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VIGILANTE DE TRANSPORTE DE VALORES
DEVER DE ZELO E DILIGÊNCIA
CONFIANÇA NA RELAÇÃO LABORAL
JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
Sumário
I - Na actividade de transporte de fundos e valores é de destacar, como linha de força, a confiança, garante da segurança do sistema bancário e de crédito no seu todo, incluindo os operadores de transporte de fundos e valores. II – Neste sentido, exige-se dos operadores de transporte de fundos e valores monetários uma postura de inequívoca transparência, exercendo de forma idónea, leal e de plena boa fé a respectiva actividade, com respeito pela salvaguarda desses bens que lhes são confiados. III - A salvaguarda de tais bens impõe, por isso, regras rígidas de transporte, que os próprios trabalhadores estão obrigados a cumprir, sob pena do seu incumprimento colocar em risco os fundos e valores monetários transportados, risco esse que pode conduzir à quebra de confiança entre a instituição financeira ou de crédito e o operador a quem confiaram o respectivo transporte. IV - Logo, essa cadeia de confiança exige-se absoluta. V - Ao desrespeitar as regras de transporte de valores, determinadas pelo empregador – não viajarem, o condutor e o vigilante, no mesmo espaço da cabine do veículo -, o trabalhador viola o seu dever de zelo e diligência, no sentido de que inobservando as regras próprias da sua actividade de vigilante de transporte de valores, não coloborou com o seu empregador, ao colocar em risco os fundos e valores monetários transportados, potenciando uma quebra de confiança dos clientes da ré em relação à segurança dos valores que lhe confiaram para transporte. VI - E tal situação de risco, criada pelo comportamento do vigilante, que viajou na cabine com o condutor, colocou em crise a permanência do suporte psicológico da confiança que deve existir entre trabalhador e empregador e, insubsistindo, justifica-se a aplicação da sanção de despedimento com justa causa.
Texto Integral
Proc. n.º 4835/19.2T8PRT.P1
Origem: Comarca Porto-Porto-Juízo Trabalho J1.
Relator - Domingos Morais – Registo 868
Adjuntos – Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório 1. – B… apresentou o formulário a que reportam os artigos 98.º-C e 98.º-D, do Código de Processo de Trabalho (CPT), na Comarca Porto-Porto-Juízo Trabalho-J3. C…, S.A., frustrada a conciliação na audiência de partes, apresentou o articulado motivador do despedimento com justa causa, alegando, em resumo, que:
O A. foi admitido ao serviço da R., em 24 de Janeiro de 2000, exercendo, sob a sua direção e autoridade, as funções correspondentes à categoria profissional de Vigilante de Transporte de Valores (adiante vtv), em conformidade com a descrição de funções constante do Anexo I do C.C.T. aplicável, publicado no B.T.E. nº 38 de 15.10.2017.
Funções que desempenhou nos Serviços de Transporte de Fundos e Valores da R., sendo que à data do despedimento desempenhava tais funções como transportador de valores (TFV).
No dia 24 de Abril de 2018, o A. integrou, como transportador de valores, a tripulação da viatura de transporte de valores de matrícula ..-..-TV (adiante viatura vtv), tripulação constituída, além do ora A., pelo vigilante de transporte de valores D… (adiante vtv D1…), como condutor.
Cabendo-lhes o cumprimento da ordem de operações nº …….., a referida tripulação iniciou o serviço saindo do centro de tratamento de numerário (CTN) da R. (sito na rua …, nº …, no Porto) às 06h50, conforme relatório diário detalhado emitido pelo sistema de localização GPS … instalado na viatura vtv.
De acordo com o mesmo relatório diário, cerca de 10 minutos depois, às 07h01, percorridos que foram 10,4 km, a viatura vtv imobilizou-se na estação de serviço E…, em Vila Nova de Gaia (facto identificado como ponto 1 no mapa anexo ao referido relatório do sistema de localização GPS), durante perto de um minuto, para permitir a saída do aqui Requerente do compartimento da viatura vtv onde viaja o vtv transportador, e a sua passagem para o compartimento do vtv condutor (a cabine da viatura vtv), o colega vtv D1….
Facto que foi presencialmente constatado pelo responsável pelos serviços de transporte e tratamento de valores da Requerida, e superior hierárquico do ora Requerente, Sr F…, que na circunstância fazia o acompanhamento de fiscalização de serviço da referida viatura vtv tripulada pelo aqui Requerente e pelo colega vtv D1….
Tal paragem da viatura vtv, em local não autorizado para o efeito, bem como o acesso e permanência do vtv transportador, aqui A., no compartimento do vtv condutor (cabine), são terminantemente proibidas, conforme se encontra estabelecido nas Normas de Execução Permanente (NEP´s) de Transporte de Valores, designadamente no ponto 2.22 Proibições- Vigilante Condutor, onde se refere que “no transporte de valores são expressamente proibidos os comportamentos a seguir descritos:” alínea b) “ abrir a porta ou sair da viatura fora dos locais autorizados (Bases C… de Lisboa e Porto, Banco de Portugal, esquadra da PSP ou posto da GNR);” e na alínea e): “permitir a entrada na cabine de viaturas de 3 lugares a quem quer que seja, vigilante transportador incluído,”, concluindo-se que “o incumprimento das regras acima descritas, individualmente ou em associação, constitui infracção disciplinar grave passível de fundamento para despedimento com justa causa, …”.
E também no ponto 2.21 PARAGENS NÃO PREVISTAS NA ORDEM DE OPERAÇÕES, nas mesmas NEP’s, se refere a obrigação de “informação prévia ao Coordenador de operações, via telemóvel” (na alínea a) de qualquer dos pontos 2.21.1,2.21.2, 2.21.3 e 2.21.4), sendo sempre obrigatória a permanência de um dos tripulantes dentro da viatura.
Como o A. muito bem sabe, por ter formação profissional específica que o habilita a desempenhar funções de vigilante de transporte de valores e lhe confere o correspondente cartão profissional, é procedimento essencial, e regra fundamental, da actividade de transporte de valores, que o vigilante vtv transportador viaje no respectivo compartimento da viatura, estando-lhe expressamente proibido viajar no compartimento do vigilante vtv condutor, de modo a garantir os adequados níveis de segurança, não só da integridade física do pessoal vigilante, como também da máxima protecção dos valores transportados e à guarda da Requerida.
Assim como, também pelas mesmas razões, é procedimento obrigatório que a viatura de transporte de valores esteja permanentemente guarnecida com, pelo menos, um tripulante (condutor ou transportador), estando expressamente proibido à tripulação deixar a viatura de transporte de valores totalmente desguarnecida, sem qualquer vigilante vtv (seja condutor ou transportador) no seu interior, designadamente sem qualquer vigilante vtv no interior do compartimento do condutor.
De facto, como é do inteiro conhecimento do A., só em situações excepcionais, especialmente previstas nas Normas de Execução Permanente (NEP´s) de Transporte de Valores (nomeadamente no ponto 2.21 PARAGENS NÃO PREVISTAS NA ORDEM DE OPERAÇÕES e no ponto 2.22 PROIBIÇÕES), sempre mediante comunicação prévia ao coordenador de operações e apenas em locais expressamente autorizados (proximidade de instalações do Banco de Portugal, de esquadra da P.S.P. ou de posto da G.N.R.), é lícito ao vigilante vtv condutor abrir a porta do seu compartimento (cabine), e sair da viatura de vtv, sendo substituído nesse lugar pelo vigilante vtv transportador enquanto aquele tiver necessidade de se ausentar.
A importância do rigoroso cumprimento dos procedimentos enunciados fica bem expressa e evidente no facto de, mesmo em casos de operações STOP realizadas pelas forças de segurança pública, estar expressamente proibida a saída da viatura de vtv por parte de qualquer tripulante, conforme determinam as NEP’s de Transporte de Valores no seu ponto 2.21.4 Operações STOP, alínea b).
Porém, o A. não solicitou autorização ao coordenador de operações para sair do compartimento do transportador e entrar no compartimento do condutor (até porque saberia de antemão que lhe seria recusada), e aí realizar a viagem, nem tão pouco, posteriormente, quando lhe foi determinado que esclarecesse o motivo de realização das paragens de curta duração, registadas no relatório diário detalhado emitido pelo sistema de localização GPS …, informou o coordenador de operações de tal facto.
Aliás, pelas razões de segurança indicadas, e de acordo com os requisitos e exigências do regime jurídico da actividade de segurança privada (Lei nº 34/2013, de 16 de Maio e respectiva regulamentação, nomeadamente a Portaria nº 273/2013 de 20 de Agosto) estão as viaturas vtv dotadas de compartimentos independentes, estanques e blindados, sendo um compartimento destinado ao condutor, outro compartimento destinado aos transportadores e o terceiro, o de carga, com acesso exclusivamente pelo compartimento dos vigilantes transportadores, destinado ao volumes e valores transportados, além de possuírem sistemas de geolocalização (GPS).
O A. acedeu e permaneceu na cabine do vtv condutor durante todo o percurso até Lousã, onde a equipa deveria realizar o seu primeiro serviço, a saber uma entrega no cliente banco G…, S.A., percorrendo, assim, o A., uma distância de aproximadamente 144 km no compartimento do vtv condutor juntamente com o condutor.
Pelas 08h33, quando se encontrava a escassas centenas de metros (mais exactamente 676 m de acordo com sistema de localização GPS que equipa a viatura vtv) das instalações do G… onde deveria ser realizado o serviço de entrega, a viatura vtv imobilizou-se novamente, antes do cruzamento entre a avenida … e a rua …, na Lousã, tendo então o A. saído do compartimento do condutor e regressado ao compartimento do transportador — tentando desta forma, o aqui A., ocultar a infracção às referidas normas de execução do serviço — prosseguindo depois a viatura vtv para as instalações do G… na avenida ….
Facto registado no relatório diário detalhado emitido pelo sistema de localização GPS (estando identificado como ponto 2 no mapa anexo ao referido relatório do sistema de localização GPS), e também constatado presencialmente pelo Sr. F… e pelo gestor de zona operacional da R., Sr. H….
Realizado o serviço no G… (na avenida …, Lousã), a viatura vtv foi estacionada, pelas 08h38, algumas dezenas de metros adiante, nessa mesma avenida …, junto aos nºs ../…, ainda na Lousã, próximo de um café-pastelaria, e ali deixada abandonada, sem qualquer tripulante no interior, durante nove minutos, tendo os dois elementos da equipa transportadora de valores, o aqui Requerente e o vtv condutor D1…, saído da viatura vtv e dirigido, os dois em simultâneo, ao café-pastelaria e onde permaneceram em simultâneo durante todo aquele período de nove minutos.
Facto registado no relatório diário detalhado emitido pelo sistema de localização GPS, e também presencialmente constatado pelo Sr. F… e pelo gestor de zona operacional da R., Sr. H….
Ao saírem do café-pastelaria, o ora A. e o seu colega vtv condutor D1…, entraram, os dois, no compartimento (cabine) do condutor, retomando a marcha da viatura de vtv às 08h48.
Acresce que o A., sempre em conluio com o seu colega vtv D1… alterou a sequência de serviços/operações (“toques”) constante da ordem de operações nº …….., sem que para o efeito, como é seu dever, tenha previamente solicitado autorização ao coordenador de operações.
Por outro lado, o A. não registou as condutas acima descritas no relatório de serviço efectuado no final do serviço do dia 24 de Abril de 2018, no qual omitiu factos, nomeadamente paragens da viatura não autorizadas e a sua passagem para o compartimento do vtv condutor, saída dos dois tripulantes da viatura de vtv, deixando-a abandonada em local não autorizado, o que equivale a, pela omissão, falsificar o relatório de serviço daquele dia 24 de Abril.
Ao A. foi aplicada a sanção disciplinar de despedimento sem indemnização ou compensação prevista na alínea f) do nº 1 do Artigo 328º do Código do Trabalho, bem como na alínea f) do nº 1 da cláusula 47ª do C.C.T. aplicável.
Terminou, pedindo:
“Deve improceder, por não provado, o pedido de declaração de ilicitude ou irregularidade do despedimento, absolvendo-se a Ré de tudo quanto a este título foi peticionado.”. 2. - Notificado, o autor apresentou contestação/reconvenção, impugnando, na quase totalidade, os factos alegados pela ré, e pedindo: “1. Deve ser declarada a ilicitude do despedimento, por inexistência de justa causa. 2. Deve, em consequência, condenar-se a Ré: a. a reconhecer a subsistência e a plena vigência do contrato de trabalho com o Autor; b. a reintegrar o Autor nas suas funções e local de trabalho, com todos os direitos decorrentes do contrato de trabalho, da categoria e antiguidade, c. ou, em alternativa, se essa for a opção do Autor até à sentença, a pagar-lhe uma indemnização a calcular nos termos do artigo 331 n.º 6 do CT; d. a pagar ao Autor: i. 3.613,80€ de retribuições já vencidas; ii. 850,00€ da formação de VTV que o Autor frequentou em 2016; iii. 638,40€ de formação profissional não concedida; iv. 621,83€ das horas de formação ilegitimamente descontadas ao Autor; v. 295,66€ pelas horas trabalhadas em dias feriado vi. as retribuições vincendas até ao trânsito em julgado; vii. os juros moratórios sobre as quantias pedidas, calculados à taxa legal, desde a data do vencimento de cada retribuição mensal e desde a notificação da reconvenção quanto às demais prestações pecuniárias pedidas, até ao respectivo pagamento; e. a suportar as custas.”. 3. – A ré respondeu, concluindo:
“Termos em que se conclui como no articulado de motivação do despedimento, devendo improceder, por não provado, o pedido de declaração de ilicitude ou irregularidade do despedimento, absolvendo-se a Ré de tudo quanto a este título foi peticionado.”. 4. – No despacho saneador, a Mma Juiz admitiu a reconvenção deduzida pelo autor; saneou o processo; identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova. 5. – Realizada a audiência de discussão e julgamento, a Mma Juiz proferiu decisão: “Termos em que declaro lícito, porque com justa causa, o despedimento de que foi alvo o Autor e, em consequência, julgo improcedente a acção. Julgo parcialmente procedente a reconvenção deduzida pelo Autor e, em consequência, condeno a Ré a pagar ao Autor a quantia de €295,66 (duzentos e noventa e cinco euros e sessenta e seis cêntimos), acrescido de juros moratórios calculados à taxa legal, actualmente de 4% ao ano, desde a data do vencimento até ao respectivo pagamento. No mais, absolvo a Ré dos pedidos formulados. Custas da acção pelo Autor, e custas da reconvenção pelo Autor e pela Ré, na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio da isenção de custas de que beneficia o Autor – cfr. art.º 527.º, ns 1 e 2 do Código de Processo Civil.”. 6. – O autor, inconformado, apresentou recurso de apelação, concluindo:
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……………………………… 7. – A ré contra-alegou, concluindo:
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……………………………… 8. - O M. Público, junto deste Tribunal, pronunciou-se pela improcedência do recurso de apelação do autor. 9. - Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 657.º, n.º 2, do CPC.
Cumpre apreciar e decidir.
II. - Fundamentação de facto 1. - Na 1.ª instância foi proferida a seguinte decisão sobre a matéria de facto: “Factos provados (com interesse à decisão):
1. O Autor foi admitido ao serviço da Ré em 24 de Janeiro de 2000.
2. Exerceu, sob a direcção e autoridade da Ré, funções correspondentes à categoria profissional de Vigilante de Transporte de Valores (adiante vtv), em conformidade com a descrição de funções constante do Anexo I do C.C.T. aplicável, publicado no B.T.E. nº 38 de 15.10.2017.
3. Funções que desempenhou nos Serviços de Transporte de Fundos e Valores da Ré, sendo que à data do despedimento desempenhava tais funções como transportador de valores (TFV).
4. No dia 24 de Abril de 2018, o Autor integrou, como transportador de valores, a tripulação da viatura de transporte de valores de matrícula ..-..-TV (adiante viatura vtv), tripulação constituída, além do Autor, pelo vigilante de transporte de valores D… (adiante vtv D1…), como condutor.
5. Cabendo-lhes o cumprimento da ordem de operações nº …….., a referida tripulação iniciou o serviço saindo do centro de tratamento de numerário (CTN) da Ré (sito na rua …, nº …, no Porto) às 06h50, conforme relatório diário detalhado emitido pelo sistema de localização GPS … instalado na viatura vtv.
6. De acordo com o mesmo relatório diário, cerca de 10 minutos depois, às 07h01, percorridos que foram 10,4 km, a viatura vtv imobilizou-se na estação de serviço E…, em Vila Nova de Gaia (facto identificado como ponto 1 no mapa anexo ao referido relatório do sistema de localização GPS), durante perto de um minuto.
7. Para permitir a saída do Autor do compartimento da viatura vtv onde viaja o vtv transportador, e a sua passagem para o compartimento do vtv condutor (a cabine da viatura vtv), o colega vtv D1….
8. Facto que foi presencialmente constatado pelo responsável pelos serviços de transporte e tratamento de valores da Ré, e superior hierárquico do Autor, Sr F…, que na circunstância fazia o acompanhamento de fiscalização de serviço da referida viatura vtv tripulada pelo Autor e pelo colega vtv D1….
9. Tal paragem da viatura vtv, em local não autorizado para o efeito, bem como o acesso e permanência do vtv transportador, aqui Autor, no compartimento do vtv condutor (cabine), são terminantemente proibidas. 10. Como o Autor bem sabe, por ter formação profissional específica que o habilita a desempenhar funções de vigilante de transporte de valores e lhe confere o correspondente cartão profissional.
11. Como bem sabe que é procedimento obrigatório que a viatura de transporte de valores esteja permanentemente guarnecida com, pelo menos, um tripulante (condutor ou transportador), estando expressamente proibido à tripulação deixar a viatura de transporte de valores totalmente desguarnecida, sem qualquer vigilante vtv (seja condutor ou transportador) no seu interior, designadamente sem qualquer vigilante vtv no interior do compartimento do condutor.
12. Como é do inteiro conhecimento do Autor, só em situações excepcionais, especialmente previstas nas Normas de Execução Permanente (NEP´s) de Transporte de Valores (nomeadamente no ponto 2.21 Paragens não previstas na ordem de operações e no ponto 2.22 Proibições), sempre mediante comunicação prévia ao coordenador de operações e apenas em locais expressamente autorizados (proximidade de instalações do Banco de Portugal, de esquadra da P.S.P. ou de posto da G.N.R.), é lícito ao vigilante vtv condutor abrir a porta do seu compartimento (cabine), e sair da viatura de vtv, sendo substituído nesse lugar pelo vigilante vtv transportador enquanto aquele tiver necessidade de se ausentar.
13. O Autor não solicitou autorização ao coordenador de operações para sair do compartimento do transportador e entrar no compartimento do condutor, nem tão pouco, posteriormente, quando lhe foi determinado que esclarecesse o motivo de realização das paragens de curta duração, registadas no relatório diário detalhado emitido pelo sistema de localização GPS …, informou o coordenador de operações de tal facto.
14. O Autor acedeu e permaneceu na cabine do vtv condutor durante todo o percurso até Lousã, onde a equipa deveria realizar o seu primeiro serviço, a saber uma entrega no cliente banco G…, S.A., percorrendo, assim, uma distância de aproximadamente 144 km no compartimento do vtv condutor juntamente com o condutor.
15. Pelas 08h33, quando se encontrava a escassas centenas de metros (mais exactamente 676 m de acordo com sistema de localização GPS que equipa a viatura vtv) das instalações do G… onde deveria ser realizado o serviço de entrega, a viatura vtv imobilizou-se novamente, antes do cruzamento entre a Avenida … e a Rua …, na Lousã, tendo então o Autor saído do compartimento do condutor e regressado ao compartimento do transportador, prosseguindo depois a viatura vtv para as instalações do G… na avenida ….
16. Facto registado no relatório diário detalhado emitido pelo sistema de localização GPS (estando identificado como ponto 2 no mapa anexo ao referido relatório do sistema de localização GPS), e também constatado presencialmente pelo Sr. F… e pelo gestor de zona operacional da Ré Sr. H….
17. Realizado o serviço no G… (na avenida …, Lousã), a viatura vtv foi estacionada, pelas 08h38, algumas dezenas de metros adiante, nessa mesma avenida …, junto aos nºs ../…, ainda na Lousã, próximo de um café-pastelaria, e ali deixada abandonada, sem qualquer tripulante no interior, durante nove minutos, tendo os dois elementos da equipa transportadora de valores, o aqui Autor e o vtv condutor D1…, saído da viatura vtv e dirigido, os dois em simultâneo, ao café-pastelaria e onde permaneceram em simultâneo durante todo aquele período de nove minutos.
18. Facto registado no relatório diário detalhado emitido pelo sistema de localização GPS, e também presencialmente constatado pelo Sr. F… e pelo gestor de zona operacional da Requerida Sr. H….
19. Ao saírem do café-pastelaria, o Autor e o seu colega vtv condutor D1…, entraram, os dois, no compartimento (cabine) do condutor, retomando a marcha da viatura de vtv às 08h48.
20. O Autor, por acordo com o seu colega vtv D1… alterou a sequência de serviços/operações (“toques”) constante da ordem de operações nº ……...
21. Em cumprimento daquela ordem de operações nº …….., após o serviço/operação de entrega no G…- Lousã — efectuado entre as 08h35 e as 08h40 — o Autor devia ter realizado o serviço/operação de recolha para o cliente I….
22. Mas realizou de imediato o “toque” seguinte, de recolha no CHUC-Centro Hospitalar … (realizado entre as 09h20 e as 09h45), relegando a operação na I…, com realização prevista na ordem de operações na janela horária das 09h15/09h25, para três “toques” depois, efectuando-a entre as 10h20 e as 10h32.
23. O Autor não registou as condutas acima descritas no relatório de serviço efectuado no final do serviço do dia 24 de Abril de 2018, no qual omitiu as paragens da viatura não autorizadas e a sua passagem para o compartimento do vtv condutor, saída dos dois tripulantes da viatura de vtv, deixando-a abandonada em local não autorizado.
24. Instado pelo responsável do serviço de transporte de valores, Sr. F…, e eu superior hierárquico, a explicar as paragens da viatura vtv de matricula ..-..-TV, subscreveu o relatório datado de 04 de Maio de 2018, também subscrito pelo colega vtv D1…, declarando que:
- quanto ao ponto 1 (paragem na estação de serviço E…, em Vila Nova de Gaia), a paragem se deveu à necessidade de lavagem dos vidros da viatura;
- quanto ao ponto 2 (paragem antes do cruzamento entre a avenida … e a rua …, na Lousã), que a paragem se deveu a ida ao WC;
- quanto ao ponto 3 (paragem na avenida …, junto aos nºs ../ …, na Lousã,), que a paragem se deveu à sua ida ao WC e tomar café.
25. Por despacho de 11 de Maio de 2018, foi determinado pela Administração da C…, S.A, representada na circunstância pelo seu Presidente do Conselho de Administração, Sr. J…, a abertura de processo disciplinar ao trabalhador D…, aqui Autor.
26. Em 22 de Maio de 2018 foi recolhido o depoimento escrito do Sr. F…, trabalhador da Requerida, com a categoria profissional de Supervisor e que desempenha funções de responsável operacional do serviço de transporte de valores da Ré.
27. Em 01 de Junho de 2018, foi remetida Nota de Culpa ao Autor (recebida por este em 05.06.2018) e comunicada ao Requerente a intenção de proceder ao seu despedimento com justa causa, sem qualquer indemnização ou compensação.
28. Com a remessa da Nota de Culpa foi também comunicada a suspensão preventiva do trabalho, sem perda de retribuição, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 354º, do Código do Trabalho, dada a permanência do Autor em serviço se mostrar inconveniente, atenta a gravidade dos factos imputados na Nota de Culpa.
29. A suspensão preventiva não foi então contestada pelo Autor, que, aguardou nessa situação o desfecho do processo.
30. O Autor apresentou resposta escrita à nota de culpa, na qual reiterou o que se encontra explanado no relatório de (24.04.2018) que elaborou conjuntamente com o colega vtv condutor, D1….
31. Confirmou a paragem na estação E…, justificando-a com a sua saída da cabine da viatura, para limpar o vidro, devido a avaria das escovas do veículo, e negando que tenha saído do compartimento do transportador.
32.Confirmou a segunda paragem, justificando-a com sua a ida à casa de banho, e que tal paragem teria sido muito rápida por a casa de banho estar avariada.
33. Confirmou a terceira paragem, justificando-a com a necessidade de ir à casa de banho, tendo aproveitado o ensejo para beber um café.
34. Afirmou que a alteração da sequência das operações lhe foi comunicada pelo coordenador de operações.
35. Afirmou que todas as paragens foram feitas depois de prévio aviso, demonstrado nos registos telefónicos juntos ao processo disciplinar.
36. Questionou a utilização de dados do GPS e requer a junção aos autos da autorização da CNPD.
37. Teceu considerações sobre a acção de acompanhamento e fiscalização do serviço levada a cabo pelo supervisor F…, considerando-a inverosímil e estranha.
38. Alegou “desconhecimento directo” das NEP’s, afirmando que as cumpre “por costume e prática diária” e não por conhecimento directo das mesmas.
39. Requereu junção aos autos dos seguintes documentos:
i) do comprovativo de reparação das escovas do veículo utilizado,
ii) do relatório de serviço do dia 24.04.2018.
40. E requereu também a inquirição como testemunha do colega vtv condutor D….
41. Atendendo a que: i) a testemunha indicada pelo Requerente na resposta à Nota de Culpa é também Arguido em processo disciplinar próprio, no qual é acusado dos mesmos factos que no presente processo são imputados ao aqui Requerente; ii) no âmbito do referido processo disciplinar que lhe foi instaurado, o mesmo D… apresentou resposta escrita à Nota de Culpa que é a cópia exacta da Nota de Culpa apresentada pelo aqui Requerente (com a correspondente indicação do aqui Requerente como testemunha) e iii) o D… já havia prestado, na resposta à nota de culpa do processo em que é Requerente, as declarações e esclarecimentos sobre os factos em apreço, considerou-se desnecessária e supérflua a sua inquirição.
42. Considerou-se, porém, relevante recolher o depoimento dos trabalhadores K…, L… e M…, que desempenham funções de coordenadores de operação, e do gestor de zona operacional H…, bem como recolher esclarecimentos adicionais do responsável pelos serviços de transporte de valores, F….
43. Concluída a fase de instrução, o instrutor do processo deu como provada a matéria que consta do “Relatório Final e Conclusões” do processo disciplinar, e concluiu pela aplicação ao Requerente da sanção disciplinar de despedimento sem indemnização ou compensação prevista na alínea f) do nº 1 do Artigo 328º do Código do Trabalho, bem como na alínea f) do nº 1 da cláusula 47ª do C.C.T. aplicável.
44. A paragem na estação de serviço E…, em Vila Nova de Gaia deveu-se à necessidade de limpar os vidros da carrinha usada pelo Autor e Colega.
45. O Autor informou o Coordenador de Operações, por chamada efectuada às 7h51, comunicando que iria proceder à troca dos toques em Coimbra.
46. Por vezes a sequência de serviços/operações necessita de pequenos ajustes, uma vez que, como foi o caso, o cumprimento estrito da sequência levaria a um incremento dos quilómetros percorridos.
47. E são os próprios responsáveis pela sequência de serviços que pedem ocasionalmente para, se necessário, os condutores procederem a correcções, uma vez que não possuem o conhecimento e a experiência de campo que lhes permita escolher o melhor trajecto.
48. O Coordenador de Operações chegou a ligar ao Colega do Autor, às 8h34, após a primeira chamada acima identificada, para se inteirar da optimização da rota, tendo esta sido explicada ao longo de 17 minutos por parte do Colega do Autor, ficando aí combinado que, no final da alteração, o Coordenador veria ou não confirmada a alteração dos toques.
49. No caso em concreto, a sequência original resultaria na ida à I… e posteriormente aos CHUC, impedindo o cumprimento da janela horária de recolha do Cliente N…, que fechava às 10h15, impedindo a normal continuação do serviço no caso de não se fazer a recolha antes daquele horário.
50. Aquela janela horária, no caso de não ser cumprida, obrigaria a aguardar a nova janela sem mais serviço ou, em alternativa, um regresso posterior a Coimbra, após recolhas feitas na Anadia e na Figueira de Foz, o que acarretaria custos para a Ré, bem como o aumento de tempo de trabalho.
51. No ano de 2010, o Autor foi colocado na vigilância estática, juntamente com outros vigilantes, por motivo de perda de clientes e consequente redução de serviços de Transporte de Fundos e Valores.
52. E assim ficou a trabalhar durante cerca de 6 anos, sem prejuízo da categoria profissional de vigilante de transporte de valores e da correspondente retribuição.
53. Sendo que à época o Autor era titular do cartão profissional de Vigilante número …….., que, ao tempo, lhe permitia o desempenho não só das funções de vigilante mas também das de vigilante de transporte de valores.
54. À época, e conforme a legislação então em vigor, a obtenção e renovação dos cartões profissionais não era responsabilidade das entidades patronais, cabendo aos seus titulares fazê-lo.
55. Em 2016, na sequência de ganho de serviços de TFV foi necessário reforçar o efectivo humano nesta área, e foi dada a oportunidade ao Autor para regressar ao desempenho das funções correspondentes à sua categoria profissional, até porque era insustentável manter o Autor a desempenhar funções de vigilante, suportando para isso os custos muito mais elevados de um vigilante com a sua categoria profissional, quando já havia vaga para ele no desempenho das funções correspondentes à sua categoria profissional.
56. Era necessário, para tal efeito, face aos requisitos constantes da Portaria 148/2014 entretanto publicada, que o Requerente frequentasse curso de formação profissional especifico de vigilante de transporte de valores, e obtivesse, pela 1ª vez, cartão profissional de VTV, o que veio efectivamente a ocorrer.
57. Tendo sido, após obter cartão profissional de VTV, colocado nos serviços correspondentes.
58. Em 2016 o Autor inscreveu-se num curso de formação para obter a creditação de VTV, tendo despendido a quantia de €850,00 (cfr. doc. 4 junto com a contestação).
59. A Ré, no recibo de Dezembro de 2016 descontou-lhe 112 horas, num total de €631,83 (cfr. doc. 5 junto com a contestação).
60. O Autor, sindicalizado desde 2005, tornou-se delegado sindical nesse ano de 2016.
61. O Autor auferia o salário base de €1.054,12 a que acrescia o subsídio de alimentação de €6,84 por cada dia de trabalho efectivo.
62. Desde o despedimento, a Ré deixou de pagar retribuições ao Autor.
63. O Autor trabalhou nos seguintes dias feriados, no ano de 2015 e 2016:
- 24 de junho 2015 4h30
- 15 de agosto 2015 8h
- 5 de outubro 2015 10h30
- 1 de dezembro 2015 8h
- 8 de dezembro 2015 8h
- 01 de janeiro 2016 8h
- 25 de março 2016 8h
- 27 de março 2016 8h
- 25 de abril 2016 8h
- 1 de maio 2016 8h
- 10 de junho 2016 8h
- 5 de outubro 2016 8h
- 1 de dezembro 2016 8h
- 8 de dezembro 2016 3h30
64. Ré apenas pagou o trabalho nesses dias com acréscimo de 50%, encontrando-se em falta o valor total de €295,66.
65. Em 2013 o Autor frequentou 14 horas de formação facultada pela Ré.
66. A Ré proporcionou ao Autor formação profissional nos anos de 2014, 2015 e 2016, excedente a 35 horas por ano.
Factos não provados (com interesse à decisão)
1. O Autor informou o Coordenador de Operações, por chamada efectuada às 7h51, comunicando a paragem na estação de serviço E…, em Vila Nova de Gaia pela necessidade de limpar os vidros da carrinha usada pelo Autor e Colega.
2. A paragem realizada pelas 8h33 deveu-se a uma ida à casa de banho, a pedido do Autor, sendo que esta se encontrava fechada/avariada.
3. A paragem posterior à realização do serviço no Banco G… deveu-se ao facto de o Autor ainda necessitar de ir à casa de banho.
4. A Ré, por diversas vezes, tentou que o Autor terminasse a sua relação laboral, criando-lhe um ambiente intimidatório e ameaçador, que o fez sentir-se desprestigiado perante os colegas de trabalho.
5. Foi devido à Ré não ter solicitado a renovação do cartão de VTV (vigilante de transporte de valores), o Autor ficou sem poder exercer as funções de VTV.
6. O Autor inscreveu-se no curso referido em 51 dos factos provados porque a Ré, no ano de 2015, não quis que o Autor renovasse o cartão.
7. Endereçando-lhe cartas e colocando prazos que era impossível para o Autor cumprir, uma vez que este, apesar de se ter inscrito de imediato num curso de formação, estava dependente do timing das empresas que a prestavam.
8. Ameaçando o Autor que existiam fundamentos para a suspensão do contrato de trabalho.
9. Desde que o Autor se tornou delegado sindical a Ré tem vindo a tentar arranjar argumentos para poder despedir o Autor.
10. Ao Autor nunca foram dadas a conhecer as NEP´S, e sempre cumpriu os usos e costumes que sempre se vieram a praticar na empresa.
A demais factualidade encerra conclusões ou matéria de direito, ou mostra-se irrelevante à decisão.”.
III. – Fundamentação de direito 1. - Atento o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) e artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho (CPT), e salvo questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões do recorrente, supra transcritas.
Mas essa delimitação é precedida de uma outra, qual seja a do reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal recorrido, isto é, o tribunal de recurso não pode criar decisões sobre matéria nova, matéria não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.
2. - Objecto do recurso:
- Da modificabilidade da decisão de facto
- Da (i)licitude do despedimento, com as consequências legais daí decorrentes, tendo em conta o pedido reconvencional deduzido pelo autor.
3. - A modificabilidade da decisão de facto. 3.1. - Atento o disposto no artigo 662.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Para o efeito da alteração da decisão de facto, o artigo 640.º, do novo CPC, dispõe:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo da possibilidade de poder proceder à respectiva transcrição dos excertos que considere relevantes; (…)”. 3.2. - Em comentário ao citado artigo, António Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, páginas 126, 127 e 129, escreve que “(…) O recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos (…); (…), pretendendo o recorrente a modificação da decisão da 1.ª instância e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção da prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos regras muito precisas (…)”, acrescentado ainda que “(…) as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo (…)”.
A jurisprudência do STJ, quanto ao ónus que recai sobre o recorrente que pretenda ver impugnada a matéria de facto, defende que se exige do recorrente que dê cumprimento ao ónus de alegação, devendo obrigatoriamente especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.
[Cf., também, sobre esta matéria, Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil”, pág. 465 e que, nesta parte, se mantém actual].
No acórdão do STJ, de 09.07.2015, in www.dgsi.pt, foi escrito:
“Como também se teve já a ocasião de observar (cfr. “Notas sobre o novo regime dos recursos no Código de Processo Civil”, in O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina para a compreensão do novo Código de Processo Civil, caderno I, Centro de Estudos Judiciários, Dezembro de 2013, pág. 395 e segs)., a reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis, aliás modificado significativamente pouco tempo antes, pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto; mas teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República, de cuja aprovação veio a resultar o actual Código de Processo Civil, disponível em www.parlamento.pt.
Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995.
Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente:
- Manteve a indicação obrigatória “dos concretos pontos de facto” que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),
- Manteve o ónus da especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” (al.b), - Exigiu ao recorrente que especificasse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c), sob pena de rejeição do recurso de facto.”.
A interpretação desta nova alínea c), do artigo 640.º, do CPC, é-nos dada por Abrantes Geraldes, podendo ler-se a este propósito que:
“O Recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem no reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente…”.
[Cf. António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2014, 2ª Edição, pág. 133].
Neste sentido, o acórdão STJ, de 07.07.2016, in www.dgsi.pt, considerou que:
“I.- Para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorrectamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre aqueles concretos pontos de facto, conforme impõe o artigo 640º, nº 1, alíneas a) e c) do CPC. II. - Não tendo o recorrente cumprido o ónus de indicar a decisão a proferir sobre os concretos pontos de facto impugnados, bem andou a Relação em não conhecer da impugnação da matéria de facto, não sendo de mandar completar as conclusões face à cominação estabelecido naquele nº 1 para quem não os cumpre.”. (negrito nosso).
Apreciemos. 3.3. - Em sede de impugnação da decisão sobre matéria de facto, mais concretamente nas conclusões de recurso, o autor alegou na conclusão 5.ª: “5. O Trabalhador reclama a alteração de alguns pontos que, apesar de serem dados como assentes, não possuem correspondência com a prova produzida em sede de audiência de julgamento e/ou são apenas conclusões.
E nas conclusões 6.ª a 17.ª indicou quais os factos impugnados, os factos constantes dos pontos 7, 8, 12, 13, 14, 15, 17, 19 dos factos provados.
No entanto, só especificou a “decisão proposta”, de “não provado”, em relação aos pontos 7, 8, 12, 14, 15, 17 e 19 dos factos provados – cf. conclusões 6.ª, 11.ª, 14.ª, 7.ª, 15.ª, 17.ª e 18.ª, respectivamente.
Assim, por incumprimento do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, rejeita-se a impugnação referente ao ponto 13 dos factos provados. 3.4. – Dos pontos 7, 8, 12, 14, 15, 17 e 19 dos factos provados. 3.4.1. - O autor pretende que tais pontos da matéria de facto sejam dados como não provados, indicando para o efeito o seu depoimento de parte e o depoimento da testemunha D1…, colega do autor, e o condutor do veículo em causa. 3.4.2. - Ouvida toda a prova pessoal gravada, mormente, os depoimentos testemunhais indicados pela recorrente, e analisados os documentos juntos aos autos, nada a objectar quanto ao decidido na 1.ª instância, sobre os pontos de facto, ora impugnados.
A Mma Juiz, respeitando os princípios da imediação, da oralidade e da apreciação livre da prova - cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC -, formou a sua convicção acerca dos factos inseridos nos pontos da matéria de facto ora impugnados, conjugando as provas documental e testemunhal, como resulta do despacho de motivação:
“Os factos provados em 7, 8, 14, 15, 16, 17, 18 e 19, além de as paragens ali aludidas resultarem do relatório de fls. 35, não tendo sido impugnadas, resultam do depoimento das testemunhas F…, supervisor do C…, que na altura era responsável máximo no transporte de valores, e explicou que fez uma acção de fiscalização, por já haver desconfianças, tendo seguido o veículo em causa desde a Base (no Porto) até à Lousã, tendo presenciado a factualidade dada por provada e H…, responsável pelas operações de vigilância do C… na zona centro, que referiu ter sido contactado pela testemunha F… que lhe transmitiu que na viatura em causa seguiam os 2 vigilantes à frente, tendo-se encontrado com este na estação de serviço O…, após o que seguiram a viatura até à Lousã, tendo confirmado os factos constantes dos pontos 14, 15, 17 e 19, que presenciou, conjugados com as declarações do Autor. Este explicou o transportador viaja sempre num compartimento separado do condutor por uma blindagem. No caso da viatura em causa, tal compartimento situava-se entre a cabine do condutor e o cofre, mas há viaturas em que é ao lado do condutor. Explicou também que sempre que a viatura pára (desliga o motor) há um reporte para o GPS, e sempre que alguém abre a porta da cabine do condutor, o motor pára e há um reporte para o GPS. Por fim, referiu que o condutor nunca sai da cabine e as portas do compartimento do transportador e do cofre remotamente.
Considerando estas explicações do próprio Autor, quanto ao funcionamento da viatura, bem como o relatório de GPS de fls. 35, deu-se credibilidade aos depoimentos daquelas testemunhas F… e H…, pois, em todas as paragens assinaladas naquele relatório, é de concluir que o motor da viatura foi desligado. Assim, na paragem de Vila Nova de Gaia, só se justifica a paragem do motor por ter sido aberta a porta da cabine do condutor, para o Autor entrar, como referido por aquelas testemunhas.
Que outra justificação tinha a paragem do motor, sabido que o condutor não pode abandonar a cabine e que deve manter a viatura sempre ligada? (o que era do conhecimento dos dois vigilantes, como melhor infra se explicitará). Também é perfeitamente incoerente a justificação da testemunha D1…, condutor da viatura, referindo que nesta paragem desligou a viatura para poupar combustível, quando é norma de segurança nunca desligar a viatura, a não ser em casos excepcionais expressamente previstos, que não era o caso.
Não se desconsidera que o Autor possa, nesta paragem de Vila Nova de Gaia, ter procedido à limpeza dos vidros da viatura. Porém, não se tem quaisquer dúvidas que depois entrou para a cabine do condutor, pois só assim se justifica a paragem do motor da viatura, tendo seguido neste lugar até à Lousã, como confirmado por aquelas testemunhas, que presenciaram tal facto.
De igual modo, o facto referido em 15, referente à paragem antes do cliente G…, em que o motor foi necessariamente desligado (só assim havendo reporte ao GPS) apenas apresenta justificação para permitir a passagem do Autor para o seu compartimento, não merecendo qualquer credibilidade a justificação dada, de o Autor necessitar de usar o WC, até porque tal facto foi presenciado pelas mesmas testemunhas.
Os factos referidos em 17 e 19, igualmente presenciados pelas mesmas testemunhas, também só assumem credibilidade nos termos em que foram dados por provados, pois que outra explicação haveria para a viatura ter estado parada (com o motor desligado) durante 9 minutos? Não assumiu qualquer credibilidade a tese do Autor no sentido de ter ido ao Wc, pois poderia ter pedido no cliente G… para usar o Wc.
Os factos provados em 9 a 12, referentes ao conhecimento que o Autor tem das normas que regem a actividade e que proíbem a paragem da viatura vtv em local não autorizado para o efeito; o acesso e permanência do vtv transportador no compartimento do vtv condutor (cabine); a saída do vtv condutor da cabine da viatura; resultam desde logo de o Autor exercer desde 2000 as funções de vigilante de transporte de valores, embora com um interregno a partir de 2009, durante 6 anos, e do facto de ter formação profissional específica que o habilita a desempenhar tais funções, dado ter frequentado um curso para o efeito, como o mesmo refere e dado por provado em 58.
Além do mais, P…, legal representante da Ré, referiu que as Normas de Execução Permanente (NEP´S) são dadas a conhecer aos vigilantes; a testemunha L…, vigilante na Requerida, referiu ser impossível o Autor não conhecer tais normas, uma vez que todos os vigilantes fazem um estágio onde lhes é dado a conhecer estas regras; a testemunha F… referiu que todos os vigilantes têm um curso de formação em que lhes é explicado o regime jurídico da vigilância privada.
As testemunhas Q… e S…, todos vigilantes da Ré, referiram que nunca lhes forneceram as NEP´s, a não ser há cerca de 1 ano, contrariamente à testemunha T…, vigilante da Ré, e também arrolada pelo Autor, que referiu que as NEP´s lhes são fornecidas logo no início. Não obstante, tais testemunhas confirmem que as paragens não programadas têm que ser comunicadas e constar do relatório (Q… e S…); o motor da viatura deve estar sempre ligado (T…).”.
Ora, se é certo que a súmula pessoal da gravação dos depoimentos, referenciados pelo recorrente nas suas alegações de recurso, são uma parte da prova testemunhal prestada em audiência de julgamento, não podem, contudo, ser valoradas de per si, sendo necessário formular um juízo global que abarque todos os elementos em presença, isto é, toda a prova documental e testemunhal carreada para os autos.
E esse juízo global, formulado na 1.ª instância, só poderia ser contrariado, em sede de recurso da matéria de facto, por elementos de prova seguros, consistentes e convincentes, que impusessem decisão diversa, como estatui o citado artigo 662.º, n.º 1 do CPC, o que não é o caso dos autos.
A Mma Juiz formou a sua convicção com base no depoimento das testemunhas F… e H…o, que seguiram a viatura conduzida pela testemunha D1…, no dia 24 de abril de 2018, desde a estação de serviço E… (onde o autor admite terem parado) - o F… -, e ambos desde a estação de serviço O… até à Lousã, destino do autor e da testemunha D1….
F…: “(…), aluguei uma viatura e pus-me à espera que a viatura saísse do centro de tratamento e fui atrás dessa viatura, da viatura de transporte de valores. A viatura de transporte de valores saiu, perto das 7 horas da manhã da base, e parou na estação de serviço E…, a seguir à …. A viatura parou aí e o senhor B… saiu do carro. Eu estava na traseira da viatura, à entrada da bomba e depois entrou na viatura da parte da frente. Entrou dentro da viatura juntamente com o senhor D…, que era o condutor, e seguiram viagem. Seguiram viagem, eu pouco depois daquilo continuei atrás deles. Liguei ao senhor H…, ultrapassei a viatura antes da estação U…, onde entrei e subi um bocadinho a relvazinha que aquilo tem, que aquilo tem um desnívelzinho para a auto-estrada e vi-os e vi passar a carrinha. Fui outra vez atrás da carrinha e um bocado antes da …, ultrapassei-os e fui até à estação O… onde apanhei o senhor H…. Continuamos atrás da viatura, saímos da auto-estrada para uma via rápida, em direcção à Lousã, entramos dentro da Lousã e a carrinha parou antes do seu primeiro serviço, uns 200/300 metros, num cruzamento, e o senhor B… saiu do compartimento do condutor e entrou para o compartimento do transportador. Pararam depois, em frente ao G…, fizeram o serviço de entrega e arrancaram; fomos logo atrás e a carrinha estava parada, em frente, a uma pastelaria; num prédio, uns mais 200 ou 300 metros mais à frente, vimos o senhor B… e o senhor D… entrarem dentro da carrinha e a arrancarem”.
H…: “Eu estava à espera – do “Senhor F…” – na estação de serviço O…. Entretanto passou a carrinha com os dois funcionários à frente. O Senhor F… apanhou-me e fomos, entrei com o F…, e fomos fazer o percurso sempre atrás da carrinha, passávamos, voltávamos atrás para verificar se de facto iam os dois à frente ou não. Verificou-se, fizemos o percurso sempre até á Lousã. Aonde na avenida no antigo junto ao tribunal…”.“Chegamos á Lousã e junto ao antigo hospital, centro de saúde …, a carrinha parou, sai um funcionário do C… e passa para trás da carrinha e depois… acabam de fazer o serviço de entrega de transporte de valores no banco e estacionam junto a um café/pastelaria. Saíram os dois funcionários e foram os dois até ao café. Demoraram mais ou menos 10 minutos. Regressaram juntos à carrinha e entraram para a carrinha, à frente. Os dois, à frente e arrancaram. Fomos atrás até à saída da Lousã, depois eles deviam ter apanhado a auto-estrada e nós viemos pela estrada da beira”.
Ora, com todo o respeito, a contraprova apresentada pelo autor, para esta parte da impugnação da matéria de facto, só seria juridicamente determinante se tivesse demonstrado que, no dia 24 de abril de 2018, na deslocação à Lousã, não poderiam ter sido seguidos pelas testemunhas F… e H…, por um qualquer impedimento absoluto de ambos. Ora, o autor não fez prova de qualquer tipo de impedimento dessas testemunhas, no referido dia 24 de abril de 2018.
Deste modo, na falta de elementos de contraprova seguros e convincentes, em sede de impugnação, improcede a alteração da decisão de facto relativamente aos pontos 7, 8, 12, 14, 15, 17 e 19dos factos provados.
4. - Da (i)nexistência de justa causa de despedimento. 4.1. – Sobre a questão da justa causa, a sentença recorrida pronunciou-se nos seguintes termos: “(…). Será perante a factualidade imputada ao Autor pela Empregadora e apurada nos autos que o Tribunal, por força do disposto no artigo 387.º n.º 3 do Código do Trabalho, poderá e deverá aquilatar quanto à existência ou não de justa causa para o despedimento. Com efeito, resulta também da factualidade apurada que o Autor sabia que, por razões de segurança, as viaturas vtv são dotadas de compartimentos independentes, estanques e blindados, sendo um compartimento destinado ao condutor, outro compartimento destinado aos transportadores e o terceiro, o de carga, com acesso exclusivamente pelo compartimento dos vigilantes transportadores, destinado ao volumes e valores transportados (como resulta da Lei nº 34/2013, de 16 de Maio e respectiva regulamentação, nomeadamente a Portaria nº 273/2013 de 20 de Agosto) uma vez que tal conhecimento foi por ele confirmado nas suas declarações. Assim, sabia que não poderia circular no mesmo compartimento do condutor. Não desconhecia, ainda, que o condutor nunca pode sair da viatura, que não pode ser desligado o motor e, por isso a viatura não ser deixada estacionada, sem condutor ou transportador no seu interior, independentemente de as NEP´s lhe terem sido formalmente dadas a conhecer, ou não, pois decorre do contexto dos autos e em concreto das declarações do próprio Autor que o mesmo não poderia desconhecer, como não desconhecia, estas normas “básicas” referentes às funções que exercia desde o ano de 2000, embora com um interregno de 6 anos, e para as quais teve formação específica em 2016. A factualidade provada é geradora, efectivamente, de responsabilidade disciplinar do Trabalhador, aqui Autor, que, assim, violou os deveres que sobre o mesmo impendem, previstos nas alíneas e) e f) do n.º 1 do art.º 128.º do Código do Trabalho. No desempenho das suas funções o Requerente está obrigado a cumprir as ordens e instruções emitidas pela entidade empregadora e ou pelos superiores hierárquicos e executar, de harmonia com as suas aptidões e categoria profissional, as funções que lhe foram confiadas, deveres que resultam do Código do Trabalho, na alínea e) do nº 1, do artigo 128.º, bem como o dever de “guardar lealdade ao empregador”, previsto na alínea f) do mesmo nº 1 do artigo 128º.”.
(…). No caso dos autos, com as condutas praticadas e dadas por provadas, o Autor não cumpriu os deveres a que estava obrigado, pelo que se pode concluir, como fez a entidade empregadora, que violou, de forma grave, os deveres laborais a que estava obrigado, nomeadamente o dever de obediência, ao não cumprir, repetidamente, regras essenciais de execução do serviço de transporte de valores e já referenciadas, e o dever de lealdade, ao não prestar, com verdade e rigor, aos seus superiores hierárquicos as informações e esclarecimentos que lhe haviam sido pedidos em duas ocasiões (relatório de serviço de 24.04.2018, e informação de serviço de 04.05.2018). A confiança que a entidade empregadora deposita no trabalhador e na sua prestação de trabalho é um requisito fundamental para a estabilidade e subsistência da relação laboral. Em actividades como a Segurança Privada, pela própria natureza desta, tal requisito de confiança reveste um superior grau de relevo e de exigência, assumindo uma expressão ainda mais elevada no desempenho da função de transporte de valores. Ao adoptar os comportamentos descritos, há que concluir que o Autor colocou irreversivelmente em crise a confiança nele depositada pela sua entidade patronal, afectando de forma insanável a relação laboral, não sendo exigível à sua entidade patronal a manutenção do contrato de trabalho, atenta a quebra de confiança e a gravidade do comportamento do Autor.”. 4.2. – Em sede de recurso, o autor/recorrente alegou, em síntese:
“30. Os fundamentos para a interposição deste recurso assentam na inexistência de factos efetivamente praticados pelo Trabalhador e que justificam tal despedimento. 31. Repete-se que mesmo que tais factos tenham sido praticados (hipótese que colocamos de forma meramente académica), não são suficientes graves para despedir o Trabalhador.”. Quid iuris? 4.3. - No âmbito do seu poder disciplinar (cf. artigo 98.º do CT), a ré imputou ao autor, na nota de culpa, a violação dos deveres de zelo e diligência e obediência – cf. artigo 128.º, n.º 1, alíneas c) e e) -, e enquadrou a sanção disciplinar de despedimento aplicada, na previsão do artigo 351.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e d) do CT.
O artigo 128.º, n.º 1, do CT, enumera os deveres do trabalhador, como, por exemplo, o de realizar o trabalho com zelo e diligência e cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho. 4.3.1. – Do dever de obediência.
O dever de obediência está previsto no artigo 128.º, n.º 1, alínea e), nos seguintes termos: “o trabalhador deve: e) Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias;”.
O dever de obediência é o contraponto do poder de direcção do empregador, isto é, o poder que tem de fixar os termos em que deve ser prestado o trabalho, dentro dos limites decorrentes do contrato e das normas que o regem (cf. artigo 97.º do CT).
O dever de obediência representa o corolário mais significativo da subordinação jurídica, assumindo-se, como posição passiva do poder de direcção atribuído ao empregador. O poder de direcção é susceptível de desdobramento num: (i) poder determinativo da função; (ii) poder confirmativo da prestação; (iii) poder regulamentar e poder disciplinar - cf. Monteiro Fernandes, em "Direito do Trabalho", 12.ª edição, págs. 250 e segs..
Na separata do BMJ, de 1979, pág. 221, sob o título, Poder disciplinar, José António Mesquita escreveu “Que o poder directivo tem sido definido como a faculdade de determinar as regras, de carácter prevalentemente técnico-organizativo, que o trabalhador deve observar no cumprimento da prestação ou, mais precisamente, o meio pelo qual o empresário dá uma destinação concreta à energia do trabalho (física e intelectual) que o trabalhador se obrigou a pôr e manter à disposição da entidade patronal (...)”.
Como refere Maria do Rosário Palma Ramalho, in Direito do Trabalho – Parte II Situações Laborais Individuais, 3.ª Edição, Almedina, 2010, p. 415, “em termos extensivos, este dever envolve o cumprimento das ordens e instruções do empregador «respeitantes à execução ou disciplina no trabalho (…)”, pelo que “o trabalhador deve obediência não apenas às directrizes do empregador sobre o modo de desenvolvimento da sua actividade laboral (ou seja, o poder directivo), mas também às directrizes emanadas do poder disciplinar prescritivo, em matéria de organização da empresa, de comportamento no seu seio, de segurança, higiene e saúde no trabalho, ou outras”. 4.3.2. - Dever de zelo e diligência.
Nos termos do artigo 128.º, n.º 1, alínea c), o trabalhador tem o dever de “Realizar o trabalho com zelo e diligência”.
O trabalhador, como devedor de uma relação obrigacional, está adstrito a executar a prestação de trabalho, com diligência, realizando “a prestação com a atenção, o cuidado, o esforço e as cautelas razoavelmente exigíveis” - cf. Jorge Leite, in Direito do Trabalho, Lições policopiadas, FDUC, vol. II, pág. 96.
“Trata-se de um dever que releva no domínio da vontade, diferentemente do que sucede com a inaptidão ou imperícia que se inscrevem na esfera da capacidade natural (física ou psíquica) do trabalhador e da sua capacidade técnico-profissional” – cf. Jorge Leite/Coutinho de Abreu, Colectânea de Leis do Trabalho, pag. 69.
O grau de diligência deve aferir-se pelo critério do trabalhador normal colocado na situação concreta, sendo “que este critério objectivo de normalidade de deve temperar com elementos subjectivos, já que o grau de diligência exigível pode variar em função de factores individuais, como a idade, a experiência, a fadiga, etc.”. cf. Jorge Leite, obra citada, vol. II, pág. 96.
Nas palavras de Júlio Gomes, “o contrato de trabalho implica ou coenvolve a personalidade do trabalhador, pelo que a sua prestação de trabalho é a "síntese ou o resultado de diversas componentes que respeitam a esfera da capacidade física, intelectual ou moral do trabalhador". A diligência faz apelo a uma atitude pessoal e voluntarista do agente ao cumprir a sua obrigação contratual; tendo em conta a inevitável "pobreza da linguagem jurídica", o melhor método de precisar O conteúdo da diligência parece ser, desde logo, o de ter em conta o seu sentido na vida social em que um comportamento diligente é um comportamento cuidadoso, escrupuloso, atento, esforçado. Uma vez que na responsabilidade contratual o padrão de aferição da diligência exigível é hoje, entre nós, objectivo, parece que também aqui haverá que atender ao padrão do bom pai de família, embora colocado na situação concreta do trabalhador em jogo, isto é, à natureza das funções que o trabalhar realiza e, porventura, até mesmo à empresa em que se insere e, inclusive, à sua própria posição hierárquica. Fala-se aqui, por vezes, de uma diligência profissional, referência que não pretende alterar, nem muito menos subverter, a concepção tradicional de diligência, mas antes especificá-la, chamando a atenção para a necessidade de o trabalhador se comportar como um bom profissional, observando, por exemplo, as regras da arte próprias da sua especialização. Nas palavras de Renato Scognamiglio, o conceito de perícia parece inseparável do de diligência, fazendo apelo aos conhecimentos e experiências requeridas para a correcta execução da prestação de trabalho. À noção de diligência não é também estranha a ideia de colaboração ou cooperação com o empregador para quem entenda, como nós, que, dentro de certos limites, tal ideia domina necessariamente o desenvolvimento concreto da prestação de laboral”– cf. Júlio Gomes, in Direito do Trabalho, vol. I, pág. 544 e segs..
No dizer de João Moreira da Silva, in Direitos e Deveres dos Sujeitos da Relação Individual de Trabalho, “o trabalhador deve efectuar a prestação de trabalho com zelo e diligência, isto é, pondo na execução das tarefas que representam o cumprimento do seu dever um esforço de vontade e correcta orientação adequadas ao cumprimento da prestação a que está vinculado”.
A prestação de trabalho tem natureza contratual e, como tal, está sujeita ao princípio geral sobre o cumprimento das obrigações, “considerando-se que o devedor cumpre a sua obrigação quando, procedendo de boa fé, realiza a prestação a que está vinculado, devendo essa execução ser balizada pela diligência de um bom pai de família”. (sobre a boa fé no cumprimento do contrato, ver artigo 126.º, n.º 1, do CT).
Acontece, porém, que a falta de diligência a que o artigo 128.º, n.º 1, c) do CT, atribui relevância, à semelhança do que sucedia com o artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do DL n.º 49 408, de 24.11.1069, refere-se apenas ao elemento subjectivo da vontade, a culpa.
A falta de diligência por razões objectivas (inaptidão ou imperícia, por exemplo) não é fundamento para sanção disciplinar, mas poderá ser, eventualmente, um problema de formação ou classificação profissional.
Apenas haverá incumprimento do dever de diligência quando o trabalhador, repetidamente, não coloca na execução da prestação do trabalho um esforço de inteligência e vontade no correcto cumprimento das funções, para que foi contratado, isto é, quando tal incumprimento é culposo. 4.4. - Atento o disposto no artigo 351.º do CT, a doutrina considera que a justa causa só pode ter-se por verificada quando, e ponderadas todas as circunstâncias que no caso relevem, não seja exigível ao empregador a permanência do contrato. (cf. -Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 13.ª edição, página 580; Pedro Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, 3.ª edição, págs. 170/171; Motta Veiga, Lições de Direito do Trabalho, págs. 537/538; Joana Vasconcelos, Concretização do Conceito de Justa Causa, em Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, volume 3, págs. 209/210).
O Supremo Tribunal de Justiça tem seguido igual posição ao defender que (…) “a inexigibilidade da manutenção da relação de trabalho verificar-se-á, sempre que, face ao comportamento do trabalhador e às circunstâncias do caso, a subsistência do vínculo fira de modo violento a sensibilidade e liberdade psicológica de uma pessoa normal, quando colocada na posição real do empregador, no circunstancialismo apurado, o que pressupõe a necessidade de um prognóstico sobre a viabilidade da relação de trabalho, ou seja, um juízo, referido ao futuro, sobre a impossibilidade das relações contratuais, do que decorre que, assentando a relação laboral na cooperação e recíproca confiança entre o trabalhador e o empregador e num clima de boa fé, a mesma não poderá manter-se se o trabalhador destruir ou abalar, de forma irreparável, a confiança na idoneidade futura da conduta” (…). – acórdão de 2008.10.01, CJ, Acórdãos do STJ, ano 2008, tomo 3, página 277.
No mesmo sentido, o acórdão do mesmo Tribunal, de 2012.03.07, na CJ, ano 2012, tomo 1, página 258, onde se escreveu que (…) “O despedimento/sanção é a solução postulada sempre que, na análise diferencial concreta dos interesses em presença, se conclua – num juízo de probabilidade/prognose sobre a viabilidade do vínculo, basicamente dirigido ao suporte psicológico e fiduciário que a interacção relacional pressupõe – que a permanência do contrato constitui objectivamente uma insuportável e injusta imposição ao empregador, ferindo, desmesurada e violentamente, a sensibilidade e liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do real empregador” (…).
É importante ainda referir, conforme posição defendida no acórdão do STJ de 2013.03.21, que “Para legitimar um despedimento, não basta a perda de confiança da entidade patronal no trabalhador, sendo necessário, da parte deste, que a violação dos deveres laborais seja objectiva e subjectivamente grave, no domínio da ilicitude e da culpa, como é próprio do direito sancionatório” – CJ, Acórdãos do STJ, 2013, tomo 1, páginas 238 e seguintes.
A impossibilidade, tomado este termo no sentido de inexigibilidade, e não a simples dificuldade, de subsistência da relação laboral deve, também, ser valorada perante o condicionalismo da empresa e ter em vista o critério acima referido, de não ser objectivamente possível aplicar à conduta do trabalhador sanção menos grave. 4.5. - Exposta a doutrina e a jurisprudência sobre o sentido dos deveres enunciados, passemos à subsunção jurídica dos factos provados.
A ré é uma empresa que tem como escopo social o Transporte de Fundos e Valores, incluindo, monetários, entre empresas que se dedicam a tais actividades, como as instituições financeiras ou de crédito.
O autor, ao serviço da ré, desempenhava as funções correspondentes à categoria de profissional de Vigilante de Transporte de Valores (adiante vtv) – cf. ponto 2 dos factos provados.
Na actividade de Transporte de Fundos e Valores urge destacar, como linha de força da sua actuação, a confiança.
Do latim fiducia.ae., fidúcia, fiduciário, diz-se do que ou de quem se encontra dependente da confiança; que manifesta ou demonstra confiança.
E nesta confiança reside também a segurança do sistema bancário e de crédito no seu todo, incluindo os operadores de transporte de valores, donde a competência e adequada preparação exigida aos respectivos servidores, enquanto veículo de confiança em face dos utentes, devem potenciar.
Exige-se, portanto, dos operadores de transporte de fundos e valores monetários uma postura de inequívoca transparência, exercendo de forma idónea, leal e de plena boa fé a respectiva actividade, com respeito pela salvaguarda desses bens que lhes são confiados.
A salvaguarda de tais bens impõe, por isso, regras rígidas de transporte, que os próprios trabalhadores estão obrigados a cumprir, sob pena do seu incumprimento colocar em risco os fundos e valores monetários transportados, risco esse que pode conduzir à quebra de confiança entre a instituição financeira ou de crédito e o operador a quem confiaram o respectivo transporte.
Logo, essa cadeia de confiança exige-se, pois, absoluta.
Assim, ao desrespeitar as regras de transporte de valores, determinadas pela ré através das NEP´s, - cf. os pontos 5 a 19 dos factos provados, em particular o ponto 11, não impugnado em sede de recurso, diga-se - que afirmou que cumpria “por costume e prática diária”- cf. ponto 38 -, o autor violou o seu dever de zelo e diligência, no sentido de que inobservando as regras próprias da sua actividade de vigilante de transporte de valores, não colaborou com o seu empregador, pois, colocou em risco os fundos e valores monetários transportados, potenciando uma quebra de confiança dos clientes da ré em relação à segurança dos valores que lhe confiaram para transportar até ao destino final.
E tal situação de risco, criada pelo descrito comportamento do autor, colocou em crise a permanência do suporte psicológico da confiança que deve existir entre trabalhador e empregador e, insubsistindo, justifica-se a aplicação da sanção de despedimento com justa causa.
Assim, no caso sub judice, em função de tudo o predito, concluímos, em síntese, que o evidenciado comportamento do autor não pode deixar de considerar-se culposo, grave, ilícito e injustificado e, como tal, configurador duma situação de ruptura da relação de trabalho que, preenchendo a invocada justa causa, legitima a aplicada sanção de despedimento.
IV. – A decisão
Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, julgar a apelação improcedente, e em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo do autor.
Porto, 18 de Maio de 2020
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha