DECISÃO ADMINISTRATIVA
FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
SANAÇÃO
Sumário

I.–Apesar de o Regime Geral das Contraordenações (RGCO), previsto no Decreto-Lei 433/82, de 27.10, ser omisso quanto às consequências do não cumprimento dos específicos requisitos legais da decisão contraordenacional administrativa e de conferir a essa decisão condenatória uma aparência híbrida (a um tempo decisão de mérito final, quando o infrator a não impugna judicialmente, e a outro valendo como acusação, quando o infrator a impugna judicialmente), tal não consente a aplicação a essas decisões das exigências próprias da sentença em processo penal e das regras da nulidade da sentença (art.ºs 374º, 375º e 379º, todos do CPP), nem tão pouco as exigências processuais próprias da acusação no processo penal (art.º 283º, do CPP).

II.–É de aplicar ao não cumprimento dos específicos requisitos legais da decisão contraordenacional administrativa o regime das irregularidades previsto no art.º 123º, do CPP.

III.–Caso a decisão judicial, proferida no âmbito da impugnação judicial, repare eventuais irregularidades processuais do processo administrativo e/ou da decisão contraordenacional administrativa condenatória, tais irregularidades têm-se por sanadas, em razão do que as mesmas não se repercutem na decisão judicial.

Texto Integral

Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:



I.RELATÓRIO


Em processo de contraordenação estradal (n.º 5800/2020) A foi condenado, por decisão administrativa datada de 18.04.2022, pela prática da contraordenação de condução sob influência de álcool, p. e p. pelos artigos 81.º, n.ºs 1 e 6, al. b), 138.º e 146.º, al. j), todos do Código da Estrada, na coima de 650,00 € e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias.
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Essa decisão administrativa foi impugnada judicialmente, na sequência do que foi  proferida decisão judicial, datada de 07.12.2022, que decidiu julgar o recurso de impugnação judicial totalmente improcedente e, em consequência, manter a decisão administrativa recorrida.
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RECURSO DA DECISÃO

Inconformado, o arguido interpôs recurso, tendo extraído da sua motivação as seguintes CONCLUSÕES (que transcrevemos):
A-)O Recorrente discorda da decisão do Tribunal Recorrido que confirmou a Decisão Administrativa recorrida, e consequentemente, julgou totalmente improcedente o recurso de impugnação judicial apresentado pelo ora Recorrente, relativamente à aplicação a este da coima no montante de € 650.00 (seiscentos e cinquenta euros), da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, e de custas no montante de € 51.00 (cinquenta e um euros);
B-)Entende o Recorrente que o Auto de Notícia – e, consequentemente, também a Decisão Administrativa – é nulo nos termos do art. 283, n. 3, al. b), do CPPenal, pois do mesmo resulta que não há qualquer menção das circunstâncias em que o ora Arguido foi submetido ao teste do álcool (se foi efectuada no âmbito de uma operação de fiscalização ou devido a uma ocorrência a que os agentes terão acorrido, se o Arguido estava a conduzir um veículo, se preparava-se para iniciar a condução de um veículo, se tinha acabado de conduzir um veículo, se simplesmente se encontrava no interior do veículo, a razão que motivou a decisão de fiscalizar o ora Arguido…), pelo que não obedece ao preceituado no art. 170º, nº 1 al. a), do CEstrada;
C-)Com efeito, o Auto de Notícia não descreve os factos constitutivos da infracção e as circunstâncias em que a infracção imputada ao Arguido foi cometida sendo que tais circunstâncias são essenciais, no caso concreto, para apurar a eventual existência da própria contra-ordenação pela qual vem o Arguido acusado, nomeadamente, para a verificação da circunstância de se apurar se este estava a ser acusado de estar a conduzir um veículo no momento em que foi submetido ao teste de álcool aí referido – questão essencial para a imputação da contra-ordenação imputada -, não podendo justificar tal falha o argumento referido pela sentença recorrida da “necessária contenção exigida na redação de um Auto (pré-formatado e com espaços limitados para escrita)”, pois tal limitação não é imputável, de todo, aos Arguidos, e por isso não devem ver diminuídas as suas garantias legais de defesa;
D-)Além disso, na opinião do Recorrente, essas nulidades acima referidas também importam a violação do princípio do contraditório, consagrado no art. 31º, nº 5, da CRPortuguesa, o principio do direito a um processo justo e equitativo previsto no art. 32º, nº 1, da CRPortuguesa, e no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
E-)Por outro lado, entende o Recorrente decisão administrativa impugnada está igualmente ferida de nulidade por ter preterido o direito de defesa do ora Arguido, pelo facto da Autoridade Administrativa não ter procedido à inquirição das duas testemunhas arroladas por si tempestivamente, aquando da apresentação da sua defesa escrita;
F-)Com efeito, nem, sequer, fundamentou devidamente a motivação para omitir a audição dessas mesmas testemunhas, tentando contornar o dever de fundamentação que teria de cumprir para justificar a sua decisão de não ouvir as testemunhas arroladas pelo Arguido com justificações (“Nas alegações efetuadas em sede de defesa, invoca nulidade por considerar que o seu comportamento não configura ilícito contraordenacional. No entanto, o agente autuante, que presenciou a infração e debitou a informação no auto de notícia, verificou que o arguido era efetivamente o condutor do veículo, conforme descrição sumária da infração.”) que, a passarem a ser acolhidas, farão com que os meios de prova apresentados pelos Arguidos possam sempre ser indeferidos, já que a esmagadora maioria dos Autos de Noticia são elaborados por um agente Autuante que alegadamente presenciou a infracção;
G-)Tal acção da Autoridade Administrativa é equiparável à preterição do direito à defesa reconhecido constitucionalmente ao Arguido, uma vez que a audição das referidas testemunhas teria sempre uma importância elevada no exercício do direito à defesa do Arguido, não só no que diz respeito à prática dos factos por que este vem acusado, como também quanto à factualidade necessária à fixação da medida concreta da coima e da sanção acessória a aplicar;
H-)Na verdade, resulta do processo administrativo que não foi efectuada qualquer diligência relativamente a factos pessoais do arguido que pudessem influir na ponderação da medida da coima e/ou da sanção acessória, e também não foi permitido ao ora Recorrente produzir a prova testemunhal por si indicada tempestivamente na sua defesa escrita, também destinada a esse fim;
I-)Salvo melhor opinião, a omissão da inquirição das testemunhas arroladas pelo Arguido aquando da apresentação da sua defesa gera nulidade insanável da decisão proferida pela Autoridade Administrativa, nos termos do disposto no art. 119º, als. c) e d) do CPPenal (ou, pelo menos, a do art. 120º, nº 2, al. d), do CPPenal), na medida em que o direito de defesa em processo de contraordenação, previsto no Art.º 50º do RGCO e derivado do preceito constitucional ínsito n.º 10 do Art.º 32º da CRP, é um pilar fundamental do procedimento contra-ordenacional, e que não pode, de modo algum, ser omitido e, ainda admitindo que o possa ser excepcionalmente, terá de ser sempre devidamente e expressamente fundamentado – o que não foi, sequer, o caso nos presentes Autos;
J-)Por estar à obediência do princípio da legalidade (arts. 43º do RGCO e 266º, nº 1, da CRP), a Entidade Administrativa e não se pode servir de subterfúgios para ultrapassar o cumprimento do direito do Arguido a, tempestivamente, indicar e produzir a prova que entender necessária para poder exercer o seu direito de defesa na fase administrativa do processo contra-ordenacional;
L-)Por último, entende o Recorrente que a Decisão Administrativa também está ferida de nulidade na sua fundamentação, uma vez que não se pronunciou devidamente e fundadamente relativamente aos argumentos alegados pelo Arguido na sua defesa escrita, pelo que, também por essa via, acabou por preterir o direito de defesa do Arguido, no que diz respeito a ver devidamente apreciados todos os argumentos por si aduzidos em sua defesa,
M-)Na verdade, praticamente limitou-se a assumir o facto de no Auto constar que a alegada contraordenação terá sido presenciada por um Agente da Autoridade;
N-)Também omitiu a fundamentação que esteve na origem da fixação concreta da coima e da sanção acessória aplicadas por aquela decisão ao ora Recorrente, pois não pode, como faz a sentença recorrida, considerar-se que a argumentação apresentada pela Autoridade Administrativa é sintética, mas ao mesmo tempo, suficiente para fazer face às exigências de fundamentação da decisão administrativa no processo contra-ordenacional;
O-)Na verdade, a fundamentação constante da Decisão Administrativa é totalmente omissa sobre “os elementos determinantes da medida da sanção constantes do artigo 139.º do Código da Estrada”, e que, alegadamente, foram ponderados – segundo ali refere a Autoridade Administrativa - e tidos em conta para a fixação da medida concreta da coima e da sanção acessória aplicadas ao ora Recorrente;
P-)As supra referidas faltas de fundamentação também constituem nulidade da decisão administrativa, nos termos do art.º 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), do CPPenal, ex vi do art. 41º do RGCO, por violação do disposto no art. 181º, nº 1, al. b), do C. Estrada.
Q-)Atento o acima exposto, e ao ter julgado no sentido em que decidiu – não conhecendo das nulidades arguidas pelo Recorrente e confirmando na integra a decisão administrativa -, salvo melhor opinião e com o devido respeito pela mesma, a sentença recorrida fez uma desajustada valoração e omitiu a aplicação, entre outras, das normas constantes dos arts. 170º, nº 1 al. a), e 181º, nº 1, al. b), do CEstrada, os arts. 41º, 43º do RGCO, e do arts. 119º, als. c) e d), 120º, nº 2, al. d), 283º, nº 3, al. b), 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), todos do CPPenal, e dos arts. 31º, nº 5, 32º, nºs 1 e 10, 266º, nº 1, da CRPortuguesa , e do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Termos em que, atento tudo o acima exposto e o mais de Direito, deve ser concedido total provimento ao presente recurso e, consequentemente, nos termos supra expostos, devem ser conhecidas e declaradas procedentes as nulidades supra invocadas, e revogada a sentença recorrida em conformidade e, consequentemente, a decisão administrativa impugnada, ordenando-se o arquivamento dos presentes Autos.
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RESPOSTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo apresentado as seguintes CONCLUSÕES (que transcrevemos):
I.–O presente recurso vem interposto da sentença de 1.ª Instância, proferida pelo Tribunal Singular correspondente ao Juízo de Competência Genérica da Ponta do Sol, pertencente ao Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, que decidiu manter a decisão administrativa recorrida, proferida no âmbito do processo contraordenacional n.º 5800/2020, tendo assim o recorrente/arguido que pagar uma coima no montante de 650.00 € e que cumprir a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 (sessenta) dias; pela prática da contraordenação p. e p. pelos artigos 81.º, n.ºs 1 e 6, al b), 138.º e 146.º, al. j), todos do Código da Estrada.
II.– O Recorrente, inconformado com a decisão judicial que o condenou nos termos supra expostos, interpôs o presente recurso invocando:
a)- O Auto de Notícia e, consequentemente, também a Decisão Administrativa – é nulo nos termos do art. 283, n. 3, al. b), do CPPenal, pois do mesmo resulta que não há qualquer menção das circunstâncias em que o ora Arguido foi submetido ao teste do álcool, pelo que não obedece ao preceituado no art. 170º, nº 1 al. a), do C. Estrada;
b)- A decisão administrativa impugnada está igualmente ferida de nulidade por ter preterido o direito de defesa do ora Arguido, pelo facto da Autoridade Administrativa não ter procedido à inquirição das duas testemunhas arroladas por si tempestivamente, aquando da apresentação da sua defesa escrita.
III.– O Ministério Público CONCORDA parcialmente com as razões aduzidas pelo Recorrente e defende a revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que absolva o arguido.
Senão vejamos:
IV.–Relativamente à primeira nulidade invocada, Auto de Notíca:
V.–Da análise ao Auto de Notícia que deu origem aos presentes autos (junto a Ref.ª CITIUS n.º 4780698, de 05.07.2022) à luz da transcrita norma, constata-se que o mesmo contém a identificação completa do recorrente no local do Auto com a menção de “Arguido”; seguido da identificação do veículo: “matrícula ..., País Portugal, Categoria ligeiro, Tipo Mercadorias”, e da referência de que ele era conduzido pelo arguido, após o que é mencionado: “Condutor submetido ao teste de álcool no aparelho Drager Alcotest 7110 MKIIIP, série ARML-0091 aprovado por Despacho nº 19684/09 da ANSR, de 25 de Jun, verificado pelo IPQ, Verificação periódica em 04-02-2020, acusou a TAS de 1,095 g/l (deduzido o erro máximo admissível, correspondente à TAS de 1,19 g/l registada, conforme talão nº 3148 que se junta.”
VI.–Seguindo-se a identificação da norma, bem como o mínimo e máximo da coima e da sanção acessória de inibição de conduzir aplicáveis, como menção das normas de onde tal resulta (artigos 81.º, n.º 6, al. b), 136.º, 146.º, al. j) e 147.º, todos do Código da Estrada).
VII.–Face ao supra exposto e analisado o respetivo Auto, constata-se que do mesmo consta a descrição objetiva da infração.
VIII.–Não assiste, pois, razão ao recorrente quando invoca a nulidade do Auto de Notícia e, em consequência, da decisão administrativa que em tal Auto se fundamentou.
Sendo manifesta a improcedência deste ponto da sua impugnação.
IX.–Mais alega o Recorrente que o tribunal a quo manteve a decisão administrativa aqui em causa, nos seus precisos termos, não obstante esta ter preterido ao direito de defesa do recorrente, ao não produzir a prova por ele indicada – audição de 2 testemunhas.
X.–In casu, a autoridade administrativa justificou a não realização de tal diligência alegando apenas que “o agente autuante presenciou a infração e debitou a informação no auto de noticia e verificou que o recorrente era efetivamente o condutor (…)”
XI.–Tendo por consideração a situação em causa nos autos, certo é que, instaurado o competente processo contraordenacional, por levantamento de auto de contraordenação, não foram pela entidade administrativa realizadas quaisquer diligências probatórias, incluindo as indicadas pelo recorrente na sua defesa – as quais poderiam ser pertinentes para o apuramento dos factos e para aferir se ao recorrente poderia ser imputada a infração identificada - alegando-se de forma genérica a inutilidade da sua realização.
XII.– A omissão de diligências no processo de contraordenação – quando estejam em causa diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade – é suscetível de configurar a nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, alínea d) do Código de Processo Penal.
XIII.–Em face do exposto, deverá proceder o recurso interposto pelo Recorrente, nesta parte, e proceder a nulidade invocada, nos termos previstos no nº 1 do artigo 121º, do CPP.
Nestes termos, e face ao exposto, consideramos que deverá proceder o recurso apresentado pelo Arguido, devendo assim ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, nos termos supra expostos, devem ser conhecida e declarada procedente a nulidade supra invocada, e revogada a sentença recorrida em conformidade e, consequentemente, a decisão administrativa impugnada, ordenando-se o arquivamento dos presentes Autos.
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O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO DA RELAÇÃO

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art.º 416°, do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pugnou pelo não provimento total do recurso.

Para tanto, em discordância com a resposta às alegações de recurso juntas pelo Ministério Público na primeira instância, articulou (transcrição):
Já no que concerne à alegação de que a decisão administrativa impugnada estava igualmente ferida de nulidade por ter preterido o direito de defesa do arguido, em virtude de a autoridade administrativa não ter procedido à inquirição das duas testemunhas arroladas por este no requerimento em que apresentou a sua defesa no processo de contraordenação, não acompanhamos os termos da referida resposta, subscrevendo, ao invés, a opinião de que também nesta parte o recurso não merece provimento.
A este propósito o requerente invoca que o despacho da autoridade administrativa, pela qual se decidiu não proceder à inquirição das referidas testemunhas, está inquinada por manifesta falta de fundamentação, gerando a nulidade insanável da decisão proferida nos termos do disposto no artigo 119.º, alíneas c) e d) do Código de Processo Penal (ou, pelo menos, a do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do mesmo Código), na medida em que o direito de defesa em processo de contraordenação, previsto no artigo 50.º do RGCO e derivado do preceito constitucional ínsito no n.º 10 do artigo 32.º da CRP, é um pilar fundamental do procedimento contraordenacional, e que não pode, de modo algum, ser omitido e, ainda admitindo que o possa ser excecionalmente, terá de ser sempre devidamente e expressamente fundamentado.
No processo de contraordenação e pronunciando-se sobre o teor da defesa apresentada pelo arguido, a autoridade administrativa exarou nos autos o seguinte:
O arguido apresentou defesa e arrolou duas testemunhas. Nas alegações efetuadas em sede de defesa, invoca nulidade por considerar que o seu comportamento não configura ilícito contraordenacional. No entanto, o agente autuante, que presenciou a infração e debitou a informação no auto de notícia, verificou que o arguido era efetivamente o condutor do veículo, conforme descrição sumária da infração. Requereu a audição de duas testemunhas, no entanto cabe à autoridade administrativa levar a cabo todas as diligências que se afigurem necessárias à descoberta da verdade material. Atendendo à prova produzida, o presente pedido de audição é indeferido.
Embora o despacho agora transcrito esteja longe de ser modelar, ele é suficientemente eloquente no sentido de expressar que a autoridade administrativa não procedeu às referidas inquirições por as considerar desnecessárias para a descoberta da verdade material, (ou seja, quanto ao facto de determinar se o arguido tinha, ou não, perpetrado a contraordenação que lhe era imputada) dado que, face à prova de que já dispunha – auto de notícia e auto de defesa do arguido - tinha tal verdade material já por assente.
Ora, explanadas que foram as razões do indeferimento de uma forma que se tem por percetível para a generalidade das pessoas, resta saber se as ditas razões eram ou não suficientes face aos dados concretos do caso.
Ora, na sua defesa em processo de contraordenação, o arguido não negou ter sido submetido a teste de álcool no circunstancialismo de tempo e lugar constantes do auto de notícia nem o montante da TAS então registada – cf. artigos 1.º, 3.º, 4.º, 5.º -, nem negou que nesse mesmo circunstancialismo conduzisse veículo automóvel, limitando-se a alegar apenas que o auto de notícia não dizia, de forma expressa, que o fazia – artigos 7.º e 10.º.
Mais não indicou quaisquer factos suplementares que houvessem de ser tomados em consideração para a boa decisão da entidade administrativa.
Ao apresentar as referidas testemunhas, e como bem se anota na decisão recorrida, igualmente não indicou os factos sobre os quais estas deveriam depor, tal como lhe competia face ao que se dispõe no n.º 4 do artigo 175.º do Código da Estrada.
Nesta conformidade, e sendo óbvio que se pretendia que as testemunhas depusessem sobre os factos suscitados pela defesa, não se justificava minimamente que estas fossem chamadas a depor sobre factos ou que o arguido tinha confessado, ou que não tinha negado em sede de defesa.
Acresce ainda que, caso a pretensão anulatória requerida pelo recorrente viesse a ser deferida, a autoridade administrativa seria novamente chamada a pronunciar-se sobre a requerida inquirição das testemunhas arroladas, contatando-se que o resultado dessa pronúncia seria sempre o indeferimento do então peticionado ao abrigo do disposto no artigo 175.º, n.º 4 do Código da Estrada.
Nem se diga que as referidas testemunhas iriam depor sobre factos pessoais do arguido que pudessem influir na ponderação da medida da coima ou da sanção acessória, como alega o recorrente, pela simples razão de que se não indicou expressamente que as mesmas iriam depor sobre tais factos.
Finalmente, acrescente-se que, não se compreendendo a alusão que o recorrente faz às nulidade a que aludem as alíneas c) e d) do artigo 119.º do Código de Processo Penal – cuja previsão não é enquadrável no caso concreto -, a nulidade a que alude o artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do mesmo Código se refere apenas à omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade – e as requeridas, como se viu, não o eram – e não a quaisquer diligências que tenham sido requeridas pelas partes.
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Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do CPP, o arguido apresentou resposta, onde manteve a posição antes por si assumida nas alegações de recurso.
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Após exame preliminar e colhidos os Vistos, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir, nos termos resultantes do labor da conferência.
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II.FUNDAMENTAÇÃO

A DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sendo essas que balizam os limites do poder cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como ocorre por exemplo com os vícios previstos nos artigos 410º, n.º 2, ou 379º, n.º 1, ambos do CPP (cfr. art.ºs 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, ambos do CPP).
Posto isto, passamos a delimitar o thema decidendum, que é o seguinte:
Saber se a decisão recorrida, que apreciou e indeferiu a invocada existência de nulidades da decisão administrativa, deve ser revogada e substituída por outra, que reconheça a existência das referidas nulidades.
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A DECISÃO RECORRIDA:

A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição integral):
I–RELATÓRIO.
A, com os demais sinais dos autos, veio interpor o presente recurso de impugnação judicial da decisão proferida pela  Senhora Diretora Regional da Direção Regional de Economia e Transportes Terrestres, datada de 18.04.2022, no âmbito do processo contraordenacional n.º 5800/2020 (cfr. Ref.ª CITIUS n.º 4780698, de 05.07.2022), na qual foi condenado: na coima de 650,00 € (seiscentos e cinquenta euros); na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 (sessenta) dias; e em 51,00 € (cinquenta e um euros) de custas; pela prática da contraordenação p. e p. pelos artigos 81.º, n.ºs 1 e 6, al. b), 138.º e 146.º, al. j), todos do Código da Estrada.
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Invoca o arguido/recorrente, em primeira linha, a nulidade do Auto de Notícia, por não descrever os factos constitutivos da infração e as respetivas circunstâncias, gerando a nulidade da decisão administrativa que em tal Auto se fundamentou.
Subsidiariamente, arguiu também a nulidade da decisão administrativa por via da preterição do seu direito de defesa, por omissão da inquirição das testemunhas que indicou, bem como por omissão de pronúncia minimamente fundamentada relativamente aos argumentos apresentados na sua defesa escrita.
Conclui pedindo a revogação total da decisão administrativa.
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O MINISTÉRIO PÚBLICO ordenou a apresentação dos autos, valendo este ato como acusação, tendo o recurso sido admitido liminarmente.
Notificado o MINISTÉRIO PÚBLICO para se pronunciar sobre as nulidades invocadas, veio contestar a verificação da nulidade do Auto de Notícia; concordando com a nulidade da decisão administrativa, por violação do direito de defesa, consubstanciado na desconsideração infundamentada da prova indicada pelo arguido.
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Por se considerar que a questão a decidir é meramente de direito, foi notificado o recorrente e o MINISTÉRIO PÚBLICO para informarem se se opõem à prolação de decisão por mero despacho, nos termos do disposto no artigo 64.º, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro [Regime Geral das Contraordenações (doravante RGCO)], com a cominação de que o silêncio seria considerado como não oposição.
Recorrente e Ministério Público, devidamente notificados, nada disseram.
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II–SANEAMENTO.

O MINISTÉRIO PÚBLICO tem legitimidade para apresentar os autos, valendo tal ato como acusação.
O Tribunal é o competente.
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DA ALEGADA NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA:
- por se ter fundamentado em Auto de Notícia nulo;
- e, ainda, por ter sido proferida com preterição do direito de defesa do arguido (omissão da inquirição das testemunhas que indicou, bem como por omissão de pronúncia minimamente fundamentada relativamente aos argumentos apresentados na sua defesa escrita).
Nos termos do disposto no artigo 170.º, n.º 1, als. a) e b), do Código da Estrada, o Auto de Notícia elaborado por qualquer autoridade ou agente de autoridade que, no exercício das suas funções de fiscalização, presencie contraordenação rodoviária, deve mencionar:
a)- Os factos que constituem a infração, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida, o nome e a qualidade da autoridade ou agente de autoridade que a presenciou, a identificação dos agentes da infração e, quando possível, de, pelo menos, uma testemunha que possa depor sobre os factos;
b)- O valor registado e o valor apurado após dedução do erro máximo admissível previsto no regulamento de controlo metrológico dos métodos e instrumentos de medição, quando exista, prevalecendo o valor apurado, quando a infração for aferida por aparelhos ou instrumentos devidamente aprovados nos termos legais e regulamentares.
Analisando agora o Auto de Notícia que deu origem aos presentes autos (junto a Ref.ª CITIUS n.º 4780698, de 05.07.2022) à luz da transcrita norma, constata-se que o mesmo contém a identificação completa do recorrente no local do Auto com a menção de “Arguido”; seguido da identificação do veículo: “matrícula ..., País Portugal, Categoria ligeiro, Tipo Mercadorias”, e da referência de que ele era conduzido pelo arguido (como se alcança do “x” aposto na quadrícula que a tal opção corresponde); após o que é mencionado: “Condutor submetido ao teste de álcool no aparelho Drager Alcotest 7110 MKIIIP, série ARML-0091 aprovado por Despacho nº 19684/09 da ANSR, de 25 de Jun, verificado pelo IPQ, Verificação periódica em 04-02-2020, acusou a TAS de 1,095 g/l (deduzido o erro máximo admissível, correspondente à TAS de 1,19 g/l registada, conforme talão nº 3148 que se junta.”
Seguindo-se a identificação da norma infringida (“rectius”, o artigo 81.º, n.º 1, do Código da Estrada), bem como o mínimo e máximo da coima e da sanção acessória de inibição de conduzir aplicáveis, como menção das normas de onde tal resulta (mormente os artigos 81.º, n.º 6, al. b), 136.º, 146.º, al. j) e 147.º, todos do Código da Estrada).
Visto em pormenor o Auto de Notícia, como acabou de se fazer, é indubitável que, com a necessária contenção exigida na redação de um Auto (pré-formatado e com espaços limitados para escrita) do mesmo consta a descrição objetiva da infração.
E nem há qualquer dúvida, em face dos seus termos, que o arguido conduzia o veículo automóvel identificado, imediatamente antes de ser fiscalizado e submetido ao teste de alcoolémia.
Não assiste, pois, qualquer razão ao recorrente quando invoca a nulidade do Auto de Notícia e, em consequência, da decisão administrativa que em tal Auto se fundamentou. Sendo manifesta a improcedência deste ponto da sua impugnação.
Passando agora à análise da invocação da nulidade da decisão administrativa por via, da preterição do direito de defesa do arguido, desde já adiantamos que também não lhe assiste razão.
Quanto à invocada omissão da inquirição das testemunhas, analisando a defesa escrita apresentada pelo arguido na fase administrativa logo se constata que embora no final ele realmente arrole duas testemunhas, em momento algum indica os factos sobre que incide essa prova, sendo que a sua defesa contém a alegação de vários e diversos factos.
Não cumpriu assim o arguido uma das regras legalmente estabelecidas para que a prova por si indicada pudesse ser considerada, no caso a regra contida no n.º 4 do artigo 175.º, do Código da Estrada, que estabelece:
“O arguido, na defesa deve indicar expressamente os factos sobre os quais incide a prova, sob pena de indeferimento das provas apresentadas.”
Regra esta para a qual havia inclusive sido atempadamente alertado, já que consta do verso do Auto de Notícia que lhe foi notificado, o seguinte:
“É acusado da prática dos factos que constam da descrição sumária os quais constituem contraordenação prevista e sancionada nos termos das normas legais indicadas.
O QUE FAZER:”
2.- Apresentar defesa ou requerimento, no prazo de 15 (quinze) dias úteis após a data da presente notificação:”
2.1- A defesa deve conter a exposição dos factos, fundamentação e pedido, indicando os meios de prova e, querendo, testemunhas até ao limite de três, assinalando expressamente os factos sobre os quais incide a prova, sob pena de indeferimento.” (Negrito nosso)
Por outro lado, consta-se que a entidade administrativa pronunciou-se sobre o essencial da argumentação da defesa escrita apresentada, como se pode ler no seguinte segmento da decisão administrativa:
“Nas alegações efetuadas em sede de defesa, invoca nulidade por considerar que o seu comportamento não configura ilícito contraordenacional. No entanto, o agente autuante, que presenciou a infração e debitou a informação no auto de notícia, verificou que o arguido era efetivamente o condutor do veículo, conforme descrição sumária da infração.”
Como se vê, a entidade administrativa não ignorou a defesa escrita apresentada, sobre ela se pronunciando, ainda que sinteticamente, o que se mostra suficiente face às naturais muito menores exigências de fundamentação da decisão administrativa e processo contraordenacional, face ao processo penal.
O recorrente pode é discordar da posição da entidade administrativa e respetiva decisão, mas para isso tinha depois o recurso de impugnação judicial, do qual inclusive lançou mão.
Não se verificando a nulidade da decisão administrativa, também sob este prisma da preterição do direito de defesa.
*
Por último, e ainda que o recorrente apenas impugne a decisão administrativa por via da sua nulidade e com os argumentos já mencionados e rebatidos, acrescenta-se que os factos dela constantes (presenciados pelo agente da autoridade que elaborou e assinou o respetivo Auto de Notícia e ao qual juntou o respetivo talão do alcoolímetro), preenchem os elementos típicos
da contraordenação p. e p. pelos artigos 81.º, n.ºs 1 e 6, al b), 138.º, 146.º, al. j) e 147.º, todos do Código da Estrada, pela qual o arguido foi condenado.
A concreta coima aplicada, que apenas em 150,00 € excede o respetivo mínimo legal, numa moldura que vai de 500,00 € a 2.500,00 €, encontra-se perfeitamente justificada pela concreta TAS que o arguido apresentava, de 1,095 g/l (tendo em conta que a mesma moldura legal é aplicável a quem conduza com uma TAS igual ou superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l).
Por sua vez, a sanção acessória de inibição de conduzir concretamente aplicada (60 dias) corresponde ao respetivo mínimo legal. Sendo que no caso, e nos termos do disposto nos artigos 146.º, al. j) e 141.º, n.º 1 “a contrario”, do Código da Estrada, por se tratar de contraordenação qualificada como muito grave, não é sequer legalmente admissível a possibilidade da suspensão da sua execução, como o recorrente pediu na fase administrativa.
***

III–DISPOSITIVO.
Atento o supra exposto, o Tribunal decide julgar o presente recurso de impugnação judicial totalmente improcedente e, em consequência:
a)- Manter a decisão administrativa recorrida, proferida pela Senhora Diretora Regional da Direção Regional de Economia e Transportes Terrestres, datada de 18.04.2022, no âmbito do processo contraordenacional n.º 5800/2020, tendo assim o recorrente/arguido A que pagar uma coima no montante de 650.00 € (seiscentos e cinquenta euros); e que cumprir a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 (sessenta) dias; pela prática da contraordenação p. e p. pelos artigos 81.º, n.ºs 1 e 6, al b), 138.º e 146.º, al. j), todos do Código da Estrada; tudo nos termos dessa decisão;
b)- Condenar o arguido/ recorrente em custas, que se fixam em 1 (uma) UC de taxa de justiça (cfr. artigo 93.º, n.º 3, do RGCO e artigo 8.º, n.º 7, do RCP e Tabela III a este anexa).
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Deposite e notifique.
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Após trânsito comunique Direção Regional de Economia e Transportes Terrestres, juntando cópia da presente decisão.
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Processei e revi (cfr. artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do artigo 41.º, do RGCO).
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DA ANÁLISE DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO:

Saber se a decisão recorrida, que apreciou e indeferiu a invocada existência de nulidades da decisão administrativa, deve ser revogada e substituída por outra, que reconheça a existência das referidas nulidades.
Começaremos por realçar que o Recorrente não questionou ao longo da sua defesa, nem na fase administrativa, nem na judicial, um único facto da materialidade objetiva e/ou subjetiva que enquadra a prática do ilícito contraordenacional. Nunca, por exemplo, afirmou que não ia a conduzir o veículo, apesar de invocar que esse facto não resulta suficientemente explícito do auto de contraordenação, embora sem razão, como a seu tempo veremos. Também não pôs em causa a medida concreta da coima que lhe foi aplicada,  limitando-se a invocar a nulidade da decisão administrativa que a fixou, por não ter justificado como chegou àquele montante.
Ou seja, o Recorrente, parecendo aceitar a decisão administrativa condenatória, quer quanto ao ilícito contraordenacional, quer quanto à coima concretamente aplicada, procura pôr em causa essa mesma decisão por motivos, não de substância, mas de forma.
Por outro lado, o Recorrente mantém a tónica da nulidade do auto de contraordenação (por falta de descrição dos elementos objetivos do ilícito contraordenacional) e da decisão administrativa que aplicou a coima (por falta de fundamentação e postergação do seu direito de defesa), parecendo ignorar que o objeto do recurso é a decisão judicial que apreciou tais questões, sendo que o eventual vício do auto de contraordenação não se repercute na decisão administrativa que aplicou a coima, nem na decisão judicial que a manteve, e os eventuais vícios da decisão administrativa também não se repercutem na decisão judicial, sendo esta, e só esta, que é objeto do recurso.
Na verdade, é preciso não confundir eventuais vícios do processo e da decisão contraordenacional na sua fase administrativa (sujeitos à legislação específica do RGCO e dos demais diplomas que criam processos especiais dentro do próprio regime geral das contraordenações) com os vícios da sentença proferida em sede de impugnação judicial da decisão administrativa (sujeitos, estes sim, as regras do CPP, ainda assim não descurando as especificidades de tal sentença enunciados no art.º 64º, do RGCO).
 
A aparência híbrida da decisão contraordenacional administrativa condenatória, a um tempo decisão de mérito final quando o infrator a não impugna judicialmente  e a outro, nos termos do art.º 62º, n.º 1, do RGCO, valendo como acusação quando o infrator a  impugna judicialmente, a que se junta a circunstância de o RGCO ser omisso quanto às consequências do não cumprimento dos requisitos legais dessa decisão, tem suscitado várias correntes jurisprudenciais e doutrinais no que as invalidades da decisão e efeitos das mesmas respeita.
Cruzam-se pelo menos três posições diferenciadas nesta matéria, consoante a prevalência dada à faceta de decisão de mérito ou à faceta acusatória da peça, a saber:
- Os que consideram estar a decisão administrativa mais próxima de uma sentença final do que de uma acusação e aplicam à mesma as exigências próprias da sentença em processo penal, previstas nos art.ºs 374º e 375º, ambos do CPP, e, por inerência, as regras da nulidade da sentença previstas no art.º 379º, do CPP, sempre por remissão do art.º 41º, do RGCO (neste sentido, entre muitos que poderiam ser citados, vejam-se a título de meros exemplos o recente acórdão do Tribunal de Coimbra, datado de 30.03.2022, processo 173/21.9T8TND.C1, assim sumariado: O incumprimento dos requisitos descritos no n.º 1 do artigo 58º do RGCO implica a verificação da nulidade prevista no art. 379º, n.º 1, al. a), do CPP, aplicável ao processo contra-ordenacional ex vi do art. 41º do primeiro dos referidos diplomas, que deve ser suprida pela autoridade administrativa competente., e ainda o acórdão da mesma Relação datado de 11.11.2020, processo 351/19.0T8MBR.C1).
- Os que privilegiam a faceta acusatória da decisão administrativa e aplicam à mesma as exigências processuais próprias da acusação no processo penal e o regime das nulidades em caso de incumprimento daquelas, nos termos do art.º 283º, n.º 3, do CPP, também “ex vi” do artigo  41º, do RGCO (tese defendida, por exemplo, no acórdão do STJ datado de 06.11.2008, processo 08P2804, assim sumariado, na parte relevante: VII – Na fase de recurso, valendo a apresentação dos autos ao juiz pelo MP como acusação (art. 62º, n.º 1, do RGCO) torna-se necessário o recurso ao artigo 283º, n.º 3, al. b), do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo das contra-ordenações (art. 41º, n.º 1, do mesmo diploma legal).)
- Por fim, os que não se reveem na aplicação de nenhum dos blocos legais referidos, por considerarem que a autonomia e tendencial autossuficiência do processo de contraordenação não se compadece com a aplicação subsidiária daqueles normativos, antes propondo a aplicação do regime das irregularidades previsto no art.º  123º, do CPP, regime que é aplicável (tal qual o das nulidades sanáveis e insanáveis previstos nos artigos 119º a 123º, do CPP) à maioria dos atos processuais distintos da sentença final criminal (nesse sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 11.04.2012, processo 2122/11.3TBPVZ.P1, no qual se pode ler: Nesta conformidade e reconhecendo-se a autonomia do processo de contra-ordenações e a natureza subsidiária do processo penal, o vício da falta de fundamentação da decisão da autoridade administrativa deve corresponder ao vício genérico acometido a uma qualquer decisão judicial, ou seja, equivale a uma irregularidade e não a uma nulidade [Ac. R. P. de 2011/Fev./09] – e muito menos a uma nulidade insanável, por não integrar o catálogo do artigo 119.º do C. P. P. e não estar especificadamente prevista como tal em mais nenhuma disposição legal, as quais são sempre susceptíveis de ser conhecidas oficiosamente [410.º, n.º 3 C. P. P.]., também neste sentido António Beça Pereira, em “Regime Geral das Contraordenações e Coimas”, Almedina, 13ª edição, pág. 174, anotação 2 ao artigo 58º, do RGCO)

Inclinamo-nos, por ora, para a terceira das soluções alternativas, por diferentes ordens de razões:
Primeiro porque o processo contraordenacional, a par do ilícito de mera ordenação social, é tendencialmente, e cada vez mais, autónomo e autossuficiente, não havendo que o aproximar do processo criminal, antes respeitar aquela autonomia.
Segundo, e na decorrência do primeiro, porque os requisitos legais a que deve obedecer a decisão administrativa em sede contraordenacional estão expressamente plasmados no art.º 58º do RGCO, em particular no respetivo n.º 1, onde se prevê que: A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter a) A identificação dos arguidos, b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; e d) A coima e as sanções acessórias.
Acresce que no caso em concreto de contraordenação estradal está mesmo previsto um regime ainda mais especial e simplificado, em contraponto com o regime geral contraordenacional, que alivia aquelas exigências, estatuindo-se no art.º 181º, do Código da Estrada, epigrafado “decisão condenatória”, nos n.ºs 1 e 4, que: A decisão que aplica a coima ou a sanção acessória deve conter a) A identificação do infrator, b) A descrição sumária dos factos, das provas e das circunstâncias relevantes para a  decisão, c) A indicação das normas violadas, d) A coima e a sanção acessória e e) A condenação em custas (…) Não tendo o arguido exercido o direito de defesa, a fundamentação a que se refere a alínea b) do n.º 1 pode ser feita por simples remissão para o auto de notícia.
No confronto destas duas normas verifica-se, por exemplo, bastar na decisão administrativa contraordenacional estradal uma descrição meramente sumária dos factos.
Acrescentar a estas exigências legais os requisitos da sentença criminal ou da acusação seria complexificar o processo contraordenacional e a sua decisão administrativa, juntando às exigências específicas ainda as do processo criminal, de onde resultaria que a decisão administrativa passaria a ficar sujeita a maior formalismo do que as sentenças criminais, o que consideramos um contrassenso e não terá sido este, seguramente, o propósito do legislador.
Terceiro, e último (agora por recurso aos princípios gerais), porque o princípio da legalidade no que às nulidades respeita, plasmado no art.º 118º, n.º 1, do CPP, segundo o qual a inobservância das disposições legais do processo … só determina a nulidade do ato quando for expressamente cominado na lei, constitui, a nosso ver, um sério obstáculo legal à aplicabilidade às decisões administrativas da previsão de nulidade das sentenças e/ou das acusações criminais, posto que a lei não comina como nulidade a inobservância dos requisitos específicos da decisão administrativa.

Feitas estas considerações gerais, passemos, então, a apreciar cada uma das concretas nulidades suscitadas pelo Recorrente.
- Da nulidade do auto de contraordenação, por não constar da descrição sumária as concretas circunstâncias em que o Recorrente foi submetido ao teste de álcool, designadamente se o arguido estava a conduzir o veículo, se simplesmente estava no seu interior, violando, por esta via, o disposto no art.º 170º, n.º 1, al. a), do Código da Estrada. Consequentemente, a nulidade da decisão administrativa, nos termos do art.º 283º, n.º 3, al. b), do CPP.
A decisão recorrida decidiu, e bem, que o auto de contraordenação não enferma de qualquer insuficiência, porque:
Nos termos do disposto no artigo 170.º, n.º 1, als. a) e b), do Código da Estrada, o Auto de Notícia elaborado por qualquer autoridade ou agente de autoridade que, no exercício das suas funções de fiscalização, presencie contraordenação rodoviária, deve mencionar:
a)- Os factos que constituem a infração, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida, o nome e a qualidade da autoridade ou agente de autoridade que a presenciou, a identificação dos agentes da infração e, quando possível, de, pelo menos, uma testemunha que possa depor sobre os factos;
b)- O valor registado e o valor apurado após dedução do erro máximo admissível previsto no regulamento de controlo metrológico dos métodos e instrumentos de medição, quando exista, prevalecendo o valor apurado, quando a infração for aferida por aparelhos ou instrumentos devidamente aprovados nos termos legais e regulamentares.
Analisando agora o Auto de Notícia que deu origem aos presentes autos (junto a Ref.ª CITIUS n.º 4780698, de 05.07.2022) à luz da transcrita norma, constata-se que o mesmo contém a identificação completa do recorrente no local do Auto com a menção de “Arguido”; seguido da identificação do veículo: “matrícula ..., País Portugal, Categoria ligeiro, Tipo Mercadorias”, e da referência de que ele era conduzido pelo arguido (como se alcança do “x” aposto na quadrícula que a tal opção corresponde); após o que é mencionado: “Condutor submetido ao teste de álcool no aparelho Drager Alcotest 7110 MKIIIP, série ARML-0091 aprovado por Despacho nº 19684/09 da ANSR, de 25 de Jun, verificado pelo IPQ, Verificação periódica em 04-02-2020, acusou a TAS de 1,095 g/l (deduzido o erro máximo admissível, correspondente à TAS de 1,19 g/l registada, conforme talão nº 3148 que se junta.”
Seguindo-se a identificação da norma infringida (“rectius”, o artigo 81.º, n.º 1, do Código da Estrada), bem como o mínimo e máximo da coima e da sanção acessória de inibição de conduzir aplicáveis, como menção das normas de onde tal resulta (mormente os artigos 81.º, n.º 6, al. b), 136.º, 146.º, al. j) e 147.º, todos do Código da Estrada).
Visto em pormenor o Auto de Notícia, como acabou de se fazer, é indubitável que, com a necessária contenção exigida na redação de um Auto (pré-formatado e com espaços limitados para escrita) do mesmo consta a descrição objetiva da infração.
E nem há qualquer dúvida, em face dos seus termos, que o arguido conduzia o veículo automóvel identificado, imediatamente antes de ser fiscalizado e submetido ao teste de alcoolémia.
Não assiste, pois, qualquer razão ao recorrente quando invoca a nulidade do Auto de Notícia e, em consequência, da decisão administrativa que em tal Auto se fundamentou. Sendo manifesta a improcedência deste ponto da sua impugnação.

Subscrevemos resultar suficientemente claro do auto de contraordenação que o Recorrente ia a conduzir veículo automóvel quando foi intercetado pelos OPC´s.
Na verdade, consta de tal auto, não só o dia e local da prática do ilícito contraordenacional, como a identificação do veículo e ainda que o veículo estava a ser conduzido pelo arguido, o que está claramente expresso no item “conduzido por: x arguido”.
O facto de na “descrição sumária” o agente da PSP ter escrito “o condutor ao ser submetido ao teste de álcool …”, sem fazer expressa referência nesta concreta parte à circunstância de o condutor estar efetivamente a conduzir, não pode ser interpretado de forma isolada, na medida em que já constava antes do auto que o veículo estava a ser conduzido pelo arguido/condutor. E se é assim, o agente da PSP não tinha de repetir na “descrição sumária” o que já constava antes plasmado do auto.
Acresce que as palavras (faladas ou escritas) têm de ser interpretadas no seu contexto, em particular quando podem traduzir realidades fácticas diversas.
É certo que a palavra “condutor” pode, e é por vezes, usada com o significado de pessoa encartada, embora sem estar concretamente a conduzir.
Porém, o contexto em que o termo foi usado na “descrição sumária” torna imediatamente percetível para qualquer pessoa que a palavra “condutor” foi empregue como sinónimo de “pessoa que estava efetivamente a conduzir veículo na via pública”.
Aliás, o Recorrente nunca manifestou não ter percebido o alcance da expressão no contexto em que foi usada, nem alguma vez afirmou que não ia a conduzir o veículo em questão.
Logo por aqui se vê que a invocação da invalidade do auto de contraordenação é destituída de substância.
Por outro lado, a decisão administrativa refere expressamente, na parte em que descreve a materialidade objetiva praticada pelo arguido “o arguido conduzia o referido veículo, …”.
Portanto, mesmo que a invocada insuficiência do auto de contraordenação fosse uma realidade (o que nem é o caso, como já tivemos oportunidade de expressar), a mesma não se teria repercutido na decisão administrativa, pois consta expressamente  desta que o arguido conduzia o veículo quando foi intercetado pela PSP.
 Em suma, nenhum reparo deve ser feito à decisão recorrida quando considerou não estar o auto de contraordenação, nem a decisão administrativa que em tal auto se fundou, inquinados de invalidade (e muito menos de nulidade).
           
- Da nulidade insanável da decisão administrativa (por aplicação do art.º 119º, als. c) e d), do CPP, ou pelo menos 120º, n.º 2, al. d), do CPP), por não terem sido ouvidas em sede administrativa as duas testemunhas indicadas pelo ora Recorrente,  e da violação do direito de defesa, nos termos em que o mesmo está previsto nos art.ºs 50º, do RGCO, e 32º, n.ºs 1, 5 e 10, da CRP.
A decisão administrativa justificou a não produção da prova indicada pelo arguido, concretamente a audição das duas testemunhas indicadas, no seguinte (que se transcreve):
Requereu a audição de duas testemunhas, no entanto cabe à entidade administrativa, levar a efeito as diligências que se afigurem necessárias para a descoberta da verdade material. Atendendo à prova produzida, o presente pedido de audição é indeferido.

A decisão judicial ora recorrida considerou não se verificar a invocada invalidade processual, nem a postergação do direito de defesa do arguido, nos seguintes termos (que se transcrevem):
Quanto à invocada omissão da inquirição das testemunhas, analisando a defesa escrita apresentada pelo arguido na fase administrativa logo se constata que embora no final ele realmente arrole duas testemunhas, em momento algum indica os factos sobre que incide essa prova, sendo que a sua defesa contém a alegação de vários e diversos factos.
Não cumpriu assim o arguido uma das regras legalmente estabelecidas para que a prova por si indicada pudesse ser considerada, no caso a regra contida no n.º 4 do artigo 175.º, do Código da Estrada, que estabelece:
“O arguido, na defesa deve indicar expressamente os factos sobre os quais incide a prova, sob pena de indeferimento das provas apresentadas.”
Regra esta para a qual havia inclusive sido atempadamente alertado, já que consta do verso do Auto de Notícia que lhe foi notificado, o seguinte:
“É acusado da prática dos factos que constam da descrição sumária os quais constituem contraordenação prevista e sancionada nos termos das normas legais indicadas.
O QUE FAZER:”
2.– Apresentar defesa ou requerimento, no prazo de 15 (quinze) dias úteis após a data da presente notificação:”
2.1- A defesa deve conter a exposição dos factos, fundamentação e pedido, indicando os meios de prova e, querendo, testemunhas até ao limite de três, assinalando expressamente os factos sobre os quais incide a prova, sob pena de indeferimento.” (Negrito nosso)
(…)
Não se verificando a nulidade da decisão administrativa, também sob este prisma da preterição do direito de defesa.

Não está em causa o direito dos arguidos contraordenacionais ao contraditório, não só relativamente às contraordenações imputadas, como às sanções em que incorrem, como ainda às questões estritamente processuais que os possam afetar.
Tal decorre, desde logo, expressamente do n.º 10, do art.º 32º, da CRP, onde se estabelece que nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa, mas também dos n.ºs 1 e 5, do mesmo artigo, que consagram os direitos gerais de defesa e do contraditório (embora para o processo criminal, que não deixam de ter respaldo no contraordenacional).
E extrai-se, ainda, do art.º 50º, do RGCO, onde se prevê que “Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.
Não obstante, a lei consagra em certos diplomas regimes de defesa especiais, ora robustecendo os seus termos, ora simplificando-os, simplificação que passa muitas vezes pela imposição de regras mais restritivas a esse direito de defesa, sem, no entanto, o postergar.
É precisamente o caso do Código da Estrada, que estabelece no seu art.º 175º, um regime simplificado de audição/defesa do arguido, impondo restrições ao número de testemunhas (máximo de 3) e o dever de indicar expressamente os factos sobre que incide cada meio de prova arrolado, sob pena de indeferimento.
Assim, decorre expressamente do art.º 175º, n.º 4, do CE, que  o arguido, na defesa deve indicar expressamente os factos sobre os quais incide a prova, sob pena de indeferimento das provas apresentadas.
Essa simplificação do processo de contraordenação estradal não se limita sequer à fase processual de defesa do arguido, estendendo-se à própria decisão administrativa condenatória, como antes detalhámos.
Acresce que, de acordo com o preceituado no art.º 54º, n.º 2, do RGCO, é à autoridade administrativa que compete proceder à investigação e instrução do processo, o que lhe permite indeferir as diligências de prova requeridas pelo arguido, sobretudo quando a sua falta de pertinência é evidente.
E para aferir dessa pertinência, ou falta dela, é relevante a exigência legal de indicação dos concretos factos a que os meios de prova se destinam.

Como se diz no acórdão datado de 24.09.2008 do Tribunal da Relação de Coimbra, processo 33/07.6TBSRT.C1 (disponível em dgsi.pt):
E essa possibilidade foi efectivamente concedida ao recorrente, tendo este apresentado o requerimento em causa, indicando as tais duas testemunhas.
Sucede porém que nem todas as diligências ou prova oferecida tem de ser obrigatoriamente aceite.
Como referem Simas Santos e Lopes de Sousa· cabe “ à entidade que dirige o processo de contra-ordenação deferir ou não a realização das diligências requeridas, devendo abster-se de realizar as que se lhe não afigurem de utilidade para a descoberta da verdade. “.
Na verdade, nesta fase administrativa vigora o princípio do inquisitório, como decorre, nomeadamente, do artigo 54.º do RGCO e à semelhança do que se verifica no processo criminal, no que concerne ao inquérito e instrução.
Assim é a entidade que dirige a investigação e instrução do processo contra-ordenacional que cabe escolher quais os meios de prova a utilizar para prova dos factos cujo conhecimento releve para a decisão. O arguido pode requerer a realização de diligências, mas a decisão sobre quais as diligências a realizar na fase administrativa do procedimento cabe às autoridades que devem levar a cabo a investigação e a instrução (cfr. AcRP 08.06.04, Pº 0842856, www.dgsi.pt).
Ora no caso vertente, verificando a entidade administrativa que a pretensão do arguido era de satisfazer em pleno, o efeito da audição das testemunhas era manifesta e claramente inóquo, pelo que bem andou em não proceder à sua audição.

A simplicidade inerente às contraordenações estradais, sobretudo quando presenciadas pelos OPC´s, aliada à quantidade de infrações diárias participadas, não se compadece com um processo contraordenacional demasiado garantístico, com a falta de celeridade que tal implica.
De resto, o arguido tem sempre a possibilidade de na impugnação judicial indicar de novo as testemunhas, se o entender pertinente, com o que fica salvaguardado o seu direito de defesa.
Posto isto, e regressando ao caso dos autos, foi concedido ao Recorrente direito de defesa na fase administrativa, no âmbito do qual este arrolou duas testemunhas, sem indicar a que factos pretendia a sua audição.
A autoridade administrativa entendeu que tal audição não se justificava, face à circunstância de a infração estradal ter sido presenciada pelos OPC´s.
Como bem refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, embora se reconheça que o modo de fundamentação deste indeferimento está longe de ser perfeito, percebe-se do seu teor que o mesmo foi ancorado nas faculdades resultantes do princípio do inquisitório ínsito no já citado artigo 54º, do RGCO.
De todo o modo, a decisão recorrida foi ainda mais longe e ressalvou que a prova testemunhal indicada sempre teria de ser indeferida, visto o preceituado no art.º 175º, n.º 4, do Código da Estrada, dado que o Recorrente não indicou a que concretos factos pretendia ouvir cada uma das duas testemunhas.
Devemos relembrar que o objeto deste recurso não é a decisão administrativa, mas a decisão judicial recorrida.
O Recorrente ainda contrapôs, em sede de resposta ao parecer, a existência de um dever de notificação do arguido para suprir a falta de indicação dos factos a que cada depoimento se destinava.
Ora, o Recorrente, ao ser notificado do auto contraordenacional, foi logo informado do limite de testemunhas a arrolar e da necessidade de indicar expressamente os factos sobre que incide cada meio de prova, sob pena de indeferimento das provas apresentadas.
Pretender que a autoridade administrativa ainda convide o arguido a retificar o requerimento nos termos sobreditos é contrariar a natureza célere e simplificada do processo contraordenacional estradal, contra o que foi o propósito do legislador, não se impondo esta exigência nem para acautelar o direito de defesa do arguido, posto que, por um lado, o mesmo foi prévia e expressamente informado e advertido da necessidade de indicar os factos a que cada meio de prova se destinava e da sanção prevista para o não cumprimento desse ónus processual e, por outro, o Recorrente sempre poderia ter arrolado de novo as duas testemunhas em sede judicial, faculdade que não exerceu apenas porque não quis.
Por fim, importa salientar que na análise desta (ou de qualquer outra) concreta questão de direito o tribunal recorrido não estava vinculado aos fundamentos jurídicos expostos na decisão administrativa, pelo que nada o impedia de não revogar a decisão de indeferimento da inquirição das duas testemunhas arroladas com base em fundamentos jurídicos distintos.

- Da nulidade da decisão administrativa (desta feita ao abrigo do disposto nos artigos 374º, n.º 2, e 379º, n.º 1, al. a), do CPP, “ex vi” do art.º 41º, do RGCO, por violação do artigo 181º, n.º 1, al. b), do CE), em 3 vertentes:

  • Porque não se pronunciou sobre as questões por si suscitadas em sede de defesa escrita;
  • Porque não fundamentou a decisão de indeferimento da produção de prova testemunhal por si indicada; e
  • Porque não fundamentou a medida concreta da coima e da sanção acessória aplicadas.
Escalpelizando cada uma dessas vertentes:
  • Na parte referente à invocada omissão de pronúncia sobre as questões suscitadas pelo Recorrente em sede de defesa escrita apresentada na fase administrativa:
A decisão recorrida pronunciou-se nos seguintes termos:
Por outro lado, consta-se que a entidade administrativa pronunciou-se sobre o essencial da argumentação da defesa escrita apresentada, como se pode ler no seguinte segmento da decisão administrativa:
“Nas alegações efetuadas em sede de defesa, invoca nulidade por considerar que o seu comportamento não configura ilícito contraordenacional. No entanto, o agente autuante, que presenciou a infração e debitou a informação no auto de notícia, verificou que o arguido era efetivamente o condutor do veículo, conforme descrição sumária da infração.”
Como se vê, a entidade administrativa não ignorou a defesa escrita apresentada, sobre ela se pronunciando, ainda que sinteticamente, o que se mostra suficiente face às naturais muito menores exigências de fundamentação da decisão administrativa e processo contraordenacional, face ao processo penal.
O recorrente pode é discordar da posição da entidade administrativa e respetiva decisão, mas para isso tinha depois o recurso de impugnação judicial, do qual inclusive lançou mão.
Não se verificando a nulidade da decisão administrativa, também sob este prisma da preterição do direito de defesa.
*
Por último, e ainda que o recorrente apenas impugne a decisão administrativa por via da sua nulidade e com os argumentos já mencionados e rebatidos, acrescenta-se que os factos dela constantes (presenciados pelo agente da autoridade que elaborou e assinou o respetivo Auto de Notícia e ao qual juntou o respetivo talão do alcoolímetro), preenchem os elementos típicos da contraordenação p. e p. pelos artigos 81.º, n.ºs 1 e 6, al b), 138.º, 146.º, al. j) e 147.º, todos do Código da Estrada, pela qual o arguido foi condenado.

A nulidade da sentença por omissão de pronúncia previsto no art.º 379º, n.º 1, al. c), do CPP, mesmo para quem entenda ser aplicável à decisão administrativa (o que nem é o caso), só ocorre quando existe uma absoluta falta de pronúncia sobre certa questão que deva ser apreciada, e não já quando a fundamentação existe, mas é deficiente.
Como se refere na sentença recorrida, a decisão administrativa não ignorou a defesa do arguido, tendo apreciado, ainda que de modo não perfeito, os argumentos de defesa do Recorrente, tendo feito constar que a infração foi verificada presencialmente pelos OPC´s, o arguido estava a conduzir e mostravam-se preenchidos os elementos do tipo contraordenacional, em razão do que não se verificava a existência da nulidade invocada.
De todo o modo a eventual nulidade da decisão administrativa por falta de pronúncia também não se repercute na sentença objeto deste recurso, a qual conheceu e julgou improcedente o mencionado vício.
  • Relativamente à suscitada nulidade da decisão administrativa, e por decorrência da sentença recorrida, por falta de fundamentação da decisão de indeferimento da produção de prova testemunhal por si indicada em sede de defesa escrita na fase administrativa:
A decisão administrativa justificou a não produção da prova do seguinte modo:
Requereu a audição de duas testemunhas, no entanto cabe à entidade administrativa, levar a efeito as diligências que se afigurem necessárias para a descoberta da verdade material. Atendendo à prova produzida, o presente pedido de audição é indeferido.

Mutatis mutandis com o que se deixou referido no tópico anterior, não existe falta absoluta de fundamentação, sem prejuízo de se reconhecer que a fundamentação não é excelente, muito embora tal também não seja exigível. Mesmo que se considerasse existir falta de fundamentação, tal irregularidade (e não nulidade, pelos motivos acima expostos) teria sido sanada pela sentença proferida, sendo esta que é objeto do recurso.
Consequentemente a decisão recorrida não enferma, também nesta parte, de nenhuma nulidade.
  • Por fim, no que concerne à falta de fundamentação da medida da coima e da sanção acessória aplicadas:
A decisão administrativa menciona, neste particular:
Nestes termos, ponderados os elementos determinantes da medida da sanção constantes do art.º 139º, do CE, determino. A aplicação ao arguido da coima (…) e da sanção acessória ….”

A decisão recorrida, por seu turno, acabou por complementar a fundamentação do doseamento da medida da coima do seguinte modo:
A concreta coima aplicada, que apenas em 150,00 € excede o respetivo mínimo legal, numa moldura que vai de 500,00 € a 2.500,00 €, encontra-se perfeitamente justificada pela concreta TAS que o arguido apresentava, de 1,095 g/l (tendo em conta que a mesma moldura legal é aplicável a quem conduza com uma TAS igual ou superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l).
Por sua vez, a sanção acessória de inibição de conduzir concretamente aplicada (60 dias) corresponde ao respetivo mínimo legal. Sendo que no caso, e nos termos do disposto nos artigos 146.º, al. j) e 141.º, n.º 1 “a contrario”, do Código da Estrada, por se tratar de contraordenação qualificada como muito grave, não é sequer legalmente admissível a possibilidade da suspensão da sua execução, como o recorrente pediu na fase administrativa.

O citado artigo 139º, do CE, estabelece como critérios orientadores da “determinação da medida da sanção”: 1- A medida e o regime de execução da sanção determinam-se em função da gravidade da contraordenação e da culpa, tendo ainda em conta os antecedentes do infrator relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos. 2- Na fixação do montante da coima, deve atender-se à gravidade da contraordenação e da culpa, tendo em conta os antecedentes do infrator relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos, e a situação económica do infrator, quando for conhecida. (…)

Alude-se na decisão administrativa à circunstância de a contraordenação ter sido cometida por negligência, reportando-se a decisão, por esta via, à graduação da culpa do infrator.

A sanção acessória foi fixada pelo mínimo, em razão do que não carecia de fundamentação.

A fixação do montante da coima, situada um pouco acima do mínimo da moldura abstrata, não foi, de facto, expressamente fundamentada na decisão administrativa.

Não obstante, mesmo a entender-se que a decisão administrativa estava obrigada a proceder a tal fundamentação, o que, como vimos, também não temos por líquido, tal questão mostra-se ultrapassada com a impugnação judicial e a prolação da decisão recorrida, sendo esta verdadeiramente o objeto deste recurso, a qual  complementou a decisão administrativa nesta parte, ao referir-se à gravidade da contraordenação, atendendo à TAS que o arguido apresentava (1,095 gr/l, tendo em conta que a mesma moldura legal é aplicável a quem conduza com uma TAS igual ou superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l).

Vale dizer que a decisão judicial recorrida supriu eventual deficiência (não falta absoluta) de fundamentação da medida concreta da coima aplicada, não estando decisão judicial, também nesta parte, inquinada de qualquer nulidade.

Nesta conformidade, indeferem-se as invocadas nulidades, improcedendo o recurso in totum.

III–Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto por A.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s, atendendo ao trabalho e quantidade de questões suscitadas (art.ºs 513º, n.º 1, do CPP, 92º, 93º, n.º 3, ambos do RGCO, e 8º, n.º 7, do RCP, com referência à tabela III anexa).
Notifique e D.N.


Lisboa,23-03-2023


Madalena Augusta Parreiral Caldeira
António Bráulio Alves Martins
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros