A ausência de avaliação dos objectos danificados - a mera referência a “pratos não quantificados nem valorizados” – não permite a demonstração de um valor mínimo com relevo penal, impedindo a afirmação de que se mostra preenchido um crime de dano.
(sumário da responsabilidade do relator)
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório
Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número supra referido, do Tribunal da Comarca de Setúbal - Juízo Local Criminal de Setúbal, J4 – foi julgado o arguido (…) sob imputação da prática, em autoria material e em concurso real de:
-1 crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.º n.º 1, do Código Penal;
-1 crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º n.º 1, do Código Penal;
-1 crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º n.º 1, do Código Penal;
1. Absolver o arguido (...) da prática de 1 crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º n.º 1 do Código Penal [inadmissibilidade do procedimento];
2. Absolver o arguido (...) da prática de 1 crime de violação de domicílio, previsto e punido pelo artigo 190.º n.º 1 do Código Penal [concurso aparente];
3. Condenar o arguido (...) pela prática de 1 crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
4. Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido, pelo período de 1 ano e 6 meses, sujeita a regime de prova, assente em plano de reinserção social e delinear a acompanhar pela DGRSP – artigo 50.º n.º 1 e 5, artigo 53.º n.º 1 e 2 e 54.º, todos do Código Penal.
5. Condenar o arguido nas custas e encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2UC (artigo 8.º/5 do Regulamento das Custas Processuais e respectiva tabela III anexa) - artigo 513.º e 514.º do Código de Processo Penal
I. O Arguido (...) foi submetido a julgamento sob a forma de Processo Comum, perante Tribunal Singular, acusado da prática, em autoria material e em concurso real, de um crime violação de domicílio, um crime de ofensa à integridade física simples e um crime de dano, p. e p., respectivamente, pelos arts. 190.º, n.º 1, 143.º, n.º 1, e 212.º, n.º 1, todos do Código Penal.
II. Após apreciação da prova produzida nos autos, o Mmo. Juiz a quo considerou, com base nos factos provados 1), 2), 3), 9) e 10), que o Arguido (...) deveria ser absolvido o Arguido (...) da prática do crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, do Código Penal de que vinha acusado.
III. O presente recurso versa exclusivamente de matéria de Direito, residindo a discordância do Ministério Público manifestada no presente recurso, limitado à parte em que absolveu o Arguido (...) da prática do referido crime de dano, em exclusivo, no sentido em que o Mmo. Juiz a quo interpretou o art. 207.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, com referência à al. c) do seu art. 202.º, aplicável, in casu, por força do estabelecido no n.º 4 do art. 212.º do mesmo diploma legal.
IV. O Mmo, Juiz a quo considerou, em súmula, que, não se tendo apurado, em específico, o valor dos objectos que se quebraram em consequência da conduta do Arguido (...), o que impunha a conclusão de que os objectos em causa não tinham um valor superior a € 102,00, “haveria de ter sido deduzida acusação particular”, por força do estabelecido no art. 207.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, com referência à al. c) do seu art. 202.º, convocável, no caso vertente, ex vi do estabelecido no n.º 4 do art. 212.º do mesmo diploma legal, pelo que, não tendo sido deduzida, “por via da ilegitimidade do Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal nesse domínio incriminatório, a inadmissibilidade legal do procedimento, com a consequente absolvição do arguido da prática de um crime de dano, previsto e punido no artigo 212.º n.º 1 do Código Penal.”
V. Ora, o n.º 4 do art. 212.º do mesmo diploma legal prescreve, no que aqui interessa, que é correspondentemente aplicável o disposto no seu art. 207.º, ou seja, aplica-se ao crime de dano o estabelecido neste preceito legal, que determina, quanto ao crime de furto e ao crime de abuso de confiança, p. e p., respectivamente, nos arts. 203.º e 205.º, n.º 1, do Código Penal, que o procedimento criminal depende de acusação particular se “a coisa ou o animal furtados ou ilegitimamente apropriados forem de valor diminuto e destinados a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de outra pessoa mencionada na alínea a)” do mesmo preceito legal.
VI. O elemento objectivo do crime de dano consiste na destruição, danificação, desfiguramento ou inutilização de coisa alheia, não se exigindo que seja atingido um determinado valor patrimonial.
VII. A presença, na al. que nos ocupa, da conjunção conjuntiva “e” não permite que se cinda a previsão em dois segmentos distintos, sendo um deles a circunstância de a coisa ou o animal ser de valor diminuto, este entendimento sai reforçado se olharmos à circunstância de que “o dano da coisa alheia não se mostra incompatível com a sua utilização imediata e indispensável para a satisfação de uma necessidade”, como bem refere o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12-09-2017, processo 278/14.2GBABT.E1, in www.dgsi.pt.
VIII. Em suma, os pressupostos da al. b) do n.º 1 do art. 207.° do Código de Processo Penal, de que depende a atribuição de natureza particular ao crime de dano, são cumulativos.
IX. Destarte, no caso dos autos, porque apenas se encontra preenchido o primeiro segmento da al. aqui em questão, o crime de dano praticado pelo Arguido (...) tem natureza semi-pública, dependendo o respectivo procedimento criminal apenas da apresentação de queixa, pelo titular do correspondente direito, o que se verificou (cfr. fls. 22-22v. e 31-31v.), tendo, desta forma, o Ministério Público legitimidade para a promoção da acção penal, nos termos conjugados do disposto nos arts. 48.º e 49.º do Código de Processo Penal e -113.º do Código Penal.
X. Tudo visto, tendo ficado provada a matéria constante dos pontos 1), 2), 3), 9) e 10) do elenco dos factos provados, que atrás se transcreveram, a qual preenche todos os elementos do tipo-de-ilícito em causa, deverá o Arguido (...) ser agora condenado pela prática do crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, todos do Código Penal de que foi acusado nestes autos.
XI. Havendo, em consequência, que proceder à escolha da pena a aplicar e determinar a medida concreta da pena, olhando à pena compósita alternativa com que é cominado o crime de dano, ao estabelecido nos arts. 70.º, 40.º, n.º 1, do Código Penal, e ao referido pelo Mmo. Juiz a quo, no segmento da sentença aqui posta em crise relativo à escolha da pena, acerca das exigências de especial em presença, a que data vénia aderimos sem reservas, aqui o dando por reproduzido, mormente os antecedentes criminais que o Arguido (...), actualmente com 41 anos de idade, tem averbados no seu certificado de registo criminal, enunciados no ponto 13) do elenco dos factos provados, notando-se que, no que toca ao crime de dano, também as exigências de prevenção geral são elevadas, atenta a frequência com que os factos que consubstanciam a sua prática ocorrem na nossa sociedade e à leviandade com que os mesmos são praticados, denotando-se uma falta de consciencialização da ilicitude destes factos, há que aplicar ao Arguido (...), pela prática do crime em referência, uma pena de prisão.
XII. Visto isto, olhando ao estabelecido nos arts. 40.º n.º 2, e 71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, e tendo em conta que (i) que o grau de ilicitude é mediano, tendo em conta o concreto comportamento adoptado pelo Arguido (...), (ii) que a vontade criminosa do Arguido (...) é intensa, uma vez que actuou com dolo directo, tendo representado o facto que preenche o respectivo tipo de crime e agido com intenção de o realizar, (iii) que o Arguido (...) negou a prática dos factos consubstanciadores do crime ora em questão, (iv) que o seu certificado de registo criminal tem averbadas as condenações a que já se fez menção, (v) que o Arguido que se encontra inserido em temos pessoais e profissionais, como evidenciam os factos provados 11) e 12), atendendo a critérios de adequação e proporcionalidade e à moldura penal abstracta do crime in casu, julga-se adequado fixar a pena pela prática do crime de dano em não mais do que 1 ano e 6 meses de prisão, não sendo viável a sua substituição por qualquer pena de substituição, brevitatis causa atendendo ao percurso de vida adoptado pelo Arguido (...) plasmado no seu certificado de registo criminal.
XIII. Nesta sequência, visto que o Arguido (...) foi condenado, na sentença aqui em causa, no que ora interessa, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, de que também vinha acusado, não se questionando tal condenação, há-de ser agora condenado numa pena única, nos termos do disposto no art. 77.º, n.º 1, do mesmo compêndio processual, porque tal ilícito criminal se encontra em concurso real com o ilícito criminal que até agora nos ocupou.
XIV. Tendo presente o estabelecido no n.º 2 do referido art. 77.º, sendo a prática de ambos os crimes cominada com pena de prisão até 3 anos, que constituirão o seu limite mínimo, sendo igual o seu limite máximo, atenta a posição anteriormente assumida quanto à punição, in casu, do crime de dano imputado ao Arguido (...) (1 ano e 6 meses + 1 ano e 6 meses = 3 anos), a pena única a aplicar terá de ser de 3 anos.
XV. Aqui chegados, visto o disposto nos arts. 50.º, n.ºs 1 e 5, e 53.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, uma vez que aderimos integralmente, mais uma vez data venia, aos fundamentos aduzidos pelo Mmo. Juiz a quo e correspondente conclusão acerca da possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao Arguido (...) e necessidade de sujeição de tal suspensão “a regime de prova, assente num plano de reinserção social que tenha especialmente em consideração a aquisição pelo arguido de valores essenciais à convivência social”, pela prática do crime de ofensa à integridade física simples que também lhe foi imputado nos presentes autos, por ter plena aplicação quanto ao cometimento do crime de dano.
XVI. Por tudo o que se disse, a sentença proferida deverá ser, na parte que nesta sede se pôs em crise, revogada e substituída por decisão que condene o Arguido (...), em autoria material e na forma consumada, de 1 crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, e, em consequência, operando o cúmulo jurídico com a pena que já lhe foi ditada pelo crime de ofensa à integridade física simples de cuja prática também de foi acusado nestes autos, condenado na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, sujeito a regime de prova, assente num plano de reinserção social, a elaborar pela DGRSP, que tenha especialmente em consideração a aquisição pelo Arguido (...) de valores essenciais à convivência social.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso.
O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal.
B.1. Pelo Tribunal recorrido foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia (…) pelas 19H00, o arguido dirigiu-se à residência do ofendido (…), constituída por uma única divisão, sito na Rua (…) e aproveitando o facto de a porta estar aberta, entrou, sem o consentimento do ofendido, que ai se encontrava a jantar;
2) Uma vez dentro da residência, o arguido dirigiu-se-lhe de imediato, pontapeou a mesa de jantar, fazendo com que a mesma tombasse contra o ofendido que se encontrava sentado, assim determinando a respectiva queda;
3) Ao tombar, quebraram-se objectos, que se encontravam em cima da mesa, nomeadamente pratos de refeição, em quantidade e valor não apurado;
4) Quando o ofendido se encontrava no chão, o arguido desferiu-lhe pontapés em várias zonas do corpo;
5) De seguida, o arguido abandonou o local.
6) Em resultado da conduta do arguido, sofreu o ofendido ferida contusa no ombro esquerdo, traumatismo do punho direito com escoriação local, e escoriação na zona glútea esquerda, lesões essas que lhe provocaram um período de sete dias de doença, todos sem incapacidade para o trabalho.
7) Ao agir da forma acima narrada, quis o arguido entrar no domicílio do ofendido, bem sabendo que não dispunha de autorização para tal, já que aquele em momento algum havia consentido nessa entrada.
8) Agiu também o arguido com o propósito concretizado de maltratar o corpo e a saúde do ofendido, provocando-lhe dores.
9) Ao actuar da forma descrita em 2) o arguido previu como consequência necessária da sua conduta que se quebrassem os objectos que se encontravam em cima da mesa, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do respectivo dono.
10) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida pela lei penal.
Mais se provou (condições pessoais):
11) O arguido exerce a profissão de estucador, auferindo um rendimento mensal aproximado de €700,00;
12) Reside com a companheira, em casa arrendada, suportando, como contrapartida, uma renda de €150,00;
13) O arguido tem os seguintes antecedentes criminais registados:
a) Por sentença de 18 de Janeiro de 1999, no processo sumário n.º (…), 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, na pena de 140 dias de multa, pela prática no dia 17 de Janeiro de 1999, de 1 crime de condução sem carta, p. e p. pelo art. 3.º do DL 2/98, de 3 de Janeiro, convertida em 93 de prisão subsidiária, perdoada sob condição resolutiva;
b) Por sentença de 9 de Março de 2005, transitada em julgado no dia 1 de Abril de 2005, no processo sumário n.º (…), 1º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, na pena de 200 dias de multa, à razão diária de €5,00 perfazendo um total de €1.000,00, pela prática no dia 3 de Março de 2005, de 1 crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º n.º 2, do DL 2/98, de 3 de Janeiro, declarada extinta pelo cumprimento efectivo da prisão subsidiária;
c) Por acórdão de 24 de Fevereiro de 2006, transitado em julgado no dia 24 de Julho de 2006, no processo comum (colectivo) n.º (…), Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Setúbal, na pena de efectiva de 3 anos de prisão, pela prática no dia 16 de Abril de 2005 de 1 crime de roubo (do CRC consta ter sido realizado o cúmulo das penas aplicadas pela prática de 5 crimes de roubo, 1 crime de condução sem habilitação legal e um crime de desobediência), declarada extinta por decisão de 16 de Janeiro de 2009;
d) Por sentença de 19 de Novembro de 2010, transitada em julgado no dia 30 de Setembro de 2013, no processo comum n.º (…), 2º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e Comarca do Barreiro, na pena de 5 meses de prisão efectiva, pela prática no dia 19 de Setembro de 2009, de 1 crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º n.º 2 do DL 2/98, de 3 de Janeiro, declarada extinta, pelo seu cumprimento no dia 11 de Janeiro de 2018;
a) Arremessando-lhe ainda diversos objectos pertença do ofendido, tais como uma máquina de café, uma máquina de sumos, pratos, uma travessa e a própria mesa em que aquele jantava, vindo a acertar-lhe igualmente com esses objectos em diversas zonas do corpo;
b) Que os objectos partidos tenham um custo de reparação/substituição orçado em cerca de €300,00;
c) Agiu o arguido com o intuito conseguido de danificar os bens do ofendido;
«No apuramento da factualidade julgada provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na valoração critica e conjunta dos meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento, atentas as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador (artigo 127º do Código de Processo Penal).
Assim, quanto aos factos provados, o tribunal fundou a sua convicção nos depoimentos prestados por (…) (ofendido) e de (…) (presencial), na exacta medida em que os mesmo não se afastam, antes complementam, designadamente no que respeita à entrada do arguido na casa do ofendido, encontrando-se a porta aberta, que o mesmo se encontrava sentado à mesa a tomar uma refeição, que o arguido “pontapeou”/”virou” a mesa, quebrando-se objectos e, bem assim que o ofendido foi pontapeado quando se encontrava no chão.
As lesões mostram-se comprovadas no “relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal”, de fls. 16-18 e na informação clínica de fls. 23-26.
O arguido prestou declarações, apresentando uma versão dos factos que, em nada convenceu o Tribunal, sendo desprovida de qualquer sentido.
Disse ter recebido um telefonema da senhoria (com quem a testemunha (…) estaria a jantar junto à entrada da casa do ofendido quando o arguido irrompeu casa dentro), dizendo-lhe que (…) estaria a assediar a mulher, tendo-se dirigido à residência desta, chamando-o à porta, momento em que se terão “embrulhado” os dois, tendo sido o ofendido quem lhe teria arremessado objectos, tendo-o, inclusivamente perseguido com uma faca.
Instado pelo Tribunal a explicar a concreta forma de entrada na residência do ofendido, não logrou apresentar qualquer explicação razoável, referindo ter sido empurrado para fora mas que terá sido também nesse preciso momento puxado para dentro.
Enfim, para além de confusa, nada razoável de admitir e pouco coerente, mostra-se totalmente contrariada pelos depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas arroladas que, conforme já referimos, mereceram a valoração do tribunal na parte em que se mostram coerentes entre si e consentâneos com os factos apreciados no seu conjunto.
Já os factos relativos à consciência da ilicitude e à voluntariedade da sua actuação, e respectiva conformação, foram extraídos dos demais factos provados, analisados objectivamente, sendo evidente que quem agride outrem a pontapé, fá-lo com o propósito de maltratar o corpo dessa pessoa, sabendo, evidentemente que, a agressão, a entrada na residência de outrem e a acção que provoque danos em objectos que não lhe pertencem é proibida e punida por lei.
Considerou, no entanto, o Tribunal que, a intenção do arguido quando pontapeou a mesa não visava, directamente, provocar danos nos objectos que ali se encontrassem colocados, mas sim iniciar a agressão ao arguido, tal como veio a suceder, ainda que soubesse que, com a mesma, resultaria a produção necessária de danos nos objectos que ali se encontrassem.
Por fim, quanto às condições pessoais e sociais foram consideradas, nessa parte, as declarações do arguido e, no que concerne aos antecedentes criminais, foi atendido o certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 87-90.
B.2 – O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, pelo que são questões suscitadas pelo recorrente, abarcando todos os pontos referidos nas conclusões apresentadas, a existência de um crime de dano punível (conclusões iii a x) e respectiva pena (conclusões xi a xvi).
O Mmº Juiz argumentou no seu posicionamento que não se tendo apurado o valor dos objectos que se quebraram isso impunha a conclusão de que os objectos em causa não tinham um valor superior a € 102,00 e, por isso, deveria ter sido deduzida acusação particular, em vista do estabelecido no art. 207.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, com referência à al. c) do seu art. 202.º, e face ao determinado no n.º 4 do art. 212.º do mesmo diploma legal, pelo que, “por via da ilegitimidade do Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal nesse domínio incriminatório, a inadmissibilidade legal do procedimento, com a consequente absolvição do arguido da prática de um crime de dano, previsto e punido no artigo 212.º n.º 1 do Código Penal.”
O recurso assenta, na primeira questão, nos seguintes argumentos (conclusões v a vii):
V. Ora, o n.º 4 do art. 212.º do mesmo diploma legal prescreve, no que aqui interessa, que é correspondentemente aplicável o disposto no seu art. 207.º, ou seja, aplica-se ao crime de dano o estabelecido neste preceito legal, que determina, quanto ao crime de furto e ao crime de abuso de confiança, p. e p., respectivamente, nos arts. 203.º e 205.º, n.º 1, do Código Penal, que o procedimento criminal depende de acusação particular se “a coisa ou o animal furtados ou ilegitimamente apropriados forem de valor diminuto e destinados a utilização imediata e indispensável à satisfação de uma necessidade do agente ou de outra pessoa mencionada na alínea a)” do mesmo preceito legal.
VI. O elemento objectivo do crime de dano consiste na destruição, danificação, desfiguramento ou inutilização de coisa alheia, não se exigindo que seja atingido um determinado valor patrimonial.
VII. A presença, na al. que nos ocupa, da conjunção conjuntiva “e” não permite que se cinda a previsão em dois segmentos distintos, sendo um deles a circunstância de a coisa ou o animal ser de valor diminuto, este entendimento sai reforçado se olharmos à circunstância de que “o dano da coisa alheia não se mostra incompatível com a sua utilização imediata e indispensável para a satisfação de uma necessidade”, como bem refere o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12-09-2017, processo 278/14.2GBABT.E1, in www.dgsi.pt.
Parece-nos que ambas as posições assentam em perspectivas em que se olvidou aquilo que resultou provado. Por isso importa rememorar o que de relevante consta dos factos 2 e 3. Assim:
2) Uma vez dentro da residência, o arguido dirigiu-se-lhe de imediato, pontapeou a mesa de jantar, fazendo com que a mesma tombasse contra o ofendido que se encontrava sentado, assim determinando a respectiva queda;
3) Ao tombar, quebraram-se objectos, que se encontravam em cima da mesa, nomeadamente pratos de refeição, em quantidade e valor não apurado;
9) Ao actuar da forma descrita em 2) o arguido previu como consequência necessária da sua conduta que se quebrassem os objectos que se encontravam em cima da mesa, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do respectivo dono.
Numa primeira linha podemos afirmar que existe dolo necessário o que é bastante para se afirmar existente um crime de dano considerando que este é um crime doloso. E não obstante a acção se ter dirigido à mesa [factos 2) e 3)], que apenas tombou, certo é que a conduta preenche o tipo penal com o elemento subjectivo a perfeccionar-se no facto provado sob 9).
Mas sendo o crime igualmente material ou de resultado impõe-se saber qual ele seja, o resultado.
Aqui apenas se sabe que se quebraram “pratos de refeição, em quantidade e valor não apurado”. E isto é muito pouco para um resultado que se exigia ser muito mais preciso, presumindo-se não ser muito difícil avaliar uns pratos que não terão desaparecido. E se desapareceram não deveriam.
Se é certo que, partindo-se pratos preenche-se uma das condutas típicas previstas - o destruir no todo ou em parte – é imperativo que se apure o seu valor, ao menos aproximado.
E isso era realizado através de uma avaliação, um exame quantitativo, algo que sempre constava de um inquérito mas, como muitos bons hábitos, se foi perdendo, e é essencial para que se dê como provado o valor, algo a que o legislador deu extrema atenção em vários tipos penais e na norma definidora respectiva, o artigo 202º, als. a) a c) do Código Penal, a saber:
E então qual será o valor dos pratos, inexistindo avaliação? Esta a questão jurídica central nos presentes autos. E porquê? Porquanto será esse valor a definir e a afirmar o mínimo de danosidade social relevante para o crime. Inexistindo valor inexiste demonstração de um mínimo de danosidade social que permita afirmar a existência de uma conduta penalmente relevante.
Como afirma Manuel da Costa Andrade no “Comentário Conimbricense ao Código Penal” «para que o facto atinja o limiar da dignidade penal exige-se ainda: por um lado, que a coisa tenha algum valor; em segundo lugar e complementarmente, que a conduta lesiva se revista de algum relevo. Trata-se agora de um momento não escrito do tipo, que dá expressão aos princípios de proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade, segundo os quais o direito penal só deve intervir contra factos de inequívoca danosidade social.» (§ 23 a fls. 211) e «a conduta típica tem, em qualquer das quatro modalidades, de atingir limiar mínimo de danosidade social, uma exigência que configura o reverso da exigência de um valor mínimo da coisa (supra § 23)» (§ 40 a fls. 219)
Por essas e outras razões o legislador veio a estabelecer na disposição preliminar supra citada – e única - do capítulo primeiro do título dos crimes contra o património, um novo sistema definidor do conceito de valor que se não ficou por uma definição conceptual mas que desceu ao concreto aritmético por referência às Unidades de Conta.
E isso não aconteceu por acaso. Como afirma José de Faria Costa na obra supra citada e a fls. 8 a 11:
[§ 16] - O elemento típico valor constituiu, muito justamente – sobretudo a par da nova arquitectura incriminadora - o conceito que, em primeiro lugar, o legislador teve a preocupação de definir. Com efeito, se houve alguma alteração substancial, no que toca aos crimes contra o património, levada a cabo pela revisão de 1995, é indesmentível que ela se deve procurar na mudança de modelo legislativo quando olhamos e valoramos o elemento “valor” (veja-se…).
[§ 21] - Uma primeira afirmação deve, desde logo, fazer-se: a determinação conceitual por quantificação é, em si mesma, aquela que, sem sombra de dúvidas, maiores garantias dá para se chegar a um patamar susceptível de, por todos, ser identificado. Cem mil escudos são cem mil escudos e ninguém terá dúvidas de que se uma coisa for furtada e valer cem mil escudos, isto é, se as leis do mercado lhe atribuírem esse valor, está, então, determinado o valor que irá detonar as respectivas consequências jurídicas, nomeadamente existência ou não de crime qualificado (aceitando-se, por exemplo, que a qualificação se opera com um valor superior a novecentos e noventa e nove mil escudos).
[§ 23] - «Na verdade, o “valor” que se queria determinar, nos crimes contra o património, não era uma qualquer noção concebível unicamente a partir de meras qualificações axiológicas. Antes, aquele “valor” devia ser visto como uma primeira aproximação aos quantitativos que o mercado fixava (o quadro a óleo da Vieira da Silva tem um valor de mercado, que não é um valor em si mesmo; se vale mais por ser da Vieira da Silva isso é absolutamente irrelevante para o valor de mercado, rectius, o valor de mercado incorpora obviamente o dado que advém de o quadro ser de autoria da Vieira da Silva) para tudo aquilo que tem “valor” venal. Isto é: o “valor” a que se apelava não era uma pura apreensão axiológica mas, ao invés, uma realidade que se queria quantificável, muito embora sem os rigidíssimos espartilhos do modelo dos escalões.
Ora, no caso é despiciendo entrar na discussão que foi centrada como objecto do recurso e por apelo ao artigo 207º do Código Penal pois que sem identificação dos objectos e a mera referência a pratos não quantificados nem valorizados não está feita a demonstração quantitativa de um valor dos mesmos e, por isso, fica indemonstrado um valor mínimo com relevo penal.
Logo, não há crime de dano pelo que o recurso é improcedente, não obstante por razões diversas das que constam da decisão recorrida e revela-se inútil abordar a questão colocada no recurso pois que ela própria supõe a existência de um crime de dano.
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente improcedente o recurso interposto.
Sem tributação.
Évora, 14 de Julho de 2020 (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).
João Gomes de Sousa
Nuno Garcia