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CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
ELEMENTOS DO TIPO OBJECTIVO
Sumário
I – São elementos objetivos do tipo previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 348º: a ordem ou mandado; a sua legalidade formal e substancial; a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão; a regularidade da sua comunicação ao destinatário; a cominação expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta transgressora, o carácter de desobediência; o conhecimento pelo agente dessa ordem; a possibilidade de cumprimento da ordem. II – Se o juiz não cominou expressamente com a desobediência, falta um dos elementos do tipo objetivo do crime de desobediência. Não basta para a cominação a menção genérica de incorrer em responsabilidade criminal. III – A possibilidade de cumprimento da ordem, constituindo elemento objetivo do tipo de ilícito, tem de constar da narração dos factos da acusação e depois resultar provada na sentença, sob pena de, no primeiro caso levar à rejeição da acusação por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, n.º 3, al. d) do CPP, e no segundo à absolvição por não preenchimento do tipo de ilícito.
Texto Integral
Processo n.º 11187/18.6T9PRT.P1
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Acordam em audiência no Tribunal da Relação do Porto:
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1-RELATÓRIO
No processo comum n.º 11187/18.6T9PRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 2, após julgamento foi proferida sentença que condenou a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348º, nº1, b), do Código Penal, na pena de oitenta dias de multa à taxa diária de cinco euros e cinquenta cêntimos, no montante total de €440,00.
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Não se conformando com esta sentença, a arguida recorreu para este Tribunal da Relação, tendo requerido a realização de audiência nos termos do artigo 411º, n.º 5 do CPP e concluído a sua motivação nos termos seguintes (transcrição):
«Conclusões:
1º - Questão Prévia – da não digitalização da sentença e falta de termo de depósito da Sentença na secretaria.
2º - Já foi ultrapassada, na nossa óptica, pelo depósito da mesma na secretaria a 26/08/2022, e o prazo corre a partir de 1/09/2022.
3º - Contudo, por cautela de mandato oficioso, e caso o Relator não acompanhe a nossa óptica, mantemos as nossas alegações e o tribunal violou o art.º 372º n.º5 e o art.º 373º n.º2 do CPP.
4º - Tal omissão constituiu um incumprimento de Lei, face ao o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da CRP contar o prazo inexoravelmente a partir da data da leitura sem depósito
5ª – Pelo que é inconstitucional a norma do art.º 411º n.º 1 al., b) do CPP, em conjugação com os arts.º 372º n.º5 e o art.º 373º n.º2 do CPP quando interpretada no sentido de o prazo de recurso se contar a partir da publicação da sentença em audiência pública em não a partir da data do termo lavrado de depósito, por violação do direito do arguido ao recurso positivado no art.º 32º n.º1, 2ª parte da CRP.
6ª – Recurso da matéria de facto nos termos do art.º 412º n.º 3 als., a) e b) do CPP, a aqui conclui que que no segmento da Sentença dos factos provados ou não provados na douta Sentença foram incorrectamente julgados:
7ª – Em 27/02/2019 a testemunha inspector da PJ BB disse em sede de inquérito:
“No decorrer da diligência foi ainda explicado à Arguida o porquê do arresto e por ela nada foi dito à data do arresto e desconhece o Depoente se a mesma se opôs ao arresto, conforme notificação junta a fls., 61 verso e 62 dos Autos”.
Sublinhado nosso.
8ª – Inversamente, a testemunha na audiência de julgamento quando perguntado pelo defensor se a aqui A., terá dito algo sobre o arresto afirmou o seguinte:
“terá dito qualquer coisa, mas não me recordo” vd., 5 ficheiro de som de 11:00 a 11:15”.
9ª – São declarações contraditórias visto que é distinto declarar em inquérito que a A., nada ajudou na questão e depois vir apontar que afinal, falou, mas não se recorda do que foi dicto.
10ª – De modo que, o Tribunal fundamentou em grande parte da sua decisão de condenação e sobretudo medida da Pena no ponto que a arguida na data do arresto nada disse nem ajudou as autoridades a melhor resolver as questões dos veículos, a diferença entre o que a testemunha disse em inquérito e em julgamento é deveras importante.
11ª – A aqui A., conclui por uma existência de dúvida insanável que deveria ter sido dissipada pelo Tribunal, ou ter concluído favoravelmente em favor da A., IN DUBIO PRO REO, e deve ser assente na matéria de facto que a mesma ajudou as autoridades.
12ª – Deve, nos termos legais, então, ser alterada a matéria de facto pela Relação para que conste a testemunha BB referiu que a A., falou/esclareceu sobre a questão dos veículos só não se lembra exactamente das suas palavras.
13ª - Também deve ser alterada a matéria de facto No ponto 4 da matéria considerada provada pelo Tribunal onde consta a conclusão que: No acto de penhora foi ainda a arguida advertida que os bens penhorados ficavam à sua guarda e que deveria apresentá-los quando tal lhe fosse ordenado.
14ª Diversamente, os veículos foram arrestados e não penhorados.
15ª – Nos termos do preceituado no art.º 412º n.º3 al., a) e b) a A., do CPP concluí que este ponto foi mal julgado: as concretas provas estão no processo anexo n.º 2554/13.2TAMAI em sede de prova documental e nas declarações da testemunha BB que confirma um arresto e nunca aponta numa Penhora.
16ª -Visto eu a matéria civilmente é pertinente, deve ser alterada a matéria de facto para:
No acto de penhora – alterado para acto de arresto - foi ainda a arguida advertida que os bens penhorados - alterado para arrestados ficavam à sua guarda e que deveria apresenta los quando tal lhe fosse ordenado.
17ª – De modo que deve ser concluído que existe uma contradição insanável da matéria facto provada “a arguida falou” e fundamentação e a decisão a arguida não ajudou as autoridades nem assumiu as suas responsabilidades nem sequer interiorizou o seu comportamento, – 410º n.º2 al., b) CPP.
18ª - Sendo inconstitucional a interpretação do art.º n.º 127º, 348º de declarações contraditórias de uma testemunha sem que o Tribunal conclua in favore do A. Por violação do in dubio pro reo, art.º 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP e o princípio constitucional da presunção de inocência.
19ª - Retira-se da leitura de Sentença que cabe à A., a prova de que à data da notificação do arresto e/ou da notificação da cominação de que o incumprimento da entrega dos veículos e da sua posse ou não posse, com a respectiva comissão de crime de desobediência. Vd., página 9, penúltimo e último parágrafos.
20ª – Tal conclusão não é compartilhada pela A, pois que consultados os autos em anexo, do processo n.º 2554/13.2TAMAI fl., 311, a meritíssima juiz de Direito de Instrução a Drª CC do j4 do TIC do Porto, face aos mesmos veículos despacha o seguinte:
“Se ainda na posse dos arguidos” Referindo-se ao arresto ordenado ao GRA.
21ª – Fazendo-nos concluir que a prova da posse é das autoridades policiais/judiciais.
22ª – A juíza CC do j4 do TIC do Porto ordenou ao GRA a descoberta – não concretizada em sede de prova em julgamento - se os veículos estão na posse dos arguidos, incluindo a aqui Recorrente, e o GRA não demonstrou tal posse.
23ª – Atente-se no sentido do Ac., da TRG de 11/03/209, consultável in dgsi.pt, do relator Fernando Monterroso, proc., n.º 5/12.9PABRG.P1
I – O crime de desobediência por o agente ter omitido uma conduta imperada, pressupõe a prova de que estava em condições de cumprir a ordem dada.
II – Sendo o arguido acusado da prática de um crime de desobediência por não ter entregue uma arma numa esquadra da PSP, é requisito da condenação que conste da acusação que, no prazo que lhe foi concedido, tinha a arma em seu poder, ou algum facto de que resulte que podia dispor da arma para efectuar a entrega.
Sublinhado e negrito nosso.
24ª – De igual modo neste aresto na sua fundamentação está a seguinte fundamentação:
“Pois bem, para a condenação pelo crime imputado não basta a prova de que o arguido não entregou a arma e os documentos. É necessário, igualmente, que o se prove que o arguido tinha a arma e os documentos em seu poder. Ou, pelo menos, algum facto de que inevitavelmente resulte que podia dispor deles para efetuar a entrega.
A imputação de que o arguido tinha a arma e os documentos em seu poder, ou, pelo menos, de que podia dispor deles para os entregar, é «facto» que não consta da acusação e tinha de constar, pois a ela compete a alegação e prova de todos os elementos constitutivos do crime. Não contendo a acusação factos suficientes para a condenação do arguido, não pode o tribunal, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal, alargar a investigação a outros factos que permitam a condenação.
É que a acusação fixa o objeto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a atividade investigatória e cognitória do tribunal. Trata-se de uma decorrência do princípio do acusatório que, nos termos do art.º 32 nº 5 da Constituição, estrutura o processo penal. A acusação deverá conter a «narração» de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido da pena – art.º 283 nº 3 al. b) do CPP.
Porém, repete-se, não é esse o ponto decisivo, mas a circunstância de, consistindo a desobediência na omissão de um comportamento, ter de constar da acusação factos que permitam o juízo de que o arguido estava em condições de não omitir a conduta que lhe foi ordenada. No caso, a alegação de que tinha a arma em seu poder, ou acesso a ela para a entregar.
25ª - Consultada a acusação pública, não estava descrito que a arguida tinha os veículos em seu poder, na data em que foi constituída fiel depositária ou nada a que foi instada a entregar os veículos, e se na Sentença está – ainda que tacitamente, como se concluí dos últimos parágrafos da pág., 9 - há alteração dos factos não comunicados à A., vd., 358º CPP.
26ª – Isto é, para haver crime de desobediência teria que ser feita a prova da posse dos mesmos e não foi quer em inquérito quer posteriormente.
27ª – No que concerne à utilização do despacho do j4 central criminal que comina com o crime de desobediência, à aqui A.
28ª – Consagra o conteúdo do art.º 355º n.º do CPP que não pode valorado como prova a prova que não tivesse sido examinada em julgamento.
29ª - Ora tal despacho não foi examinado em julgamento, não consta nas actas nem nas gravações.
30ª – Como tal não pode ser valorado numa condenação. Mormente ponto 6 da matéria de facto provada, último parágrafo da página 5 e 1º parágrafo da página 9, em sede de fundamentação da Sentença.
31ª - Vd., ac., 125/22 que declarou inconstitucional
Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, a norma extraída dos artigos 355.º, n.ºs 1 e 2, e 356.º, n.º 9, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 357.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual podem valer em julgamento as declarações do arguido a que se refere o artigo 357.º, n.º 1, alínea b), do referido Código, sem que tenha havido lugar à sua reprodução ou leitura em audiência, por decisão documentada em acta; e, em consequência,.
32ª- Sendo inconstitucional a, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, a norma extraída do artigo 355.º, n.ºs 1 do CPP na interpretação segundo a qual podem valer em julgamento as peças processuais não incluídos no art.º 356º n.º 1e 2 do referido Código, sem que tenha havido lugar à sua reprodução ou leitura em audiência, por decisão documentada em acta.
Sublinhado nosso
33ª – Não podendo ser considerada a cominação.
34ª – De igual modo, e como já tínhamos apontado na nossa contestação, onde se citou jurisprudência, e a mesma conclui que havendo reserva de propriedade, tal como consta no registo automóvel, ainda que com a arguida e a A... S.A, a mesma não podia entregar algo que não era dela.
35ª - A propriedade do veículo não era dela, mas daquela financeira e tal consta do registo automóvel e o registo afasta a livre apreciação das provas, afasta a aplicação do art.º 127º.
36ª – Argui-se a nulidade da alteração não substancial dos factos art.º 358 º do CPP: 379º n.º 1ª al., b) do CPP
37ª – Na precisa medida em que está presente na acusação a seguinte data de 21/01/2015 que a A., foi pessoalmente notificada nos termos do processo 2554/13.2TAMAI do JC 4 do Porto. Logo no início da narração da acusação.
38ª – Contrariamente na Sentença, do Tribunal a quo, está a seguinte conclusão de que nível documental, relevaram a certidão relativa aos autos de proc. comum colectivo n.º 2554/13.2TAMAI que correu termos no Juiz 4 do Juízo Central Criminal do Porto, a fls. 3 a 19 (com destaque para o auto de notificação do arresto e nomeação de fiel depositário em 21.04.2015.
39ª – O Tribunal recorrido concretizou ex officio a tal alteração “do que resultou também a retificação, por manifesto lapso de escrita, quanto ao mês, no facto primeiro da factualidade provada.
40ª – Contudo não fundamentou tal questão do mero lapso de escrita.
41ª – Perante esta alteração, note-se mutatis mutandis o Ac. AUJ do STJ n.º 7/2008, de 25.06, Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379º deste último diploma legal».
42ª – Não convence o aqui defensor que a sua presença em tribunal sana a diferença., e ratifica a nulidade pois como aponta aquele AUJ na nota de rodapé 34.
Não servirá de argumento contrário a circunstância de o arguido ser obrigatoriamente representado em juízo e defendido por advogado, entidade que tem a obrigação de saber o exacto conteúdo jurídico-criminal dos factos descritos na acusação. A aceitação de tal argumentação implicaria, evidentemente, a desnecessidade de indicação de qualquer disposição legal na acusação e na própria sentença, incluindo, pois, a atinente ao próprio crime.
43ª – Quanto à medida da Pena o Tribunal a quo viola o art.º 71º do CP pois imputa à A., um comportamento de silencio e não cooperação da mesma com as autoridades como agravante do crime.
44ª – Tal não poderá ser concretizado, legalmente deste modo, veja-se o Ac., Vd., mutatis mutandis o Ac., da TRP de 13/07/2022, do Relator William Themudo Gilman, proc., n.º 354/20.2PBVLG.P1, consultável in dgsi.pt.
I- Considerar-se como factor de medida de pena que depõe contra o arguido, nos termos do artigo n.º 71º, n.º 1 e n.º 2, e) do Código Penal, o facto de este se ter remetido ao silêncio, não ter confessado, ter negado os factos ou apresentado versão diversa da que veio a resultar provada, constitui uma compressão injustificada da liberdade de escolha do modo de defesa e, por aí, uma clara violação do direito de defesa do arguido e do processo justo e equitativo, consagrados nos artigos n.º 61º do Código de Processo Penal e art.º n.º 32º, n.º 1 e n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e o art.º n.º 48º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
II – Com efeito, se qualquer uma destas circunstâncias de facto fosse susceptível de como factor de medida de pena, enquanto conduta posterior ao facto, ser valorada contra o arguido, este poderia ficar não só compelido a falar, como a confessar os factos imputados ou, então, se apresentasse uma versão diferente dos factos imputados, a tentar acertar na versão dos factos que o Tribunal viesse a dar como provada, sempre sob pena de o seu constitucionalmente garantido comportamento processual poder vir a ser valorado contra si em sede de determinação da pena.
III – Assim, o facto de o arguido não ter confessado os factos, negando a maioria ou apresentando versão diversa da que resultou provada, constitui circunstância inócua para a medida da pena.
Sublinhados nossos.
45ª – Sequitur - Nas doutrina de Eduardo Correia(5): “A negação do crime corresponde, por seu lado, a um direito do arguido e, portanto, não pode, necessariamente, considerar-se elemento da agravação da pena. Em processo penal não há, por parte do arguido, um «dever de colaboração com a justiça», nem tão-pouco se poderá falar aqui de dolo ou má fé processual.”
46ª - A aqui A., não era obrigada a falar ou a assumir alguma responsabilidade. Nem pode ser legal e processualmente prejudicada por tal comportamento.
47ª – Não teria a mesma que prestar declarações, e como sabe o Tribunal que não demonstrou ter interiorizado a censurabilidade da sua conduta e a gravidade do crime praticado?
48ª – Por outro lado, o Tribunal a quo concluiu, “mas por outro não demonstrou ter interiorizado a censurabilidade da sua conduta e a gravidade do crime praticado”.
49ª – Como chegou a este entendimento? Nulidade que se argui nos termos do art.º 379º n.º 1 al., a) do CPP.
Termos em que deve ser Revogada a aliás douta Sentença por Acórdão que anule a condenação da aqui A., absolvendo-a do crime pelo qual veio acusada e condenada em 1ª instância.
Requerendo-se pronúncia expressa sobre as questões de dimensão Constitucional!
Fazendo-se assim a costumeira justiça!»
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O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se no sentido de ser mantida a sentença recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:
«1. Nas conclusões 1 a 5, o recurso alude ao depósito tardio da sentença.
2. O próprio recurso considera esta questão como “ultrapassada”, pelo que não fará parte do objecto do recurso.
3. De todo o modo, no caso dos autos, o depósito tardio “configura não mais do que uma irregularidade, insusceptível de afetar o valor do acto praticado”, uma vez que a questão só é levantada para efeitos de se considerar a interposição de recurso tempestiva, ninguém invoca qualquer desconformidade entre o teor da sentença lida e o teor da sentença depositada, e o depósito não é inadmissivelmente tardio (cfr., mutatis mutandis, Ac. do TRC de 16/03/2016, proferido no proc. 595/11.3TACVL.C1).
4. Nas conclusões 7 a 12, 17 e 18, o recurso invoca uma suposta contradição na sentença e um facto que deve ser acrescentado ao rol dos factos provados, com base nos depoimentos da testemunha BB, Inspector da PJ.
5. É perfeitamente possível e coerente que, por ocasião da realização do arresto, a arguida tenha trocado palavras com o inspetor da PJ; e, ao mesmo tempo, não tenha referido nada de relevante para efeitos de realização do arresto, nomeadamente para ajudar na sua efectivação.
6. Assim, o facto do inspector da PJ ter dito, em sede de inquérito, que a arguida não disse nada; e, em sede de julgamento, que a arguida “terá dito qualquer coisa” de que não se recordava; não sugere qualquer contradição ou a existência de qualquer facto que deva ser considerado.
7. Nada a opor à correcção do lapso de escrita do ponto 4 dos factos provados, nos termos defendidos na conclusão 13 do recurso.
8. Nas conclusões 19 a 26 do recurso, defende-se que a matéria de facto provada não inclui a menção à posse dos automóveis que a arguida não entregou, pelo que o crime de desobediência não pôde ter sido cometido.
9. Essa menção encontra-se implícita no ponto 9 dos factos provados, uma vez que só quem tem as viaturas na sua disponibilidade é que pode agir com propósito de as não entregar (cfr. Ac. do TRC de 07/12/2021, proferido no processo 670/19.6T9LRA.C1).
10. Nas conclusões 27 a 32, o recurso insurge-se contra a consideração probatória dum despacho de outro processo, por não ter sido examinado numa das sessões de julgamento.
11. Como é unânime, a indicação da prova documental na acusação é suficiente para a satisfação de todos as garantias de defesa do arguido (art.º 32º/1 da CRP) e do disposto no art.º 355º/1 do Código de Processo Penal.
12. O recurso invoca a realização de alteração não substancial de factos, sem a devida comunicação ao arguido (conclusões 36 a 42), em função de se ter alterado a data da notificação do arresto constante da acusação, de 21/01/2015 para 21/04/2015 (ponto 1 dos factos provados).
13. Uma vez que esta modificação incide sobre um aspecto secundário, sem qualquer relevância diferenciadora dos factos, não existe “qualquer condicionamento da estratégia e utilidade da defesa”, pelo que não configura qualquer alteração não substancial.
14. Finalmente, o recurso insurge-se quanto à medida da pena.
15. Está em causa a não entrega de 3 automóveis, em desobediência a uma ordem emitida por um Tribunal. O grau de ilicitude e a gravidade das consequências são, portanto, muito elevadas (art.º 72º/1, al. a), do Código Penal).
16. Assim, qualquer pena inferior aos 80 dias de multa fixados em Primeira Instância violará os limiares mínimos de prevenção geral, pelo que os argumentos deduzidos no recurso são inconsequentes.»
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Colhidos os vistos, o Exmo. Juiz Desembargador Presidente da Secção Criminal designou dia para a audiência, a qual teve lugar neste Tribunal da Relação.
Cumpre apreciar e decidir.
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2-FUNDAMENTAÇÃO 2.1-QUESTÕES A DECIDIR 2.1.1- Questão prévia: do depósito tardio da sentença e tempestividade do recurso
Colocou a recorrente como questão prévia o facto de a leitura da sentença ter ocorrido em 11.05.2022 e a sentença apenas ter sido depositada em 26.08.2022, não devendo o prazo de recurso ser contado a partir da publicação da sentença, mas apenas a partir da data do depósito.
Mas depois entende que a questão está sanada, apenas a mantendo face à possibilidade de neste tribunal de recurso se ter entendimento diverso.
O recurso foi admitido por tempestivo e encontra-se bem admitido, pelo que a questão prévia, tal como refere o recorrente se encontra sanada, ficando prejudicado o seu conhecimento. 2.1.2- Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente das motivações apresentadas e pela ordem pelas quais as apresentou, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, artigo 410º, n.º 2, alínea b) do CPP.
- Impugnação da matéria de facto;
- Preenchimento do tipo de ilícito de desobediência.
- Falta de exame de despacho judicial.
- Alteração não substancial dos factos.
- Medida da pena.
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2.2-A DECISÃO RECORRIDA:
Tendo em conta as questões objeto do recurso, da decisão recorrida importa evidenciar a fundamentação da matéria de facto, que é a seguinte (transcrição):
«A – FACTOS PROVADOS: Da audiência de discussão e julgamento, com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos: Da acusação pública: 1. No processo comum colectivo com o NUIPC 2554/13.2TAMAI que correu termos pelo Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 4, no dia 21 de Abril de 2015, a arguida foi pessoalmente notificada do arresto dos seguintes bens e contas bancárias: prédio urbano, descrito sob o artigo ..., sito na Rua ..., n.º ..., 1.º esquerdo, ..., Valongo, na proporção de 50%; prédio urbano descrito sob o artigo ..., sito na Rua ..., ..., Maia, na proporção de 25%; viatura automóvel de marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-..-SS; viatura automóvel marca Renault, modelo ..., matrícula ..-AQ-..; a viatura automóvel da marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-..-DZ e as contas bancárias existentes nos bancos Banco 1..., S. A. (...) e no Banco 2..., S.A. (... e ...). 2. Nesse acto foi a arguida pessoalmente notificada de que não podia alienar os bens, por doação, venda ou qualquer outra forma, danificá-los ou provocar qualquer tipo de alteração à configuração actual, incorrendo em responsabilidade penal se assim procedesse, sob qualquer forma de comparticipação. 3. No mesmo acto foi ainda a arguida nomeada fiel depositária dos bens imóveis e das viaturas arrestados e notificada das obrigações que sobre si impendiam, nomeadamente que estava obrigada a entregá-los quando lhe fosse exigido, não podendo aliená-los, por doação, venda ou qualquer outra forma, danificá-los ou provocar qualquer tipo de alteração à configuração actual, enquanto se encontrassem à sua guarda, incorrendo em responsabilidade penal se assim procedesse, sob qualquer forma de comparticipação. 4. No acto de penhora foi ainda a arguida advertida que os bens penhorados ficavam à sua guarda e que deveria apresentá-los quando tal lhe fosse ordenado. 5. Por ordem do Mmo. Juiz foi ordenada a notificação pessoal da arguida, na qualidade de fiel depositária, para proceder à entrega nas instalações da PJ, dos veículos arrestados e declarados perdidos a favor do Estado, com as matrículas ..-..-SS, ..-AQ-.. e ..-..-DZ, no prazo de 10 dias úteis. 6. Na execução dessa ordem, no dia 13 de Abril de 2018, a arguida foi pessoalmente notificada para, no prazo de 10 dias úteis, entregar os referidos veículos nas instalações da Polícia Judiciária, assim como as chaves e documentos obrigatórios, sob pena de, não o fazendo, incorrer em crime de desobediência ou eventual crime de descaminho. 7. Decorrido o prazo fixado a arguida não apresentou os veículos automóveis, as chaves e documentos obrigatórios. 8. A arguida actuou de forma livre, deliberada e consciente. 9. A arguida agiu com o propósito conseguido de não acatar a ordem de entrega das viaturas, chaves e documentos obrigatórios, emanada por quem tinha legitimidade para tal, que lhe foi regularmente comunicada, bem sabendo que ao fazê-lo incorria na prática do crime de desobediência. 10. A arguida sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei. Da contestação: 11. O veículo BMW, de matrícula ..-..-DZ, não se encontrava registado em nome da arguida à data do arresto. 12. O veículo Renault ..., de matrícula ..-AQ-.., tinha uma reserva de propriedade a favor da A... SA à data do arresto. Mais se provou que: 13. A arguida não tem antecedentes criminais. Provou-se ainda que: 14. A arguida é divorciada e vive com um filho de 19 anos. 15. Trabalha como empregada de balcão e o filho trabalha num posto de testagem de covid. 16. Vivem em casa arrendada, onde paga €250 mensais, e conta com a ajuda da mãe e do avô paterno do filho, bem como do progenitor do filho.
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B) FACTOS NÃO PROVADOS: Da audiência de discussão e julgamento e com interesse para a decisão da causa, resultaram não provados os seguintes factos: Da contestação: a) Não foi feita a cominação de cometimento de crime de desobediência. b) O veículo Renault ..., com a matrícula ..-..-SS, não estava na posse da arguida à data do arresto nem sabe dele.
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O demais alegado nas respectivas peças processuais não consta da factualidade dada como provada ou não provada por se revelar irrelevante para a matéria objecto dos presentes autos, por se tratar de matéria conclusiva ou conceitos de direito.
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C) MOTIVAÇÃO Para a prova e não prova dos factos supra referidos, a convicção do tribunal formou-se com base na análise conjunta dos documentos juntos aos autos e das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento. A testemunha BB, inspector da PJ, teve intervenção no arresto em causa quando intervinha na recuperação de activos e descreveu os procedimentos normais levados a cabo, sendo os visados chamados, informados dos bens arrestados e dos deveres como fieis depositários, bem como dos meios de que dispõem para se opor, se o entenderem. Pede a identificação da pessoa que estão ao notificar e, aquando da notificação, explica a situação, obrigações e consequências, como sucedeu no presente caso. Dito isto, atestou que se a arguida dissesse que não tinha condições para este cargo, informava-a para fazer um requerimento ao processo e seria nomeada outra pessoa. Confrontado com a notificação do arresto e nomeação de fiel depositário de fls. 16, confirmou que o que aí se encontra consignado foi o que se passou e foi explicado à arguida. Relativamente à informação junta a fls. 75 quanto ao registo de propriedade do BMW explicou que na altura em que a pesquisa foi feita a viatura seria propriedade da arguida; mais aditou que se houver um registo com reserva de propriedade de veículo em nome de um terceiro, o procedimento normal é notificar o proprietário; por último, esclareceu que foi efectuada a pesquisa de bens e os arrestados estavam em nome da arguida ou de um arguido no outro processo com quem a arguida AA tivesse ligação, cabendo, depois, a esta, provar que não teve intervenção na situação apurada, para os bens serem libertados (o que esta não logrou fazer, considerando que a sua ligação a um arguido do processo em que foi ordenado o arresto foi aí dada como assente). Esta testemunha prestou declarações totalmente isentas e imparciais, o que fez de forma desinteressada, coerente, esclarecida e esclarecedora, tendo merecido total credibilidade. A arguida não prestou declarações sobre os factos que lhe são imputados. Ao nível documental, relevaram a certidão relativa aos autos de proc. comum colectivo n.º 2554/13.2TAMAI que correu termos no Juiz 4 do Juízo Central Criminal do Porto, a fls. 3 a 19 (com destaque para o auto de notificação do arresto e nomeação de fiel depositário em 21.04.2015, a fls.16 – do que resultou também a retificação, por manifesto lapso de escrita, quanto ao mês, no facto primeiro da factualidade provada; o despacho para notificação e entrega dos veículos de 26.02.2018, a fls.5; a notificação, com advertência do crime de desobediência ou de eventual crime de descaminho, efectuada à arguida, em 13.04.2018, a fls.7 e 10; a informação da PJ de não entrega dos veículos, a fls. 13); fls. 25 a 40; cópia do requerimento do Ministério Público com vista ao arresto dos automóveis identificados, no qual a aqui arguida AA é identificada como companheira do aí arguido DD, a fls. 129 e ss, e cópia do despacho que decretou o arresto, a fls. 141 e ss; docs de pesquisa de registo automóvel de fls. 14 e 15, e 75 a 81 (de onde se extrai que o veículo de matrícula ..-..-DZ se encontrava registado em nome da arguida em 21.08.2013 e em nome de EE em 23.07.2014, o veículo de matrícula ..-AQ-.. se encontrava registado em nome da arguida desde 02.06.2009, com reserva de propriedade a favor de terceiro e o veículo de matrícula ..-..-SS se encontrava registado em nome da arguida desde 28.01.2013); informação do núcleo de veículos do IMT, a fls. 88. Mais relevou a consulta física dos referidos autos de processo comum colectivo. A inexistência de antecedentes criminais resultou do CRC junto aos autos. As condições socioeconómicas da arguida resultaram das declarações da própria. A factualidade dada como não provada resultou da ausência de prova nesse sentido ou prova do contrário, pois a arguida não prestou declarações, não tendo infirma a versão constante dos autos, documentada e atestada por testemunha em audiência de julgamento, nem arrolou testemunhas ou juntou qualquer outro meio de prova que comprovasse a sua alegação de que, à data do arresto, o veículo de matrícula ..-..-SS não estava na sua posse e não sabe dele e, contrariamente ao por si alegado, da análise dos documentos juntos a fls. 7 e 10 resultou provada a notificação da cominação com o crime de desobediência ou eventual descaminho caso não entregasse os veículos de que era fiel depositária no prazo concedido.
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2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO. 2.3.1-Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, artigo 410º, n.º 2, alínea b) do CPP.
A recorrente veio invocar no seu recurso o vício da decisão do artigo 410º, n.º 2, alínea b) do CPP.
De acordo com o artigo 410º, n.º 2 do CPP, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
O vício que estiver em causa, tal como resulta da norma, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos à decisão.
b-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Existirá contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão quando, por exemplo, um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Alega a recorrente, com base nas declarações da testemunha BB em sede de inquérito e de audiência de julgamento, que existe contradição insanável da matéria de facto provada «a arguida falou» e fundamentação e a decisão a arguida não ajudou as autoridades.
Em primeiro lugar, os vícios da decisão do artigo 410º do CPP têm de resultar da simples leitura da decisão, não sendo admissível o recurso a outros elementos, designadamente o recurso à prova gravada.
Em segundo lugar, não consta dos factos provados que «a arguida falou», nem tão pouco que não ajudou as autoridades.
Assim é totalmente destituída de sentido a invocação do vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Aliás, lida a decisão não detetamos qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Ainda no seguimento desta invocada contradição pretendia a recorrente que fosse alterada a matéria de facto para que conste que a testemunha BB referiu que a arguida falou/esclareceu sobre a questão dos veículos só não se lembra exatamente do seu conteúdo.
Ora, o que uma testemunha referiu ou não referiu na audiência de julgamento não é matéria de facto a ficar provada ou não provada. Trata-se de prova e não de facto relevante – facto que fundamenta a aplicação de uma pena ou facto com interesse para a determinação da sanção - para ser dado como provado ou não provado.
Assim, além de não se verificar o invocado vício da contradição, é também manifestamente improcedente esta pretensão de alteração de ‘factos’. 2.3.2-Impugnação da matéria de facto.
Entende a recorrente que o ponto 4 da matéria de facto (4. No acto de penhora foi ainda a arguida advertida que os bens penhorados ficavam à sua guarda e que deveria apresentá-los quando tal lhe fosse ordenado.) deve ser alterado, passando a constar «arresto» e «arrestados» onde consta «penhora» e «penhorados».
Invoca o disposto no artigo 412º, n.º 3, al. a) e b) do CPP e as provas constantes do anexo 2554/13.2TAMAI.
Embora quer o arresto quer a penhora se materializem numa apreensão judicial de bens, é certo que nos autos o que se verificou foi um arresto e não uma penhora, o que se depreende desde logo da leitura do texto da sentença nos factos provados antecedentes e posteriores ao ponto em causa.
Trata-se de um mero lapso de escrita, irrelevante, mas que cumpre corrigir por este Tribunal de recurso, ao abrigo do disposto no artigo 380º do CPP, pois que a eliminação de tal lapso não importa modificação essencial da sentença, o que se faz desde já, passando a constar ponto 4 da matéria de facto os vocábulos «arresto» e «arrestados» onde consta «penhora» e «penhorados». 2.3.2- Preenchimento do tipo de ilícito de desobediência
Entende a recorrente, em suma, que os factos provados não integram o tipo de ilícito de desobediência devendo por isso ser absolvida.
Argumenta para tanto que a circunstância de, consistindo a desobediência na omissão de um comportamento, ter de constar da acusação factos que permitam o juízo de que a arguida estava em condições de não omitir a conduta que lhe foi ordenada, factos esses que têm de resultar provados em ordem a ser proferida uma condenação. Ora, nem na acusação estava descrito que a arguida tinha os veículos em seu poder, nem foi feita a prova da posse dos mesmos quer em inquérito quer posteriormente, pelo que inexiste crime de desobediência nos presentes autos.
Vejamos.
O crime de desobediência encontra-se previsto no artigo 348.º do Código Penal, cujo n.º 1 dispõe: «Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.» Nos termos do n.º 2 «A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada».
A qualificação de um comportamento como crime de desobediência pode resultar da subsunção a uma disposição legal que concretamente comine a sua punição como desobediência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º; ou à alínea b) do n.º 1 do mesmo preceito, na ausência disposição legal, que requer a cominação de desobediência pelo agente de autoridade.
O bem jurídico protegido pelo crime de desobediência é a autonomia intencional do Estado.
São elementos objetivos do tipo previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 348º : a ordem ou mandado; a sua legalidade formal e substancial; a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão; a regularidade da sua comunicação ao destinatário; a cominação expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta transgressora, o carácter de desobediência (alínea b); o conhecimento pelo agente dessa ordem; a possibilidade de cumprimento da ordem[1].
E este último requisito surge como evidente se tivermos em conta o princípio ad impossibilita nemo tenutur (Ninguém é obrigado ao impossível), só se devendo obediência a ordens possíveis de cumprir, sendo a possibilidade aferida pela situação e capacidades do destinatário da ordem[2].
O tipo subjetivo exige o dolo em qualquer uma das suas modalidades - direto, necessário ou eventual (artigo 14.º do Código Penal).
Descendo ao caso dos autos, verificamos que dos elementos do tipo objetivo há dois que não se encontram presentes nem na acusação nem na sentença: a) A cominação expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta transgressora, o carácter de desobediência. b) A possibilidade de cumprimento da ordem.
a) A cominação expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta transgressora, o carácter de desobediência.
Quanto à cominação expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta transgressora, o carácter de desobediência, se descermos aos factos provados (ponto 5 da matéria de facto que está descrito nos mesmo termos que constavam na acusação) não constatamos que lá se afirme que o juiz tenha cominado expressamente com o crime de desobediência.
E não se afirma porque tal não sucedeu, como efetivamente se pode constatar do despacho proferido em 26-02-2018 pelo Juiz no processo 2544/13.2TAMAI, onde consta:
«10-notifiquem-se através de OPC cada um dos fieis depositários dos veículos arrestados e declarados perdidos a favor do Estado de matrícula e ainda não apreendidos – ..-..-ZQ, ..-..-SS, ..-AQ-.. e ..-..-DZ – para que, no prazo de dez dias úteis, entreguem os veículos em causa nos autos nas instalações da P.J. tal como solicitado pelo GAB, com as respetivas chaves e documentos obrigatórios, advertindo-se os mesmos de que, não o fazendo, incorrerão em responsabilidade criminal;[3]»
Ora, se o juiz não cominou expressamente com a desobediência, falta um dos elementos do tipo objetivo do crime de desobediência. Não basta para a cominação a menção genérica de incorrer em responsabilidade criminal. A lei é clara, exige a cominação expressa da desobediência. Não se percebe porque não consta dos factos da acusação a efetiva cominação feita pelo juiz (de incorrer em responsabilidade criminal), pois que é certo que deveria ter constado.
E à cominação feita pelo juiz não vale como peça substitutiva ou complementar o facto de da notificação feita pelo funcionário constar a expressão «sob pena de não o fazendo incorrer em crime de desobediência ou eventual crime de descaminho.»
Quem cominou foi o juiz e a cominação teria de ser notificada nos termos em que o juiz a fez e não outros.
b) A possibilidade de cumprimento da ordem.
Se lermos a matéria de facto da sentença e a narração da acusação, verificamos que em nenhuma dessas peças processuais se descrevem de forma clara e inequívoca os factos que levariam a concluir pela possibilidade do destinatário cumprir a ordem, em especial o de que a arguida, no prazo que lhe foi concedido, tinha na sua posse ou podia dispor dos veículos apreendidos[4].
E para tanto não basta a mera constituição formal (por notificação na sede da P.J.) como fiel depositária dos veículos, ou até o registo em seu nome de dois dos veículos, pois que nenhum destes atos formais pode fazer concluir que os veículos naquele período da notificação estavam na disponibilidade da arguida.
Nem tão pouco basta afirmar-se nos factos relativos ao elemento subjetivo do crime que «a arguida agiu forma livre, deliberada e consciente (…) com o propósito conseguido de não acatar a ordem de entrega» para se poder afirmar que está implícito que podia ter cumprido a ordem.
Pois então se não foi alegado nem provado que a arguida tinha na sua disponibilidade os bens, como se pode afirmar que agiu com o propósito conseguido de não acatar a ordem?
A expressão vinha assim da acusação e assim transitou para a sentença, mas mal, desde logo porque, ao ser interpretada nesses termos, está-se a fazer uma inversão de raciocínio passando a retirar-se da conclusão (propósito conseguido de não acatar a ordem) a premissa de onde esta conclusão poderia ser retirada (a arguida tinha os veículos na sua disponibilidade e por aí a possibilidade de cumprir a ordem).
A possibilidade de cumprir a ordem retira-se da disponibilidade dos veículos na posse da arguida e não do mero incumprimento da ordem.
Ora, a possibilidade de cumprimento da ordem, constituindo elemento objetivo do tipo de ilícito, tem de constar da narração dos factos da acusação e depois resultar provada na sentença, sob pena de, no primeiro caso levar à rejeição da acusação por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, n.º 3, al. d) do CPP, e no segundo à absolvição por não preenchimento do tipo de ilícito.
E não basta que na acusação ou na sentença se faça na narração dos factos uma mera referência indireta, vaga, imprecisa, conclusiva ou, até, como por vezes sucede, meio implícita nos factos relativos ao elemento subjetivo do tipo, a tal possibilidade, mas antes tem de se descrever de forma clara e inequívoca os factos que levam a concluir pela possibilidade do destinatário cumprir a ordem, sob pena de violação do princípio do acusatório e dos direitos de defesa.
Tudo visto, a acusação deveria ter sido rejeitada, por manifestamente infundada nos termos do artigo 311º, n.º 3 d) do CPP, por os factos nela descritos não constituírem crime.
Não foi rejeitada, os autos seguiram para julgamento e na matéria de facto provada não estão presentes todos elementos do tipo objetivo de ilícito de desobediência, faltando a cominação expressa da autoridade emitente da ordem a conferir à conduta transgressora o carácter de desobediência, bem como a possibilidade de cumprimento da ordem.
A consequência é a absolvição da arguida.
Fica prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas pela recorrente.
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3- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e absolvendo a arguida do crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348º, nº1, b), do Código Penal.
Sem custas.
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Notifique.
Porto, 15 de março de 2023
William Themudo Gilman
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
Borges Martins
______________ [1] Cfr. neste sentido na doutrina, Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, 2001, p. 357; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., 2007, p.928; e na jurisprudência os Acórdãos: TRG de 03-03-2014, proc. 5/12.9PABRG.G1 (Fernando Monterroso); TRG de 12-01-2015, proc. 2162/12.5TABRG.G2 (João Lee Ferreira); TRG de 08-02-2021, proc. 103/06.8TAPRG.G1 (Paulo Serafim); TRL de 09-05-2017, proc. 2509/15.2T9ALM.L1-5 (Jorge Gonçalves). [2] Cfr. de novo, Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, 2001, p. 357; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., 2007, p.928; [3] Sublinhado e negrito nossos. [4] Cfr. de novo, neste sentido, os Acórdãos: TRG de 03-03-2014, proc. 5/12.9PABRG.G1 (Fernando Monterroso); TRG de 12-01-2015, proc. 2162/12.5TABRG.G2 (João Lee Ferreira); TRG de 08-02-2021, proc. 103/06.8TAPRG.G1 (Paulo Serafim); TRL de 09-05-2017, proc. 2509/15.2T9ALM.L1-5 (Jorge Gonçalves).