I - O regime de imputação previsto nos arts. 783.º a 785.º CC apenas se aplica ao pagamento voluntário pelo devedor, como resulta da interpretação literal e sistemática, e já não ao pagamento coercivo.
II - Na situação de pluralidade de hipotecas do mesmo imóvel para garantia de créditos distintos, o pagamento obedece ao critério da preferência, em função da prioridade temporal do registo da hipoteca (arts. 6.º do CRgP e art. 713.º do CC).
III - O espetro da má-fé abrange a “negligência grave”, concebida como erro grosseiro ou culpa grave, sem que seja exigível a prova da consciência da ilicitude da actuação do agente.
IV - Actua de má-fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado, pois o dever de verdade processual pressupõe que a parte tem a obrigação de indagar a realidade em que funda a sua pretensão (dever de pré-indagação).
1.1.- O exequente Novo Banco SA – instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa contra os executados:
1ºs AA e BB
2ºs CC e DD
Alegou, em resumo:
Por escritura pública denominada “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca e Fiança”, outorgada em 13/10/2005, os aqui executados AA e BB, confessaram-se devedores ao Banco aqui exequente da quantia de € 200.000,00 (duzentos mil euros), que receberam a título de empréstimo e que destinaram à aquisição de habitação própria e permanente.
Na referida escritura os mutuários e aqui executados obrigaram-se a reembolsar o Banco mutuante do capital e respectivos juros remuneratórios através de 288 prestações mensais e sucessivas, de capital e juros, e com vencimento, a primeira delas em 01/11/2005 e as demais em igual dia dos meses subsequentes.
Para garantia do pagamento ou restituição de tal quantia mutuada e seus juros, remuneratórios e moratórios, os mutuários e aqui executados declararam então, e nesse acto notarial, que constituíam hipoteca a favor do Banco aqui exequente sobre o imóvel identificado na referida escritura.
Ainda para garantia de todas as quantias que venham a ser devidas pelos mutuários aqui executados ao Exequente em consequência dos empréstimos contraídos, os Executados CC e DD declararam na referida escritura que se constituíam fiadores e principais pagadores das mesmas, com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia.
Mantendo-se as fianças então constituídas plenamente em vigor enquanto subsistir qualquer dívida de capital, de juros ou de despesas, constituída por qualquer forma imputável aos mutuários aqui executados.
Acontece, porém, que os mutuários e aqui executados cessaram o pagamento das prestações de reembolso do referido empréstimo em 01/10/2007, não mais os tendo retomado pelo que, nos termos dos contratos de mútuo acima invocados e das normas legais aplicáveis, os empréstimos em causa venceram-se antecipadamente e na íntegra passando o Banco aqui exequente a poder exigir o pagamento imediato dos capitais mutuados, acrescidos dos seus juros remuneratórios e moratórios, despesas judiciais e extra-judiciais.
Apesar de interpelados para proceder ao pagamento dos valores em dívida, os Executados nada fizeram ou pagaram no âmbito do empréstimo em causa.
Assim, o Banco aqui exequente é credor da quantia de € 189.790,23 a título de capital e de € 37.547,75 a título de juros e imposto de selo, quantias estas que, por intermédio da presente execução, se reclamam solidariamente de todos os executados.
A referida e identificada escritura constitui título executivo bastante pois apresenta-se como documento exarados por notário e que implicam a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias de montante determinado - cfr alínea b) do artigo 46º do Código de Processo Civil.
Reclamou o pagamento coercivo da quantia de 227.337,98 €.
1.2. – Os 2ºs executados - CC e DD - deduziram (24/5/2011) oposição à execução, por embargos de executado, contra o Banco Espírito Santo, SA.
Alegaram, em resumo:
Os executados AA e mulher constituíram hipoteca sobre imóvel para garantia do empréstimo.
Tal prédio hipotecado foi vendido no âmbito de execução fiscal, sendo que o exequente reclamou aí o seu crédito, tendo sido proferida sentença de graduação de créditos, mostrando-se garantido o pagamento da quantia exequenda.
A iliquidez da obrigação exequenda porquanto a liquidação da obrigação exequenda feita no requerimento executivo não dependeu apenas de um simples cálculo aritmético, apresentando-se a obrigação exequenda ilíquida em face do título executivo.
1.3.- Contestou ( 10/10/2011), o BES, SA alegando, em síntese:
Adquiriu o imóvel penhorado na execução fiscal por proposta em carta fechada, sendo que , por sentença de 21/10/2010, foi graduado em segundo lugar o seu crédito.
Em 2011, foi notificado da liquidação pelo Serviço de finanças, não tendo sido ainda transferidas a seu favor as quantias em causa.
Em 21/3/2011, é credor dos executados por € 518,115,21, havendo que impugnar o valor que receberá nos termos do art.784 CC.
A obrigação exequenda é líquida, resultando de simples cálculos aritméticos realizados de acordo com os valores mutuados e taxas de juros contratadas.
Concluiu pela improcedência da oposição.
1.4.- Por saneador sentença (18/6/2018) decidiu-se julgar improcedente a oposição e determinar o prosseguimento da execução.
1.5.- Os embargantes recorreram de apelação ( 20/9/2018) restringindo o âmbito do recurso ao primeiro fundamento de oposição(cobrança da quantia exequenda através do produto da venda do prédio hipotecado) e, por conseguinte, à decisão de julgar improcedente a oposição por falta de verificação deste fundamento.
1.6.- Por acórdão de 23/3/2022, a Relação decidiu julgar procedente a apelação e, em consequência:
a) Revogar a sentença proferida pelo tribunal a quo;
b) Julgar a oposição procedente por provada, extinguindo-se a execução quanto aos executados CC e DD;
c) Condenar o exequente como litigante de má fé, na multa de cinco UCS e em indemnização a fixar a favor dos executados/apelantes;
d) Para o efeito de fixação da indemnização, ordenar a notificação das partes nos termos e para os efeitos do Artigo 543º, nº3, do Código de Processo Civil , fixando-se o prazo de dez dias.
Custas pelo apelado na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).
1.7.- Por acórdão de 21/6/2022 decidiu-se fixar a indemnização a favor dos executados/apelantes no valor de 487,50 € a cargo do Banco Exequente.
1.8. – Inconformado, o exequente Novo Banco SA recorreu de revista, com as seguintes conclusões:
1) No âmbito da escritura de contrato “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca e Fiança” nº ...98, CC e DD (opoentes/aqui recorridos) declararam que se constituíam fiadores e principais pagadores das mesmas, com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia.
2)CC e DD, na qualidade de garantes – fiadores - são partes integrantes no contrato de empréstimo executado nos presentes autos. Isto porque, o fiador é parte no contrato celebrado, encontrando-se de igual forma vinculado aos termos contratualizados – V. artigo 634º do CC.
3) Assim, e tendo o contrato “Compra e Venda, Mútuo com Hipoteca e Fiança”(nº...98) permanecido com um valor em dívida após a afetação do valor da adjudicação, o Novo Banco S.A. intentou – e bem - a presente ação executiva contra os executados AA, BB, CC e DD, pelo valor global de € 227.337,98.
4)Relativamente à ordem da afetação/imputação do valor da adjudicação (€ 257.512,27) aos contratos em incumprimento, cumpre informar que o Tribunal a quo aplicou incorretamente o artigo 6º do Código de Registo Predial (doravante CRP) ao caso em discussão, bem como afastou, incorretamente, as regras previstas no artigo 784º do CC.
5) Aplicaríamos o artigo 6º do CRP, na eventualidade de estarmos perante um problema de registos por parte de vários e diferentes credores, por exemplo se tivesse sido arguida a nulidade do registo, ou a duplicação do mesmo ou se existissem inscrições no registo predial de direitos incompatíveis incidentes sobre o mesmo prédio, o que não sucedeu!. In casu, as várias hipotecas voluntárias registadas foram todas constituídas e registadas a favor do Exequente Novo Banco S.A., como garantia dos mútuos celebrados.
6)Tendo a venda do imóvel dado em garantia ocorrido no âmbito da execução fiscal nº ...45, que correu termos no Serviço de Finanças ..., onde foram reclamados pelo Novo Banco SA os créditos decorrentes do incumprimento dos referidos contratos, nº ...98, nº ...99 e nº ...39, o produto da venda foi afeto aos três contratos reclamados, em conformidade com a regras do artigo 784º, n. º1 do CC, tendo permanecido em dívida o contrato nº ...98, aqui executado.
7)No mesmo sentido, a jurisprudência tem defendido que, e a título de exemplo:“Sendo o credor titular, em simultâneo, de dois créditos garantidos por hipoteca e fiança e de um crédito garantido apenas por hipoteca, no caso de venda coerciva do bem hipotecado cujo produto não chegue para a satisfação dos três créditos, é-lhe permitido, nos termos do artigo 784.º do Código Civil, imputar esse produto em primeiro lugar ao crédito garantido apenas por hipoteca por ser aquele que lhe oferece menor garantia. (…) A imputação feita pela recorrente obedece claramente ao critério definido no citado artigo, ao ter sido alocada ao valor das dívidas com menor garantia (as não afiançadas, i.e, as carecidas de garantia pessoal).” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07.10.2019, processo nº 18581/17.8T8PRT.P1).
8) A imputação deve começar por ser feita na dívida vencida, porque tal protege o devedor, uma vez que, sendo já obrigação judicialmente exigível, ele terá de responder pelos prejuízos sofridos pelo credor em consequência da mora (artigo 804º, nº 2). Havendo várias dividas vencidas, a imputação deve ser feita naquela que gozar de menor garantia, porque relativamente às demais, como a tutela do direito de crédito se encontra reforçada por meio de uma garantia pessoa ou real, menor é a probabilidade de o credor não vir a receber aquilo a que tem direito. Considera-se, em regra, as garantias reais, porque são oponíveis a terceiros, tutelam mais fortemente o direito do crédito do que as garantias pessoais. Gozando todas as dívidas da mesma garantia, deve imputar-se a prestação realizada na dívida mais onerosa, para que os encargos (…) do devedor diminuam no futuro. Se as dívidas forem igualmente onerosas, deve imputar-se na que primeiro se tenha vencido, mas se várias tiverem vencido simultaneamente, na mais antiga em data.” (Ana Taveira da Fonseca, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em geral, Universidade Católica Editora, 2018, pp. 1075, 1076)
9) No mesmo sentido, decidiu o tribunal de 1ª instância – e bem! – “Aplicando os normativos e princípios expostos [artigo 784º CC], resulta assim que, à data de 21.03.2011 (data de apresentação do requerimento executivo), os montantes previsíveis a receber no âmbito da execução fiscal era de € 262.000,00, pelo que os mesmos foram deduzidos ao valor total em causa em dívida (€ 518.115,21) e imputados à liquidação dos contratos de crédito outorgados pelo valor de 195.000,00 e € 25.000,00, respetivas despesas, juros e imposto de selo em dívida e parcialmente ao contrato de crédito ora exequendo (v. arts. 784º, 785º, 837º, 840º e 855º do C. Civil)”
10)Concluindo, a quantia recebida provinda da fazenda pela adjudicação do imóvel (€ 257.512,27) foi imputada primeiramente nas garantias que ofereciam menor garantia para o credor tal como impõe o art. 784º do CC (v. arts. 837º, 840º e 855º do C. Civil; cfr. Ac. STJ de 17.03.2005, Proc. 05B499, in www.dgsi.pt e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 5ª ed., Almedina, pp. 871 e 872).
11)Acresce que, afetando o valor da adjudicação ao contrato com a garantia menor (Contrato de mútuo com hipoteca outorgado no valor de € 195.000,00) ainda sobejava um valor que seria afeto ao contrato mais oneroso (contrato de mútuo com hipoteca e fiança outorgado no valor de € 200.000,00).Contudo, o segundo e o terceiro mútuo (contrato de mútuo com hipoteca e fiança outorgado no valor de € 200.000,00 e contrato de mútuo com hipoteca e fiança no valor outorgado de € 25.000,00) permaneceriam em dívida, pelo que, caso fosse invertida a ordem, os executados, aqui recorridos, seriam de igual forma responsáveis pelo valor em dívida!
11) Por fim, no que diz respeito à litigância de má-fé, facilmente se conclui que o pedido não deve obter provimento, uma vez que a alegada conduta do Exequente não é suscetível de preencher as alíneas a) e b) do artigo 542º do CPC.
12) Ora o tribunal a quo considera que o Exequente litiga de má-fé ao “ter negado ter recebido quaisquer quantias pela adjudicação do imóvel em causa”. O Tribunal a quo considerou que o Exequente, aqui Recorrente, faltou à verdade porquanto “veio alegar falsamente que nada ainda havia recebido, bem como que os ora executados eram devedores no âmbito de empréstimo em que nem sequer foram partes. Em suma, a exequente deduziu pretensão e oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar (Artigo 542º, nº2, al.a)), bem como alterou a verdade dos factos (al. b) do mesmo nº2), tendo – pois – litigado de má fé de forma ostensiva.”
12)Todavia, não se afigura justo esse entendimento, porquanto o Exequente Novo Banco S.A. sempre colaborou com o tribunal e partes, respondendo a todos os despachos proferidos, notificações enviadas e articulados juntos em tempo útil e com a informação possuída à data, prestando todos e quaisquer esclarecimentos quando solicitados.
13)Com efeito, aquando a apresentação do Requerimento Executivo em 21.03.2011 existia um valor em dívida, decorrente do contrato nº ...98, pelo que existia fundamento legitimo e bastante para deduzir a pretensão – intentar a ação executiva.
14)À data da propositura da Oposição à Execução, em 24.05.2011 (ref. Eletrónica 2073704) o Exequente/Recorrente, ainda não tinha recebido quaisquer valores.
15)Por sua vez, à data da notificação da Oposição à Execução, em 16.09.2011, (ref. Eletrónica ...22) a situação mantinha-se inalterada, o Exequente, aqui Recorrente, continuava sem ter recebido quaisquer valores.
16)A Contestação à oposição de embargos é apresentada em 10.10.2011 e é elaborada com base nessa informação, pelo que não se vislumbra qualquer conduta de má-fé.
17)O pagamento referente à adjudicação (no valor de € 257.512,27) do bem imóvel penhorado é efetuado apenas em 26.09.2011, dias antes da apresentação da Contestação. Não obstante, assim que o Banco constatou que o montante no valor de € 257.512,27 foi efetivamente realizado informou o Tribunal, confirmando a sua receção (cfr. Requerimento de 26.01.2016 ref. Eletrónica nº ...86).
18)A confirmação da recepção do valor por parte do Exequente encontra-se expressamente indicada nos autos pelo menos desde 26.01.2016, tendo sido proferida sentença apenas em 2018!
19)Assim, e face ao exposto, ter-se-á forçosamente de concluir que o Douto Acórdão recorrido aplicou de forma incorreta as seguintes disposições legais, o artigo 6º da CRP, o artigo 794º do CC e o artigo 542º do CPC, devendo o recurso ser julgado procedente e, em consequência, a decisão ser alterada em conformidade, prosseguindo a execução os seus normais termos.
2.1.- O objecto do recurso
As questões submetidas a revista, delimitadas pelas conclusões, são as seguintes:
O pagamento da quantia exequenda pela venda do imóvel hipotecado;
A litigância de má fé.
2.2. – Os factos provados
1. Por escrituras de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, outorgadas em 13.10.2005 e 28.12.2006, o Exequente declarou emprestar aos Executados, e estes declararam expressamente ter recebido daquele, a título de empréstimo, as seguintes quantias: - € 200.000,00 (duzentos mil euros) destinada a aquisição de habitação (v. Doc. 1 adiante junto e que aqui se dá por integralmente reproduzido); -€ 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) destinada a fazer face a compromissos financeiros e a aquisição de equipamento para a habitação; e - € 195.000,00 (cento e noventa e cinco mil euros) destinada a fazer face a compromissos financeiros e a aquisição de equipamento para a habitação.
2. No âmbito das referidas escrituras de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, as partes declararam ainda como despesas inerentes suportadas pelo Exequente e referente aos capitais mutuados as seguintes quantias: - Quanto à escritura no valor de € 200.000: € 8.000,00; - Quanto à escritura no valor de € 25.000: € 1.000,00; e - Quanto à escritura no valor de € 195.000: € 7.800,00.
3. Através das referidas escrituras, os Executados, constituíram a favor do ora Exequente hipotecas voluntárias sobre o prédio urbano sito na R. ... nº16, ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...70 da referida freguesia ... e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...66, como caução e garantia de pagamento dos capitais mutuados, juros e demais despesas inerentes aos capitais mutuados.
4. Para garantia de todas as quantias e despesas devidas pelo mutuário executado ao Exequente em consequência dos empréstimos contraídos, os executados CC e DD declararam nas referidas escrituras públicas relativas ao valor de € 200.000,00 e € 25.000,00, que se constituíam fiadores e principais pagadores das mesmas, com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia mantendo-se as fianças então constituídas plenamente em vigor enquanto subsistir qualquer dívida de capital, de juros ou de despesas, constituída por qualquer forma imputável aos mutuários aqui executados.
5. Nos termos dos referidos contratos, os Executados, por sua vez, comprometeram-se a reembolsar o Exequente das quantias mutuadas, acrescidas das respectivas taxas remuneratórias actualizáveis periodicamente, conforme contratualizado, mediante prestações mensais e sucessivas.
6. No âmbito das referidas escrituras ficou ainda estipulado entre as partes contratantes que o incumprimento de qualquer prestação, ou outrossim a penhora do bem imóvel dado de hipoteca, implicava o vencimento imediato de todas as restantes.
7. ( eliminado)
8. Apesar de interpelados para proceder ao pagamento dos valores em atraso e em dívida, os executados não o fizeram.
9. Por ofício do Serviço de Finanças ... (...) nº 949, de 14.10.2009, o ora Exequente foi informado do seguinte: “ Fica V. Ex.ª citado nos termos do art. 239º do Código do Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), conjugado com o art. 886 e 888 /A do Código do Processo Civil, para os efeitos tidos por convenientes, de que o imóvel sito na R. ... nº16 na ..., inscrito na matriz predial da freguesia ... sob o art. Nº ...66 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...70, pertença de AA, NIF ..., no processo de execução fiscal supra referido instaurado por dívidas de C. Autárquica, Imp. Selo, SISA, IMI, IRS e Coimas Fiscais e respectivos juros de mora e acréscimos legais, no montante de € 20 825,21 € (vinte mil oitocentos e vinte e cinco euros e vinte e um cêntimos), vai ser postos à venda por meio de propostas em carta fechada, cuja abertura se verificará nas instalações deste Serviço de Finanças no próximo dia 11 de Dezembro de 2009, pelas 10 horas.” (v. Doc. 4 adiante junto – Proc. de Execução Fiscal ...45 e Apensos).
10. Previamente à realização da venda, o Exequente BES apresentou proposta em carta fechada no âmbito do processo de execução fiscal que sob o nº ...45 e Apensos, corre termos no Serviço de Finanças ..., no valor de € 262.000,00 (duzentos e sessenta e dois mil euros).
11. Em 11.12.2009, procedeu-se à abertura das propostas em carta fechada, tendo sido aceite a proposta do Exequente BES, o qual depositou de imediato o preço no montante de € 262.000,00.
12. Em consequência, o imóvel em causa penhorado e sobre o qual o Exequente tinha garantia hipotecária foi-lhe adjudicado, livre de todos os ónus e encargos no âmbito do referido processo de execução fiscal.
13. Por Sentença de 21.10.2010, com trânsito em julgado, foi verificado e graduado em segundo lugar o crédito do Exequente BES no âmbito do processo de execução fiscal que sob o nº ...45 e Apensos, corre termos no Serviço de Finanças ....
14. Por ofício do Serviço de Finanças ... (...), de 16.06.2011, o Exequente foi notificado da “LIQUIDAÇÃO EFECTUADA NOS TERMOS DO ART. 247 Nº 2 DO C.P.P.T.”, nos termos da qual consta como segundo graduado e a receber o valor de € 257.512,27 (duzentos e cinquenta e sete mil, quinhentos e doze euros e vinte e sete cêntimos).
15. Até ao momento ainda não foram transferidas a favor do Exequente as quantias em causa resultantes do processo de execução fiscal referido.
16. Em 1.1.2009, o valor do capital em dívida do empréstimo estava reduzido a € 183.970,33.
17. ( eliminado)
18. Nos termos da cláusula primeira do contrato de mútuo exequendo: “2 – O capital mutuado vencerá juros à taxa de juro contratual nominal de dois vírgula setenta e cinco por cento, apurada e actualizável semestralmente, com base na média aritmética das taxas de Euribor a seis meses, contadas desde o primeiro até ao antepenúltimo dia útil do mês civil anterior, àquele em que ocorre a actualização, arredondada para um quarto por cento superior, acrescida do “spread” inicial de zero vírgula cinco por cento, também actualizável pelo Banco”.
19. O Exequente alegou no campo da liquidação da obrigação: “ O valor dependente de simples cálculo aritmético corresponde aos juros remuneratórios à taxa de 4.496%, acrescidas de uma sobretaxa de 2% a título de mora, sobre os valores líquidos de capital em dívida de € 189.790,23, desde a data de constituição em mora – data de entrada em Juízo do presente requerimento executivo, juros de mora esses acrescidos do competente imposto de selo, à taxa de 4%, nos termos do artigo 120º-A da Tabela Geral de Imposto de Selo.
20 ( eliminado ).
2.3. – 1ª QUESTÃO
O Banco exequente celebrou com os 1ºs executados três contratos de mútuo com hipoteca:
Em 13/10/2005 no valor de 200.000,00, garantido por hipoteca voluntária com Ap ...7 22/9/2005 e também por fiança dos 2ºs executados ( empréstimo nº ...98)
Em 28/12/2006 no valor de 25.000,00, garantida por hipoteca com Ap ...8 de 22/9/2005
Um terceiro empréstimo garantido por hipoteca voluntária a que corresponde a Ap. ...3 de 2007/02/02 (cf. fls. 148-150).
3. Através das referidas escrituras, os Executados, constituíram a favor do ora Exequente hipotecas voluntárias sobre o prédio urbano sito na R. ... nº16, ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...70 da referida freguesia ... e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...66, como caução e garantia de pagamento dos capitais mutuados, juros e demais despesas inerentes aos capitais mutuados.
Na acção executiva está em causa o 1º empréstimo, garantido por hipoteca voluntária e com fiança dada pelos 2ºs Executados/embargantes, com renúncia ao benefício da excussão.
Conforme se justificou no acórdão recorrido, o valor da quantia exequenda ( reportada ao 1º empréstimo) é de € 216.987,97.
Dado que o imóvel garantido por hipoteca e fiança foi vendido em execução fiscal e adjudicado ao Banco Exequente pelo preço, já recebido, de € 257.512,27, problematiza-se na revista a questão de saber se este valor deve ser imputado na totalidade do pagamento do 1º empréstimo.
A sentença da 1ª instância entendeu fazer a imputação no quadro do art.784 CC.
A Relação justificou não ter aqui aplicação o regime da imputação prevista nos arts. 783 a 785 CC, pelo que “a quantia recebida pela exequente de € 257.512,27 deve ser imputada, em primeiro lugar, no pagamento do primeiro empréstimo por força das normas referidas atinentes à preferência de pagamento emergente da hipoteca, registada em primeiro lugar”, argumentando que as regras da preferência ( art.713 CC e 6 CRP) afastam a aplicação das regras gerais dos arts.783 a 785 CC.
A este propósito, sublinha o acórdão que “ a quantia recebida pela exequente de € 257.512,27 deve ser imputada, em primeiro lugar, no pagamento do primeiro empréstimo por força das normas referidas atinentes à preferência de pagamento emergente da hipoteca, registada em primeiro lugar. Só sobrando dinheiro, é que o mesmo deve ser imputado no pagamento do segundo empréstimo. Ou seja, as regras enunciadas afastam a aplicação das regras gerais dos Artigos 783º a 785º do Código Civil”.
A questão que se coloca é, portanto, a de saber se a quantia exequenda está ou não extinta. É que estando totalmente extinta, cessa a responsabilidade dos fiadores, embargantes ( 2ºs executados) dada a dependência extintiva.
No âmbito do cumprimento, a lei prevê três modos de imputação: convencional ( arts. 783 nº2 e 408 CC), a feita pelo devedor ( art.783 nº1 CC) e a legal ( de natureza supletiva ) ( art.784 CC )
O Recorrente entende ser aplicável a regra do art.784 nº1 CC, tal como a sentença da 1ª instância.
Importa, no entanto, ter presente que o regime de imputação previsto nos art.s 783 a 785 CC apenas se aplica ao pagamento voluntário pelo devedor, como resulta da interpretação literal e sistemática, e já não ao pagamento coercivo( cf., por ex., Ac STJ de 31/1/2017 (proc nº 519/10), em www dgsi. “as normas respeitantes à imputação do cumprimento – artºs 783º a 785º do CC – pressupõem a ocorrência de um pagamento voluntário, situação que no caso presente não se verifica, pois o imóvel ajuizado foi vendido em execução fiscal.”).
Na situação dos autos, o prédio dado em garantia hipotecária ( e afiançado pelos 2ºs Executados) foi vendido em execução fiscal, na qual o Banco Exequente, enquanto credor reclamante, procedeu à compra do mesmo, a quem foi adjudicado.
Como bem se justificou no acórdão recorrido, à parte remanescente, de € 257.512,27, recebida em 26/9/2002, pelo produto da venda do bem imóvel hipotecado deve ser imputado na totalidade ao pagamento do 1º empréstimo.
Uma das características da hipoteca, enquanto garantia real, é a preferência, que lhe advém da especial relação do crédito à coisa, ou seja, há uma ligação directa entre o crédito hipotecário e o bem hipotecado, e por isso se trata de um direito real de garantia. Nesta medida, havendo incumprimento do devedor, na acção executiva o bem objecto da hipoteca destina-se preferencialmente à satisfação daquele crédito específico.
Como afirma Maria Isabel Menéres Campos, “A garantia consiste numa preferência especial atribuída ao credor que tem o poder jurídico de executar o bem sobre o qual recai a hipoteca, pagando-se com o produto da venda judicial, com prevalência em relação aos demais credores, derrogando as regras da responsabilidade geral do património do devedor pela satisfação dos seus débitos.” ( Da Hipoteca, 2003, pág. 35 ).
Na situação de pluralidade de hipotecas do mesmo imóvel para garantia de créditos distintos, o pagamento obedece ao critério da preferência, em função da prioridade temporal do registo da hipoteca ( arts. 6 CRP , 713 CC ).
Na verdade, o art.713 CC, adoptando a concepção do direito romano, em que a hipoteca atribui ao credor um poder sobre toda coisa hipotecada, e não sobre uma quota parte do valor ( cf. Vaz Serra, BMJ 62, pág.51 e segs.), em conjugação com o art.6 CRP permite a interpretação no sentido de que na situação de pluralidade de hipotecas sobre o mesmo prédio o credor hipotecário só pode obter o pagamento sobre o seu crédito à custa do preço do prédio, depois de estar integralmente pago o crédito graduado antes dele. Aliás, se não fosse assim, a hipoteca de 1º grau deixaria de ter o direito de preferência.
Por conseguinte, pode concluir-se – como fez o acórdão recorrido - que no pagamento do crédito hipotecário, em situação e pluralidade de hipotecas voluntárias sobre o mesmo imóvel, há regras especiais quanto à imputação do cumprimento, pelo que o crédito exequendo está extinto.
A fiança está extinta, por força da extinção da obrigação principal. Uma das características essenciais da fiança é acessoriedade, como se afirma claramente no art.627 nº2 CC, pelo que a extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança ( art.651 CC ), dada a sua dependência ( dependência extintiva).
2.4. 2ª QUESTÃO
O Acórdão recorrido condenou o Banco Exequente como litigante de má fé na multa de 5 Ucs e na indemnização aos embargantes no valor de € 487, 50.
O Exequente/recorrente impugna a litigância de má fé, pois embora reconheça que aquando a contestação aos embargos já tivesse recebido o montante de € 257.512,27, informou o tribunal em 26/1/2016.
A Relação justificou a condenação, nos seguintes termos:
“Na contestação apresentada em 10.10.2011, a exequente afirmou: «18º - Até ao momento ainda não foram transferidas a favor da exequente as quantias em causa resultantes do processo de execução fiscal referido.»
Todavia, consoante se viu supra, em 26-9-2011, a exequente recebeu da execução fiscal a quantia de € 257.512,27 (facto 15).
Ou seja, a exequente faltou à verdade no que tange a um facto crucial na apreciação de mérito dos autos.
No artigo 24º da contestação, afirmou a exequente que: «À data de 21.03.2011, o exequente era assim credor dos executados pelo valor global de € 518.11521 (quinhentos e dezoito mil, cento e quinze euros e vinte e um cêntimos), a título de capital em dívida, juros, despesas e imposto de selo.»
Tal alegação é também parcialmente inverídica porquanto, desde logo, os ora executados apenas se constituíram fiadores em dois empréstimos de € 200.000 e € 25.000, nada tendo a ver com o terceiro empréstimo de € 195.000 (cf. facto 4).”.
Para concluir que:
“Em suma, a exequente deduziu pretensão e oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar (Artigo 542º, nº2, al. a)), bem como alterou a verdade dos factos (al. b) do mesmo nº2), tendo – pois – litigado de má fé de forma ostensiva.”
O art.542 nº2 do CPC enuncia as situações litigância de má fé - “ quem, com dolo ou negligência grave, (a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; (b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; (c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; (d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
As alíneas a) e b) se reportam à chamada má fé substancial ( directa e indirecta ), e as restantes alíneas contendem com a má fé instrumental.
O juízo de censura que enforma o instituto radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo”, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil.
O espetro da má fé abrange hoje a “negligência grave”, não bastando uma lide temerária ou meramente culposa. A negligência grave (introduzida com a alteração ao CPC pelo DL nº 329-A/95, de 12 /12, e mantida no actual art.542 nº2) é concebida como erro grosseiro ou culpa grave, sem que seja exigível a prova da consciência da ilicitude da actuação do agente.
Por conseguinte, a lei tipifica as situações objectivas de má fé, exigindo-se simultaneamente um elemento subjectivo, já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico. Por isso, actua de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado. Acresce que o dever de verdade processual ( alínea b)) pressupõe que a parte tem a obrigação de indagar a realidade em que funda a sua pretensão ( dever de pré-indagação ).
Conforme se justificou, a Exequente, em 26/9/2011, recebeu da execução fiscal a quantia de € 257.512,27 mas na contestação aos embargos de executado, em 10/10/2011, disse o contrário ( cf art.18 ).
Também a alegação constante do art.24 da contestação não é totalmente verdadeira, porque os 2ºs executados/ embargantes constituíram-se fiadores somente em dois empréstimos de € 200.000 e € 25.000, e já não no terceiro empréstimo de € 195.000.
Neste contexto, corrobora-se a fundamentação do acórdão, entendendo-se que o Banco Exequente deduziu oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar e alterou a verdade dos factos, pelo que litigou de má fé, na acepção definida.
2.5. – Síntese Conclusiva
1.O regime de imputação previsto nos arts. 783 a 785 CC apenas se aplica ao pagamento voluntário pelo devedor, como resulta da interpretação literal e sistemática, e já não ao pagamento coercivo.
2.Na situação de pluralidade de hipotecas do mesmo imóvel para garantia de créditos distintos, o pagamento obedece ao critério da preferência, em função da prioridade temporal do registo da hipoteca ( arts. 6 CRP , 713 CC ).
3. O espetro da má fé abrange a “negligência grave”, concebida como erro grosseiro ou culpa grave, sem que seja exigível a prova da consciência da ilicitude da actuação do agente.
4. Actua de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado, pois o dever de verdade processual pressupõe que a parte tem a obrigação de indagar a realidade em que funda a sua pretensão ( dever de pré-indagação ).
Pelo exposto, decidem:
Lisboa Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Abril de 2023.
Jorge Arcanjo ( Relator )
Isaías Pádua
Manuel Aguiar Pereira