se percebe, de tudo quanto foi alegado pela recorrente, que a mesma não pretende invocar qualquer nulidade da sentença recorrida, antes que esta seja revogada, decidindo-se pela improcedência do pedido e pela procedência da reconvenção, considerando-se que ocorreu a caducidade do contrato por ter havido oposição válida e tempestiva à renovação, invocando como argumento para esta sua posição também o teor da referida cláusula do contrato de arrendamento.
Assim, ainda que se considerasse que se estaria a pretender invocar uma nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando se fez constar aquele segmento da motivação de recurso, sempre ocorreu uma restrição do objecto do recurso nas respectivas conclusões, nos termos do art. 635º, nº 4, do C.P.C., não havendo que conhecer dessa questão.
Aliás, a referida nulidade nem existiria, posto que o contrato de arrendamento consta do ponto 1 da matéria de facto, até com expressa alusão à cláusula 3ª, podendo todo o seu teor ser considerado independentemente de todas as suas cláusulas estarem ou não expressamente transcritas na matéria de facto. Para além de que a decisão recorrida não deixou de se pronunciar sobre os excertos do contrato referidos pela recorrente, apenas entendeu que ao caso se aplicavam disposições legais com teor diferente, que considerou revestirem natureza imperativa.
Portanto, em face do exposto, considerando o objecto do recurso que está delimitado pelas respectivas conclusões, são as seguintes as questões a tratar, por ordem lógica de precedência:
a) averiguar qual o prazo de renovação do contrato de arrendamento aplicável no caso;
b) apreciar da tempestividade da comunicação da oposição à renovação do contrato enviada pela R. aos AA.;
c) apurar da obrigação de entrega do locado por parte dos AA. e da existência de mora da sua parte no cumprimento desta obrigação.
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Apreciemos a primeira questão, tendo em conta os factos dados como provados na decisão recorrida (transcrição):
«1. Através de escrito particular intitulado “...”, outorgado em 1 de janeiro de 2015, entre os Autores e o C... para Arrendamento Habitacional, com o NIF ..., representado pela “B..., SA”, este deu de arrendamento àqueles, pelo prazo de cinco anos com início nessa data e termo a 31 de dezembro de 2019, renovável por iguais e sucessivos períodos de um ano salvo se denunciado por qualquer das partes nos termos da cláusula 3., a fração autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao terceiro andar esquerdo, com entrada pelo n.º ... da Rua ..., do prédio em regime de propriedade horizontal, sito em Gondomar, União de freguesias ... (...), ... e ..., tendo esse escrito sido objeto de aditamento outorgado em 10 de fevereiro de 2016. (artigos 4.º, 5.º e 6.º)
2. Através de carta registada com aviso de receção datada de 29 de junho de 2021, os Autores foram informados da venda do imóvel à aqui Ré e de que deveriam realizar os pagamentos a esta. (artigo 9.º)
3. Por meio de carta registada com aviso de receção, datada de 28 de julho de 2021, a Ré notificou os Autores da intenção de não renovar o aludido contrato com efeitos à data de 31 de dezembro 2021. (artigo 10.º)».
Está assente entre as partes nos autos que estamos perante um contrato de arrendamento urbano para habitação com prazo certo, renovável no seu termo, divergindo aquelas apenas quanto à questão de saber qual o prazo dos períodos de renovação.
O contrato foi celebrado em 1 de Janeiro de 2015, data em que estava em vigor a redacção do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) constante da Lei nº 6/2006, de 27/02, decorrente das alterações introduzidas pela Lei nº 31/2012, de 14/08.
De acordo com o disposto no art. 1094º, nº 1, do Código Civil, o contrato de arrendamento urbano para habitação pode celebrar-se com prazo certo ou por duração indeterminada, sendo que, no caso de contrato com prazo certo, este deve constar de cláusula inserida no contrato, não podendo ser superior a 30 anos, nos termos do art. 1095º do Código Civil (na redacção do nº 2 deste artigo em vigor à data não estava previsto limite mínimo de duração, apenas limite máximo).
Na redacção então em vigor dispunha o art. 1096º do Código Civil, sob a epígrafe “Renovação automática”, no seu nº 1, que salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração, sem prejuízo do disposto no número seguinte (que respeitava aos contratos celebrados por prazo não superior a 30 dias), prevendo-se no nº 3 a possibilidade de qualquer das partes se opor à renovação nos termos dos artigos seguintes.
À luz destas disposições legais, no contrato em causa nos autos estipulou-se que o arrendamento tinha a duração de 5 anos e estipulou-se a sua renovação automática por períodos de um ano.
Com efeito, o regime previsto no nº 1 do art. 1096º do Código Civil era um regime supletivo, para vigorar apenas quando não houvesse “estipulação em contrário”.
Entretanto, em 13/02/2019 (cfr. art. 16º), quando ainda decorria o prazo inicial de duração do contrato, entrou em vigor a Lei nº 13/2019, de 12/02, constando do seu art. 1º que “a presente lei estabelece medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade”, procedendo a alterações legislativas, entre outros, ao Código Civil e ao NRAU.
Assim, e para o que ao caso interessa, o nº 1 do art. 1096º do Código Civil passou a dispor que salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
E acrescentou-se um nº 3 ao art. 1097º com o seguinte teor: A oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo, mantendo-se o contrato em vigor até essa data, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
No que concerne ao nº 1 do art. 1096º do Código Civil, a alteração foi apenas o acrescento da expressão “ou de três anos se esta for inferior”, mantendo-se toda a restante redacção da norma.
Ainda assim, alguma doutrina e jurisprudência, com base nessa alteração e no disposto no art. 1º da referida Lei, entendeu que a partir da entrada em vigor desta a referida disposição passou a tratar-se de norma imperativa no que concerne ao prazo da renovação, que teria sempre de ser igual ao prazo inicial ou de 3 anos se aquele for inferior, sem possibilidade de as partes convencionarem algo de diferente no contrato.
Porém, outra doutrina e jurisprudência entendem que esta alteração não tem o referido alcance, não tendo alterado a natureza supletiva da norma, desde logo em face do elemento literal e do elemento sistemático de interpretação, incluindo a necessidade de conjugação desta norma com a nova norma do nº 3 art. 1097º do Código Civil.
Sendo que esta questão é relevante no caso concreto, uma vez que, estando em causa o conteúdo da relação jurídica de arrendamento, concretamente no que concerne à sua duração, sem interferência dos factos que deram origem a esta relação jurídica, a lei nova aplica-se à relação de arrendamento em causa nos autos, pois abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor, nos termos do disposto no art. 12º, nº 2, do Código Civil.
Vistos os argumentos de uma e outra corrente (no sentido de que a norma actual é imperativa, embora alguns acórdãos reportando esta imperatividade unicamente ao prazo mínimo de renovação de 3 anos, podem ver-se os Acs. da R.G. de 11/02/2021, com o nº de proc. 1423/20.4T8GMR.G1, da R.G. de 08/04/2021, com o nº de proc. 795/20.5T8VNF.G1, da R.E. de 10/11/2022, com o nº de proc. 983/22.0YLPRT.E1, da R.E. de 10/11/2022, com o nº de proc. 126/21.7T8ABF.E1, e da R.E. de 25/01/2023, com o nº de proc. 3934/21.5T8STB.E1, este com um voto de vencido defendendo a corrente contrária; e no sentido de que essa norma mantém o carácter supletivo, mesmo quanto à fixação de um prazo de renovação inferior a três anos, podem ver-se os Acs. da R.L. de 17/03/2022, com o nº de proc. 8851/21.6T8LRS.L1-6, da R.L. de 24/05/2022, com o nº de proc. 7855/20.0T8LRS.L1-7, da R.L. de 10/01/2023, com o nº de proc. 1278/22.4YLPRT.L1-7, e do S.T.J. de 17/01/2023, com o nº de proc. 7135/20.1T8LSB.L1.S1 – bem como a doutrina neles citada, quer num, quer noutro sentido), afigura-se-nos que é mais consentânea com o espírito do legislador e está de acordo com o elemento literal e o elemento sistemático de interpretação aquela que defende a manutenção da natureza supletiva da norma, possibilitando a fixação de prazos de renovação inferiores a 3 anos (sem prejuízo de a efectiva duração inicial não poder ser, em concreto, inferior a 3 anos, caso não esteja prevista a não renovação automática do contrato, atento o disposto no art. 1097º, nº 3, do C.C.).
Louvando-nos nos argumentos aí expendidos, com os quais concordamos, permitimo-nos transcrever a seguinte passagem do já referido acórdão da R.L. de 17/03/2022, com o nº de proc. 8851/21.6T8LRS.L1-6:
“Ou seja e para o que agora releva, quer numa quer noutra das versões, se admite que as partes afastem a renovação automática do contrato celebrado ou prevejam período distinto (superior ou inferior) do inicial, após essa renovação.
A diferença encontra-se apenas no aditamento de uma limitação temporal à duração desse período de duração do contrato, após a renovação: não pode ser inferior a três anos, caso o período inicial de duração do contrato seja inferior a três anos.
Da letra da alteração legislativa de 2019 apenas se retira um efeito: nos contratos de arrendamento de duração inicial inferior a 3 anos, a renovação automática dos mesmos (quando opera), verifica-se por um período sucessivo de três anos (necessariamente maior do que o período inicial).
Trata-se de uma solução que «foge» à lógica da regra da renovação automática, fixando-se um período sucessivo extraordinário de três anos para um contrato de duração inicial inferior.
Mas foi a opção do legislador.
O passo seguinte constitui em apurar se a fixação por força de lei desse período sucessivo extraordinário de três anos constitui norma imperativa ou supletiva, ou seja, se as partes podem afastar tal regra, ao abrigo do princípio da liberdade de estipulação contratual.
Debalde encontramos resposta no seio da Lei 13/2019, pois da mesma apenas se retira que o seu objecto é o seguinte: A presente lei estabelece medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade.
A solução, na ausência de letra expressa, encontra-se na ponderação dos fins pretendidos com a alteração legislativa: a limitação imperativa à estipulação de períodos de renovação sucessiva inferiores a três anos corrige situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, reforça a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e protege arrendatários em situação de especial fragilidade?
Ora, parece-nos que a resposta há-de ser negativa, pois nesse caso, o legislador «esqueceu-se» de proteger ou prosseguir tais fins com igual intensidade no período de duração inicial do contrato.
Efectivamente, a mesma Lei 13/2019 estabeleceu, como limite mínimo dessa duração o período de um ano, na redação dada ao nº 2 do art. 1095º do mesmo Código (…).
E tal norma, pela sua própria natureza, assume força imperativa: a ampliação ou redução automática dos prazos mínimo e máximo de duração inicial para um e trinta anos, significa que esses limites mínimos e máximos não podem ser derrogados por estipulação das partes no contrato celebrado.
Ou seja e para o que agora releva, imperativo é que o contrato de arrendamento tenha a duração mínima de um ano.
Duração inicial ou sucessiva de um ano.
Não se antevendo da Lei 13/2019 qualquer intenção de conferir maior protecção ao arrendatário no período sucessivo daquela concedida no período inicial.
Desde logo, por não se demonstrar constituir o período sucessivo à renovação uma situação de maior desequilíbrio entre arrendatário e senhorio, de maior necessidade de segurança e estabilidade do arrendamento urbano e de maior fragilidade do arrendatário relativamente ao período inicial de duração do mesmo contrato de arrendamento.
Por fim, refira-se que o processo legislativo (…) pouco esclarece a intenção do legislador, pois a alteração do art. 1096º tem origem em proposta de alteração do Grupo Parlamentar do Partido Socialista à Proposta de Lei nº 129/XIII/3, no seio da discussão na Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação – sendo que a Proposta inicial do Governo em nada se referia a este preceito em concreto.
Ou seja, a alteração ao preceito surge no decurso da discussão parlamentar da Proposta de Lei, sem lograrmos apurar o fio condutor ou a intenção do legislador, no caso.
(…)
Concluir que a lei pretendeu garantir uma duração sucessiva à renovação de três anos, porque estabeleceu como imperativo esse limite mínimo terá tanto valor argumentativo como concluir que a lei estabeleceu como imperativo esse limite mínimo porque pretendeu garantir uma duração sucessiva à renovação de três anos.
Uma e outra acepção, encontrando-se por demonstrar.
Não se desconhecem decisões contrárias, no sentido da imperatividade da alteração legislativa da Lei nº 13/2019 (…).
Contudo, não concordamos com tal posição, com o maior respeito pela mesma, na medida em que a argumentação que as sustenta é construída sempre desta forma: a norma é imperativa, porque a lei pretendeu definir um limite mínimo de três anos ao contrato de arrendamento.
Ora, como se viu, nem a lei foi expressa nessa imperatividade nem a sua intenção terá sido constante, pois apenas se constata a imperatividade da duração do período inicial de um ano.
Não se demonstrando essa imperatividade, quer pela letra quer pelo espírito da Lei, vigora o princípio da liberdade contratual, estabelecido no art. 405º do Código Civil” (sublinhados nossos).
Com efeito, percorrido o actual regime do arrendamento para habitação com prazo certo, o que dele decorre é que:
- há um prazo mínimo de um ano e um prazo máximo de 30 anos, que são imperativos;
- o arrendamento não pode ter duração inferior a um ano, mas pode durar apenas esse ano, caso se preveja a sua não renovação automática;
- estando prevista a sua não renovação automática, o arrendamento durará menos de três anos se for celebrado pelo prazo de um ou pelo prazo de dois anos.
Vistas estas situações, que resultam da conjugação dos arts. 1095º, nº 2, 1096º, n º 1, e 1097º, nº 3, do Código Civil, realmente não se percebe que nestes casos o legislador não quisesse proteger a segurança e estabilidade do arrendamento por mais tempo e não se tenha preocupado com a situação de desequilíbrio entre senhorio e arrendatário, e só o tivesse pretendido fazer nos casos de renovação automática em que o período inicial de duração fosse de um ou dois anos. Menos se percebe esta discrepância, se considerarmos a posição que defende que apenas o prazo de 3 anos como mínimo para a renovação é imperativo, o que significaria que no caso de contratos celebrados por 4 ou mais anos o prazo de renovação poderia ser fixado em período inferior ao inicial (desde que no mínimo 3 anos): também aqui se poderia questionar o porquê de num contrato com duração inicial de 10 anos se poder fixar a renovação por períodos de 3 anos, inferiores a um terço do período inicial – neste caso já não estaria em causa a estabilidade do arrendamento, nem seria relevante o desequilíbrio de posições entre as partes?
Portanto, o que pode concluir-se em termos de lógica do sistema e de boa interpretação do português utilizado no texto da norma é que o legislador pretendeu que nos casos em que as partes não quiseram regular expressamente essa matéria as renovações automáticas não fossem por períodos inferiores a 3 anos, mas não pretendeu que o não pudessem fazer de modo diferente, unicamente com as excepções já referidas, das quais resulta que:
- tratando-se de arrendamento de duração de um ou dois anos, com renovação automática expressamente prevista, seja qual for o prazo desta, não pode haver oposição à primeira renovação do contrato;
- tratando-se de arrendamento de duração de um ano, com renovação automática expressamente prevista, o prazo da primeira renovação não pode ser inferior a dois anos, já podendo sê-lo o prazo das renovações subsequentes.
Veja-se, aliás, a redacção da norma: inicia-se com a expressão “salvo estipulação em contrário”, seguindo-se uma vírgula e depois toda a expressão “o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior”.
Tal significa, em bom português, que a possibilidade de estipulação em contrário abrange toda a hipótese situada após a vírgula, isto é, a possibilidade ou não de renovação do contrato e a respectiva duração da renovação prevista. Ou seja, daí resulta que as partes podem estipular que o contrato não se renova no fim do prazo de duração inicial, podem estipular que se renova sem fixar prazo para o efeito ou remetendo para o prazo previsto na lei, ou podem estipular que se renova por prazo diferente do que consta da lei (nas palavras de Jorge Pinto Furtado, in Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 3ª ed. revista e actualizada, 2021, pág. 651, “a ressalva é expressa, surgindo, soberana, a encabeçar o preceito”).
Só não podem é prever que haja oposição à renovação antes de decorridos três anos desde o início do contrato, atenta a disposição, essa sim imperativa, do nº 3 do art. 1097º do Código Civil. O que apenas significa que nos contratos em que não haja cláusula a prever a não renovação automática, a sua duração será no mínimo de 3 anos, mas daí nada se pode inferir para os períodos ulteriores, posto que esta norma nada estabelece quanto a estes.
Assim, concluindo como Jorge Pinto Furtado (ob. cit., pág. 653), “cremos, por conseguinte e em conclusão poder, pois, validamente estabelecer-se, ao celebrar-se um contrato, que este terá, necessariamente, uma duração de três anos, prorrogando-se, no seu termo, por sucessivas renovações, de dois ou de um ano, quatro ou cinco – como, enfim, se pretender”.
Anote-se que, de acordo com o disposto no art. 9º do Código Civil, embora a interpretação não deva cingir-se à letra da lei, devendo ter-se principalmente em conta a unidade do sistema, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
Para além de que, nos termos do seu nº 3, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
A este propósito, cita-se o voto de vencido no Ac. da R.E. de 25/01/2023, com o nº de proc. 3934/21.5T8STB.E1: “No tocante ao elemento literal de interpretação, penso que a expressão "salvo estipulação em contrário", no início do preceito, abrange tudo o que nele se prevê;
- se o legislador pretendia que os arrendamentos se mantivessem em vigor por um mínimo de 3 anos, porque não foi contemplado esse prazo contratual mínimo para os novos arrendamentos no nº 2 do artigo 1095º do cód. Civ.?
- se o legislador pretendia que a oposição à renovação do contrato tivesse sempre um “período de carência” de 3 anos, porque não vedou a possibilidade de excluir por acordo a renovação automática (solução que, naturalmente, passará ser adoptada pelos senhorios com efeitos mais perversos do que os que actualmente existem)?”.
Aplicando o acabado de referir-se ao caso concreto dos autos, verifica-se que a estipulação da cláusula de renovação por períodos de um ano, após um período inicial de cinco anos foi perfeitamente válida à data da celebração do contrato de arrendamento e assim se mantém, não tendo sido afectada pela alteração de redacção do NRAU de 2019, pois que se manteve o carácter supletivo do art. 1096º, nº 1, do Código Civil.
O que significa que após o período inicial de cinco anos, que terminou em 31/12/2019, o contrato passou a renovar-se anualmente, sendo a primeira renovação de 01/01/2020 até 31/12/2020 e a segunda renovação de 01/01/2021 até 31/12/2021.
Merece, pois, provimento nesta parte o recurso apresentado pela recorrente (veja-se que, mesmo de acordo com a jurisprudência que defende o carácter imperativo da norma apenas quanto ao prazo de três anos, a pretensão dos recorridos não obteria acolhimento, posto que, nesse caso, o prazo das renovações não seria de cinco anos, como aqueles defendem na acção, mas de três anos, terminando o primeiro período de renovação precisamente em 31/12/2022, data para a qual pretendeu a recorrente a cessação do contrato).
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Passemos à segunda questão.
Assente, na conclusão a que se chegou no tratamento da primeira questão, que no contrato em causa nos autos as renovações são por períodos sucessivos de um ano, vejamos se a comunicação da recorrente para oposição à renovação cumpriu com o respectivo prazo de “aviso prévio”.
No art. 1097º, nºs 1 e 2, do Código Civil determina-se que
1 - O senhorio pode impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência mínima seguinte:
a) 240 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis anos;
b) 120 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos;
c) 60 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis meses e inferior a um ano;
d) Um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, tratando-se de prazo inferior a seis meses.
2 - A antecedência a que se refere o número anterior reporta-se ao termo do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação.
Resulta, pois, claramente, desta disposição legal que aqui estão em causa prazos mínimos de antecedência da comunicação, sendo a norma imperativa nesta parte (podendo fixar-se prazos superiores, mas não prazos inferiores), e que esta antecedência se reporta ao termo do prazo de duração inicial ou ao da sua renovação. O que quer dizer que, tratando-se de oposição à primeira renovação há que ter em conta o prazo de duração inicial, tratando-se de oposição a renovação subsequente o prazo a ter em conta é o da renovação que esteja em curso.
No caso, está em causa um contrato de duração inicial de cinco anos e com prazos de renovação sucessivos de um ano, aplicando-se a alínea b) do nº 1 deste artigo (seja considerando o prazo inicial, seja considerando o prazo da renovação): a comunicação com a oposição à renovação há-de ser efectuada com a antecedência de 120 dias relativamente ao termo do prazo em curso (prazo, aliás, igual ao que consta da cláusula 3ª do contrato de arrendamento, portanto, sem qualquer reparo a fazer a este).
Como se viu a propósito da primeira questão, o período de duração inicial do contrato de cinco anos terminou em 31/12/2019, a primeira renovação ocorreu de 01/01/2020 até 31/12/2020 e a segunda renovação de 01/01/2021 até 31/12/2021.
Ou seja, querendo a senhoria opor-se à terceira renovação (que seria para o período de 01/01/2022 até 31/12/2022), teria de o comunicar aos arrendatários o mais tardar até 02/09/2021, considerando o termo do prazo da segunda renovação em curso, em 31/12/2021 – solução esta que não é diferente para quem defenda que o prazo de renovação de três anos é imperativo, pois que nesta situação estaria em curso a primeira renovação de 3 anos, a terminar precisamente na mesma data, e sendo o mesmo o prazo de antecedência da comunicação.
Como decorre do ponto 3 da matéria de facto, a comunicação da recorrente foi por carta datada de 28/07/2021, tendo, portanto, sido perfeitamente respeitado o prazo de “aviso prévio”.
Conclui-se, assim, que foi tempestiva a comunicação da oposição à renovação do contrato por parte da recorrente aos recorridos.
Donde, tendo a oposição à renovação sido comunicada nos termos legais e dentro do prazo legalmente previsto, a mesma produz efeitos, no caso a não prorrogação do contrato, que assim cessará (cessou) no termo do prazo, no dia 31/12/2021.
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Perante a solução dada às duas anteriores questões, há que apreciar agora a terceira questão enunciada.
Como se viu, o contrato de arrendamento cessou em 31/12/2021, por não se ter renovado novamente.
Nos termos do art. 1038º, al. i), do Código Civil, uma das obrigações do locatário é restituir a coisa locada findo o contrato.
E se não houver lugar a esta restituição, por qualquer causa, nos termos do disposto no art. 1045º, nº 1, do Código Civil, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
Quer dizer, a partir da data da cessação do contrato, se não ocorrer logo a entrega da coisa, o locatário continua a ter de pagar o valor mensal que pagava a título de renda, só que agora já não a este título, pois que já não existe contrato, mas a título de indemnização pela não restituição atempada da coisa.
Por sua vez, o nº 2 do mesmo artigo dispõe que logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.
A conjugação dos dois números desta norma tem colocado questões, na medida em que a situação do nº 1 já contempla as hipóteses de haver atraso, mesmo respeitante à pessoa do locatário, no cumprimento da obrigação de entrega/restituição da coisa, pelo que se pode questionar quais são as situações de “constituição em mora” do locatário que determinam a aplicação da previsão do nº 2.
Pires de Lima e Antunes Varela entendiam simplesmente que não havendo mora do locatário quanto à obrigação de entrega da coisa se aplica o nº 1, havendo mora quanto a essa obrigação aplica-se o nº 2 (Código Civil anotado, vol. II, 1986, págs. 406 e 407).
Menezes Cordeiro (citado por Jorge Pinto Furtado, ob. cit., págs 160 e 161) distingue entre a situação “de não restituição simples e a de mora na restituição”. Quanto à primeira “o locatário fica obrigado a pagar a renda em singelo, exceto se houver fundamento para a consignação em depósito, e poderá ocorrer: quando ele ilida a presunção de culpa; quando haja tolerância do locador na continuidade dessa situação; quando exista uma situação controvertida, não provocada pelo locatário e enquanto ela perdurar; quando, em suma, a não restituição se deva ao próprio locador e o locatário continue no gozo da coisa sem recorrer à consignação em depósito.” Quando houver mora do locatário, então será caso de aplicação do nº 2, devendo aquele pagar o dobro da renda.
Já Jorge Pinto Furtado (ob. cit., págs. 162 e 163) considera que o nº 1 visa as situações de omissão do locatário na entrega da coisa, tendo a falta de restituição, quando não haja recusa de recebimento por parte do locador, como “causa mais corrente” a incúria do locatário, e que tal falta de restituição “logo que finde o contrato” não pode deixar de constituir o locatário em mora, pois “havendo incúria”, “a natural consequência disso deverá ser a de incorrer em mora”.
E, perante este entendimento, ensaia uma outra interpretação: “Há, portanto, quanto a nós, que distinguir (…) duas moras diferentes do locatário que não restitui a coisa no termo do contrato: a mora na entrega da coisa locada, que se encontra claramente prevista na disciplina do nº 1; e a mora do nº 2, que, sendo expressamente aí referida a “indemnização”, só poderá ser, estritamente, a do próprio pagamento da renda ou aluguer em singelo, a que o nº 1 alude.
Ou seja: a mora, de quantitativo igual à renda ou aluguer em singelo, do nº 1; e a mora no pagamento dessa quantia, em que “a indemnização é elevada ao dobro”.
Como quer que seja, convergem todas as interpretações quanto à circunstância de a “simples mora”, ou atraso, do locatário (distinta das situações de mora, quando se trate de uma falta voluntária e culposa) na entrega da coisa não ser sancionada nos termos do nº 2, mas apenas do nº 1 do art. 1045º do Código Civil.
Revertendo ao caso concreto, verificamos que, existindo a divergência jurisprudencial e doutrinal analisada na primeira questão, os arrendatários, no termo do prazo da renovação que estava em curso, intentaram a presente acção, com vista à declaração de que o prazo de renovação era de cinco anos e por isso ainda estava a decorrer, não terminando naquele dia e não podendo, por isso, cessar o contrato.
Isto é, existia e existe uma divergência entre as partes quanto à data da cessação do contrato, por força de diferente entendimento quanto ao prazo de renovação do contrato.
Esta divergência não se pode considerar desprovida de fundamento, assim como a posição defendida pelos recorridos, posto que existe jurisprudência e doutrina que lhe dão apoio (aliás, entendimento que foi sancionado na primeira instância).
Pelo que, não se pode considerar como imputável aos recorridos a falta de entrega do imóvel na data da cessação do contrato, não havendo incúria da sua parte, nem falta voluntária e culposa.
Antes se reconduz esta situação ao exemplo de Menezes Cordeiro, supra referido, de existência de “uma situação controvertida, não provocada pelo locatário e enquanto ela perdurar”, isto é, uma situação de não restituição simples.
Quer dizer, estando controvertida entre senhorio e arrendatários a data do prazo da renovação do contrato e consequentemente o momento da cessação do arrendamento, não sendo esta situação provocada pelos arrendatários, não existe mora destes, mas apenas não restituição simples, situação que perdurará até ao transito em julgado da decisão que definitivamente decida a controvérsia.
O que significa que os recorridos apenas têm de pagar, a título de indemnização, o valor correspondente à renda que pagavam até à cessação do contrato durante os meses que decorrerem desde Janeiro de 2022 até à efectiva entrega do imóvel à recorrente – e que aparentemente estavam a pagar no decurso da acção, conforme requerimentos de 07/03, 23/05 e 13/07/2022 [embora sem se poder aferir exactamente os pagamentos efectuados, por não estar identificada a conta destinatária das transferência e por aparentar existir, eventualmente por lapso, repetição de alguns dos comprovativos juntos (duas vezes a transferência com data de 06/01/2022, duas vezes aquela com data de 04/03/2022)].
Concluindo, há lugar à condenação dos recorridos a entregar o locado após o trânsito em julgado da presente decisão e ao pagamento à recorrente do valor mensal da renda respeitante ao contrato até à efectiva entrega do locado, renda essa que à data da cessação do contrato era de € 514,02, como está aceite pelas partes na acção (alegação no art. 41º da contestação/reconvenção, não impugnado na réplica, para além de resultar dos já referidos requerimentos dos recorridos de 07/03, 23/05 e 13/07/2022), assim procedendo parcialmente a reconvenção e o presente recurso.
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela obtenção parcial de provimento do recurso interposto pela R., com a consequente alteração da sentença recorrida, julgando-se improcedente a acção e parcialmente procedente a reconvenção.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em:
- conceder provimento parcial ao recurso e, consequentemente:
a) julgar improcedente a acção, absolvendo-se a R., ora recorrente, do pedido;
b) julgar parcialmente procedente a reconvenção, condenando-se os AA., ora recorridos, a entregar o locado à R. livre de pessoas e bens não incluídos no arrendamento, e a pagar-lhe a quantia de € 514,02 (quinhentos e catorze euros e dois cêntimos) por cada mês decorrido desde Janeiro de 2022 até efectiva entrega do locado (descontando-se as quantias eventualmente já pagas pelos AA. a este título);
- no mais, negar provimento ao recurso, absolvendo-se os AA. do restante pedido reconvencional.
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Custas pela recorrente e pelos recorridos na proporção do respectivo decaimento (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente
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Porto, 23/03/2023
Isabel Ferreira
Deolinda Varão
Isoleta de Almeida Costa