CASO JULGADO FORMAL
REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
ABUSO DE DIREITO
Sumário


I. Existe violação do caso julgado formal quando o Tribunal, no mesmo processo, com as mesmas partes e reportando-se aos mesmos factos, verificados e atendidos já na primeira decisão, volta a decidir a mesma questão, no mesmo contexto processual, de forma diversa.

II. Tendo o administrador da insolvência apresentado proposta de distribuição e rateio final, onde reiterou o valor sempre indicado para a sua remuneração variável, tendo sido proferido despacho homologando aquela proposta e declarando encerrado o processo de insolvência, e tendo sido ordenada a notificação de credor para depositar a quantia necessária ao pagamento da dita remuneração variável, a decisão que depois alterou o seu montante, à luz da posterior Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, viola o caso julgado formado sobre o anteriormente decidido.

III. No instituto do abuso de direito está-se perante situações em que a invocação ou o exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça. Assenta, por isso, o instituto na existência de limites indeterminados à actuação jurídica individual, resultantes da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito exercido.

IV. Tendo o administrador da insolvência violado, voluntária e sistematicamente, os deveres que lhe estavam cometidos, importando atrasos superiores a dois anos para os autos de insolvência em que foi nomeado, e só neles radicando a possibilidade de poder vir a beneficiar da nova fórmula de cálculo da sua remuneração variável, não deverá ser autorizado a fazê-lo, por isso consubstanciar um clamoroso abuso de direito seu (nomeadamente, face a todos os outros colegas que hajam cumprido, diligente e zelosamente, as respectivas funções, em processos idênticos e contemporâneos).

Texto Integral


ACÓRDÃO

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. Em 09 de Fevereiro de 2012, nos autos principais de insolvência relativos a C... - Imobiliário Unipessoal, Limitada, com sede na Praça ..., ..., ..., em ... (que com o n.º 293/12.... correm termos pelo Juízo de Comércio ...), foi proferida sentença, declarando a insolvência da dita Sociedade, por apresentação da mesma (sentença que aqui se dá por integralmente reproduzida).

1.1.2. Em 23 de Setembro de 2015, foi proferido despacho (no Apenso D - Liquidação do Activo), declarando encerrada a liquidação do activo [1].

1.1.3. Em Julho de 2015, o Administrador da Insolvência apresentou contas, depois corrigidas/completadas; e foi proferido despacho, aprovando as despesas apresentadas.

1.1.4. Em Fevereiro de 2018, transitou em julgado a sentença de graduação de créditos (proferida no Apenso C - Reclamação de Créditos), com a prolação de Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

1.1.5. Em 30 de Abril de 2018, foi lavrado Termo de Dispensa de Conta, conforme com o estar a massa insolvente isenta do pagamento de custas.

1.1.6. Em 06 de Dezembro de 2018, o Administrador da Insolvência apresentou uma primeira proposta de distribuição e rateio final, tendo nela calculado a sua remuneração variável como correspondendo a € 46.531,84.

1.1.7. Em 04 de Março de 2019, o Administrador da Insolvência apresentou uma segunda proposta de distribuição e rateio final (face a incorrecção denunciada quanto à primeira), tendo nela calculado a sua remuneração variável como correspondendo a € 46.531,84.

1.1.8. Em 22 de Março de 2019, foi apresentada Reclamação ao Mapa de Rateio, que a secretaria apreciou em 27 de Maio de 2019, nos termos do art. 182.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março. 

1.1.9. Em 17 de Junho de 2019 e em 09 de Setembro de 2019 (mercê da sua inércia após a primeira data), foi o Administrador da Insolvência notificado para, em 10 dias, se pronunciar quanto à cota lavrada pela secretaria, que apreciava a reclamação à proposta de rateio.
Persistindo a sua inércia, em 19 de Setembro de 2019 foi o mesmo notificado, mercê de prévio despacho, a solicitar a sua pronúncia, em 10 dias, sobre a cota lavrada pela secretaria, sob pena de condenação em multa [2].
Continuando ainda assim inerte, foi condenado em multa, por falta de colaboração com o Tribunal, por intermédio dos despachos proferidos em 11 de Outubro de 2019 (1 uc), em 05 de Novembro de 2019 (2 uc,s), em 03 de Dezembro de 2019 (2 uc,s) e em 20 de Dezembro de 2019 (4 uc,s).

1.1.10. Em 20 de Dezembro de 2019, o Administrador da Insolvência informou que aguardava por extractos bancários.

1.1.11. Entre 13 de Março de 2020 e 26 de Janeiro de 2021 o Administrador da Insolvência continuou a não responder, ou a fazê-lo tardiamente, às notificações do Tribunal (nomeadamente, para informar sobre o saldo da conta da massa insolvente), o que levou a nova condenação em multa, por falta de colaboração, em 30 de Outubro de 2020 (uc,s) [3].

1.1.12. Em 22 de Julho de 2021, o Administrador da Insolvência apresentou uma terceira proposta de distribuição e rateio final, tendo nela calculado a sua remuneração variável como correspondendo a € 46.531,84.

1.1.13. Em 16 de Agosto de 2021, foi proferido despacho, homologando o mapa de rateio e declarando encerrado o processo de insolvência [4].

1.1.14. Em 27 de Outubro de 2021 e em 27 de Janeiro de 2022 o Administrador da Insolvência insistiu pelo recebimento da sua remuneração variável de € 46.531,84, lendo-se nomeadamente no seu último requerimento que, se «as contas foram aprovadas então o AI tem que receber, bem como entregar ao estado a parte do IVA».

1.1.15. Em 28 de Janeiro de 2022, foi proferido despacho, ordenando à credora reclamante Ca... Construtores, S.A. o pagamento da quantia de € 43.975,45, para satisfação da remuneração variável devida ao Administrador da Insolvência [5].

1.1.16. Em 23 de Março de 2022, a credora reclamante Ca... Construtores S.A. requereu que o Administrador da Insolvência justificasse retirada de €17.204,87 da conta bancária da massa insolvente [6].

1.1.17. Em 19 de Abril de 2022, o Administrador da Insolvência foi notificado para apresentar contas nos termos do art. 62.º, do CIRE [7]; e em 06 de Junho de 2022, foi novamente notificado para o efeito, face à sua inércia anterior [8].

1.1.18. Em 29 de Julho de 2022, o Administrador da Insolvência apresentou novo «Relatório Final de prestação de contas ao abrigo do art.º 62 do CIRE» (esclarecendo tratar-se de «relatório já apresentado, não se verificando quaisquer alterações a mesmo, exceto no que respeita à remuneração variável do AI»), e um pedido «de fixação da remuneração variável em função das alterações introduzidas no CIRE por força da Lei 9/2022, de 11 de Janeiro e que, por lapso, não foram consideradas no relatório anteriormente apresentado», fazendo-a corresponder a € 380.795,60 ou € 307.589,92 [9].

1.1.19. Em 18 de Agosto de 2022, Ca... Construtores, S.A. (credora reclamante e reconhecida) reclamou do cálculo da remuneração variável, pedindo que a mesma fosse mantida em € 46.53,84.
Alegou para o efeito, em síntese: estar a mesma há muito definitivamente fixada naquele valor, como o próprio Administrador da Insolvência teria reconhecido; não ser a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro (entrada em vigor em 11 de Abril de 2023) aplicável aos autos, por os mesmo se encontrarem encerrados desde 16 de Agosto de 2021 (apenas ficando pendente a justificação para a retirada, pelo Administrador da Insolvência, de € 17.204,87 da conta da massa insolvente), não podendo o Administrador Judicial beneficiar com o atraso que provocou na proposta de rateio final (mais de 2 anos) e na apresentação de contas depois de cessadas as suas funções (mais de três meses); ser inconstitucional (por violação do princípio da confiança e da segurança jurídicas, do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade) a aplicação retroactiva dos arts. 5.º e 10º, da Lei n.º 9/2022 (porque existira já uma confiança legítima dos credores sobre o montante da remuneração variável a atribuir ao Administrador da Insolvência, a fórmula de cálculo da mesma deveria coincidir com a vigente ao tempo em que os serviços a remunerar foram prestados e o aumento para seis vezes mais do que aquele terá a receber representaria um acréscimo muito significativo do seu benefício e um desmesurado sacrifício dela própria); e estar ainda assim incorrectamente calculada a remuneração variável (por incorrecta aplicação da majoração legal prevista, sendo a mesma no caso de € 110.707,70, e não de € 207.589,92).

1.1.20. Em 01 de Setembro de 2022, a Insolvente (C... - Imobiliário Unipessoal, Limitada) veio singelamente defender que, «considerando a legislação aplicável à data em que os honorários do Administrador eram devidos, considera-se que a referida será a que foi indicada pelo credor, ou seja € 110.707,70»; e pediu que, «atento o manifesto lapso no cálculo deverá o valor ser corrigido em conformidade».

1.1.21. Em 02 de Novembro de 2022, o Administrador de Insolvência veio responder, pedindo que a sua remuneração fosse fixada em € 261.632,31, sendo a Credora Reclamante (Ca... Construtores, S.A.) notificada para depositar na conta da massa insolvente o valor de € 245.772,32, acrescido de € 10,00 para despesas bancárias.
Alegou para o efeito, em síntese: terem sido os pedidos de remuneração que apresentou meras propostas, dependentes de posterior fixação judicial (que nunca ocorreu), pressupondo igualmente que não existiriam mais despesas de liquidação (o que não foi o caso); quando foi notificado para apresentar contas já se encontrava em vigor a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro; não poderia ele próprio antecipar a sua redacção e entrada em vigor, tendo sido por ela que o legislador entendeu corrigir o que anteriormente estaria menos correcto; aceitar, na esteira da jurisprudência mais recente, o cálculo da majoração legal apresentado pela Credora Reclamante (Ca... Construtores, S.A.), correspondendo por isso a sua remuneração variável a € 110.709,20; e a Credora Reclamante (Ca... Construtores, S.A.) já se encontraria ressarcida do crédito que reclamou (de € 4.492.033,37), pela mais valia obtida com a venda dos imóveis que adquiriu à massa insolvente,  inexistindo por isso qualquer prejuízo seu.

1.1.22. Foi proferido despacho, fixando a remuneração variável do Administrador da Insolvência em € 207.589,92, lendo-se nomeadamente no mesmo:

«(…)
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
Importa fixar a remuneração do AI, o que obrigará, entre o mais, a analisar e aferir da bondade dos critérios e cálculos efectuados pelo mesmo.
Desde logo, serão aplicáveis as normas introduzidas pela Lei n.º 9/2022 de 11 de Janeiro, referentes ao regime remuneratório dos administradores judiciais.
Ora, e nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 23.º e 29.º do EAJ, o administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos actos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de € 2.000,00, sendo paga em duas prestações de igual montante, vencendo-se a primeira na data da nomeação e a segunda seis meses após tal nomeação, mas nunca após a data de encerramento do processo. E, auferirem ainda aqueles uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes: (a) 10% da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor; (b) 5% do resultado da liquidação da massa insolvente.
Aqui chegados e atendendo ao cálculo efectuado nos autos pelo AI, desde logo, “considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência” [n.º 6 do art.º 23.º do EAJ], sendo que “ o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles” [n.º 7 do art.º 23.º do EAJ].
Ora, em cumprimento do disposto no art.º 23.º, n.º 4, al. b) do EAJ, aplicou-se a taxa de 5% sobre o resultado da liquidação, no valor de € 4.251.798,32, o que resultou num produto de € 100.000,00 € [atento o limite legal imposto pelo n.º 10 do art.º 23.º], a solver ao mesmo a esse título.
Entretanto, a AI indicou, ainda, em função do disposto no n.º 7º do mesmo art.º 23.º do EAJ, o factor de majoração de 5% incidente sobre o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, que fez incidir sobre € 4.151.798,32 [€ 1.777.053,53 – (€ 64.275,58 + € 105.487,12)], o que resultou num produto de € 207.589,92 [€ 4.151.798,32 x 5%]. Segundo entendemos, efectivamente, o cálculo apresentado pelo AI mostra-se correcto, na medida em que leva em conta o efectivo grau de satisfação dos créditos, atendendo ao valor total das receitas e das despesas e à sua efectiva diferença, da qual resultará entretanto a respectiva distribuição pelos credores atendendo em concreto à proposta de distribuição já apresentada.---
Por conseguinte, fixa-se a remuneração variável no valor calculado pelo AI, autorizando-se o seu pagamento por levantamento da massa, o que deverá ser comprovado nos autos.
(…)»

*
1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos

Inconformada com esta decisão, a Credora Reclamante (Ca... Construtores, S.A.) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que a mesma fosse revogada e substituída por outra conforme com o entendimento expresso nas suas alegações.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se ipsis verbis as respectivas conclusões):

a) O Sr. Administrador de Insolvência não tem direito a receber uma retribuição variável no valor de € 307.589,92 (trezentos e sete mil quinhentos e oitenta e nove euros e noventa e dois cêntimos).

b) A proposta de rateiro final foi apresentada pelo Sr AI ao Tribunal a quo por 3 ocasiões, através dos requerimentos de 06/12/2018 (ref.ª citius ...78), em 04/03/219 (ref.ª citius ...73), e em 22/07/2021 (ref.ª citius ...11), e em cada uma destas três propostas de rateio final, o Sr. AI determinou a sua remuneração variável, conforme cálculo que remeteu ao processo, concretamente e sempre no valor de € 46.531,84.

c) Na proposta contendo o Mapa de Rateio final apresentada pelo Sr. AI com o requerimento de 22/07/2021 (ref.ª citius ...11), o Sr. AI indicou a sua remuneração variável no valor de € 46.531,84.

d) O Tribunal a quo, por Douto Despacho de 16-08-2021, ref.ª citius ...17, homologou o Mapa de Rateio apresentado com o requerimento do Sr. AI de 22/07/2021 (ref.ª citius...11), do qual constava a remuneração variável calculada pelo Sr AI no valor de €46.531,84, e declarou o encerramento do processo de insolvência ao abrigo do disposto no art.º 230.º, n.º 1, al. a) do CIRE, com os efeitos a que aludem as als. a) e b) do n.º 1 do art.º 233.º seguinte.

e) O Despacho de 16-08-2021, ref.ª citius ...17 transitou em julgado, pelo que o Despacho em recurso, ao aceitar e fixar uma nova retribuição variável no valor de € 307.589,92, violou o caso julgado, estabelecido por aqueloutro despacho de 16-08-2021.

f) Após o decretamento do encerramento do processo de insolvência, o Sr. AI, por intermédio dos requerimentos de 27/10/2021 (ref.ª citius ...54) e de 27/01/2022 (ref.ª citius ...72), requereu ao Tribunal quo fosse a aqui Recorrente Ca... Construtores notificada para proceder ao pagamento da quantia de 43.975,45 €, por si apurada, tendo também por base o “valor por pagar” de €46.531,84 a título de remuneração variável e o desconto do valor de saldo bancário existente na conta bancária da massa insolvente.

g) O Tribunal a quo, por intermédio do Despacho de 28-01-2022, ref.ª citius ...40, determinou que a aqui Recorrente, no prazo de 10 dias procedesse ao pagamento do valor adicional devido pela mesma de €43.975,45.

h) Este despacho de 28-01-2022 transitou em julgado, pelo que o Despacho em recurso, ao aceitar e fixar uma nova retribuição variável no valor de € 307.589,92, novamente violou o caso julgado, agora estabelecido pelo Despacho de 28-01-2022, ref.ª citius ...40.

Sem prescindir, nem conceder,

i) Encontrando-se o processo de insolvência encerrado desde o dia .../.../2021, o estatuído na al. b) do n.º 4 e o n.º 7 ambos do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, com as alterações introduzidas pela Lei 9/2022 de 11 de Janeiro, não se aplica ao presente processo de insolvência, uma vez que esta Lei entrou em vigor em 11 de abril de 2022, ou seja, após o encerramento.

j) O Sr. AI, sem necessidade de prévio despacho judicial a ordenar, deveria ter apresentado contas nos 10 dias subsequentes à cessação das suas funções, ou seja, no prazo de 10 dias após 16 de Agosto de 2021, data do encerramento do processo de insolvência, ou, quando muito, no prazo de 10 dias a contar da data do trânsito em julgado do despacho que decretou o encerramento do processo de insolvência, e não as apresentou nem solicitou a prorrogação do prazo para as apresentar.

k) O Sr. AI só apresentou contas, melhor, só justificou parte do valor de €17.204,87 que haviam sido retirados da conta bancária da massa insolvente, após a aqui recorrente Ca... Construtores as ter solicitado no seu requerimento de 23/03/2022, ref,ª citius ...04, e o Tribunal lhe ter ordenado a apresentação.

l) Já antes o comportamento processual do Sr AI se tinha revelado omissivo e dilatório.

m) Tendo a Liquidação do património da massa insolvente, sido encerrada por intermédio do Despacho proferido em 23.09.2015, ref.ª citius ...54, no respetivo Apenso de Liquidação – Apenso D)-, e tendo a Sentença de verificação e graduação de créditos – proferida no Apenso C) – transitado em Julgado no mês de Fevereiro de 2018, apenas no dia 06-12-2018, ref.º citius ...78, é que o Sr AI apresentou proposta de distribuição e de rateio final, nos termos do artigo 182.º do CIRE.

n) Tendo o Sr.AI sido notificado em 17-06-2019 para, em dez dias, se pronunciar quanto à cota lavrada pela secretaria judicial que validava a reclamação de um credor à proposta de rateio por si (AI) apresentada, apenas em 22-07-2021 - ou seja mais de 2 anos após é que o Sr AI apresentou nos autos uma proposta de rateio final retificada, sendo que durante este ínterim foi o mesmo, por cinco vezes, condenado em multa, por falta de colaboração.

o) Deste modo, ao solicitar a fixação e recebimento de uma remuneração variável nos termos estatuídos nos artigos 5.º e 10.º da Lei 9/2022 de 11 de Janeiro, atuou o Sr. AI em manifesto abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium e violou das mais básicas regras da boa-fé.

p) No que se prende especificamente com o venire contra factum proprium, esta figura do abuso de direito, consiste, precisamente, em alguém, tendo-se comportado de modo a criar na outra parte a legítima convicção de que certo direito não seria exercido, vem depois, não obstante, exercê-lo (cfr. Vaz Serra, RLJ, 115, 187), e isto independentemente de dolo ou sequer de mera culpa por parte do titular do direito (cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, pg. 742 e sgs. e Baptista Machado, RLJ, 117, 223 e sgs., especialmente a pgs. 363 e sgs.).

q) Ocorrendo exercício abusivo do direito, a reação correta da ordem jurídica corresponde à paralisação desse exercício, isto é, tudo se passa como se o SR AI não tivesse direito a haver para si o montante de € 307.589,92, a título de remuneração variável, ainda que, em abstrato, os nomas de direito lhos pudesse conceder - (Cfr., neste particular, da paralisação do exercício do direito, Manuel Andrade, Teoria geral das Obrigações, 3ª Ed., 1966, pg. 66).

r) Perante o comportamento omissivo e dilatório do Sr AI e havendo este, em momento anterior, reclamado o pagamento da quantia de € 46.531,84 a titulo de remuneração variável, deveria o Tribunal a quo ter julgado que o Sr. AI, agiu com abuso de direito e, nessa conformidade, declarar inválido o direito a obter para si o montante de €307 589,92 a título de remuneração variável.

Sem prescindir, e sem conceder,

s) O artigo 5.º da Lei 9/2022 de 11.1, designadamente o artigo 23.º do Estatuto do administrador Judicial, e o seu direito transitório estipulado no artigo 10.º, são inconstitucionais por violação do principio da não retroatividade estabelecido no artigo 18.º, n.º 3 da CRP e por violação do princípio da confiança e segurança jurídicas estabelecido no artigo 2.º da CRP, quando interpretados no sentido de aquele artigo 5.º ser aplicável a um processo de insolvência que se encontra encerrado assim como o seu Apenso de Liquidação.

t) Ao aplicar-se imediatamente o cálculo da remuneração variável do Sr. AI de acordo com a Lei nova - a qual tem como causa ou pressuposto essencial o resultado alcançado no Apenso de Liquidação de ativos que já se encontra findo desde o dia .../.../2015 – Cfr. Despacho no Apenso D) de 23.09.2015, ref.ª citius ...54, antes da entrada em vigor da Lei 9/2022 – a aplicação desta nova lei aos efeitos de uma relação constituída com base num facto passado, representa uma nova valoração desse facto passado, existindo, assim, retroatividade.

u) Uma Lei retroativa é inconstitucional se violar princípio da confiança e da segurança jurídica, subprincípios concretizadores do estado de direito.

v) Ao aplicar-se ao presente caso o disposto no artigo 5.º da Lei 9/2022, a confiança legítima e fundada da Recorrente Ca... Construtores - de a remuneração variável ser de €46.531,84, porque assim calculada e confirmada judicialmente, e não de €307 589,92 (quase seis vezes mais) – será frustrada por uma ação comissiva e inesperada do legislador, em sentido contrário às expectativas anteriormente geradas e que provocam sacrifício e prejuízo nos credores reclamante e reconhecidos.

w) Ao ver aplicado retroativamente o regime estabelecido pela Lei 9/2022 a Recorrente viu traídas a segurança e a confiança depositadas no ordenamento jurídico em vigor à data do encerramento da liquidação (e da insolvência), e viu o seu crédito satisfeito em menos €261.058,08, vendo assim frustradas as suas expectativas de forma acentuada e opressiva.
Sem prescindir, e sem conceder,

x) A interpretação de que o artigo 5.º da Lei 9/2022 se aplica ao presente caso, sem mais, é, de igual modo, inconstitucional porque viola o princípio da adequação e da proporcionalidade em sentido estrito.

y) A remuneração variável do AI já calculada na vigência da Lei antiga, fixou-se em €46.531,84, e calculada pela Lei Nova, fixou-se em €307.589,92, o que representa um acréscimo significativo e desmesurado de sacrifício da recorrente e credora Ca... Construtores e um acréscimo muito significativo, de quase seis vezes mais, de benefício do Sr. AI.

z) De acordo com a norma constante do n.º 8 do artigo 23.º do EAJ, e tendo por referência os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções, pode o Juiz determinar que o Administrador Judicial não tem direito a ser remunerado de acordo com as regras previstas nos n.ºs 4 a 7 do artigo 23.º do EAJ, e que a remuneração tem de ser fixada entre €50.000.00 e um valor abaixo do resultante da aplicação dos critérios legais de tais normas.

aa) Da quantidade de multas processuais aplicadas ao Sr. AI por falta de cooperação como Tribunal, automaticamente se depreende que o mesmo foi pouco diligente no exercício das suas funções.

bb) O processo não revelou especial complexidade e não exigiu do Sr. AI a prestação de um serviço que excedesse aquele que se mostra razoável num processo de insolvência com as características das dos pressente autos, pois reclamaram créditos no processo apenas 8 Credores, o relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE não revestiu especial complexidade nem exigiu qualquer justificação mais pormenorizada, a atividade de apreensão de bens cingiu-se, em exclusivo, a 26 frações autónomas que integravam o mesmo Prédio, a totalidade dos bens que integravam as verbas 1 a 26 do Auto de Apreensão, foi adjudicada a um só credor, a aqui recorrente, cingindo-se a atividade do Sr. AI à fixação do valor de venda de cada uma das 26 verbas constantes do auto de apreensão de bens e à marcação e celebração das respetivas escrituras de compra e venda, não lhe sendo conhecida atividade que tenha potenciado o incremento do preço de venda daquelas verbas.

cc) Deste modo, e por verificação e análise, no caso e em concreto, de cada um dos critérios estabelecidos na parte final do n.º 8 do artigo 23.º do EAJ, o Tribunal a quo não deveria ter fixado uma retribuição variável de acordo com a estrita aplicação das normas constantes dos n.ºs 4 a 7 do artigo 23.º do EAJ, antes sim, devendo ter fixado uma retribuição que não excedesse o montante de €50.000,01, tendo violado o n.º 8 do artigo 23.º do EAJ.
Sem prescindir, e sem conceder,

dd) A remuneração de €207.589,92, em resultado da aplicação do n.º 7 do art.º 23 do EAJ, está mal calculada.

ee) Dispondo o n.º 7 do art.º 23 do Estatuto do Administrador Judicial que “O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles”,

ff) no caso dos autos foram reclamados e admitidos créditos no valor de €7.785.003,36 e destes créditos reclamados e admitidos, foram satisfeitos créditos no montante de €4.151 798,32, pelo que o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos se fixou em 53,33% (4.151.798,32 x 100 / 7.785.003,36).

gg) Assim sendo, e de acordo com o n.º 7 do artigo 23.º do EAJ, a majoração tem de ser calculada nos seguintes termos: 5% dos créditos satisfeitos, considerando que o grau de satisfação foi de 53,33%, ou seja, 4.151.798,32 x 0,05 x 0,5333 = €110.707,70, sendo este o valor que o AI terá de receber, e que declarou aceitar receber no seu requerimento de 02.11.2022, ref.ª citius ...38, caso seja de aplicar o n.º 7 do artigo 23.º do EAJ, com a redação que lhe foi conferida pelo artigo 5.º da Lei 9/2022 de 11 de janeiro.

hh) O Despacho em recurso violou, assim, as normas constantes dos artigos 619º, n.º 1 e 628.º do CPC, dos artigos 230.º, n.º 1, al. a) e das als. a) e b) do n.º 1 do art.º 233 do CIRE, do n.º 1 do artigo 10.º e do artigo 12.º ambos da Lei 9/2022 de 11 de Janeiro, do n.º 1 do artigo 62.º do CIRE, do artigo 334.º do CC, dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2 e 3 e da CRP, e do artigo 23.º n.º 8 do Estatuto do Administrador Judicial.
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1.2.2. Contra-alegações

Não foram apesentadas quaisquer contra-alegações.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR
2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC) [10].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [11], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto por Ca... Construtores, S.A. (Credora Reclamante), uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal ad quem:

· Questão Única - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação da lei, na fixação da remuneração variável devida ao Administrador da Insolvência (nomeadamente, por a mesma já se encontrar judicialmente fixada em € 46.531,84, por decisão transitada em julgado, por a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, não ser aplicável ao presente processo, existindo abuso de direito por parte do Administrador Judicial nessa sua pretensão, por os arts. 5.º e 10.º da referida Lei não poderem ser aplicados retroativamente - sob pena de violação do princípio da confiança e da segurança jurídica, do princípio da proporcionalidade plasmado no n.º 2, do art. 18.º, da CRP, e do art. 23.º, n.º 8, do Estatuto do Administrador Judicial -, e por, de qualquer modo, a remuneração variável se encontrar mal calculada) ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade de facto relevante para a decisão do recurso de apelação interposto coincide com a descrição feita no «I - RELATÓRIO» da mesma, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1.  Caso julgado
4.1.1. Definição

Lê-se no art. 619.º, n.º 1, do CPC, que, transitada «em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º».
Mais se lê, no art. do 628.º, do CPC, que uma decisão judicial «considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação».
Quando assim seja, segundo o critério da eficácia e nos termos dos arts. 619.º, n.º 1 e 620.º, n.º 1, ambos do CPC, terá força obrigatória: dentro do processo e fora dele, se for sentença ou despacho saneador que decida do mérito da causa (caso julgado material); ou apenas dentro do processo, se for sentença ou despacho que haja recaído unicamente sobre a relação processual (caso julgado formal).

Mais se lê, no art. 625.º, do CPC que, havendo «duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar» (n.º 1); e é «aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual» (n.º 2).
Logo, ocorrendo casos julgados contraditórios, a lei resolve apelando ao critério da anterioridade: vale a decisão contraditória sobre o mesmo objecto que tenha transitado em primeiro lugar, e ainda que estejam em causa decisões que, dentro do mesmo processo, versem sobre a mesma questão concreta [12].
Reforça-se, assim, com este artigo, a ideia de que o caso julgado formal previsto no 620.º, do CPC, se refere à vinculação do Tribunal ao julgamento que fez sobre uma questão concreta da relação processual. Compreende-se, por isso, que se afirme que existe «violação do caso julgado formal, previsto no art. 620º, do Código de Processo Civil, quando o Tribunal, no mesmo processo, com as mesmas partes e reportando-se aos mesmos factos, verificados e atendidos já na primeira decisão, volta a decidir a mesma questão, nesse mesmo contexto processual, de forma diversa», outro tanto não sucedendo em hipótese inversa (Ac. da RG, de 17.05.2018, José Flores, Processo n.º 1053/15.2T8GMR-C.G1). 
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Do caso julgado decorrem dois efeitos essenciais (distintos, mas provenientes da mesma realidade jurídica): um negativo (excepção dilatória de caso julgado), de impossibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que proferiu a decisão, voltar a emitir pronúncia sobre a questão decidida, isto é, impedindo que a causa seja novamente apreciada em juízo; e um positivo (força e autoridade de caso julgado), de vinculação do mesmo tribunal e, eventualmente de outros (estando em causa o caso julgado material), à decisão proferida [13].
Logo (e face aos arts. 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, al. i), 580.º e 581.º, todos do CPC), a excepção dilatória de caso julgado pressupõe o confronto de duas acções (uma delas contendo uma decisão já transitada em julgado), e a tríplice identidade entre ambas de sujeitos, de causa de pedir e de pedido; e visa o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, por forma a evitar a repetição de causas.
Já a força e autoridade de caso julgado decorre de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo, sobre a matéria em discussão, e prende-se com a sua força vinculativa; e visa o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (podendo funcionar independentemente da tríplice identidade exigida pela excepção) [14].
*
O caso julgado é, então, um instituto com raízes no direito fundamental, constitucional, intimamente ligado ao princípio do Estado de Direito Democrático, por ser uma garantia basilar dos cidadãos onde deve imperar a segurança e a certeza; é hoje um valor máximo de justiça, aliado ao princípio da separação de poderes (Miguel Pimenta de Almeida, A intangibilidade do Caso Julgado na Constituição (Brevíssima Análise), pág. 18, disponível em http://miguelpimentadealmeida.pt/wp-content/uploads/2015/06/A-INTANGIBILIDADE-DO-CASO-JULGADO-NA-CONSTITUI%C3%87%C3%83O.pdf).
«O fundamento do caso julgado reside, por um lado, no prestígio dos tribunais, o qual “seria comprometido em alto grau se mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente” e, por outro lado, numa razão de certeza ou segurança jurídica [15], pois “sem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa. (…) Seria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu”.
“Se assim não fosse, os tribunais falhariam clamorosamente na sua função de órgãos de pacificação jurídica, de instrumentos de paz social”» (Ac. da RG, de 17.05.2018, José Flores, Processo n.º 1053/15.2T8GMR-C.G1, citando inicialmente Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 306, e depois Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 705).
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4.1.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
           
Concretizando, verifica-se, tendo a liquidação do activo sido declarada encerrada em 23 de Setembro de 2015, e a sentença de graduação de créditos transitado em julgado em Fevereiro de 2018, veio o Administrador da Insolvência apresentar sucessivas propostas de distribuição e rateio final, em 06 de Dezembro de 2018, em 04 de Março de 2019 e em 22 de Julho de 2021, em todas elas calculando a sua remuneração variável como correspondendo a € 46.531,84.
Mais se verifica que, não se tendo os credores e o Ministério Público oposto àquela última proposta, em 16 de Agosto de 2021 foi proferido despacho, homologando o mapa de rateio e declarando encerrado o processo de insolvência, ao abrigo do disposto no art. 230.º, n.º 1, al. a), do CIRE, com os efeitos a que aludem as als. a e b), do n.º 1, do art. 233.º seguinte.
Por fim, verifica-se que este despacho transitou em julgado, por nenhum dos interessados dele ter interposto recurso.
Logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, ficou desde então definitivamente fixada a remuneração variável do Administrador da Insolvência, no valor de € 46.531,84.

O entendimento exposto mostra-se reforçado pelos requerimentos do Administrador da Insolvência de 27 de Outubro de 2021 e de 27 de Janeiro de 2022, onde volta a afirmar que o montante que tem a receber a título de remuneração variável é de €46.531,84 e insiste pelo seu recebimento (afirmando nomeadamente que, se «as contas foram aprovavas então o AI tem que receber, bem como entregar ao estado a parte do IVA»); e pelo despacho proferido em 28 de Janeiro de 2022, que ordenou a notificação da «credora adquirente Ca... Construtores, S.A. com vista a proceder ao pagamento, no prazo de 10 [dez] dias, do valor adicional devido pela mesma de € 43.975,45», necessários para a concretização daquele pagamento.
Este despacho também transitou em julgado, por nenhum dos interessados dele ter interposto recurso.
Logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, o requerimento do Administrador da Insolvência, de 29 de Julho de 2022, a pedir que lhe fosse fixada a remuneração variável no valor de € 307.589,92, teria que ser desconsiderado; e o posterior despacho, de 22 de Novembro de 2022, que fixou «a remuneração variável no valor calculado pelo AI», violou o caso julgado formado anteriormente sobre a mesma matéria, já que foi o próprio Tribunal a quo quem actuou de forma conforme com a sua fixação no valor pedido de € 46.531,84 (nomeadamente, homologando em 16 de Agosto de 2021 a proposta de rateio e distribuição de 22 de Julho de 2021, onde aquela constava como tal, e ordenando em 28 de Janeiro de 2022 que a credora reclamante procedesse ao depósito da quantia necessária àquele pagamento).
*
Dir-se-á, porém, que ainda que assim se não entendesse, a actual pretensão do Administrador da Insolvência, de ver calculada a sua remuneração variável à luz da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, consubstanciaria um manifesto abuso de direito seu.
Precisa-se que a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, alterou diversas disposições do CIRE e do Estatuto do Administrador Judicial (doravante EAJ), aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro; e que, segundo o que nela se dispõe, é imediatamente aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (art. 10.º respectivo), que coincidiu com o dia 11 de Abril de 2022 (art. 12.º respectivo).
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4.2. Abuso de direito
4.2.1. Definição

Lê-se no art. 334.º, do CC, que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Está-se, assim, perante situações em que a invocação ou o exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça [16]. O instituto assenta, por isso, na existência de limites indeterminados à actuação jurídica individual, resultantes da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito exercido.
Trata-se de uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais com que o legislador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que redundaria o exercício de um direito por lei conferido (Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, pág. 63) [17].
Pretende-se ainda com ele assegurar expectativas e direccionar condutas (uma das funções primárias do Direito): assegurar, por um lado, a confiança fundada nas condutas comunicativas das «pessoas responsáveis», assente na própria credibilidade que estas condutas reivindicam; e, por outro, dirigir e coordenar dinamicamente a interacção social e criar instrumentos aptos a dirigir e coordenar essa interacção, por forma a alterar a possibilidade de certas condutas no futuro. Ambas as funções relacionam-se com aquela «paz jurídica» que, ao lado da «justiça» é referida como uma das expressões da própria «ideia de direito» (Baptista Machado, Obra Dispersa, Volume I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, pág. 346).

A lei utiliza aqui, propositadamente, conceitos indeterminados («boa fé», «bons costumes», «fim social ou económico do direito») como modo privilegiado de atribuir ao aplicador intérprete - maxime ao juiz - instrumentos capazes de promover, no caso concreto, uma busca mais apurada da justiça (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, Almedina, pág. 198) [18]

Adoptou-se, ainda, uma concepção de abuso de direito «objectiva», isto é, «não é necessária a consciência de se excederem, como seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites.
Isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso de direito consagrado no artigo 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido. A consideração destes factores pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 298).

Exige-se, porém, que o excesso cometido seja «manifesto», isto é, que o direito em causa tenha sido exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, por a invocação e aplicação de um preceito concreto da lei, válida para o comum dos casos, resultar na hipótese concreta intoleravelmente ofensiva do sentido ético-jurídico dominante na colectividade (boa fé e bons costumes), ou desvirtuar os juízos de valor positivamente nele consagrados (fim social ou económico).

Concluindo, o abuso do direito pressupõe, logicamente, a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), e que o titular respectivo se exceda no exercício dos seus poderes. «A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deva ser exercido» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 300).
Verificando-se, a reação correcta da ordem jurídica corresponde à paralisação desse exercício, isto é, tudo se passa na prática como se o titular do direito que o exerce abusivamente afinal não o tivesse [19].
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4.2.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

Concretizando, verifica-se     que, tendo a liquidação do património da massa insolvente sido declarada encerrada em 23 de Setembro de 2015, e tendo a sentença de verificação e graduação de créditos transitado em julgado em Fevereiro de 2018, só em 06 de Dezembro de 2018, e depois de várias insistências por parte do Tribunal a quo, é que o Administrador da Insolvência veio apresentar a proposta de distribuição e de rateio final, nos termos do art. 182.º, do CIRE.
Mais se verifica que, apurando-se a necessidade de corrigir a dita proposta de distribuição e rateio, e surgindo uma segunda em 04 de Março de 2019, após reclamação apresentada à mesma foi necessário esperar mais de dois anos para que o Administrador da Insolvência apresentasse uma terceira e definitiva, em 22 de Julho de 2021, depois de múltiplas insistências nesse sentido e de, pelo menos, cinco condenações em multa por falta de colaboração com o Tribunal.
Verifica-se ainda que, sendo a terceira proposta homologada em 16 de Agosto de 2021, declarando-se ainda encerrado o processo de insolvência - cessando, desse modo, as funções do Administrador da Insolvência (conforme art. 233.º, n.º 1, al. b), do CIRE) -, o mesmo não apresentou as contas devidas nos dez dias seguintes de que dispunha para o efeito, nem pediu a prorrogação desse prazo (conforme art. 62.º, n.º 1, do CIRE); e só o fez em 29 de Julho de 2022, depois de requerimento nesse sentido da Credora Reclamante (Ca... Construtores, S.A.) e de sucessivas notificações do Tribunal, em 19 de Abril de 2022 e em 06 de Junho de 2022.
Ora, face ao exposto, verifica-se que o Administrador da Insolvência violou, voluntária e sistematicamente, os deveres que lhe estavam cometidos (respondendo o seu escritório invariavelmente, nos diversos contactos telefónicos realizados pela secretaria,  que o mesmo se encontrava ausente mas que responderia ao Tribunal logo que regressasse - conforme inúmeras cotas exaradas nos autos -, o que contudo nunca fazia); e que é nos relevantes atrasos que ele mesmo importou para os autos que exclusivamente radica a possibilidade de poder vir a beneficiar da nova fórmula de cálculo da sua remuneração variável, em vigor desde 11 de Abril de 2022.
Crê-se, assim, que ainda que lhe assistisse esse direito (pela eventual improcedência das demais considerações invocadas pela Recorrente para o negar), o seu exercício nos autos consubstanciaria um clamoroso abuso de direito, nomeadamente se pensarmos em todos os outros colegas que hajam cumprido, pontualmente, noutros processos, os seus deveres funcionais. Outro entendimento, e salvo o devido respeito por opinião contrária, redundaria num prémio à dilação injustificada dos autos, imposta por quem mais os devia impulsionar, conferindo-lhe assim uma injusta vantagem; e tanto mais injusta quanto inaplicável a todos os colegas que tenham exercido, diligente e zelosamente, as suas obrigações em processos contemporâneos e idênticos ao aqui em causa.
Logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, o requerimento do Administrador da Insolvência, de 29 de Julho de 2022, a pedir que lhe fosse fixada a remuneração variável ao abrigo do disposto na Lei n.º (alegadamente, no valor de € 307.589,92), ainda que tal direito lhe pudesse assistir, consubstancia um manifesto abuso do seu exercício; e, por isso, este teria que se ter sempre por paralisado, negando-se-lhe na prática a aplicação da actual fórmula de cálculo da dita remuneração.
*
Face ao anteriormente ajuizado, fica prejudicado o conhecimento das demais questões que constituíam o objecto deste recurso de apelação, o que aqui se declara, nos termos do art. 608.º, n.º 2, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC, o que aqui se declara.
*
Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela procedência do recurso interposto pela Credora Reclamante (Ca... Construtores, S.A.).
*
V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto por Ca... Construtores, S.A. (Credora Reclamante) e, em consequência, em

· Revogar o despacho recorrido (que fixou a remuneração variável do Administrador da Insolvência em € 307.589,92, conforme por ele peticionado), por forma a que se considere nos autos o valor de € 46.531,84 como correspondendo à remuneração variável a que o Administrador da Insolvência tem direito.
*
As custas da apelação são pelo Administrador da Insolvência (conforme art. 527.º n.º 1 e n.º 2, do CPC, e interpretação restritiva do art. 304.º, do CIRE, já que seria um absurdo que qualquer interessado num processo de insolvência pudesse interpor recurso em benefício próprio e, nele decaindo, as custas ficassem sempre a cargo da massa insolvente), na exclusiva vertente de custas de parte liquidandas (por a taxa de justiça devida pela interposição do recurso já se encontrar paga e por o mesmo não ter dado azo ao pagamento de quaisquer encargos).
*
Guimarães, 16 de Março de 2023.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;

1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;

2.ª Adjunta - Alexandra Maria Viana Parente Lopes.


[1] Lê-se no despacho em causa:
«Em face do terminus das operações de liquidação da massa insolvente, julgo encerrada a liquidação da massa insolvente - “C... - Imobiliário Unipessoal, Lda“.
Oportunamente à conta».
[2] Lê-se no despacho em causa:
«Notifique-se o Sr. Administrador com vista a prestar a informação em falta, desta vez com a cominação de condenação na multa pelo artº 417º, nº 2 do Cód. Proc. Civil».
[3] Lê-se no despacho em causa:
«Uma vez que o Administrador da Insolvência, notificado para o efeito e devidamente advertido, não cumpriu o ordenado, vai condenado em multa, que se fixa em 1 (uma) UC – cfr. artº 417º, nº 2 do Cód. Proc. Civil.
D.n..
*
Notifique-se o Sr. Administrador com vista a prestar a informação em falta, mais uma vez com a cominação de condenação na multa prevista pelo artº 417º, nº 2 do Cód. Proc. Civil.».
[4] Lê-se no despacho em causa:
« Homologa-se o mapa de rateio elaborado nos autos.
Notifique o/a Administrador/a de Insolvência para proceder aos competentes pagamentos, fazendo disso prova nos autos [art.º 183.º do CIRE].
*
Mostrando-se elaborado o rateio final, declara-se o encerramento do processo de insolvência ao abrigo do disposto no art.º 230.º, n.º 1, al. a) do CIRE, com os efeitos a que aludem as als. a) e b) do n.º 1 do art.º 233.º seguinte.
Notifique, publique e registe [art.º 230.º, n.º 2 do CIRE].
Notifique o/a Sr./ª Administrador/a para os efeitos do art.º 233.º, n.º 5 do CIRE.».
[5] Lê-se no despacho em causa:
«Visto.
Notifique-se a credora adquirente Ca... Construtores, S.A. com vista a proceder ao pagamento, no prazo de 10 [dez] dias, do valor adicional devido pela mesma de € 43.975,45.
Proceda-se entretanto ao cálculo das custas».
[6] Lê-se no requerimento em causa:
«1 - A credora Ca... Construtores, no seguimento do Despacho em resposta, irá depositar na Conta Bancária da Massa Insolvente, sob condição, a quantia de 24.500,00 euros e de 2.270,58 euros, referente ao valor que, alegadamente, foi penhorado e retirado da conta da massa insolvente.
2 - Reitera-se o “alegadamente” porque, repete-se, não foi apresentado qualquer comprovativo justificativo da saída do dinheiro da conta da MI.
3 - Conforme referido pelo Sr. AI, falta ainda justificar a saída da conta da massa insolvente do valor de €17.204,87.
4 - Relativamente a este montante a Ca... Construtores depositá-lo-á assim que que essa justificação seja apresentada no processo, em sede de prestação de contas.
5 - Com todo o respeito por opinião diversa, não poderá a Ca... Construtores depositar algo que poderá vir a mostrar-se não devido por falta de justificação.
6 - É que o Sr. AI ainda não prestou contas nos termos do artigo 62.º, n.º 1 do CIRE e
7 - o pedido de certidão efetuado nos presentes autos em 07.03.2022, por parte do DIAP ..., apela a critérios de cautela, nomeadamente quanto ao envio/não envio dos extratos bancários por parte do Banco 1... ao Sr. AI e quanto aos movimentos operados na conta bancária da MI
8 - Assim, e porque com o encerramento do processo de insolvência cessam as funções do Sr. AI,
Requer-se a V.ª Ex. seja o Sr. Administrador notificado para prestar contas nos termos do n.º 1 do artigo 62.º do CIRE».
[7] Lê-se no despacho em causa:
«Notifique-se o AI com vista a prestar contas nos termos do n.º 1 do artigo 62.º do CIRE».
[8] Lê-se no despacho em causa:
«Insista-se junto do AI».
[9] Lê-se no requerimento em causa:
«Eu, AA, na qualidade de Administrador da Insolvência acima melhor identificada, venho, por este meio, muito respeitosamente, apresentar o seguinte:
1. Relatório Final de prestação de contas ao abrigo do art.º 62 do CIRE (relatório já apresentado, não se verificando quaisquer alterações ao mesmo, exceto no que respeita à remuneração variável do AI);
2. Pedido de fixação da remuneração variável em função das alterações introduzidas no CIRE por força da Lei 9/2022, de 11 de janeiro e que, por lapso, não foram consideradas no relatório anteriormente apresentado.
Desta forma, a face ao apresentado,
Sou a requerer que seja fixada a remuneração variável do aqui AI, conforme apresentado, tendo em consideração a complexidade do processo e os atos que o aqui AI foi obrigado a praticar».
[10] «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).
[11] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[12] Fica paralisada a eficácia decisão contraditória proferida em segundo lugar, conforme Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, pág. 196, não sendo contudo pacífica a qualificação do vício de que padece.
[13] Neste sentido, Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, págs. 92-93.
[14] No mesmo sentido, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, págs. 713 e 714, onde nomeadamente se lê que, seja «qual for o seu conteúdo, a sentença produz, no processo em que é proferida, o efeito de caso julgado formal, não podendo mais ser modificada (…). Mas, quando constitui uma decisão de mérito (“decisão sore a relação material controvertida”), a sentença produz também, fora do processo, o efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual (…), distinguindo-se, neste, o efeito negativo da inadmissibilidade duma segunda acção (proibição de repetição: excepção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade de caso julgado)».
Ainda Miguel Teixeira de Sousa, «O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material», BMJ, n.º 325, pág. 49, onde se lê - com bold apócrifo - que «a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior», enquanto que «quando vigora como autoridade e caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior».
[15] O art. 2502.º do CC de Seabra, de 1867, afirmava cristalinamente que o caso julgado é o facto ou o direito, tornado certo por sentença de que não há recurso.
O art. 580º, n.º 2 do CPC dispõe hoje no mesmo sentido, quando afirma que tanto «a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior».
[16] Compreende-se, por isso, que se afirme que o «abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé» (Ac. do STJ, de 28.11.1996, Miranda Gusmão, CJSTJ, Ano IV, Tomo III, pág. 118).
[17] No mesmo sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição, Almedina, 1979, pág. 60; e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 298.
[18] Contudo, pode dizer-se que:
. boa fé - objectiva-se em regras de actuação (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, Almedina, págs. 180 e 182): é a consideração razoável e equilibrada dos interesses dos outros, a honestidade e a lealdade nos comportamentos e, designadamente, na celebração e execução dos negócios jurídicos (Ana Prata, Dicionário Jurídico, 2.ª edição, Almedina, 1989, pág. 78), reporta-se à correcção e lealdade (Fernando Augusto Cunha e Sá, Abuso de Direito, CEFDGCI, Lisboa, 1973, pág. 193). Por isso, agir de boa fé é «agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesse da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar» (Ac. do STJ, de 10.12.1991, BMJ, n.º 412, pág. 460).
A este propósito deverá ser tido em consideração o disposto nos arts. 227.º e 762.º, ambos do CC, que se referem à exigência da actuação de boa fé nos preliminares e formação do contrato, no cumprimento da obrigação e exercício do direito.
. os bons costumes - é conjunto de regras de comportamento sexual, familiar e deontológico, acolhidas pelo Direito, em cada momento histórico, que, não estando codificadas, provocam consenso em concreto, pelo menos nos casos limite, encontrando-se na sua concretização um grupo que se prende com princípios cogentes da ordem jurídica e outro que se liga à moral social (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, Almedina, pág. 193. No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 10.12.1991, BMJ, n.º 412, pág. 460, onde se lê que os bons costumes são «um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente, contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social»).
Logo, para se determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 299).
. o fim/função social ou económico do direito - tem a ver com a sua configuração real, a apurar através da interpretação; se um direito é atribuído com certo perfil, já não haverá direito quando o titular desrespeite tal norma constitutiva (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, Almedina, pág. 283).
[19] Neste sentido, Ac. do STJ, de 09.04.2013, Fonseca Ramos, Processo n.º 187/09.7TBPFR.P1.S1, onde se lê que «qualquer pretensão jurídica pode ser paralisada se o respectivo exercício for maculado pelo seu abuso».