SOCIEDADE POR QUOTAS
AMORTIZAÇÃO DE QUOTA
INEXISTÊNCIA DE CONTAS APROVADAS
CÁLCULO DA CONTRAPARTIDA
Sumário

I - Embora a ampliação do âmbito do recurso não se apresente como um verdadeiro recurso, encontra-se sujeita às mesmas exigências de forma: possuir alegações e conter conclusões.
II - Para a validade da deliberação de amortização de uma quota basta a declaração a que alude o artigo 236.º, n.º 1, CSC, cabendo ao interessado na nulidade da deliberação o ónus de demonstrar que a contrapartida da amortização colide com a manutenção do capital social.
III - Não sendo a cláusula do pacto social que prevê o critério de cálculo da contrapartida da amortização aplicável por inexistência de contas aprovadas, há que recorrer ao critério legal supletivo do artigo 235.º, n.º 1, alínea a) CSC: a contrapartida da amortização é o valor da liquidação da quota, determinado nos termos do artigo 105.º, n.º 2, CSC, com referência ao momento da deliberação.

Texto Integral

Apelação n.º 2180/18.0T8OAZ.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
B…, NIF ………, residente na Rua ., …, 2.º Direito, Espinho, na qualidade de cabeça-de-casal da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C…, intentou ação declarativa comum contra D…, LD.ª, NICP ………, com sede no …, Lourosa e E…, NIF ………, residente Av.ª …, n.º …., Lourosa, pedindo que seja declarada nula, ou, se assim não se entender, anulável, a deliberação tomada na assembleia geral da primeira R. no dia 8 de Maio de 2018, na qual se decidiu a amortização da quota do sócio C….

Alegou para tanto, e em suma, que:

— A sociedade D…, Ld.ª, foi constituída por dois únicos sócios e gerentes: C…, entretanto falecido, e cuja herança se encontra representada nos autos pela A., e o segundo R., E…;

— No dia 8 de Maio de 2018 realizou-se assembleia geral da primeira R., na qual foi deliberado, por unanimidade dos sócios com direito de voto (o voto único do sócio E…, dado o impedimento de voto inerente à quota que pertenceu ao sócio C…), amortizar a quota que a este pertencia, pelo valor que corresponderá ao valor médio que resulta dos três últimos balanços aprovados, efetuando-se o pagamento em três prestações semestrais e iguais, sem vencimento de juros, representadas por letras aceites pela sociedade e avalizadas pelo seu gerente, vencendo-se a primeira das prestações em causa seis meses depois de deliberada a amortização;

— Esta deliberação é inválida, pelas seguintes razões:
1 – a convocatória não contém o ponto de ordem de trabalhos sob a forma de cálculo do valor da contrapartida da amortização, o respectivo valor e forma de pagamento aos titulares da quota amortizanda;
2 – A deliberação foi tomada sem ter sido precedida do fornecimento dos elementos mínimos de informação solicitados pelos herdeiros de C…, concretamente identificados sob o artigo 36.º, da petição inicial;
3 – A própria deliberação não contém o valor pelo qual é efetuada a amortização da quota de C…, aludindo exclusivamente a uma fórmula de cálculo, cujo valor líquido não se mostra possível apurar já que não existem contas aprovadas da primeira R. desde 2006;
4 – O segundo R., E…, votou sozinho na deliberação de amortização da quota do falecido C…, impedindo que os herdeiros deste último votassem, invocando conflito de interesses, o que evidencia um voto abusivo e ainda uma atuação em abuso de direito, já que C… actuou no seu próprio interesse, com o intuito de ficar único titular das quotas societárias da R., afastando a participação dos herdeiros do sócio-gerente falecido e em detrimento do interesse social da D…, Ld.ª;
5 – Os conflitos existentes em vida do sócio C… e E…, com a pendência de várias ações judiciais um contra o outro, impedem E… de votar sozinho essa deliberação, já que existe um conflito de interesses da sua parte.

Contestaram os RR., sustentando, em suma, que não ocorreu qualquer violação do direito à informação, tendo, quer o procedimento de convocação, quer a própria deliberação em assembleia geral, observado todos os requisitos formais para a sua realização, contendo a deliberação o valor da contrapartida devida pela amortização da quota (valor este que é determinável), bem como a forma de pagamento, e que o voto de E… não é abusivo já que não existe qualquer conflito de interesses entre este e a sociedade D…, Ld.ª, para além de que os herdeiros de C… se encontram impedidos de votar sobre a opção de amortização da quota.

Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador, declarando válida a instância nos seus pressupostos objetivos e subjetivos, identificado o objeto do litígio, fixados os temas da prova.

Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida decisão que, julgando a ação procedente, decidiu declarar anulável a deliberação tomada em assembleia geral da R., realizada em 8 de maio de 2018, de amortizar a quota do sócio falecido C….

Inconformada, apelou a R., apresentando as seguintes conclusões:
A – Os Recorrentes não se conformam com a sentença recorrida, uma vez que ela não se afigura como correta seja do ponto de vista fáctico seja do ponto de vista da subsunção jurídica que foi feita para o caso.
B – Do ponto de vista fáctico, assume relevância nodal, para a procedência da presente ação, o “facto” dado como provado sob o n.º 26, onde se afirma que o Recorrente E… “atuou com o propósito de obter para si uma vantagem especial, passando a ser o único sócio…”
C – Ora, o “facto” dado como provado sob o n.º 26 é manifestamente conclusivo, envolvendo matéria de direito, e não factual, pelo que não poderá a decisão assentar em tal pressuposto, seja porque a torna insindicável, seja porque apenas os factos e não meras conclusões ou juízos de valor podem integrar a decisão da matéria de facto e fundamentar a sentença, como tem sido jurisprudência pacífica, mesmo na vigência do NCPC (cfr. artigos 5.º n.º 1 e 2 e 607.º n.º 3 NCPC e, ex multis, o Ac. STJ de 28/09/2017 (Proc. n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1), Ac. STJ de 29/04/2015 (Proc. n.º 306/12.6TTCVL.C1.S1), Ac. TRE de 28/06/2018 (Proc. n.º170/16.6T8MMN.E1) e Ac. TRP de 23/11/2017 (Proc. n.º 3811/13.3TBPRD.P1).
D – Pelo que, já por aqui, assentando a decisão essencialmente neste elemento, claramente conclusivo, deverá o presente recurso ser julgado procedente, sendo revogada a decisão proferida em 1.ª instância.
E – Acresce que a instrução do processo não permite que se chegue à conclusão vertida no “facto” dado como provado sob o n.º 26, uma vez que o Tribunal a quo valorou erroneamente a prova testemunhal, não tendo sido feita prova que permitisse ao Tribunal decidir como decidiu.
F – Com efeito O Tribunal a quo sustentou, na sua motivação (ponto II.B), que o facto dado como provado sob n.º 26 teve fundamentalmente por base os depoimentos de F… e G…, ambos filhos do falecido de C…, e as “regras da experiência comum”, sendo “considerado pelo Tribunal ao abrigo do disposto no art. 5.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil” (cfr. pp. 14-15, in fine, da sentença).
G – Ora, conforme mais bem se explicita na fundamentação deste recurso, não se consegue compreender como pôde o Tribunal a quo – com base nas regras da experiência – chegar àquela conclusão, desde logo porque assenta a sua fundamentação apenas nos depoimentos de dois diretos interessados na lide (os filhos do sócio falecido, cuja quota foi amortizada, os quais pretendem manter-se no grémio societário!!), que se encontram de relações cortadas com o Recorrente (entre outras razões, porque este fez cessar a relação de trabalho que tinham com a sociedade, sendo certo que o despedimento de uma daquelas testemunhas, G…, foi julgado pelo Tribunal da Relação como sendo um despedimento lícito e com justa causa!.
H – Acresce que, mesmo desconsiderando a parcialidade e falta de isenção que óbvia e manifestamente está associada àqueles depoimentos – e, isso sim, como decorre das regras da experiência –, a conclusão a que chega o Tribunal a quo não pode extrair- se dos mesmos!
I – Por outro lado, é ainda incompreensível, para os Recorrentes, como, a partir dos factos dados como provados (v.g., sob os n.ºs 6 a 9, 21, 14, 27 e 31), se pode concluir que o Recorrente E… atuou visando obter uma “vantagem especial” para si.
J – Desde logo, porque boa parte dos factos em causa são anteriores à deliberação submetida a juízo (ou seja, anteriores à deliberação de amortização da quota, que foi efetuada, nos termos e de acordo com os estatutos) nada têm a ver com ela.
K – É o caso de o Recorrente G… ter intentado uma providência cautelar contra o sócio e gerente C… pedindo a sua suspensão e destituição, providência que foi, aliás, atendida e considerada procedente pelo Tribunal, que considerou fundamentada a posição do aqui Recorrente E….
L – É essa também a situação que decorre de o Recorrente ter, enquanto gerente, despedido aquelas duas testemunhas, filhos do sócio cuja quota foi amortizada, sendo certo que, em especial, o Tribunal da Relação que julgou o despedimento da testemunha G… veio a dar razão à entidade patronal, tendo considerado que havia justa causa para o mesmo.
M – Ou ainda do facto de o Recorrente E… ter votado contra as contas dos exercícios de 2009 a 2015!! O Recorrente limitou-se a votar contra a aprovação de tais contas porque não dispunha de dados – que lhe eram negados pelo seu outro sócio, o irmão entretanto falecido – que lhe permitissem aferir da correção e fiabilidade das contas apresentadas. Tão-só!! Nenhuma outra motivação teve que não esta.
N – Aliás, quanto à aprovação de contas (facto provado n.º 14), também de forma incompreensível para os Recorrentes, o Tribunal a quo – sem explicar porquê – ignorou, por completo, o depoimento de C…, filho do Recorrente E…, que explica o motivo pelo qual as contas não foram aprovadas por este último, depoimento esse que deverá ser sopesado na apreciação de matéria de facto ora impugnada.
O – Donde, o “facto”/conclusão dado como provado sob o n.º 26, de que o “E… atuou com o propósito de obter para si uma vantagem especial”, não pode ser atendido e deve ter-se como não escrito – devendo tal inciso ser retirado do facto dado como provado sob n.º 26 –, seja porque o mesmo é conclusivo e reporta-se a matéria de direito, seja porque o mesmo não resulta minimamente da instrução e da prova produzida em juízo.
P – Sem prejuízo do que ficou dito, os Recorrentes consideram ter sido feito uma errada subsunção jurídica da factualidade apurada, considerando abusiva a deliberação da amortização de quota.
Q – A amortização de quotas é permitida pela lei, que autoriza que os sócios clausulem a possibilidade de não transmissão da quota, nomeadamente mortis causa, possibilitando assim que, com o instituto da amortização, se possa construir uma “barreira” à entrada de terceiros para a sociedade (ainda que familiares de sócios).
R – Ora, os sócios fundadores da Ré fizeram – entre os quais se incluía o sócio falecido –, ao abrigo da autonomia privada, foi usar desta possibilidade, autorizando a sociedade a “fechar” a entrada, no grémio societário, aos herdeiros dos sócios falecidos,
S – Por isso, a deliberação sub judice, de amortização da quota do sócio falecido, não se poderá considerar abusiva, uma vez que ela se traduziu tão-somente no estrito e rigoroso respeito pela vontade dos sócios fundadores que quiseram e aceitaram que, em caso de falecimento de um dos sócios, a sociedade pudesse amortizar a sua quota.
T – Acresce que, conforme refere Pinto Furtado, a deliberação apenas se deve considerar abusiva quando envolva um “excesso manifesto”, uma absoluta desproporcionalidade e com “flagrante e marcada iniquidade” cause um prejuízo a sócios ou à sociedade, para obtenção de uma “vantagem especial” para um ou mais sócios ou terceiros, o que manifestamente não se verifica no caso agora submetido a juízo.
U – Pelo que – independentemente da existência ou não de aprovação de contas, das más relações entre os sócios, ou de qualquer outro fator – considerar, neste caso, como abusivo o exercício da faculdade de amortização, seria impossibilitar o exercício de uma faculdade expressamente consignada na lei e, com isso, impedir que a vontade dos sócios – volta-se a recordar, a vontade de todos os sócios (!!), incluindo o sócio falecido, cuja quota foi amortizada – pudesse ser executada!
V – De todo o modo, para que a deliberação possa ser considerada abusiva é requisito essencial que, com a mesma, se vise alcançar uma “vantagem especial” para o sócio ou terceiro (circunstância, de resto, a que se faz abundantemente referência na sentença recorrida), sendo que, como é de meridiana evidência, uma deliberação que visa exercer uma faculdade admitida na lei e prevista no pacto social não se subsume na previsão legal de obtenção de uma “vantagem especial”.
W – Ora, in casu, não se pode também falar numa “vantagem especial” para o sócio E…, aqui Recorrente, uma vez que a “vantagem” prosseguida pela deliberação é uma vantagem da sociedade, que com ela logra – como, na circunstância, logrou! – impedir a entrada de novos sócios, evitando os conflitos internos que daí adviriam, com os consequentes desequilíbrios na sua boa governança.
X – Aliás, que a eventual vantagem que pode resultar da deliberação não é uma “vantagem especial” para o sócio aqui Recorrente, resulta do facto de esta deliberação de amortização poder ter os seus “atores” em posições diametralmente opostas; isto é, se tivesse sido o sócio E… a falecer (como seria, aliás, mais expectável porque o seu estado de saúde era bem mais frágil do que o do seu irmão), a sua quota poderia ser – de acordo com a lei e os estatutos – amortizada (e sê-lo-ia seguramente); ou seja, a faculdade de amortizar tanto poderia aproveitar a um como a outro sócio, dependendo de quem falecesse primeiro!
Y – Pelo que manifestamente não se verifica a previsão legal para que a deliberação possa ser considerada abusiva.
Z – E o caráter abusivo da deliberação não decorre também – como defende o Tribunal a quo – da não aprovação das contas pelo Recorrente E…,
AA – Com efeito, apesar de as contas dos últimos três exercícios (2015, 2016 e 2017) não se encontrarem aprovadas, vindo a ser aprovadas mais tarde, tais contas encontravam-se elaboradas e, portanto, era possível ter uma noção da situação patrimonial e do valor da sociedade.
BB – Por outro lado, a não aprovação das contas é um aspeto meramente adjetivo, que não pode ter a consequência – a gravíssima consequência, porque atentatória da autonomia privada e da vontade dos sócios plasmada nos estatutos – de impedir a amortização da quota, em caso de falecimento do sócio.
CC – Com efeito, importa aqui respeitar o princípio da autonomia privada – princípio basilar do direito privado – e perceber qual foi o sentido pretendido com aquela cláusula estatutária de amortização de quota.
DD – E é evidente que o que os sócios pretenderam foi possibilitar a amortização da quota do sócio falecido, pagando-se aos herdeiros o valor justo dessa mesma quota por referência aos três últimos exercícios; ou seja, quiseram evitar que o valor da contrapartida fosse apenas conjuntural com referência a um único exercício.
EE – Ora, o cálculo desse valor era, contudo, possível de se fazer na data da amortização. Isto é, o valor pelo qual a quota seria amortizada podia não estar determinado ao tempo da deliberação de amortização (por as contas não estarem aprovadas), mas ele era, no entanto, determinável.
FF – E tanto basta para que a deliberação (enquanto negócio jurídico sujeito às regras gerais) seja válida – cfr. artigo 280.º do Código Civil.
GG – Sem prescindir, caso se entendesse que, para respeitar o estatuído no pacto, se teria de considerar literalmente o disposto na cláusula estatutária que determina que o valor da contrapartida deve corresponder ao “valor médio que resultar dos últimos três balanços aprovados”, então o valor da contrapartida deveria corresponder ao valor médio que resultasse dos balanços de 2006, 2007 e 2008 (os balanços que se encontravam aprovados à data da deliberação de amortização).
HH – Pelo que, pelo exposto, e sem mais considerandos por parecerem desnecessários, resulta cristalinamente do exposto e do argumentário aduzido, que manifestamente também não se verifica in casu qualquer violação do princípio da boa-fé ou de lealdade, pelo que a deliberação de amortização aqui em causa não pode, de todo, ser configurada como consubstanciando qualquer abuso de direito.
II – Donde, e em suma, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que conclua pela improcedência total do pedido formulado pelos Autores, aqui Recorridos.
Nestes termos e nos mais que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser considerado procedente e, consequentemente,
A) o “facto”/conclusão dado como provado sob o n.º 26, de que o “E… atuou com o propósito de obter para si uma vantagem especial”, não deverá ser atendido e deve ter-se como não escrito – devendo tal inciso ser retirado do facto dado como provado sob n.º 26 –, seja porque o mesmo é conclusivo e reporta-se a matéria de direito, seja porque o mesmo não resulta minimamente da instrução e da prova produzida;
B) a deliberação de amortização sub judice não pode ser considerada abusiva, sendo errada a decisão de a considerar anulável;
C) deve a decisão da 1.ª instância, em qualquer caso, ser revogada e substituída por outra que absolva totalmente os Recorrentes do pedido formulado pelos Autores,
Por ser essa a única solução justa e conforme ao Direito para o caso.

Contra-alegaram os AA., pugnando pela manutenção do decidido e ampliando o âmbito do recurso, sem, contudo, apresentar conclusões.
2. Fundamentos de facto

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

1. A R. D…, Ld.ª, é uma sociedade comercial por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Santa Maria da Feira, sob o número único de matrícula e de contribuinte ………, constituída em 30.07.1986, com registo efetuado pela ap. 9 de 2.10.1986, com sede em …, …, Santa Maria da Feira, que se dedica ao fabrico de produtos aglomerados de cortiça, com o capital social de € 105.000,00 (cento e cinco mil euros), dividido por duas quotas, cada uma no valor nominal de € 52.500,00 (cinquenta e dois mil e quinhentos euros), uma pertencente a C… e a outra a E…, vinculando-se a sociedade pela assinatura de dois gerentes, tendo sido designados, à data da constituição da sociedade, como gerentes, os únicos sócios C… e E….

2. Consta do pacto social da R. D…, Ld.ª, sob o ponto Décimo Primeiro, que “Em caso de falecimento ou interdição de qualquer sócio, a sociedade poderá amortizar a respectiva quota, nos termos do artigo décimo, ou continuar com os sócios sobrevivos ou capazes e os herdeiros do sócio falecido ou o representante legal do incapaz.

Parágrafo Primeiro - Se os herdeiros de sócio falecido ou o representante legal de incapaz não quiserem continuar na sociedade, poderão exigir desta a liquidação da respectiva quota de demais direitos, nos termos do artigo décimo. (…).”

3. Segundo o ponto Décimo do pacto social da R. “No caso de falência de algum dos sócios, penhora ou adjudicação de qualquer quota a outrem, em processo de execução, ou por qualquer outro meio em que se opere a transmissão forçada da quota, a sociedade fica com o direito de a adquirir ou amortizar, pelo valor médio que resultar dos últimos três balanços aprovados. O pagamento far-se-á em três prestações semestrais e iguais, sem vencimento de juros, representadas por letras aceites pela sociedade e avalizadas pelos seus gerentes, vencendo-se a primeira destas prestações seis meses depois de deliberada a amortização ou aquisição. A amortização ou aquisição consideram-se realizadas logo que tenham sido deliberadas pela sociedade, pelo que os sócios cujas quotas tenham sido adquiridas ou amortizadas só terão a haver da sociedade o preço de uma ou outra coisa.”

4. Em 25.06.2007, C… instaurou ação judicial contra E…, pedindo a destituição deste do cargo de gerente, por justa causa, da D…, Ld.ª, a qual correu termos no Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira sob o n.º 4329/07.9TBVFR e veio a ser julgada improcedente por sentença proferida em 18.11.2011.

5. Em 16.08.2010 E… intentou procedimento cautelar contra D…, Ld.ª, pedindo a suspensão da deliberação social tomada na Assembleia Geral de 06.08.2010, que assenta na propositura de uma ação da sociedade, ao abrigo dos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º, do CSC.

6. Em 16.04.2016, E… intentou ação judicial contra C… pedindo a suspensão e destituição deste, por justa causa, da qualidade de gerente da sociedade da D…, Ld.ª, e a condenação do mesmo a entregar ao Autor/Requerente as chaves das instalações da sociedade, bem como pediu a sua nomeação para o exercício das funções de gerente único da sociedade, a fim de o mesmo prosseguir o objeto social da sociedade e poder representá-la, sozinho, em todos os atos necessários à prossecução do seu fim.

7. No âmbito do processo supra referido, foi proferida sentença que julgou procedente a providência cautelar e consequentemente suspendeu C… como gerente da sociedade.

8. A decisão referida em 7. foi revogada por decisão proferida em 14.03.2017, transitada em julgado em 03.01.2018, na qual se determinou que C… assumisse de novo a gerência da sociedade D…, Ld.ª, passando esta a obrigar-se com a assinatura dos gerentes C… e E….

9. Quando assumiu as funções de único gerente, E… despediu os dois filhos deste sócio C… (G… e F…) que eram trabalhadores da sociedade e admitiu, como trabalhador da sociedade, o seu único filho, C….

10. Em 30.05.2016, C… procedeu ao registo da divisão e cessão da sua quota na sociedade D…, Ld.ª, passando a ser titular da quota no valor nominal de € 50.000,00 e o seu filho F… titular da quota no valor nominal de € 2.500,00.

11. Em 27.06.2016, E… intentou providência cautelar, a qual correu termos sob o n.º 2709/16.8T8OAZ, deste Tribunal de Comércio de Oliveira de Azeméis, através da qual pediu a suspensão da eficácia do ato de divisão de quota e cessão de quota efetuado por C…, a qual veio a ser julgada procedente por decisão transitada em julgado em 20.03.2018.

12. Em 27.06.2016, E… intentou procedimento cautelar contra a sociedade D…, Ld.ª, pedindo que seja declarada suspensa a deliberação social tomada na Assembleia Geral de 16 de Junho 2016, com todos os seus efeitos.

13. Em 18.07.2016, E… intentou ação judicial contra a sociedade D…, Ld.ª, pedindo se decrete a nulidade ou se anulem as deliberações sociais tomadas no dia 16.06.2016, a qual foi julgada procedente por sentença transitada em julgado em 22.02.2017, que anulou as deliberações tomadas na dita assembleia geral, nomeadamente a destituição do gerente E….

14. Na assembleia geral da sociedade D…, Ld.ª realizada no dia 23.07.2016, E…, representado por C…, votou contra a aprovação das contas dos exercícios de 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, o que conduziu à não aprovação das mesmas.

15. Em 19.08.2016, E… intentou ação judicial pedindo que se declarem nulas ou se anulem as deliberações sociais tomadas em 20.07.2016 na sociedade D…, Ld.ª, a qual veio a ser julgada procedente.

16. C… faleceu no dia 11.03.2018, tendo-lhe sucedido como únicos e universais herdeiros a sua mulher, B…, e seus dois filhos, G… e F…, o que foi declarado por Escritura Notarial de Habilitação, celebrada em 20.03.2018, no Cartório da Notária H….

17. Pela ap. 13 de 21.06.2018 foi registada a cessação de funções de gerente de C… por motivo de óbito.

18. O gerente da R. E… enviou a G… carta registada, datada de 23.04.2018, e recebida por este, com o assunto “Convocatória da Assembleia da Sociedade D…, Ld.ª, com o seguinte teor: ““Na minha qualidade de gerente da sociedade, venho, nos termos da lei e dos estatutos, convocar os sócios da D…, Ld.ª, pessoa colectiva n.º ………, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Santa Maria da Feira sob o mesmo número, com o capital social de cento e cinco mil euros, para se reunirem em Assembleia Geral, na sede social sita na Rua … n.º …, freguesia …, concelho de Santa Maria da Feira, pelas 11:00 horas, do próximo dia 08 de Maio de 2018, com a seguinte ordem de trabalhos:

Ponto único: deliberar, nos termos do artigo 11.° dos estatutos, sobre a amortização da quota pertencente ao sócio C…, em virtude do seu falecimento.
Nos termos da lei, os direitos sociais relativos à quota do sócio falecido devem ser exercidos por um único representante comum.”

19. Em 05.05.2018, a A. remeteu ao gerente E… uma mensagem eletrónica com o assunto “pedido de informação e documentação” com o seguinte teor: “Nos termos do direito à informação previsto no artigo 214.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais, venho pelo presente, enquanto cabeça de casal da herança indivisa do Senhor C…, solicitar que me sejam prestadas, por escrito, durante a próxima segunda-feira (dia 7 de Maio de 2018), as seguintes informações e documentos:
i) Cópia das demonstrações financeiras (Balanço, Demonstração de Resultados,
Demonstração de Fluxos de Caixa, Demonstração das alterações nos capitais próprio e notas/anexo) e relatório da gestão referentes aos anos de 2016 e 2017;
ii) Balancete geral analítico antes de apuramento de resultados à data de 31 de dezembro de 2016 e 31 de dezembro de 2017;
iii) Balancete geral analítico relativo ao último mês do ano de 2018 com contabilidade encerrada;
iv) Cópia da declaração anual/Informação Empresarial Simplificada relativa ao ano de 2016;
v) Cópia da declaração de rendimentos Modelo 22 relativa ao ano de 2016;
vi) Cópia dos contratos de financiamento bancário, factoring, locação financeira/leasing ou outras formas de financiamento, celebrados nos anos de 2016, 2017 e 2018 até à presente data;
vii) Extratos contabilísticos de todas as contas da contabilidade relativos ao ano de 2016, de 2017 e de 1 de janeiro de 2018 até ao último mês com contabilidade encerrada de 2018;
viii) Informação e documentação relativa a atos de alienação ou oneração de bens ativos da Sociedade (designada mente, imóveis, máquinas e veículos, etc ...) ocorridos desde 1 de janeiro de 2016 até à presente data;
ix) Informação e documentação relativa às ações judiciais pendentes em que a Sociedade é parte;
x) Identificação de todas as contas bancárias (depósitos à ordem, depósitos a prazo, aplicações financeiras e outras) tituladas pela Sociedade e cópia dos respetivos extratos bancários relativos aos meses de dezembro de 2016, dezembro de 2017 e março de 2018;
xi) Identificação de todos os cartões de crédito da Sociedade e cópia dos respetivos extratos relativos aos meses de dezembro de 2016, dezembro de 201 e março de 2018;
xii) Procurações, designadamente, forenses, e fim a que se destinaram, subscritas somente por V. Exa.;
xiii) Montante do saldo atual dos suprimentos concedidos por cada sócio à Sociedade ainda não reembolsados aos sócios na presente data
xiv) Montante dos suprimentos realizados por cada um dos sócios e dos suprimentos reembolsados a cada um dos sócios nos últimos 25 anos;
xv) Listagem dos colaboradores e trabalhadores admitidos e demitidos desde 1 de janeiro de 2016 até à presente data e cópia dos respetivos contratos de trabalho e acordos de cessação, bem como dos recibos relativos às indemnizações pagas, quando aplicável;
xvi) Listagem dos prestadores de serviços contratados desde 1 de janeiro de 2016 até à presente data e cópia dos respetivos contratos de prestação de serviços;
xvii) Listagem dos inventários da sociedade com referência a 31 de dezembro de 2016 e 2017, com detalhe de quantidade e valor por referência;
xviii) Mapa resumo das remunerações processadas (com detalhe por colaborador, por rubrica de remuneração/descontos, por mês) pela Sociedade em 2016, 2017 e em 2018 (até 30 de abril de 2018); xix) Informação relativa a empréstimos e adiantamentos efetuados pela Sociedade a terceiros, em 2016, 2017 e em 2018 até à presente data;
xx) Cópia do mapa de responsabilidades do Banco de Portugal da Sociedade com referência a 31 de dezembro de 2016, 31 de dezembro de 2017 e 31 de março de 2018;
xxi) Relatório Único relativo ao ano de 2017;
xxii) Certidão predial e matricial dos imóveis detidos pela Sociedade;
xxiii) Mapas oficiais das depreciações e amortizações relativos aos anos de 2016 e 2017;
xxiv) Ficheiros SAFT da contabilidade e da faturação relativos aos anos de 2016,
2017 e 2018 (até ao último mês com contabilidade encerrada).
Procederei ao levantamento pelas 14 horas.”

20. Em resposta à missiva referida supra, E… remeteu à A., em 07.05.2018, mensagem eletrónica com o assunto “Resposta ao Pedido de informação e documentação com data de 04 de maio de 2018”, com o seguinte teor: “O pedido de informação de V. Exª. foi enviado durante o fim de semana.

Como bem sabe, a D…, Ld.ª não se encontra em horário de funcionamento aos sábados e domingos, donde decorre que a sua missiva e respetivo conteúdo, ainda que expedida por correio eletrónico, só hoje, dia 07 de maio de 2018, entrou efetivamente na esfera de conhecimento da gerência.

Ora, atenta a dimensão do pedido de informação e documentação solicitada – que deve, de resto, ser avaliada pela gerência – torna absolutamente impossível a reunião e subsequente disponibilização da informação por V. Exª. Solicitada dentro da janela temporal pretendida. Com efeito, a reunião dos vinte e quatro elementos informativos, muitos deles referentes a múltiplos exercícios e aos mais diversos aspetos da atividade da sociedade D…, Lda, não poderia, nunca, ser concretizada no espaço de tempo que mediou entre o início do horário de funcionamento das instalações da Sociedade e a hora por V. Exª. unilateralmente fixada para o levantamento.
De resto, e como V. Exª. também saberá, se é verdade que o direito à informação do sócio não pode ser recusado sem que para tal existam razões razoáveis, também o seu exercício deve obedecer a critérios de razoabilidade, sob pena de se considerar abusivo.

De todo o modo, e porque a gerência tem intenção de cumprir escrupulosamente o disposto na lei, quanto a esta matéria do direito à informação, comunica-se a V. Exª. que a informação solicitada será disponibilizada o mais rapidamente possível. Logo que se encontre compilada, ser-lhe-á imediatamente comunicada a data em que a mesma lhe poderá ser facultada”.

21. E… nunca entregou à A. ou a qualquer um dos herdeiros de C…, qualquer um dos elementos referidos em 18.

22. No dia 8 de Maio de 2018 realizou-se a assembleia geral da sociedade D…, Ld.ª, na qual estiveram presentes E…, na qualidade de sócio titular da quota no valor nominal de € 52.500,00 e F…, na qualidade de representante comum da quota no valor nominal de € 52.500,00, pertencente em comum e sem determinação de parte ou de direito aos herdeiros do sócio C….

23. Nessa assembleia geral E… e F… emitiram as declarações de fls. 29 a 32, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

24. Nessa assembleia geral foi deliberado, com o voto do único sócio E…, amortizar a quota do sócio falecido C… pela contrapartida correspondente ao valor médio que resulta dos três últimos balanços aprovados, efetuando-se o pagamento em três prestações semestrais e iguais, sem vencimento de juros, representadas por letras aceites pela Sociedade e avalizadas pelo seu gerente, vencendo-se a primeira das prestações em causa seis meses depois de deliberada a amortização.

25. Na sequência dessa deliberação, E… declarou “que a satisfação da contrapartida da amortização, nos termos atrás referidos, não põe em causa a integridade do capital social, continuando a situação líquida a ser superior à soma do capital e da reserva legal, destarte se cumprindo a exigência do artigo 236.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais”.

26. Ao votar do modo referido em 24., E… atuou com o propósito de obter para si vantagem especial, passando a ser o único sócio detentor de quota da sociedade D…, Ld.ª. e, como tal, ter o domínio total sobre a mesma, assim afastando os herdeiros da quota do falecido sócio C… do exercício de qualquer direito social.

27. À data da deliberação encontravam-se unicamente aprovadas e depositadas na Conservatória do Registo Comercial as contas D…, Ld.ª, referentes aos anos/exercícios de 2000 (insc. P.C. 2500 de 19.12.2001), 2004 (insc. P.C. 2632 de 7.12.2005), 2005 (Dep. 113 de 15.12.2006), 2006 (Dep. 4616 de 20.09.2007), 2007 (Dep. 3118 de 1.7.2008) e 2008 (Dep. 1177 de 27.06.2009).

28. O R. E…, por discordar dos atos de gerência do seu irmão, C…, e duvidar da veracidade da situação patrimonial da sociedade D…, Ld.ª, não votava favoravelmente as contas que lhe eram apresentadas, o que conduziu ao referido em 14.

29. Em 11.07.2018 foram depositadas na Conservatória do Registo Comercial as contas da D…, Ld.ª, referentes aos anos de 2017 (Dep. 1306) e 2016 (Dep. 1310).

30. Em 18.09.2018 foram depositadas na Conservatória do Registo Comercial as contas da D…, Ld.ª, referentes aos anos de 2014 (Dep. 3323) e 2015 (Dep. 3324).

31. Em 19.09.2018 foram depositadas na Conservatória do Registo Comercial as contas da D…, Ld.ª, referentes aos anos de 2013 (Dep. 3325), 2012 (Dep. 3326), 2011 (Dep. 3328), 2010 (Dep. 3330) e 2009 (Dep. 3331).

*
Factos Não Provados.

Com interesse para o objeto do presente litígio não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente:

a. O R. E… não tinha acesso a informação relativa à situação patrimonial da D…, Ld.ª, o que conduziu ao referido em 14.
*
Fica consignado que não se responde à restante matéria alegada nos articulados das partes por consubstanciar matéria sem interesse para o objeto do litígio, ou por consubstanciar matéria repetida e/ou matéria que importa a formulação de juízos conclusivos e de considerações de direito, assim, insuscetível de produção de prova.

3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se na seguintes questões:
— questões prévias
— ampliação do âmbito do recurso;
— (não) rejeição da impugnação da matéria de facto;
— impugnação do ponto 26 da matéria de facto provada;
— natureza abusiva da deliberação.

3.1. Questões prévias
3.1.1.Da ampliação do âmbito do recurso
Nas suas contra-alegações, a apelada ampliou o âmbito do recurso, sem, contudo, apresentar conclusões. Limitou-se a pedir que fosse declarada a anulabilidade da deliberação impugnada por violação do direito à informação e do disposto no artigo 11.º do pacto social da D…, Ld.ª, sem sintetizar as razões de tal pretensão, como se impunha.
Embora a ampliação do âmbito do recurso não se apresente como um verdadeiro recurso, não deixa de estar sujeita às mesmas exigências de forma: a ampliação do âmbito do recurso pelo apelado deve ser requerida na sua alegação (artigo 636.º, n.º 1, CPC) e deve concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão (artigo 639.º, n.º 1, CPC).

E bem se compreende que assim seja, atenta a finalidade das conclusões na economia do recurso: mais do que constituírem a síntese das alegações, elas delimitam o objecto da ampliação e os poderes de cognição do Tribunal de recurso.

O CPC, contrariamente ao que sucedia no Código pregresso (artigo 690.º, n.º 4 do CPC, na redação anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto), não prevê convite à formulação de conclusões, estabelecendo, antes, no artigo 641.º, n.º 2, alínea b), que o requerimento de interposição de recurso é indeferido, designadamente, quando a alegação do recorrente não contenha conclusões.
Da conjugação do artigo 639º, nº 3, com o artigo 641.º, n.º 2, alínea b), CPC, resulta que a 1.ª instância deve rejeitar a ampliação do recurso; não o fazendo, cabe ao Tribunal de recurso intervir, nos termos do artigo 651.º, n.º 1, alínea b), CPC, não conhecendo do objecto da ampliação do recurso.
Neste sentido veja-se o acórdão do STJ, de 17.11.2016, Ribeiro Cardoso, www.dgsi.pt stj, 4622/09.6TTLSB.L1.S1.
Não obstante a rejeição da ampliação do âmbito do recurso ser matéria da competência do Relator, nada obsta que seja decidido pela Conferência.
Termos em que não se conhece do objecto da ampliação do âmbito do recurso.

3.1.2. Da (não) rejeição da impugnação da matéria de facto
Sustenta a apelada que o recurso deve ser rejeitado por incumprimento dos requisitos previstos no artigo 640º, nº 1, do CPC.
Assim, defende que os apelantes, nem na motivação nem nas conclusões, indicam os concretos meios probatórios que, sobre cada um dos pontos impugnados, pretendem fundamentar a alteração da decisão sobre matéria de facto, limitando-se a transcrever determinadas passagens dos depoimentos das testemunhas e a enunciar argumentos, sem que, contudo, indiquem os concretos meios probatórios que sustentem a pretensão sobre cada um dos concretos pontos de facto que pretendem ver alterados, ou procedam à análise crítica dessa prova, em confronto com a motivação da sentença.
Refere ainda que os apelantes pretendem que determinada matéria seja aditada à factualidade que foi dada como provada, transcrevendo, como fundamento, o depoimento de várias testemunhas, não cumprindo igualmente os ónus enunciados no artigo 640.º CPC, pois nem no corpo das alegações, nem nas conclusões indicam os concretos meios probatórios que justificam a pretendida alteração.
Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3.ª edição, pgs. 139-40, sintetiza assim o regime actual da impugnação da matéria de facto:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar, com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente;
E continua o mesmo autor, a pgs. 142, após sublinhar que foi intenção do legislador reservar o convite ao aperfeiçoamento para os recursos da matéria de direito:
A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (640.º, n.º 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
Apreciando:

Na conclusão das alegações, que delimitam o objecto do recurso, os apelantes identificaram o ponto 26 da matéria de facto provada como ponto da matéria de facto impugnado (cfr. conclusões B a O).
Não pedem o aditamento de qualquer facto.
É certo que na motivação os apelantes discorreram acerca do ponto 14.º da matéria de facto provada, ensaiando uma justificação para a não aprovação das contas pelo apelante, mas não extraíram daí nenhuma conclusão.
Afigura-se que pretendiam apenas demonstrar que essa matéria era insuficiente para legitimar a conclusão de que o apelante agiu com propósito de obter para si vantagens especiais.
O único ponto da matéria de facto provada que se considera impugnado é o ponto
26.º.
E é a esse propósito que, na motivação, os apelantes questionam a credibilidade atribuída pelo Tribunal recorrido ao depoimento das testemunhas F… e G…, filhos do apelante E…, e a desconsideração do depoimento da testemunha I…, indicando a localização dos respectivos depoimentos e transcrevendo os excertos relevantes para a sua pretensão.
Não se trata, pois, de aditar qualquer ponto à matéria de facto provada.

Por outro lado, e como já se referiu, nas conclusões das alegações basta que o apelante enuncie os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não sendo necessário que aí indique os concretos meios probatórios nem o resultado pretendido com a impugnação, ficando estes elementos circunscritos à motivação.
A este propósito, veja-se os acórdãos do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, www.dgsi.ptjstj, proc. n.º 233/09.4TBVNC.G1.S1 ; de 19.02.2015, Tomé Gomes, www.dgsi.ptjstj, proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1; de 01.10.2015, Ana Luísa Geraldes, www.dgsi.ptjstj, proc. n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1.
Sempre se dirá que a apelada apreendeu perfeitamente os termos da impugnação, como se infere da forma como exerceu o contraditório.
Não existe, pois, fundamento para a rejeição da impugnação da matéria de facto.

3.2. Da impugnação do ponto 26 da matéria de facto provada
A apelante impugnou o ponto 26 da matéria de facto provada no segmento em que se afirma que o apelante “actuou com o propósito de obter para si uma vantagem especial, passando a ser o único sócio…”
Considera esta asserção manifestamente conclusiva, por envolver matéria de direito, e não factual, logo não sindicável, convocando o artigo 646.º CPC pregresso, cujo princípio entendem que deve ser também aplicável no actual CPC: apenas os factos e não meras conclusões ou juízos de valor podem integrar a decisão da matéria de facto e fundamentar a sentença.
Entendendo que a sentença assente fundamentalmente nesse elemento conclusivo, pretende a procedência do recurso.
Noutra vertente, afirma que a prova produzida não é idónea para considerar a referida matéria como provada.
É o seguinte o teor do ponto 26 da matéria de facto provada:
26. Ao votar do modo referido em 24., E… atuou com o propósito de obter para si vantagem especial, passando a ser o único sócio detentor de quota da sociedade D…, Ld.ª, e, como tal, ter o domínio total sobre a mesma, assim afastando os herdeiros da quota do falecido sócio C… do exercício de qualquer direito social.
O Tribunal motivou assim a sua convicção, no que aqui releva:
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………………………………
………………………………

Apreciando:
A primeira questão que importa abordar prende-se com a prova do propósito de o sócio supérstite ter actuado com o propósito de obter para si uma vantagem especial, passando a ser o único sócio.
Contrariamente ao pretendido pelo apelante, a afirmação da intenção com que alguém actua não configura uma mera conclusão, traduzindo antes um “facto interno” (Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pg. 393), ou um “estado subjectivo” (Cláudia Sofia Alves Trindade, A Prova de Estados Subjectivos no Processo Civil).
São, aliás, inúmeras as normas jurídicas que integram na sua previsão factos internos: artigo 236.º, n.º 2, CC – vontade real do declarante e conhecimento dessa vontade pelo declaratário; 240.º, n.º 1, CC – intenção de enganar um terceiro; 244.º, n.º 1, CC – intenção de enganar o declaratário; 476.º, n.º 1, CC - intenção de cumprir uma obrigação; 612.º, n.º 2, CC – consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.
A eventual dificuldade de prova directa não impede que os factos internos possam
ser considerados em sede instrutória.
Os factos internos são, efectivamente, o campo privilegiado para a aplicação de presunções judiciais e regras de experiência.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. I, 4.ª edição revista e actualizada, pg. 312,
As presunções podem ser legais, se estabelecidas pela lei, ou judiciais, simples ou de experiência, quando assentam no simples raciocínio de quem julga. Estas últimas inspiram-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana.
Para Luis Filipe de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, Almedina, pg. 23-4,
A presunção pode definir-se como um raciocínio em virtude do qual, partindo de um facto que está provado (facto-base/facto indiciário), chega-se à consequência da existência de outro facto (facto presumido), que é o pressuposto fáctico de uma norma, atendendo ao nexo lógico existente entre os dois factos. Assim, a existência de uma presunção caracteriza-se pela seguinte estrutura:
FACTO-BASE /FACTO INDICIÁRIO + NEXO LÓGICO = PRESUNÇÃO
Naturalmente, na motivação da matéria de facto o Juiz deverá expor o raciocínio através do qual chegou à prova daquele estado interior para possibilitar a sindicância pelas partes e pelo Tribunal de recurso.
Passemos então à apreciação da impugnação do ponto 26 da matéria de facto provada, o que passa por analisar a prova testemunhal e determinar se os factos que constituíram a base da presunção permitem inferir, da actuação do sócio supérstite, o propósito de obter para si uma vantagem especial, passando a ser o único sócio.
A primeira observação que se impõe prende-se com o conceito de “vantagem especial”, que, aliás, não deveria figurar no elenco dos factos provados.
Esta expressão integra a previsão do artigo 58.º, n.º 1, alínea b), CSC, devendo ser traduzida por factos que a revelem.
Começam os apelantes por se insurgir-se contra o segmento da motivação da sentença em que o Tribunal recorrido assenta a sua fundamentação nos depoimentos das testemunhas F… e G…, filhos sócio falecido cuja quota foi amortizada, não só por terem interesse directo na lide, como também por estarem de relações cortadas com o apelante, seu tio, que fez cessar o seu vínculo laboral com a sociedade com justa causa quando assumiu a gerência.
Questionam ainda a desconsideração do depoimento das testemunhas C…, filho do apelante, e I…, funcionária da sociedade.
Por outro lado, os apelantes consideram incompreensível que o Tribunal, a partir dos pontos 6 a 9, 21, 14, 27 e 31 da matéria de facto provada, tenha concluído que o apelante actuou visando obter uma “vantagem especial” para si.
Vejamos o que resulta da globalidade da prova testemunhal produzida.
F…, filho da apelada e do falecido sócio cuja quota foi objecto de amortização, e sobrinho do apelante, tem manifesto interesse na decisão por ser co-titular da quota amortizada.
Por outro lado, tendo trabalhado como assessor da direcção na sociedade de 2002 a 2017, foi despedido pelo apelante quando este passou a exercer sozinho as funções de gerente.
Relatou a má relação existente entre o apelante e o seu falecido pai (traduzida também em acções judiciais recíprocas), que não falavam, nem em termos institucionais desde 2008, e na não aprovação das contas pelo apelante.
Referiu ainda o não fornecimento dos elementos a que se refere o ponto 19 da matéria de facto provada, documentos esses que se destinariam a permitir a análise da situação da sociedade e determinação do seu valor para poderem aferir da justeza da contrapartida que viesse — nunca foi — a ser apresentada na assembleia geral convocada para esse efeito.
Concluiu ter havido o propósito de afastá-los da sociedade.
G…, irmão da anterior testemunha e com idênticas relações de parentesco, que igualmente trabalhou como assessor da direcção entre 1996 e 2016, também despedido pelo apelante (a testemunha utilizou a expressão “saneamento” referindo-se aos despedimentos dele e do irmão), depôs em sentido idêntico. Não deixou de referir que o apelante não fazia segredo de que os queria afastar da sociedade.
C…, filho do apelante, sobrinho da apelada, primo das anteriores testemunhas e afilhado do sócio falecido, para além de relatar as divergências entre os dois sócios, esclareceu ter sido ele quem acedeu ao email enviado pela apelada e que elaborou, com a concordância do pai, a resposta à apelada, informando da impossibilidade de fornecer os elementos solicitados na janela temporal pretendida devido à extensão dos elementos pretendidos.
Afirmou ainda que o pai (o apelante) não aprovou as contas dos vários exercícios a partir de 2008 por não confiar na gestão do irmão, pois não acompanhava o dia a dia da sociedade, estando mesmo impedido de aceder ao escritório.
Confirmou o mau relacionamento entre os irmãos, primos e tios.
I…, testemunha comum, é funcionária da sociedade há mais de trinta anos, exercendo funções no escritório.
Foi encarregada pela gerência de coligir os elementos solicitados, tarefa que não pôde concluir por falta de tempo, referindo que o horário de almoço é das 12 h às 13.30 h. Teve de necessidade de recorrer ao arquivo morto.
J…, contabilista certificado da sociedade desde 1994 até 2015, e como tal responsável pelo acompanhamento, realização da contabilidade assessoria fiscal da empresa, corroborou a não aprovação de contas desde 2008, devido ao voto desfavorável do apelante.
K…, Revisor Oficial de Contas, sem ligação à sociedade, aconselhou a viúva de C…, ora apelada a pedir os elementos referidos em 19, que considerava importantes para apuramento do valor da quota.
Estes depoimentos contribuíram para a prova dos factos que serviram de base à presunção de que o apelante actuou com o propósito de obter para si “vantagem especial”, raciocínio que os apelantes contestam.
Entendeu a 1.ª instância que do depoimento de F… e G… resultou claro que, na sequência do conflito de E… com o seu irmão, aquele pretendeu afastar C… das decisões referentes aos destinos da sociedade, como também resulta claro que E… procurou afastar os filhos de C… da possibilidade de exercício de qualquer cargo na empresa, ou da titularidade da quota herdada na sequência do falecimento do seu pai, como expressivamente referiu F… em audiência, visando ficar sozinho, com o domínio total da sociedade e colocando o seu filho, C…, para o auxiliar nestas funções (este último, ouvido em audiência, confirmou que foi admitido a trabalhar na sociedade para auxiliar o seu pai na gerência), atuando, assim, em seu exclusivo interesse, com vista a obter vantagem especial.
Facto que também extraiu da tentativa de destituição de C… do cargo da gerência (cfr. pontos 6 a 8 da matéria de facto provada), pois que a sociedade se obrigava pela assinatura de dois gerentes (cfr. ponto 1. dos factos provados), sendo esta a forma de E… conseguir decidir, isoladamente, os destinos da sociedade mas também do despedimento dos dois filhos de C… e da integração, na sociedade, do seu filho, C… (cfr. ponto 9. dos factos provados).
É o seguinte o teor dos factos 6 a 9 da matéria de facto provada:

6. Em 16.04.2016, E… intentou ação judicial contra C… pedindo a suspensão e destituição deste, por justa causa, da qualidade de gerente da sociedade da D…, Ld.ª, e a condenação do mesmo a entregar ao Autor/Requerente as chaves das instalações da sociedade, bem como pediu a sua nomeação para o exercício das funções de gerente único da sociedade, a fim de o mesmo prosseguir o objeto social da sociedade e poder representá-la, sozinho, em todos os atos necessários à prossecução do seu fim.

7. No âmbito do processo supra referido, foi proferida sentença que julgou procedente a providência cautelar e consequentemente suspendeu C… como gerente da sociedade.

8. A decisão referida em 7. foi revogada por decisão proferida em 14.03.2017, transitada em julgado em 03.01.2018, na qual se determinou que C… assumisse de novo a gerência da sociedade D…, Ld.ª, passando esta a obrigar-se com a assinatura dos gerentes C… e E….

Se é certo que o apelante intentou acção de suspensão e destituição do seu irmão (o falecido sócio) e esta foi julgada improcedente, há que atentar em dois factos que descaracterizam esta situação como definidora do propósito de o apelante obter para si a “vantagem especial” de comandar sozinho os destinos da sociedade.

O primeira é que foi o falecido sócio quem, em primeiro lugar, intentou uma acção de destituição contra o apelante, a qual foi julgada improcedente, como resulta do ponto 4 da matéria de facto provada que se transcreve:
4. Em 25.06.2007, C… instaurou ação judicial contra E…, pedindo a destituição deste do cargo de gerente, por justa causa, da D…, Ld.ª, a qual correu termos no Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira sob o n.º 4329/07.9TBVFR e veio a ser julgada improcedente por sentença proferida em 18.11.2011.

O segundo facto descaracterizador propósito de o apelante obter para si a “vantagem especial” é que, em 16 de Junho de 2016 foi deliberado destituir o apelante da gerência da sociedade, deliberação essa que foi anulada por decisão transitada em julgado em 22.02.2017, conforme resulta da certidão do Registo Comercial relativa à sociedade (fls. 25 v.º e 26) — facto considerado ao abrigo do disposto no artigo 607.º, n.º 4, ex vi artigo 663.º, n.º 2, CPC.

É na sequência dessa decisão que se dá o facto n.º 9:

9. Quando assumiu as funções de único gerente, E… despediu os dois filhos deste sócio C… (G… e F…) que eram trabalhadores da sociedade e admitiu, como trabalhador da sociedade, o seu único filho, C….

As sucessivas acções e providências que os sócios desta sociedade intentaram um contra o outro mais não são que a expressão da litígio que existia entre os dois desde, pelo menos, 2007, altura em que o falecido sócio intentou a primeira acção contra seu irmão, pedindo a sua destituição do cargo de gerente da sociedade (cfr. ponto 4 supra transcrito).

Não vemos aqui nenhum plano maquinado pelo apelante para se apoderar dos destinos da sociedade em detrimento do outro sócio.

Por outro lado, a admissão do filho do apelante como funcionário da sociedade deve ser encarada com naturalidade visto tratar-se de sociedade familiar. Recorde-se que os filhos do falecido sócio, as testemunhas F… e G…, foram funcionários da sociedade durante 15 e 20 anos, respectivamente, até serem despedidos pelo apelante.

Também estes despedimentos (“saneamento”, na expressão da testemunha G…) não podem ser encarados como parte de um plano destinado beneficiar o apelante em detrimento do outro sócio, correspondendo ao exercício legítimo de um direito da entidade patronal.

Aliás, o Tribunal da Relação do Porto, revogando a decisão da 1.ª instância, considerou lícito o despedimento de G… (cfr. fls. 308-347).

Outro ponto que o Tribunal recorrido valorou como indiciador do propósito do apelante de obter “vantagens especiais” foi a falta de entrega de quaisquer elementos informativos referentes à situação económica e patrimonial da empresa (inclusive as declarações de IES e os balancetes analíticos, que poderiam ser facultados de forma praticamente imediata, pressupondo, naturalmente, que a sociedade tinha, como era seu dever, a contabilidade organizada - cfr. ponto 21).

Também aqui divergimos da apreciação da 1.ª instância.

Para podermos avaliar o alcance dessa falta de entrega dos documentos, importa compreender o seu contexto.

As convocatórias para as assembleias das sociedades por quotas devem ser expedidas com a antecedência mínima de 15 dias (artigo 248.º, n.º 3, CSC), nada indiciando que não tenha sido cumprida (consta do ponto 18 da matéria de facto provada que a carta registada era datada de 23.04.2018).
O pedido de entrega dos elementos informativos referentes à situação económica e patrimonial da empresa foi formulado pela apelada, através de correio electrónico, em 5 de Maio de 2018.
É o seguinte o teor da referida mensagem electrónica (ponto 19 da matéria de facto provada):

19. Em 05.05.2018, a A. remeteu ao gerente E… uma mensagem eletrónica com o assunto “pedido de informação e documentação” com o seguinte teor: “Nos termos do direito à informação previsto no artigo 214.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais, venho pelo presente, enquanto cabeça de casal da herança indivisa do Senhor C…, solicitar que me sejam prestadas, por escrito, durante a próxima segunda-feira (dia 7 de Maio de 2018), as seguintes informações e documentos:
i) Cópia das demonstrações financeiras (Balanço, Demonstração de Resultados,
Demonstração de Fluxos de Caixa, Demonstração das alterações nos capitais próprio e notas/anexo) e relatório da gestão referentes aos anos de 2016 e 2017;
ii) Balancete geral analítico antes de apuramento de resultados à data de 31 de dezembro de 2016 e 31 de dezembro de 2017;
iii) Balancete geral analítico relativo ao último mês do ano de 2018 com contabilidade encerrada;
iv) Cópia da declaração anual/Informação Empresarial Simplificada relativa ao ano de 2016;
v) Cópia da declaração de rendimentos Modelo 22 relativa ao ano de 2016;
vi) Cópia dos contratos de financiamento bancário, factoring, locação financeira/leasing ou outras formas de financiamento, celebrados nos anos de 2016, 2017 e 2018 até à presente data;
vii) Extratos contabilísticos de todas as contas da contabilidade relativos ao ano de 2016, de 2017 e de 1 de janeiro de 2018 até ao último mês com contabilidade encerrada de 2018;
viii) Informação e documentação relativa a atos de alienação ou oneração de bens ativos da Sociedade (designada mente, imóveis, máquinas e veículos, etc ...) ocorridos desde 1 de janeiro de 2016 até à presente data;
ix) Informação e documentação relativa às ações judiciais pendentes em que a Sociedade é parte;
x) Identificação de todas as contas bancárias (depósitos à ordem, depósitos a prazo, aplicações financeiras e outras) tituladas pela Sociedade e cópia dos respetivos extratos bancários relativos aos meses de dezembro de 2016, dezembro de 2017 e março de 2018;
xi) Identificação de todos os cartões de crédito da Sociedade e cópia dos respetivos extratos relativos aos meses de dezembro de 2016, dezembro de 201 e março de 2018;
xii) Procurações, designadamente, forenses, e fim a que se destinaram, subscritas somente por V. Exa.;
xiii) Montante do saldo atual dos suprimentos concedidos por cada sócio à Sociedade ainda não reembolsados aos sócios na presente data
xiv) Montante dos suprimentos realizados por cada um dos sócios e dos suprimentos reembolsados a cada um dos sócios nos últimos 25 anos;
xv) Listagem dos colaboradores e trabalhadores admitidos e demitidos desde 1 de janeiro de 2016 até à presente data e cópia dos respetivos contratos de trabalho e acordos de cessação, bem como dos recibos relativos às indemnizações pagas, quando aplicável;
xvi) Listagem dos prestadores de serviços contratados desde 1 de janeiro de 2016 até à presente data e cópia dos respetivos contratos de prestação de serviços;
xvii) Listagem dos inventários da sociedade com referência a 31 de dezembro de 2016 e 2017, com detalhe de quantidade e valor por referência;
xviii) Mapa resumo das remunerações processadas (com detalhe por colaborador, por rubrica de remuneração/descontos, por mês) pela Sociedade em 2016, 2017 e em 2018 (até 30 de abril de 2018); xix) Informação relativa a empréstimos e adiantamentos efetuados pela Sociedade a terceiros, em 2016, 2017 e em 2018 até à presente data;
xx) Cópia do mapa de responsabilidades do Banco de Portugal da Sociedade com referência a 31 de dezembro de 2016, 31 de dezembro de 2017 e 31 de março de 2018;
xxi) Relatório Único relativo ao ano de 2017;
xxii) Certidão predial e matricial dos imóveis detidos pela Sociedade;
xxiii) Mapas oficiais das depreciações e amortizações relativos aos anos de 2016 e 2017;
xxiv) Ficheiros SAFT da contabilidade e da faturação relativos aos anos de 2016,
2017 e 2018 (até ao último mês com contabilidade encerrada).
Procederei ao levantamento pelas 14 horas.”

Ora, o dia 5 de Maio de 2018 coincidiu com um sábado, altura em que a empresa se encontrava encerrada.

Por essa razão, e conforme referiu a testemunha I…, a empresa apenas tomou conhecimento do pedido no dia 7 de Maio, véspera da assembleia geral convocada para deliberar a amortização da quota.

Foi estabelecido pela requerente um prazo limite para a prestação da informação: as 14h desse dia 7 de Maio.

Tendo em conta o horário normal de funcionamento de um escritório, descontando a hora do almoço, e partindo do princípio que o teor do email foi conhecido logo no início do expediente, restariam três horas e meia para dar satisfação ao solicitado.

Recorde-se que foi pedido que a informação fosse prestada por escrito, o que implicou a tarefa de imprimir e fotocopiar documentos, afastando assim a afirmação da primeira instância de que alguns dos elementos poderiam ser facultados de forma praticamente imediata.

De sublinhar ainda a extensão do pedido, distribuído por 24 alíneas, algumas das quais implicaram deslocação ao arquivo morto. Destacamos, apenas, a alínea xiv:
xiv) Montante dos suprimentos realizados por cada um dos sócios e dos suprimentos reembolsados a cada um dos sócios nos últimos 25 anos.

Se o propósito da obtenção desses elementos era permitir a determinação do valor da quota a amortizar, como referiram as testemunhas F…, G… e K…, não se alcança a utilidade do montante de suprimentos e respectivos reembolsos dos últimos 25 anos.

Aliás, ainda que todos os elementos tivessem sido fornecidos, não se vê como seria possível analisá-los até à assembleia que teria lugar no dia seguinte às 11 h.

Não era possível à apelada prestar todas aquelas informações, por escrito, no exíguo período de tempo estabelecido pela apelada B… (até às 14 h do dia em que foi recebido o pedido de informação).

Se alguma ilação podemos retirar desta situação é que esse pedido traduziu um comportamento pré-ordenado no sentido de fabricar um fundamento para a impugnação da deliberação que viesse a ser tomada por falta de fornecimento de elementos de informação, o que, aliás, veio a suceder.

Com efeito, um dos fundamentos invocados para o pedido de anulação da deliberação de amortização da quota do sócio foi precisamente a não prestação dos elementos de informação solicitados. E, tendo o Tribunal considerado tal situação irrelevante por o representante dos herdeiros do sócio falecido não ter sido admitido a votar, essa questão não deixou de ser suscitada na ampliação do âmbito do recurso, que não foi admitida.

Segundo o Tribunal recorrido, outro elemento que aponta para o propósito do apelado em obter “vantagem especial” foi a sucessiva não aprovação de contas por parte do apelante.

Constitui direito do sócio não aprovar as contas de que discorda, sendo certo que não existem elementos que permitam afirmar que se tratou de uma actuação emulativa.

Sempre se dirá que estão previstos mecanismos legais que permitem ultrapassar a
situação de não aprovação das contas (cfr. artigo 68.º CSC).

Se é certo que o apelante não aprovou as contas, não é menos verdade que o membro da administração em exercício poderia / deveria ter lançado mão dos mecanismos legais para colmatar essa situação, e não o fez.

Com efeito, e ao contrário do que diz o Tribunal, não é ao sócio que incumbe ultrapassar a situação, designadamente requerendo uma perícia (a expensas suas?).
Por outro lado, não podemos dizer que a não aprovação das contas (desde 2008) traduza o propósito de obtenção de “vantagem especial” já que a deliberação impugnada tem como fundamento a morte do sócio, que não era obviamente previsível.

Finalmente, não se vê como da decisão de amortização da quota social do sócio falecido sem previamente as contas dos exercícios anteriores a esse acto estarem aprovados traduz uma vantagem especial.

A cláusula 10.ª do pacto social, quando estabelece que a contrapartida da amortização é calculada de acordo com o valor médio dos três últimos balanços aprovados, pressupõe um cenário de normalidade, em que as contas são aprovadas anualmente, pois é suposto que a contrapartida seja actual.

Estando fora de questão aplicar os valores decorrentes dos três últimos balanços aprovados — 2006, 2007 e 2008 — pela sua inadequação para traduzir o valor da quota, tudo se passa como se o pacto social não tivesse estabelecido a contrapartida da amortização.

Por essa razão, há que recorrer ao critério supletivo legal, constante do artigo 235.º CSC, sob a epígrafe “contrapartida da amortização”, como explicitaremos infra.

De todo o exposto resulta que a intenção do apelante ao votar a amortização da quota do sócio falecido foi evitar que a quota do falecido sócio se transmitisse aos seus herdeiros.
Assim, o ponto 26 da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção:
26. Ao votar do modo referido em 24., E… atuou com o propósito de evitar a transmissão da quota do falecido sócio para os seus herdeiros.

3.3. Da natureza abusiva da deliberação
A matéria da invalidade das deliberações sociais consta dos artigos 56.º e 58.º CSC.: o primeiro artigo trata das deliberações nulas e o segundo das anuláveis.

Assim, dispõe o artigo 56.º CSC:

1- São nulas as deliberações dos sócios
a) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados;
b) Tomadas mediante voto escrito sem que todos os sócios com direito de voto tenham sido convidados a exercer esse direito, a não ser que todos eles tenham dado por escrito o seu voto;
c) Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios;
d) Cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.
2 - Não se consideram convocadas as assembleias cujo aviso convocatório seja assinado por quem não tenha essa competência, aquelas de cujo aviso convocatório não constem o dia, hora e local da reunião e as que reúnam em dia, hora ou local diversos dos constantes do aviso.
3 - A nulidade de uma deliberação nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 não pode ser invocada quando os sócios ausentes e não representados ou não participantes na deliberação por escrito tiverem posteriormente dado por escrito o seu assentimento à deliberação.

E o artigo 58.º é do teor seguinte:

1 - São anuláveis as deliberações que:
a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.º, quer do contrato de sociedade;
b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos;
c) Não tenham sido precedidas do fornecimento ao sócio de elementos mínimos de informação.
2 - Quando as estipulações contratuais se limitarem a reproduzir preceitos legais, são estes considerados directamente violados, para os efeitos deste artigo e do artigo 56.º
3 - Os sócios que tenham formado maioria em deliberação abrangida pela alínea b) do n.º 1 respondem solidariamente para com a sociedade ou para com os outros sócios pelos prejuízos causados.
4 - Consideram-se, para efeitos deste artigo, elementos mínimos de informação:
a) As menções exigidas pelo artigo 377.º, n.º 8;
b) A colocação de documentos para exame dos sócios no local e durante o tempo prescritos pela lei ou pelo contrato.

A sentença recorrida socorreu-se dos dois normativos sublinhados para considerar abusiva a deliberação que amortizou a quota do falecido sócio.

Tal amortização ocorreu ao abrigo da cláusula 11.ª do pacto social que estabelece que Em caso de falecimento ou interdição de qualquer sócio, a sociedade poderá amortizar a respectiva quota, nos termos do artigo décimo, ou continuar com os sócios sobrevivos ou capazes e os herdeiros do sócio falecido ou o representante legal do incapaz.

Trata-se de cláusula frequente nos contratos de sociedade, destinadas a limitar a transmissibilidade das quotas da sociedade aos herdeiros do sócio falecido nos termos do direito sucessório, deixando-a na disponibilidade da sociedade.

A sentença recorrida considerou esta deliberação abusiva com a seguinte argumentação:

Resulta dos factos provados que, na Assembleia Geral da “D…, Lda.”, realizada no dia 8 de Maio de 2018, foi deliberado, com o voto do único sócio E… (titular da quota no valor nominal de € 52.500,00), amortizar a quota do sócio falecido C… pela contrapartida correspondente ao valor médio que resulta dos três últimos balanços aprovados, efetuando-se o pagamento em três prestações semestrais e iguais, sem vencimento de juros, representadas por letras aceites pela Sociedade e avalizadas pelo seu gerente, vencendo-se a primeira das prestações em causa seis meses depois de deliberada a amortização.
Na sequência dessa deliberação, E… declarou “que a satisfação da contrapartida da amortização, nos termos atrás referidos, não põe em causa a integridade do capital social, continuando a situação líquida a ser superior à soma do capital e da reserva legal, destarte se cumprindo a exigência do artigo 236.º, n.º1, do Código das Sociedades Comerciais”.
Também se provou que, à data dessa deliberação encontravam-se unicamente aprovadas e depositadas na Conservatória do Registo Comercial as contas “D…, Lda.” referentes aos anos/exercícios de 2000, 2004, 2005, 2006, 2007 e 2008.
A não aprovação das contas do exercício nos anos subsequentes a 2008 até à data da deliberação ocorreu em virtude do voto desfavorável de E… que, por discordar dos atos de gerência do seu irmão, C… e duvidar da veracidade da situação patrimonial da sociedade “D…, Lda.”, não votava favoravelmente as contas que lhe eram apresentadas (cfr. ponto 28 dos factos provados), o que conduziu a que na assembleia-geral da sociedade “D…” realizada no dia 23/07/2016, E…, representado por C…, tivesse votado contra a aprovação das contas dos exercícios de 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015 (cfr. ponto 14 dos factos provados).
Já ulteriormente a essa deliberação, concretamente em 11/7/2018 foram depositadas na Conservatória do Registo Comercial as contas da “D…, Lda.” referentes aos anos de 2017 e 2016, em 18/09/2018 foram depositadas as contas referentes aos anos de 2014 e 2015 e em 19/09/2018 foram depositadas as contas referentes aos anos de 2013, 2012, 2011, 2010 e 2009 (cfr. pontos 29, 30 e 31 dos factos provados).
Ora, a deliberação em causa reproduziu, como dissemos no ponto anterior, aquilo que já constava do pacto social, mormente no que respeita ao valor da contrapartida pela amortização da quota.
Destarte, nos termos do artigo Décimo do Contrato Social da Ré, a sociedade fica com o direito de amortizar pelo valor médio que resultar dos últimos três balanços aprovados, devendo entender-se, naturalmente, que os sócios quiseram convencionar que os três últimos balanços aprovados são aqueles que antecedem o evento que conduziu à possibilidade de amortização ou, pelo menos, a data da deliberação, pois só essa decisão obedece ao princípio da atualidade, e não eventuais balanços antigos, que a sociedade tenha aprovado em anos anteriores, já que o que se visa é apurar uma contrapartida do valor atual devido pela amortização.
Sucede que, no caso vertente, à data da deliberação tais balanços não estavam aprovados.
Aliás, as contas da sociedade não eram aprovadas desde 2008, face aos desentendimentos entre os sócios, e a deliberação foi tomada em 2018 (dez anos depois).
Poderemos, assim, dizer, com certeza e segurança, que o valor devido pela amortização da quota era determinável a essa data?
Obviamente que não.
A deliberação para ser tomada e os votos para serem exercidos legal e conscientemente pressupunham que o valor pudesse ser liquidado (fixado) a essa data (independentemente, até, de constar na ata o resultado dessa operação).
O que já não pode suceder, na nossa perspetiva, é que o(s) sócio(s) deliberem uma amortização cujo valor líquido não é suscetível de ser apurado no momento dessa deliberação.
Dito de outro modo, sempre careceria tal valor de ser determinável à data da deliberação, precisamente com vista a evitar comportamentos abusivos e, desde logo, por forma a aferir do preenchimento dos demais pressupostos legais para a amortização.
É que, para além da hipótese da amortização dever estar legal ou estatutariamente prevista ou ser possível com o consentimento do sócio, a amortização da quota depende também do preenchimento de pressupostos legais específicos.
Desde logo, é necessário que a quota esteja inteiramente liberada (cfr art.º 232.º, n.º3, do CSC), por forma a garantir a observância do princípio da exata formação do capital social.
É ainda necessário que, com referência à data da deliberação, o valor do património social líquido, depois de subtraído o montante da contrapartida da amortização, seja igual ou superior ao valor do capital social somado ao da reserva legal (a não ser que simultaneamente se reduza o capital, de modo a impedir que o património fique abaixo da soma do capital social e da reserva legal) – cfr. art.º 236.º, n.º1, do CSC.
Ora, no caso vertente, não é possível aferir do preenchimento destes pressupostos, precisamente porque os mesmos pressupõem a aprovação de contas (que é uma das obrigações mais importantes que uma sociedade comercial tem).
E é da mais elementar certeza que nenhuma utilidade tem a referência feita na amortização da deliberação à verificação do requisito tutelador dos interesses dos credores sociais previsto no art.º 236.º, n.º1, do CSC, se não puder verificar-se, na prática, o preenchimento/a observância deste requisito.
A deliberação tomada até pode ficar sem efeito designadamente se, à data do vencimento da obrigação de pagar a contrapartida, se verificar que o património social líquido vale, ou ficaria a valer menos que a soma do capital e da reserva legal em consequência do pagamento (art.º 236.º, n.º3, do CSC).
Contudo, à data da deliberação, para ela ser corretamente tomada, têm que ser observados os ditos requisitos, sob pena de a deliberação ser nula, por o conteúdo ser ofensivo de preceitos legais que não podem ser derrogados nem por vontade unânime dos sócios (art.º 56.º, n.º1, al. d), do CSC).
No caso vertente, não é possível aferir se os pressupostos legais para amortização da quota se encontram integralmente verificados.
Mas mais.
E…, quando exerceu o seu direito de voto sabia que não se encontravam reunidas as possibilidades de confirmar o preenchimento desses requisitos, pois sabia que não havia contas aprovadas desde 2008.
E sabia também que as contas não tinham sido aprovadas exclusivamente em virtude do seu voto negativo.
Ao invés de cuidar primeiro da aprovação das contas da sociedade (deliberação na qual os herdeiros do sócio falecido C… podiam participar e votar através do seu representante, pois é uma deliberação suscetível de afetar os direitos inerentes à quota e, em última análise, o seu valor), E… procurou “contornar” esse momento (no qual, inclusivamente, podia ter sido realizada uma perícia à contabilidade, o que permitia apurar um valor mais fino ou depurado da quota do sócio falecido) e, de forma enviesada, ultrapassou-o, votando diretamente, sozinho, a amortização da quota e remetendo para uma fórmula genérica de cálculo consagrada no pacto social.
Também não podemos esquecer que, logo após a deliberação (em julho e setembro de 2018), E… apressou-se a aprovar, sozinho, e de forma seguida, todas as contas cuja aprovação se encontrava pendente (cfr. pontos 29 a 31 dos factos provados), agora como sócio único, “legitimado” pela deliberação da amortização da quota de C…, o que lhe permitiria “moldar”, ainda que de forma indireta, o valor da contrapartida a pagar aos herdeiros do sócio.
Aqui chegamos, parece-nos evidente que o voto de E… não poderá deixar de ser considerado abusivo, porquanto é apropriado a satisfazer o seu propósito de conseguir, através do exercício do direito de voto, uma vantagem especial para si (decidir sozinho os destinos da “D…”, ao arrepio de qualquer posição contrária aos seus interesses pessoais, v.g. que possa ser expressa através de voto dos herdeiros da quota do co-sócio falecido C…), em prejuízo dos sucessores do sócio C… (que, aberta a sucessão, adquirem, em comum e sem determinação de parte ou de direito, a titularidade dessa quota e têm um legítimo direito de defender os interesses da mesma), desconsiderando, por completo, os interesses destes últimos e não lhes permitindo sequer ter qualquer intervenção na defesa dos mesmos.
Provado ficou também o elemento subjetivo (na modalidade dolo direto) correspondente
à sua conduta objetiva, traduzido no propósito de obter essa vantagem especial para si (cfr. ponto 26 dos factos provados).
Os impugnados, por seu turno, não fizeram a “prova da resistência”, ou seja, de que sem o(s) voto(s) daquele(s) sócio(s), a deliberação teria sido igualmente adotada. Pelo contrário, sem o voto único daquele sócio, a deliberação não teria sido tomada.
Pelo que a sua conduta é plenamente integrável na hipótese prevista no art.º 58.º,n.º1, al. b), do CSC.
E ainda que o elemento subjetivo não se tivesse provado, tal como vimos, sempre a conduta de E… seria escrutinada no quadro das regras do abuso de direito (art.º 334.º, do CC) – por violar o princípio da boa fé e por integrar a modalidade de venire contra factum proprium (comportamento contraditório), na medida em que E… recusou sistematicamente a aprovação das contas da sociedade mas depois votou favoravelmente a amortização da quota do co-sócio, remetendo o apuramento do valor da sua contrapartida para essas contas (inexistentes, e por motivo a si imputável) – ou no quadro previsto no art.º 58.º, n.º1, al. a), do CSC, por violação do princípio da igualdade e da lealdade dos sócios (conforme já analisado supra).
Em suma, tendo por base o art.º 58.º, n.º1, al. b), do CSC (ou com arrimo subsidiário no art.º 334.º, do CC ou na alínea a) do n.º1 do art.º 58.º, do CSC), chegamos à conclusão que a deliberação tomada no dia 8 de maio de 2018 é inválida, mais precisamente anulável, devendo, como tal ser declarada.
Procede, assim, a pretensão da Autora.

A sentença recorrida considerou a deliberação de amortização inválida por não se mostrarem aprovadas as contas que permitiriam calcular o valor da amortização da quota do sócio falecido, de acordo com a cláusula 10.ª do pacto social: valor médio que resultar dos últimos três balanços aprovados.

Com efeito, as últimas contas aprovadas reportam-se ao exercício de 2008, sendo inidóneas para proceder ao cálculo da contrapartida, pois aquela cláusula tem de ser interpretada como reportada às contas dos três últimos exercícios anteriores à deliberação, por forma a se apurar um valor actualizado da quota. Dez anos é muito tempo na vida de uma sociedade.

Numa situação de funcionamento regular de uma sociedade as contas são aprovadas anualmente, como manda a lei (artigo 65.º, n.º 5, CSC).

A não existência de contas aprovadas acarreta, segundo a sentença recorrida, a nulidade da deliberação, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, alínea d), CSC, por contrariar norma imperativa — o artigo 236.º, n,ºs 1 e 2, CSC.
Nos termos do n.º 1 deste normativo, A sociedade só pode amortizar quotas quando, à data da deliberação, a sua situação líquida, depois de satisfeita a contrapartida da amortização, não ficar inferior à soma do capital e da reserva legal, a não ser que simultaneamente delibere a redução do seu capital.
Acrescenta o n.º 2 que A deliberação de amortização deve mencionar expressamente a verificação do requisito exigido pelo número anterior.
Na deliberação de amortização consta efectivamente a menção de que a satisfação da contrapartida da amortização, nos termos atrás referidos, não põe em causa a integridade do capital social, continuando a situação líquida a ser superior à soma do capital e da reserva legal, destarte se cumprindo a exigência do artigo 236.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais (ponto 25 da matéria de facto provada).

Alguma doutrina considera excessiva a solução consagrada de a intangibilidade do capital social ter de ser reportada a dois momentos distintos: o da deliberação e o do vencimento da obrigação de pagar a contrapartida da amortização, já que a tutela dos credores se basta com a verificação no segundo momento, sendo-lhe indiferente que ocorra, ou não, no momento da deliberação (Ferrer Correia, A Sociedade por Quotas de Responsabilidade Limitada, ROA, 47, III, pg. 698-9, e Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Almedina, 3.ª ed., pg. 826).

Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, vol. I, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, pg. 723-4, concorda com a dupla verificação, explicando que a verificação do requisito no momento do vencimento da obrigação é da responsabilidade do gerente; a verificação do requisito no momento da deliberação compromete o sócio na apreciação da situação da sociedade antes de emitir o seu voto.

Este autor adverte que a lei não exige a elaboração de balanço especial para a verificação deste requisito, devendo, no entanto, ser fornecidos aos sócios elementos contabilísticos para o efeito.

Reconhece, porém, op. cit., pg. 702, que esta disposição tem pouco efeito prático por a lei não impor a demonstração concreta desse pressuposto, eventualmente pela sua dificuldade.

Entendemos, assim, que para a validade da deliberação basta a declaração a que alude o artigo 236.º, n.º 1, CSC.

A parte interessada na nulidade da deliberação é que terá o ónus de demonstrar que a contrapartida da amortização colide com a manutenção do capital social.

Somos, assim, remetidos para outra questão a que a sentença recorrida respondeu negativamente: se o valor da contrapartida da amortização era determinável à data da deliberação, i.e., se se encontravam reunidos os pressupostos legais de que dependia a amortização.
Vejamos:

Segundo a sentença recorrida, quando o apelante exerceu o seu direito de voto sabia que não se encontravam reunidas as possibilidades de confirmar o preenchimento desses requisitos, pois sabia que não havia contas aprovadas desde 2008, por ter votado negativamente.

E que apenas aprovou as contas posteriormente à amortização da quota por forma a impedir que os herdeiros do falecido sócio pudessem participar na votação através de um representante comum, defendendo os seus interesses. E que até podia ter realizado uma perícia à contabilidade para apuramento de um valor mais fino ou depurado, na expressão da sentença.

Assim, por que pôde aprovar as contas sozinho, “moldando” o valor da contrapartida a pagar aos herdeiros do sócio falecido, conclui a 1.ª instância que o voto do apelante tem de ser considerado abusivo, “porquanto é apropriado a satisfazer o seu propósito de conseguir, através do exercício do direito de voto, uma vantagem especial para si (decidir sozinho os destinos da “D…”, ao arrepio de qualquer posição contrária aos seus interesses pessoais, v.g. que possa ser expressa através de voto dos herdeiros da quota do co-sócio falecido C…), em prejuízo dos sucessores do sócio C… (que, aberta a sucessão, adquirem, em comum e sem determinação de parte ou de direito, a titularidade dessa quota e têm um legítimo direito de defender os interesses da mesma), desconsiderando, por completo, os interesses destes últimos e não lhes permitindo sequer ter qualquer intervenção na defesa dos mesmos”.

A não aprovação de contas desde 2008 devido ao voto negativo do apelante não tem necessariamente o alcance que a 1.ª instância lhe emprestou e que conduziu à conclusão de que a deliberação era abusiva.

Em primeiro lugar, e como já se referiu supra, o voto negativo do apelante durante 10 anos não permite, sem mais, lançar-lhe um juízo de censura, pois não está demonstrado que se tenha tratado de uma sistemática oposição gratuita, sem fundamento. Não sabemos as razões do voto negativo, o que impede a formulação de juízos de censura.

Em segundo lugar, como também já se disse, existem mecanismos legais que permitem ultrapassar o impasse, e que poderiam / deveriam ter sido desencadeados pela gerência. E não foram.

No entanto, também não temos elementos que permitam censurar essa omissão.

Em terceiro lugar, atento o prazo para amortização da quota (90 dias a contar do conhecimento do facto que permite a amortização — artigo 234.º, n.º 2, CSC), não sabemos se havia condições para se aprovarem 10 anos de contas (não sendo de excluir a possibilidade de, mais uma vez, não se lograr a aprovação das mesmas).

Em quarto lugar, não corresponde ao espírito da cláusula 10.ª do pacto social calcular
o valor da quota com base em exercícios aprovados posteriormente à deliberação — há que atender aos três últimos balanços aprovados em momento anterior à deliberação de amortização.

Se o cálculo tivesse de ser feito de acordo com as contas aprovadas posteriormente à amortização, não poderíamos deixar de acompanhar o raciocínio da 1.ª instância.

Pensamos não ser essa, porém, a solução adequada.

É irrelevante a deliberação remeter para a cláusula que prevê o cálculo da contrapartida uma vez que não constitui requisito da deliberação a indicação do montante da contrapartida a pagar pela amortização da quota.

Não sendo a cláusula que prevê o critério de cálculo da contrapartida da amortização passível de aplicação por inexistência de contas aprovadas, há que recorrer ao critério legal supletivo que consta do artigo 235.º, n.º 1, alínea a) CSC: a contrapartida da amortização é o valor da liquidação da quota, determinado nos termos do artigo 105.º, n.º 2, CSC, com referência ao momento da deliberação.
O artigo 105.º, n.º 2, remete para o 1021.º CC, que, por seu turno remete para o artigo 1018.º, n.ºs 1 a 3, do mesmo diploma.
Como refere Menezes Cordeiro, Código cit., pg. 824,
Destas sucessivas remissões resulta que o valor da quota é fixado com base no estado da sociedade, à data da deliberação de amortização, por um ROC designado por mútuo acordo ou, na falta deste, pelo tribunal, sem prejuízo de qualquer das partes poder requerer uma segunda avaliação.
Pensamos ser esta a forma de conciliar os interesses em jogo: o interesse da sociedade em amortizar a quota, evitando a transmissão da quota para as herdeiros do sócio falecido e ultrapassando um fator de bloqueio do funcionamento da sociedade (cada um dos sócios, irmãos entre si, detinha quotas representativas de 50% do capital social, existindo um clima de litígio permanente entre eles); o interesse dos herdeiros do sócio falecido em obterem uma contrapartida justa.

Não podemos acompanhar a sentença quando considera abusivo o voto do apelante por adequado a satisfazer o seu propósito de obter uma vantagem especial para si — decidir sozinho os destinos da sociedade, ao arrepio de qualquer posição contrária aos seus interesses pessoais, que pudesse ser expressa através de voto dos herdeiros da quota do co-sócio falecido), desconsiderando os interesses destes últimos e não lhes permitindo sequer ter qualquer intervenção na defesa dos mesmos.

Importa, por isso, apreciar se o apelante conseguiu, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si, em prejuízo da sociedade ou dos herdeiros do sócio falecido (cfr. artigo 58.º, n.º 1, alínea b), CSC).
Nas palavras de Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Almedina, vol. II, pg. 513,
“Vantagens especiais” são proveitos patrimoniais (ao menos indiretamente) por deliberação concedidos, possibilitados ou admitidos a sócios e/ou não-sócios, mas não a todos que se se encontrem perante a sociedade em posição semelhante à dos beneficiados, bem como os proveitos que, quando não haja pessoas em situação semelhante à daqueles não seriam (ou não deveriam ser) concedidos, possibilitados ou admitidos a quem hipoteticamente ocupasse posição equiparável.”

Como sublinha o acórdão do STJ, de 19.05.2015, Fonseca Ramos, www.dgsi.pt.jstj, proc. n.º 477/03.2TBVNO.C3.S1,
A deliberação social abusiva exprime um acto disfuncional, porquanto não visa acautelar os direitos da sociedade mas, ao invés, é estranha a essa finalidade, do ponto em que apenas almeja satisfazer o propósito do sócio ou sócios que assim, através do voto, colhem para si, ou para terceiros, vantagens que prejudicam a sociedade ou outros sócios.
Se com tal prática houver prejuízo para a sociedade ou outros sócios “a consequência é a anulabilidade” – Professor Oliveira Ascensão, in “Direito Comercial”, Vol. IV, Sociedades Comerciais”, 1993, pág. 291.

O propósito do apelante decidir sozinho os destinos da sociedade é perfeitamente legítimo, e decorre naturalmente da deliberação de amortização da quota do sócio falecido: sendo apenas dois sócios, e a quota do sócio falecido for amortizada, o sócio supérstite passa a decidir sozinho os destinos da sociedade.

Este resultado foi querido pelos sócios fundadores e a solução se aplicaria nos mesmos termos se a posição dos sócios se invertesse.

Os benefícios para a sociedade são evidentes, pois deixa de estar sujeita ao bloqueio resultante do desentendimento entre os dois sócios.

Os herdeiros não saem prejudicados por lhe ser paga a devida contrapartida. São sucessores do sócio que acordou em estabelecer o óbito do sócio como causa de amortização compulsiva da quota, para evitar a entrada dos sucessores na sociedade.

Estas cláusulas são frequentes na sociedades em que a pessoa dos sócios é relevante, assenta numa relação de confiança.

Pelo exposto, não se vê que a deliberação em causa possa ser considerada abusiva, ao abrigo do disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea b), CSC..
Entende ainda a 1.ª instância que, mesmo que o elemento subjetivo não se tivesse provado, sempre a conduta do apelante seria escrutinada no quadro das regras do abuso de direito (art.º 334.º, do CC) – por violar o princípio da boa fé e por integrar a modalidade de venire contra factum proprium (comportamento contraditório), na medida em que recusou sistematicamente a aprovação das contas da sociedade mas depois votou favoravelmente a amortização da quota do co-sócio, remetendo o apuramento do valor da sua contrapartida para essas contas (inexistentes, e por motivo a si imputável).

Sem aprofundar a questão da aplicabilidade da cláusula geral do artigo 334.º CC à deliberações sociais por manifesta desnecessidade (remetemos para o acórdão da
Relação de Lisboa, de 14.02.2013, Teresa Albuquerque, www.dagi.ptjtrl, proc. n.º 8056/12.7T2SNT.L1-2), também nesta vertente não acompanhamos a 1.ª instância.

Para além de não podermos assacar um comportamento ilícito, censurável, ao apelante por não aprovar as contas, o abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, pressupõe uma situação de confiança relativamente a comportamento anterior que é contrariado com o acto abusivo.

Como se escreveu no citado acórdão do STJ:

O abuso do direito, sobretudo na modalidade de venire contra factum proprium, tem de evidenciar uma conduta reprovada pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico ou social do direito, tornando patente um comportamento que trai a confiança incutida por uma conduta anterior, que outra ulterior em contradição com aquela torna censurável e que, clamorosamente, desvirtua a funcionalidade do direito.
Procede, pois, a apelação.
4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida, absolvendo-se os apelantes do pedido.
Custas pela apelada (artigo 527.º CPC).

Porto, 16 de Junho de 2020
Márcia Portela
José Igreja Matos
Rui Moreira