Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
I. O que se prevê na norma do n.º 1 do artigo 421º do Código de Processo Civil é a possibilidade de apenas algumas provas – depoimentos e perícias – produzidas num processo poderem ser invocadas noutro processo contra a mesma parte, tendo em vista a prova de factos que hajam sido alegados no processo onde se invoca a valoração de tais provas e que nele sejam objecto de instrução e prova. O que está em causa neste preceito é, pois, o valor extra-processual da prova e não o valor extra-processual dos factos dados como provados noutro processo.
II. Apesar da sua liberdade de julgamento, traduzida na livre apreciação das provas, incluindo a pericial, o julgador não pode, sem fundamentos suficientemente sólidos, afastar-se do resultado das peritagens, a não ser que se conclua que os peritos basearam o seu raciocínio em erro manifesto ou critério legalmente inadmissível.
III. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
IV. O facto de os réus na presente acção terem na acção administrativa, já decidida com trânsito em julgado, a posição de contra-interessados, em face da estrutura própria do processo administrativo, não afasta a verificação do requisito de identidade das partes exigido pelo n.º 2 do artigo 581º do Código de Processo Civil, pois o que releva para este feito é a qualidade jurídica das partes, que é substancialmente idêntica em ambos os processos. Os contra-interessados mais não são do que aqueles que são directamente prejudicados no processo ou que têm um legitimo interesse na manutenção do acto impugnado (cfr. artigo 57º do CPTA), tendo, assim, idêntica posição à que os réus têm no processo civil, em face do disposto no artigo 30º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
V. Tendo transitado em julgado o acórdão proferido na acção administrativa intentada pelas aqui autoras, que julgou improcedente a acção, onde era invocada a violação do artigo 73º do RGEU pelas obras edificadas pelos aqui réus, ali demandados como contra-interessados, julgando-se não ser a mesma aplicável ao caso, esta decisão passou a constituir caso julgado material, quanto à questão da aplicação do regime do artigo 73º do RGEU às obras em apreço, o que impede que a mesma volte a ser apreciada noutra acção em que intervenham as mesmas partes.
VI. Constituída a servidão de vistas, ao proprietário vizinho, só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras que importam a servidão de vistas o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras.
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. AA e BB intentaram contra CC e marido, DD, acção declarativa, com processo comum, pedindo que pela sua procedência:
a. Seja a R. condenada a demolir as obras efectuadas em violação dos arts. 1362º do Cod. Civil e 73º do RGEU, reconhecendo a servidão de vistas inerente à janela existente no prédio propriedade da A. AA que deita directamente para o prédio da R., deixando uma distância mínima de três metros de separação da edificação em relação à janela;
b. Seja a R. condenada em sanção pecuniária compulsória por cada dia em que, proferida sentença transitada em julgado que determine a demolição, se abstenha de o fazer, em valor diário não inferior a euros 50,00 (art. 829ºA do Cod. Civil);
c. Seja a R. condenada a pagar à A. BB a quantia de euros 20.000,00, acrescida de juros á taxa legal desde a data da sua citação até integral pagamento.
2. Para tanto alegaram, em síntese, que:
• A A. AA é dona e legitima proprietária da fracção autónoma identificada pela letra “A”, a que corresponde o rés-do-chão e primeiro andar para habitação, com entrada pelo nº 73 da ..., do prédio urbano sito na ..., nºs 71, 73 e 75 e ..., nºs 28 e 30, ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 28 e inscrito na matriz sob o art. 4856;
• A A. BB habita na referida fracção, onde tem a sua residência permanente;
• A R. por seu turno, é dona e legitima proprietária do prédio urbano, composto de edifício de rés-do-chão para habitação, anexo de arrecadação e logradouro, sito na ..., nº 77, ..., freguesia de ..., concelho de ..., também descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 49 e inscrito na matriz sob o art. 2025, tendo adquirido o mesmo por escritura publica lavrada em 14 de Outubro de 2008;
• Os referidos prédios são contíguos;
• O imóvel propriedade da A. AA sempre teve uma janela, com cerca de metro e dez de comprimento por metro e vinte de altura, desde a sua construção, que ocorreu anteriormente a 1951, que deita directamente para o prédio vizinho, propriedade da R;
• No prédio que ora é da R., apenas existiam algumas ruínas, de altura quase térrea, nada havendo que tapasse ou obstruísse a vista da janela do prédio propriedade da A. AA.
• Em finais de 2009, começou a ser edificado um edifício no prédio propriedade da R; e
• Com o desenvolvimento da construção, em meados de Fevereiro de 2010, as AA. perceberam que a janela acima referida iria ficar completamente emparedada, o que efectivamente ocorreu poucos dias depois, tendo a janela do prédio das AA. ficado completamente obstruída, por ter sido edificado no prédio contiguo uma placa que coincide com o parapeito da janela do prédio das AA., e colocadas paredes em cada um dos lados da janela, coincidentes com os limites laterais da janela, em face do que o prédio das AA. passou a ter, imediatamente a si chegada, sem qualquer espaço de separação, um saguão emparedado imediatamente em frente à mesma janela, que deixou de ter quaisquer vistas e já não recebendo a casa das AA. qualquer luz proveniente da mesma janela.
Assim, concluíram que a construção que se encontra a ser efectuada no prédio da R. viola o disposto no artigo 1362º, n.º 2, do Código Civil, na medida em que, constituída servidão de vistas a favor do prédio das AA (em atenção ao disposto no n.º 1 do mesmo artigo), a edificação que se encontra a ser levada a cabo no prédio da R. não observa a distancia de metro e meio determinada no citado comando legal, e viola também o disposto no artigo 73º do RGEU (Decreto-Lei nº 38382, de 7 de Agosto de 1951, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei 555/99, de 16 de Dezembro e 177/2001, de 4 de Junho, e inerentes republicações).
Invocaram ainda que:
• Pela referida janela, efectuava-se a circulação de ar, o arejamento, a entrada de luz natural e todas as demais funções próprias de uma janela, para a divisão da casa que a mesma janela serve - a sala de estar -, sem qualquer alteração desde a data de construção do prédio, anterior a 1951, e
• A A. BB ficou, assim, privada de receber luz natural na divisão do seu imóvel, apenas servida pela janela em causa, o que ocorre há mais de dois anos consecutivamente e lhe causa um significativo mal estar, uma depressão constante e uma situação de tristeza, estando praticamente privada de utilizar a sala de estar de sua casa, além de que a fracção ficou significativamente desvalorizada.
3. Citados, os RR. apresentaram contestação, onde começaram por pedir a suspensão do processo por pendência de causa prejudicial, alegando que as AA. intentaram também acção que estava a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, processo nº 512/10.8..., contra o Município de ... e os Réus, na qual pediram a adopção das medidas necessárias com vista à eliminação das paredes que se encontram em execução na ..., nº 77, em ..., ao abrigo do alvará nº 144/09, por tal execução violar o artigo 73º do REGEU, devendo ainda a mesma entidade ser condenada a não emitir qualquer título, designadamente licença de utilização, enquanto tal ilegalidade não fosse reparada, e declarado nulo o licenciamento concedido a EE, uma vez que carecia de legitimidade para requerer tal licenciamento.
No mais, arguiram ilegitimidade da A. BB, alegando que não foi feita prova de que a mesma reside no prédio da 1ª A., carecendo de interesse/legitimidade para a presente acção, refutaram que a janela do prédio da A. remontasse a 1951 e negaram que existisse qualquer emparedamento da mesma, já que em frente à janela existe um saguão e a parede fronteira do mesmo dista 3 mts. da janela, concluindo pela sua absolvição do pedido.
4. As AA apresentaram réplica, onde responderam à excepção de ilegitimidade e reiteraram a posição veiculada na petição inicial.
5. Os autos ficaram suspensos, a aguardar a decisão da acção administrativa acima aludida (cf. despacho ref.ª 89170953).
Nessa acção veio a ser proferida decisão, transitada em julgado em 27/01/2022, que, em recurso, julgou improcedente a acção, com a absolvição dos RR. do pedido.
6. Determinado o prosseguimento dos autos, teve lugar a audiência prévia, no âmbito da qual foi solicitado às AA. que clarificassem o 2º segmento do pedido da alínea a), em termos de esclarecerem se o que pretendem é o reconhecimento de uma servidão de vistas por usucapião, ao que as AA. responderam afirmativamente.
Mais foi indicado pelas AA., após convite, que a construção dos RR. não tem qualquer distância da janela, estando encostada à pedra que envolve a janela, que se situa na lateral direita, se estivermos de frente para a casa.
Proferiu-se despacho saneador, no qual se concluiu pela legitimidade de ambas as AA..
No mais, foi identificado o objecto do litígio e seleccionados os temas de prova, sem reclamação.
7. Apresentado o relatório da perícia ordenada e realizada a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença, na qual se decidiu julgar:
1. Procedente por provado o pedido de constituição de uma servidão de vistas, na janela a que se alude no ponto 4, pelo que se declara constituída uma servidão de vistas por usucapião, do prédio nº 49/19850213 da Conservatória do Registo Predial de ..., em benefício do prédio descrito na Conservatório do Registo Predial de ... sob o nº 28/19841126, numa extensão correspondente à referida janela.
2. A existência de caso julgado em relação ao pedido de apreciação de violação do artº 73º do RGEU, motivo por que se absolvem os RR da instância correspectiva.
3. Improcedentes por não provados os demais pedidos, de que se absolvem os RR..
8. Inconformada, apresentou a A. BB recurso, nos termos e com os fundamentos que condensaram nas seguintes conclusões:
a. Constituindo a identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido entre duas acções requisitos essenciais para a existência de caso julgado, a declaração da sua existência nos presentes autos tendo em vista uma sentença proferida em sede administrativa em que era questionado um processo camarário de licenciamento, em processo em que os RR. nos presentes autos tinham apenas a qualidade de contra-interessados viola o disposto nos arts. 580º e 581º do Cod. Proc. Civil;
b. Nem é o Tribunal colocado na contingência de reproduzir ou contrariar uma outra decisão, pois que a análise que recai sobre a (i)legalidade de licenciamento urbanístico autárquico em nada interfere com o reconhecimento e manutenção de direitos civis relativamente a relações de vizinhança;
c. Os factos verificados em sede de processo administrativo devem ser considerados e dados como provados nos presentes autos, desde logo por os mesmos assumirem relevância para a determinação da situação física inerente ao presente caso, como ainda para reconstituição do histórico construtivo, para além de se conterem na previsão do art. 421º do Cod. Proc. Civil, aditando-se aos factos assentes que: 25) O projecto de arquitectura apresentado a licenciamento previa a construção de um saguão em frente de uma janela que existe na empena lateral do prédio confinante, à altura do 2.° piso - cfr. doc, n.º 22 e 29 do PA; 26) Junto ao parapeito da janela que fica na empena do prédio confinante, foi construída uma placa que se prolonga para o interior do edifício que está a ser construído no prédio da contra-interessada, formando um saguão. Foram ainda construídas paredes em cada um dos lados da janela, junto aos limites laterais desta - cfr. docs. de fls. 15 a 21 dos autos; 27) Na sequência de acção de fiscalização ao local, em que se verificou que a construção estava a ser efectuada com algumas alterações face ao projecto licenciado, ao nível dos vãos do 2.° piso, da parede do saguão (que estava a ser construída em alvenaria e não em vidro) e ainda por se verificar aumento de área do 2.° piso, em 04/11/2009 foi proferido despacho em que, entre o mais, se convidou o titular do licenciamento a apresentar projecto de alterações - cfr. doc. n.º 63 do PA; 28) Em 03/02/2009, foi apresentado nos serviços camarários um pedido de aprovação de alterações, em que, entre o mais, se reconhece que a placa do saguão foi elevada "... até ao nível da janela da construção vizinha - cfr doc. n.º 67 do P.A.;
d. Os depoimentos das testemunhas FF e GG, nos segmentos acima referidos, conjugados com as fotografias do relatório pericial e as regras da experiência comum são elementos determinantes para que os factos provados sob os n.ºs 11 e 21 passem a ter as seguintes redacções: 11. O prédio da A. sofreu uma forte redução da duração e da densidade da incidência da luz solar. 21. O arejamento feito através da janela diminuiu de forma significativa;
e. Também do depoimento da testemunha GG, sempre nos segmentos supra referidos, e das regras da experiencia comum, flui, como consequência natural, quer a afectação pessoal da recorrente, quer a desvalorização comercial do imóvel, devendo considerar-se provado (com a inerente retirada dos factos não provados sob as alíneas B e C) que “A redução da possibilidade de usufruir da luz natural, arejamento e vistas da janela causa uma depressão constante e uma situação de tristeza á R. BB” e que “O prédio da A. ficou desvalorizado com a construção dos RR. em montante não quantificado”;
f. Tal como decorre dos arts. 1360º e 1362º do Cod. Civil, não é discricionária a edificação a realizar em prédio vizinho, defendendo-se, através daqueles comandos legais, conjugados com princípios regulamentadores da actividade construtiva, direitos de personalidade de proprietários de prédios existentes, passiveis de ser negativamente afectados nos seus direitos de personalidade pelas edificações confinantes, pretendendo-se, pois, preservar a exposição solar, a luminosidade, o arejamento, a salubridade e, em sentido direito e efectivo, as vistas (no sentido de preservação da reserva de intimidade da vida privada);
g. Demonstrado que está nos autos que a existência de uma limitação de qualidades inatas a uma habitação por força da construção vizinha, com a edificação de paredes laterais no enfiamento imediato da janela, construção de um saguão, colocação a 2,83 metros de uma parede frontal, limitando a exposição solar, a luminosidade, o arejamento e a salubridade, e gerando uma devassa completa para dentro da casa, impõe-se, tendo em atenção os comandos legais e princípios referidos em f) destas conclusões, a remoção dos elementos geradores de tais constrangimentos limitativos;
h. Estando, desde logo, em causa direitos de personalidade da recorrente, cuja ofensa crassa, aliada ao desvalor causado ao seu imóvel, são aptos a criar na sua esfera jurídica o direito a ser indemnizada, nos moldes peticionados, verificados que estão, cumulativamente, os requisitos do art. 483º do Cod. Civil;
i. A sentença recorrida, salvo melhor opinião, violou os comandos e princípios legais acima assinalados.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências.
9. Contra-alegaram os RR., pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.
10. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, n.º 2, 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
i. Da alteração da matéria de facto; e
ii. Reapreciação da decisão jurídica da causa, no sentido de se apurar se ocorre a excepção de caso julgado quanto à questão da violação do artigo 73º do RGEU, e se ocorrem os invocados fundamentos para que se determine a demolição das obras em causa, e, bem assim, do demais peticionado (sanção pecuniária compulsória e indemnização).
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
A.1. Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Na CRP de ..., freguesia de ..., está descrito sob o nº 28/19841126, a fracção autónoma identificada pela letra "A" a que corresponde o rés-do-chão, primeiro andar e garagens, para habitação, do prédio urbano sito na ..., nºs 71, 73 e 75 e ..., nºs 28 e 30, ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o art. 5198, cuja titularidade está averbada pela ap. 2986, de 22.02.2018, a favor de BB, por compra a AA.
2. Na CRP de ..., freguesia de ..., está descrito sob o nº 49/19850213, o prédio urbano sito na ..., nº 77, ..., a que corresponde rés-do-chão, anexo e logradouro, inscrito na matriz sob o art. 2025, cuja titularidade está averbada pela ap. 3408, de 06.01.2009, a favor de CC c.c. DD, por compra a EE.
3. Os prédios acima descritos são contíguos.
4. O imóvel referido em 1 tem uma janela com cerca de metro e cinco de comprimento por metro e vinte de altura, desde a sua construção, que ocorreu anteriormente a 1951, incidindo sobre a fachada lateral direita do prédio referido em 1, se nos posicionarmos de frente em relação à fachada principal e que deita directamente para o prédio vizinho, propriedade da R.
5. A A. BB habita no prédio referido em 1, onde tem a sua residência permanente.
6. No prédio que ora é da R., apenas existiam algumas ruínas, de altura quase térrea, nada havendo que tapasse ou obstruísse a vista da janela acima referida.
7. Em finais de 2009, começou a ser edificado um edifício no prédio propriedade da R..
8. No âmbito dessa construção, foi edificada uma placa que dista em altura, cerca de 20 cm do parapeito da janela do prédio da A. e colocadas paredes em cada um dos lados da janela, coincidentes com os limites laterais da mesma, nos termos que constam das fotografias de fls. 329 e vº.
9. Na sequência de tal construção, o prédio referido em 1 passou a ter, imediatamente a si chegada, sem qualquer espaço de separação, um saguão, espaço delimitado lateralmente e aberto superiormente, cuja parede frontal à janela dista 2,83 mts da mesma e cujas paredes laterais distam entre si, 1,47 mts, espaço onde se contém a janela, nos termos que constam das fotografias de fls. 329.
10. A janela deixou de ter as vistas anteriores, estando as actuais limitadas às paredes que delimitam o saguão, nos termos acima referidos.
11. O prédio da A. sofreu uma ligeira redução da duração da incidência da luz solar.
11-a). A edificação que se encontra a ser levada a cabo no prédio da R. não observa a distância de metro e meio em relação à janela, no que respeita às paredes do saguão, que se situam nas laterais da janela.
12. Pela referida janela efectuava-se a circulação de ar, o arejamento e a entrada de luz natural para a sala de estar.
13. Eliminado.
14. A construção dos RR. encosta lateralmente nas pedras que envolvem a janela, se estivermos de frente para a casa, nos termos representados na 1ª fotografia de fls. 329.
15. Em frente à janela existe um saguão e a parede fronteira do mesmo dista 2,83 mts. da janela, nos termos que constam das fotografias de fls. 329.
16. BB intentou contra o Município de ..., originariamente Acção Administrativa Comum, na qual se peticionava a condenação da Entidade Demandada “à adopção das medidas necessárias com vista à eliminação das paredes que se encontram em execução” no edifício de habitação contiguo ao seu, a qual correu termos sob o n.º 512/10.8...
17. Naquele âmbito, em sede de recurso, foi julgada improcedente a acção e absolvidos os RR. dos pedidos.
18. Outrossim foi considerado que o artº 73º do RGEU “refere-se ao edifício a construir e não ao edifício já existe (…) e não se aplica ao edifício da A”.
19. Tal acórdão transitou em julgado em 27.01.2022.
20. A janela em causa nos autos tem cantarias e argamassa distintas das demais janelas do mesmo prédio.
21. O arejamento continua assegurado.
22. Foi emitido o alvará de licença de construção, registado sob o n.º 144/09, na Câmara Municipal de ....
23. Em 26/10/2009, foi pedido pela Autora BB, a avaliação da legalidade dos trabalhos em execução no prédio confiante.
24. O prédio da Autora AA encontra-se inscrito na matriz desde data anterior ao ano de 1951.
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A.2. E consideraram-se como não provados os seguintes factos:
A) O prédio já não recebe qualquer luz proveniente da janela.
B) A impossibilidade de usufruir da luz natural, arejamento e vistas da janela causa um significativo mal estar, uma depressão constante e uma situação de tristeza à R. BB, que se vê praticamente privada de utilizar a sala de estar de sua casa.
C) O prédio da A. ficou desvalorizado com a construção dos RR..
D) Existia no prédio da A. uma janela, de dimensões desconhecidas, que se encontrava emparedada por ante proprietário do prédio dos Réus.
E) A janela em causa nos autos, não data da construção inicial do prédio, tendo sido aberta no ano de 2004.
F) O prédio tinha inicialmente cinco águas, sendo agora composto apenas por duas.
G) Pelo requerimento com o registo de entrada n.º 15566, de 31/01/2007, da Câmara Municipal de ..., que se protesta juntar, EE, proprietário à data, o licenciamento de obras de demolição e reconstrução de habitação.
H) Em instrução do seu pedido consta memória descritiva memória descritiva.
I) Na sequência do referido em 23, a fiscalização concluiu pela reduzida importância das alterações e até pelo melhoramento das “condições de iluminação e ventilação do vão existente na parede vizinha”.
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B) – Apreciação do Recurso/O Direito
1. As A./Recorrente discorda da decisão proferida, impugnando a matéria de facto e de direito. No que se reporta à matéria de facto, pede a recorrente o aditamento dos factos relativos ao histórico construtivo do prédio dos RR., dado como assente no processo administrativo identificado nos autos, que indicam na conclusão c), sob os n.ºs 25) a 28), a alteração da redacção dos pontos 11. e 21. dos factos provados, e que a matéria das alíneas B) e C) dos factos não provados, seja considerada como provada.
Considerando-se que foi dado cumprimento aos ónus de impugnação a que estão adstritos os recorrentes quando impugnem a matéria de facto, previstos no artigo 640º, n.º 1 e 2, alínea a) do Código de Processo Civil, passamos a apreciar as pretensões deduzidas.
2. Pede a recorrente, em primeiro lugar, o aditamento dos factos indicados na conclusão c) [25) O projecto de arquitectura apresentado a licenciamento previa a construção de um saguão em frente de uma janela que existe na empena lateral do prédio confinante, à altura do 2.° piso - cfr. doc, n.º 22 e 29 do PA; 26) Junto ao parapeito da janela que fica na empena do prédio confinante, foi construída uma placa que se prolonga para o interior do edifício que está a ser construído no prédio da contra-interessada, formando um saguão. Foram ainda construídas paredes em cada um dos lados da janela, junto aos limites laterais desta - cfr. docs. de fls. 15 a 21 dos autos; 27) Na sequência de acção de fiscalização ao local, em que se verificou que a construção estava a ser efectuada com algumas alterações face ao projecto licenciado, ao nível dos vãos do 2.° piso, da parede do saguão (que estava a ser construída em alvenaria e não em vidro) e ainda por se verificar aumento de área do 2.° piso, em 04/11/2009 foi proferido despacho em que, entre o mais, se convidou o titular do licenciamento a apresentar projecto de alterações - cfr. doc. n.º 63 do PA; 28) Em 03/02/2009, foi apresentado nos serviços camarários um pedido de aprovação de alterações, em que, entre o mais, se reconhece que a placa do saguão foi elevada "... até ao nível da janela da construção vizinha - cfr doc. n.º 67 do P.A.], referindo que devem ser considerados e dados como provados nos presentes autos, por assumirem relevância para a determinação da situação física inerente ao presente caso, como ainda para reconstituição do histórico construtivo, para além de se conterem na previsão do artigo 421º do Código de Processo Civil.
Não se questiona que a aludida factualidade tenha sido dada como provada no processo administrativo com o n.º 512/10.8..., pois, consta dos pontos 5), 6), 8) e 9), da matéria de facto dada por assente naqueles autos (cfr. certidão de fls. 271 a 297).
Porém, não vemos qual a concreta relevância de tal matéria para a apreciação da causa com referência ao pedido de demolição das obras efectuadas em violação dos preceitos legais que se invocaram, que constitui objecto dos presentes autos, pois, o que se pretende é a demolição das obras efectuadas em violação do legalmente prescrito, não adquirindo especial relevância, para esse efeito, as vicissitudes porque passou o projecto de licenciamento e fiscalização da obra levada a cabo pelos RR.. O que importa é saber qual a obra concreta edificada pelos RR., cuja demolição se pretende e que, no essencial, é a que consta dos factos 8. a 15. dos factos provados.
Acresce que, o que se prevê no artigo 421º, nº 1, do Código de Processo Civil é a possibilidade de apenas algumas provas – depoimentos e perícias – produzidos num processo poderem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, tendo em vista a prova de factos que hajam sido alegados no processo onde se invoca a valoração de tais provas e que aqui sejam objecto de instrução e prova.
O que está em causa neste preceito é, pois, o valor extra-processual da prova e não o valor extra-processual dos factos dados como provados noutro processo, que é o que as recorrentes pretendem e que não tem acolhimento na norma em apreço.
De resto, embora não decisivo, não podemos deixar de referir que se nos afigura contraditória a pretensão da recorrente de pretender a aplicação ao caso da norma em apreço, que pressupõe a identidade em ambos os processos da parte contra a qual é invocada a prova, quando, a respeito da excepção do caso julgado, invoca que não há identidade de partes nos processos em causa.
Assim, por irrelevância para a decisão e falta de fundamento, não se adita aos factos provados a factualidade em causa.
3. Nos pontos 11. e 21. deram-se como provados os seguintes factos:
11. O prédio da A. sofreu uma ligeira redução da duração da incidência da luz solar.
21. O arejamento continua assegurado.
E considerou-se como não provado sob as alíneas B) e C) que:
B) A impossibilidade de usufruir da luz natural, arejamento e vistas da janela causa um significativo mal estar, uma depressão constante e uma situação de tristeza à R. BB, que se vê praticamente privada de utilizar a sala de estar de sua casa.
C) O prédio da A. ficou desvalorizado com a construção dos RR..
3.1. No que se reporta aos factos provados impugnados, com relevância também para a resposta negativa constante da alínea A) [onde se deu como não provado que: “O prédio já não recebe qualquer luz proveniente da janela”], o julgador fundou a sua convicção no relatório pericial, elaborado em 2 de Maio de 2023, e fotografias juntas com o mesmo.
As recorrentes entendem que «[o]s depoimentos das testemunhas FF e GG, nos segmentos acima referidos, conjugados com as fotografias do relatório pericial e as regras da experiência comum são elementos determinantes para que os factos provados sob os n.ºs 11 e 21 passem a ter as seguintes redacções: 11. O prédio da A. sofreu uma forte redução da duração e da densidade da incidência da luz solar. 21. O arejamento feito através da janela diminuiu de forma significativa;» e que, «[t]ambém do depoimento da testemunha GG, sempre nos segmentos supra referidos, e das regras da experiencia comum, flui, como consequência natural, quer a afectação pessoal da recorrente, quer a desvalorização comercial do imóvel, devendo considerar-se provado (com a inerente retirada dos factos não provados sob as alíneas B e C)) que “A redução da possibilidade de usufruir da luz natural, arejamento e vistas da janela causa uma depressão constante e uma situação de tristeza á R. BB” e que “O prédio da A. ficou desvalorizado com a construção dos RR. em montante não quantificado”».
3.2. Importa sublinhar que, não obstante se garantir no sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do artigo 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, ao estatuir que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)”.
Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova (REMÉDIO MARQUES, Acção Declarativa, à Luz do Código Revisto, 3.ª Edição, pág. 638 -641).
Assim, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo, a qual não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, e apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas.
Por conseguinte, a Relação aprecia livremente as provas, de acordo com o princípio constante do n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, ou seja, a tudo o que possa concorrer para a formação da sua livre convicção acerca de cada facto controvertido.
Não se pode, porém, esquecer que nesta sua tarefa a Relação padece de constrangimentos decorrentes da circunstância de os depoimentos não se desenvolverem presencialmente, pelo que na reapreciação dos depoimentos gravados, a Relação tem apenas uma imediação mitigada, pois a gravação não transmite todos os pormenores que são captáveis pelo julgador e que vão contribuir para a formação da sua convicção.
Assim, a alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, em casos excepcionais e pontuais, e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.
3.3. Como resulta das alegações da recorrente, esta coloca em causa a prova pericial, cujas conclusões procura afastar, invocando as regras da experiência comum e a prova testemunhal produzida.
Como se sabe, a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação dos factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais de que os julgadores não disponham e a força probatória das respostas por eles dada é fixada livremente pelo tribunal (cf. artigos 388° e 389° do Código Civil).
Distingue-se do depoimento, que consiste no relato do que a testemunha captou através do seu aparelho sensorial na imediação com o acontecer fáctico.
Na prova pericial, releva, pois, o princípio da decisão segundo a convicção que o julgador tenha formado em relação a cada facto controvertido (cf. artigo 607º, n.º 5, do Código de Processo Civil).
Porém, embora o julgador aprecie livremente as provas, designadamente a pericial, não pode, sem elementos sólidos, afastar-se do resultado da peritagem, especialmente quando os peritos forem unânimes ou proferirem decisão por maioria. Tal só não acontecerá no caso de se concluir que os peritos basearam o seu raciocínio em erro manifesto ou critério legalmente inadmissível.
Na verdade, constitui jurisprudência constante que, apesar da sua liberdade de julgamento, traduzida na livre apreciação das provas, incluindo a pericial, o julgador não pode, sem fundamentos suficientemente sólidos, afastar-se do resultado das peritagens, sobretudo quando há unanimidade nos peritos ou quando eles constituíram uma maioria e oferecem garantias de imparcialidade.
3.4. É certo que, no caso, estamos em presença de perícia efectuada apenas por um perito, mas também aqui os resultados alcançados só deverão ser afastados se se concluir que o perito baseou o seu raciocínio em erro manifesto ou critério legalmente inadmissível.
Analisado o relatório pericial verifica-se que, no que para o caso interessa, relativamente às questões formuladas com vista a apurar se a estrutura predial dos RR. “impede ou reduz o arejamento do prédio da Autora?” e quanto à questão de saber se “impede ou reduz a exposição solar do mesmo prédio da Autora?”, deu o perito as seguintes respostas: – “Não, a estrutura dos Réus permite o arejamento do prédio da Autora”; e – “A estrutura predial dos Réus não impede a exposição solar do prédio da Autora, poderá, no entanto, existir uma ligeira redução da duração da incidência da luz solar na zona da janela, orientada a norte, resultante dos elementos verticais que delimitam o saguão”.
E este relatório é acompanhado, entre outras, das fotografias de fls. 329, com indicação das dimensões do saguão, como constam dos factos provados em 8. e 9., não impugnados, e 328 v. e 330, com incidência da luz solar às 17h45 no dia da vistoria.
Diz, no entanto, a recorrente que as fotografias que estão anexas ao próprio relatório (em especial vide fotografias com os nºs 8, 9, 10, 11 e 14) revelam que a luz solar passou a incidir na janela em causa apenas numa nesga – em especial a fotografia n.º 14 – o que é incompatível com a afirmação de existir uma ligeira redução da duração de incidência da luz solar.
Se assim fosse e se as regras da experiência comum que agora invoca, impusessem diferente conclusão, então mal se compreende que a recorrente se tenha conformado com o relatório apresentado, pois não consta que tenha deduzido reclamação, pedido esclarecimentos ou até requerido 2ª perícia, o que revela que se conformou com o relatório em causa.
No mais, esquece a recorrente que as respostas do perito tiveram também em consideração as dimensões do saguão em causa, que, como se sabe é um espaço não coberto, e a altura das paredes laterais, bem como a orientação da janela, daí que, na fotografia 14, que foi tirada no dia em que o perito visitou o local (o relatório data de 2 de Maio,) às 17h45, a luz solar apenas incidisse àquela hora numa parte lateral da janela, orientada a norte.
No que se refere aos depoimentos das testemunhas que as recorrentes invocam, concretamente nos pontos que referenciam, o que de relevante se apura, em relação à testemunha FF, arquitecto que elaborou o projecto de arquitectura do prédio vizinho ao da recorrente, é que esta entende que está garantido o que o código impõe, tendo ainda referido que: “Em termos de arejamento, tudo é relativo. Ou seja, é lógico que existe menos arejamento que existia. Existe menos luz do que existia.”.
Por sua vez, a testemunha GG, pedreiro, disse que a obra causou prejuízo à A., porque “tapou-lhe a luz do sol” e que, “de inverno, os beirados a correr fazem barulho …”.
Ora, o depoimento da 1ª testemunha não põe em causa as respostas do perito nem os factos impugnados, e muito menos permite alcançar as respostas pretendidas pela recorrente, que quer que se dê como provado que o prédio da A. sofreu uma forte redução da luz solar e da densidade e da incidência da Luz e que o arejamento diminui de forma significativa.
Além disso lembramos que o que foi questionado e foi objecto da perícia, em função do alegado pelas AA. e dos “quesitos” apresentados, foi saber se a obra dos RR. impedia ou reduzia o arejamento e a exposição solar do prédio da A., resultando as respostas dadas pelo perito, pela observação que fez no local, em especial da obra executada pelos RR. e do compartimento em que se encontra a janela em causa, a qual, como se refere no relatório: “o compartimento do prédio da Autora a que pertence a janela em crise, é amplo, desde a fachada principal á fachada a tardoz, possuindo para além da janela em causa, no alçado norte, uma janela no alçado poente (tardoz), com vista para pátio interior, e uma porta do lado nascente (fachada principal), com vistas para a ...”.
Quanto ao depoimento da testemunha GG, resulta clara a irrelevância do mesmo quanto às questões em apreciação, pois, limitou-se a dar a sua opinião, aliás, como lhe foi pedido na pergunta formulada.
Está, pois, plenamente justificado que, com base no relatório, se tenham dado como provados os factos impugnados, não se vislumbrando que regras da experiência comum imponham outra conclusão, ou que tenham sido utilizados critérios errados ou não permitidos, ou sequer, que os depoimentos prestados impunham decisão diversa quanto à matéria em causa.
Assim, mantêm-se inalterados os pontos 11. e 21. dos factos provados e, consequentemente a alínea A) dos factos não provados.
3.5. Quanto ao facto não provado, constante da alínea B) [“A impossibilidade de usufruir da luz natural, arejamento e vistas da janela causa um significativo mal estar, uma depressão constante e uma situação de tristeza à R. BB, que se vê praticamente privada de utilizar a sala de estar de sua casa”], a alteração do mesmo dependia, em primeiro lugar da alteração dos pontos 11. e 21. dos factos provados, o que não sucedeu, pelo que não se pode concluir que a alegada depressão e tristeza da A. decorra daqueles factos. E nem sequer vemos que tenha sido invocada qualquer prova concreta da depressão porque a A. terá passado, não bastando para tanto que a testemunha GG, cujo depoimento se invoca, tenha dito que a recorrente “Foi-se um bocado abaixo desde que aquilo aconteceu. Ela apanhou uma depressãozita”.
E também não há prova que imponha a alteração da resposta negativa da alínea C) [O prédio da A. ficou desvalorizado com a construção dos RR.], posto que nem foi alterada a matéria de facto, nem foi invocado qualquer elemento probatório que evidencie tal facto.
4. Por conseguinte, improcede o recurso quanto às pretendidas alterações à matéria de facto.
5. No que se reporta à reapreciação jurídica da causa, importa relembrar que, com a presente acção visavam as AA., em face do pedido formulado na petição inicial, com o esclarecimento efectuado em sede de audiência prévia, obter o reconhecimento, por usucapião, da servidão de vistas inerente à sua janela que deita directamente para o prédio dos RR., e a condenação dos RR. a demolirem as obras efectuadas em violação dos artigos 1362º do Código Civil e 73º do RGEU (Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38 382 de 7 de Agosto de 1951).
Na sentença conclui-se pela constituição, por usucapião, de uma servidão de vistas, em relação à janela identificada no ponto 4. dos factos provados, aduzindo-se a seguinte fundamentação:
«Nos termos do disposto no art. 1360º, do C.C., e por força das restrições ao direito de propriedade entre vizinhos, o dono de prédio confinante não pode abrir janelas ou portas que deitem directamente para o prédio vizinho sem deixar um intervalo de metro e meio (n.º 1) ou construir varandas ou terraços, quando servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio (n.º 2). Porém, a construção dessas varandas ou terraços ou aberturas de janelas ou portas, sem respeitar esse intervalo de metro e meio do prédio vizinho, pode conduzir à constituição de servidão de vistas por usucapião (art. 1362º, n.º 1 do C.C.). Como se afirma no Acórdão do STJ de 06.11.2008, em www.dgsi.pt. “para haver servidão é preciso que haja uma utilidade que possa ser gozada pelo prédio dominante, o prédio que dela beneficia. No caso da servidão de vistas essa utilidade será o poder ver e devassar o prédio vizinho…”.
Já a usucapião é uma forma originária de aquisição do direito de propriedade baseada na posse, numa posse em nome próprio, de uma intenção de domínio, e uma intenção que não deixe dúvidas sobre a sua autenticidade V. Prof. Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, Revista de Legislação e Jurisprudência, 122, pág. 67.
O lapso de tempo necessário à usucapião é variável conforme a natureza móvel ou imóvel dos bens sobre que a posse incida e conforme os caracteres que esta revista.
Assim, tratando-se de imóveis, o prazo máximo da usucapião, é de 20 anos ( artº1296°). Por outro lado, a simples manutenção de uma “janela”, em condições de através dela se poder ver e devassar o prédio vizinho, é suficiente para o preenchimento do corpus e do animus necessário à posse conducente à usucapião (vd. Ac. T.R.C., de 03.03.2015, pº 353/13.2TBAN.C1, em www.dgsi.pt/.
É que como se refere no mesmo acórdão, “a servidão de vistas não se exerce com o facto de se desfrutar as vistas sobre o prédio vizinho, mas antes com a manutenção de uma janela – a obra que aqui relevaria –, em condições de, através dela, se poder ver e devassar esse prédio”.
Desta feita, tendo resultado provado que no sótão do prédio do A. existe a janela a que se alude em 4, desde data anterior a 1951, temos de concluir que se perfez o prazo máximo da usucapião antes que ocorresse facto idóneo à respectiva interrupção, designadamente a notificação da contestação, que aconteceu em 24.10.2013 ( artº 323º, nºs 1 e 2 do CC).
Assim se concluindo pela constituição de uma servidão de vistas, em relação à janela identificada no ponto 4.» (fim de citação)
6. Porém, quanto ao pedido de demolição das obras efectuadas pelos RR., conclui-se que o Tribunal não podia conhecer nos presentes autos da violação da dita construção das normas do artigo 73º do RGEU, por se ter formado caso julgado material em função da decisão proferida pelo Tribunal Central Administrativo no processo n.º 512/10.8... (cfr. artigos 278º, n.º 1, alínea e) 576º, n.º 2, e 577º, alínea i), do Código de Processo Civil), e que a obra edificada não estava em contravenção com o disposto no n.º 2 do artigo 1362º do Código Civil.
A recorrente não põe em causa a constituição, por usucapião, da servidão de vistas, declarada na sentença, mas impugna a decisão quanto ao não conhecimento da questão da violação das obras efectuadas pelos RR., com referência à violação do artigo 73º do RGEU, e entende ocorrer violação das normas dos artigos 1360º e 1362º do Código Civil.
Vejamos cada uma das questões suscitadas.
7. Como se prevê no n.º 1 do artigo 580º do Código de Processo Civil, as excepções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa. Se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar a litispendência, mas se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção de caso julgado.
Ambas as excepções visam evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (vide artigo 580º, n.º 2, do CPC e, mais detalhadamente (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, págs. 567 e 574; na jurisprudência, vide, por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/1/1994 e de 17/2/1994, in BMJ n.ºs 433, pág. 515 e 434, pág. 580, respectivamente).
Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (cf. artigo 581º, n.º 1, do CPC).
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (artigo 581º, n.º 2, do CPC).
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (cf. artigo 581º, n.º 3, do CPC).
Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico - consagrando, assim, a conhecida teoria da substanciação (cf. artigo 581º, n.º 4, do CPC).
Ensina Antunes Varela que “para sabermos se há ou não repetição da acção, deve atender-se não só ao critério formal (assente na tríplice identidade dos elementos que definem acção) fixado e desenvolvido no artigo 581.°, do CPC, mas também à directriz substancial traçada no n.º 2, do artigo 580.°, do CPC, onde se afirma que a excepção da litispendência (tal como a do caso julgado) tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior” - vide “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, pág. 302.»
8. No caso em apreço, como resulta dos pontos 16 a 19 dos factos provados, BB intentou contra o Município de ..., originariamente Acção Administrativa Comum, na qual se peticionava a condenação da Entidade Demandada “a adopção das medidas necessárias com vista à eliminação das paredes que se encontram em execução” no edifício de habitação contiguo ao seu, que correu termos sob o n.º 512/10.8..., a qual veio a ser julgada improcedente por acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, transitado em julgado em 27/01/2022, por se haver concluído, em aplicação da jurisprudência uniformizada do Supremo tribunal Administrativo que ali se citou, que “…, não obstante entre a obra em causa e cada um dos lados da janela das autoras … não exista a distância de 2 metros, contada do eixo vertical da janela …, não ocorre violação do art. 73º (2ª parte) do RGEU, já que este normativo legal apenas se aplica às janelas das construções novas, e não também às janelas das construções pré-existentes /in casu às janelas da casa das autoras)”.
Como se vê da certidão junta aos autos (máxime do acórdão do TCA a fls. 280), a acção administrativa foi intentada por “BB, por si e ainda em representação da AA”, que são também as AA. nos presentes autos e, embora aquela acção tenha sido instaurada contra o Município de ..., nela foram citados como contra-interessados, além de outros, CC e marido DD [tendo a contra interessada apresentado contestação recorrido da sentença do TAF de ..., de 04/02/2014, que lhe foi desfavorável e que veio a ser revogada pelo acórdão do TCA, na parte impugnada], que são também os RR. na presente acção.
Ora, ao contrário do invocado pela recorrente, não vemos que pelo facto de os aqui RR. terem na acção administrativa a posição de contra-interessados, em face da estrutura própria do processo administrativo, tal afaste a verificação do requisito de identidade das partes exigido pelo n.º 2 do artigo 581º do Código de Processo Civil, pois o que revela para este feito é a qualidade jurídica das partes, que é substancialmente idêntica em ambos os processos. Efectivamente, os contra-interessados mais não são do que aqueles que são directamente prejudicados no processo ou que têm um legitimo interesse na manutenção do acto impugnado, como decorre do disposto no artigo 57º do CPTA (Código de Processo nos Tribunais Administrativo, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro), onde se estipula que, “[p]ara além da entidade autora do acto impugnado, são obrigatoriamente demandados os contra-interessados a quem o provimento do processo impugnatório possa directamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do acto impugnado e que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo.”, tendo assim, idêntica posição em relação à que os réus têm no processo civil, como resulta no artigo 30º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Deste modo, os contra-interessados no processo administrativo, tal como os réus no processo civil, são os demandados, por terem interesse em contradizer e/ou serem directamente prejudicados pela pretensão formulada pelo demandante.
9. E também não vemos que haja obstáculo à verificação dos demais requisitos.
No que ao pedido se reporta, na presente acção é pedida a condenação da R. a “demolir as obras efectuadas em violação dos arts. 1362º do Cod. Civil e 73º do RGEU, reconhecendo a servidão de vistas inerente á janela existente no prédio propriedade da A. AA que deita directamente para o prédio da R., deixando uma distância mínima de três metros de separação da edificação em relação á janela.”, enquanto na acção administrativa se pediu a “adopção das medidas necessárias com vista à eliminação das paredes que se encontram em execução …, por tal execução violar o artigo 73º do RGEU, devendo ainda a mesma entidade R., ser condenada a não emitir qualquer título, designadamente licença de utilização, enquanto tal ilegalidade não for reparada”.
Daqui decorre que há identidade do pedido em ambos os processos, no que respeita à pretensão material que se pretender exercer respeitante à demolição das obras, não relevando para o efeito que no procedimento administrativo se pretenda que tal pretensão seja executada por via da intervenção da Câmara Municipal, e que no processo civil o seja por determinação directa ao demandado. Em ambos os processos se pretende o mesmo resultado, que é a demolição das obras que se entende serem ilegais, infringindo os direitos das demandantes, embora com configuração diversa.
E também não existem dúvidas que em ambos os processos se pretende alcançar tal fim pedido por via da ilegalidade as ditas obras, invocando-se em ambos a violação das normas do artigo 73º do RGEU. Os factos materiais invocados em ambas as acções, relativos a esta pretensão, são substancialmente idênticos e em ambas se invoca também a violação do preceito constante do artigo 73º do RGEU [onde se prescreve que: “As janelas dos compartimentos das habitações deverão ser sempre dispostas de forma que o seu afastamento de qualquer muro ou fachada fronteiros, medido perpendicularmente ao plano da janela e atendendo ao disposto no artigo 75.º, não seja inferior a metade da altura desse muro ou fachada acima do nível do pavimento do compartimento, com o mínimo de 3 metros. Além disso não deverá haver a um e outro lado do eixo vertical da janela qualquer obstáculo à iluminação a distância inferior a 2 metros, devendo garantir-se, em toda esta largura, o afastamento mínimo de 3 metros acima fixado.”]
Deste modo, à semelhança do decidido, consideram-se estarem reunidos os requisitos necessários à verificação da excepção de caso julgado, nos termos previstos nos artigos 580º e 581º do Código de Processo Civil.
10. Acresce que, mesmo que se entendesse não ocorrer a dita excepção, designadamente por falta de identidade das partes, sempre se concluiria que a decisão proferida no processo administrativo, que julgou improcedente a acção, por entender não ser aplicável ao caso o artigo 73º do RGEU, se impunha nos presentes autos, máxime às AA., que ali foram demandantes, por via da autoridade do caso julgado, de forma a que o tribunal chamado a decidir a questão, ainda que enquadrada de modo diverso, estava impedido de o fazer.
Como se diz no acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 21/03/2013 (proferido no proc. n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1), são essencialmente duas as realidades que se nos deparam no tratamento jurídico das consequências ou efeitos do caso julgado: a) A excepção dilatória do caso julgado; e b) a autoridade do caso julgado.
A este respeito escreveu-se o seguinte:
«Importa … averiguar se se verificou ofensa à autoridade de caso julgado, que não se confunde com a excepção dilatória de caso julgado.
Para cabal resposta, importa traçar o esboço conceptual de tal conceito, em latim denominado auctoritas rei judicatae, seguindo a lição magistral do Prof. Manuel Andrade.
Como aquele emérito civilista de Coimbra ensinou [Manuel D. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pg. 306], com o brilho e o apurado sentido das realidades que todos lhe reconhecemos, mesmo em gerações posteriores às que tiveram o privilégio de escutar as suas palavras, o fundamento do caso julgado reside no prestígio dos tribunais (considerando que «tal prestígio seria comprometido em alto grau se mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente») e numa razão de certeza ou segurança jurídica («sem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa»).
Assim, ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta.
A feliz síntese do acórdão da Relação de Coimbra, de 28/09/2010, de que foi Relator, o Exmo. Desembargador, Jorge Arcanjo (Proc. n.º 392/09.6TBCVL.S1, in www.dgsi.pt), afigura-se-nos cabalmente adequada ao traçado da fronteira entre estas duas figuras jurídico-processuais, pelo que importa aqui registar a parte do seu sumário, que importa à presente decisão: I - A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido. II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art.º 498° do CPC» (actual artigo 581º).
[Em idêntico sentido, cf. ainda, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 19/05/2010 (Processo nº 3749/05.8TTLSB.L1.S1), e o Acórdão da Relação de Coimbra, de 06/11/2011 (proc. n.º 816/09.2TBAGD.C1), onde se concluiu que: “6 - Da excepção de caso julgado se distingue a autoridade de caso julgado, pressupondo esta a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obstando-se, deste modo, que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 498º do Código de Processo Civil. 7 - O efeito preclusivo do caso julgado determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.”]
11. Assim, verificando que no aresto do TCA se julgou improcedente a acção, [na qual também se pretendia a demolição da obra em causa nos presentes autos por violação do artigo 73º do RGEU], por se haver concluído, em aplicação da jurisprudência uniformizada do Supremo tribunal Administrativo que ali se citou, que “…, não obstante entre a obra em causa e cada um dos lados da janela das autoras … não exista a distância de 2 metros, contada do eixo vertical da janela …, não ocorre violação do art. 73º (2ª parte) do RGEU, já que este normativo legal apenas se aplica às janelas das construções novas, e não também às janelas das construções pré-existentes /in casu às janelas da casa das autoras)”, e tendo o acórdão proferido na acção administrativa transitado em julgado, esta decisão passou a constituir caso julgado material, quanto à questão da aplicação do regime do artigo 73º do RGEU ao caso dos autos (cfr. artigo 619º, n.º 1 e 621º do CPC), o que impede que volte a ser reapreciada noutra acção, seja, por verificação dos requisitos da excepção dilatória de caso julgado, seja pela sua imposição às partes por via da autoridade de caso julgado.
E não se argumente que nos presentes autos o tribunal não é colocado na contingência de reproduzir ou contrariar a decisão antes proferida, pois, para se apreciar na presente acção se as obras em causa implicam a violação da norma do artigo 73º do RGEU, sempre este tribunal teria que decidir que tal preceito era aplicável ao caso dos autos, contrariando, assim, o decidido no acórdão do TCA, proferido no processo 512/10.8BEALM.
12. Aqui chegados, importa agora conhecer da questão relativa à violação das normas dos artigos 1360º e 1362º, do Código Civil.
A este respeito entendeu-se na decisão recorrida o seguinte:
«Constituída a servidão, dita o nº 2 do mesmo artigo [refere-se ao artigo 1362º do Código Civil] que o proprietário do prédio vizinho só pode levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e a janela o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão das obras.
Em anotação à norma legal em referência, escreveram Pires de Lima e Antunes Varela, no CC Anotado, Vol. III, 2ª edição, pág. 221, que: “Parece evidente que apenas se tem, em princípio, de guardar a distância na extensão da janela, ou (…) «deixar o interstício de 1m,50, mas somente defronte da janela, porta, varanda ou outra obra», como já se prescrevia nas nossas Ordenações”.
Já a RLJ (ano 96º, pág. 334) citada na mesma sede, refere: «É evidente que não poderá construir-se na parte superior à janela. A entrada de ar e luz ficaria prejudicada. Também não há, em princípio, impedimento, a que se construa na parte inferior desde que as obras não importem de per si, violação do artº 2325, ou prejudiquem a função normal das janelas…».
Na situação dos autos, resulta da matéria dos pontos 9 e 15, que em frente à janela inexiste qualquer obstrução frontal, numa distância de 2,83 mts.
As obstruções existentes são laterais, conforme resulta dos pontos 11-a) e 14.
Por outra via, a dimensão negativa da construção dos RR, no quadro do alegado e/ou provado, remete apenas para uma ligeira redução da duração da incidência da luz solar (11), continuando assegurado o arejamento (21), pelo que não pode considerar-se ter havido um comprometimento da função normal da janela, sobretudo se considerarmos que o compartimento do prédio da A. para que deita a mesma janela, é amplo e possui uma outra janela com vista para o pátio interior e uma porta na fachada principal, com vistas para a ..., como se refere a fls. 329 do relatório pericial.
E quanto ao facto de a janela ter deixado de ter as vistas anteriores, estando as actuais limitadas ás paredes que delimitam o saguão, há que salientar que a utilidade da servidão de vistas é ver e devassar o prédio vizinho e não salvaguardar as vistas que para além dele, se tinham anteriormente à sua constituição, como se depreende do ac. do STJ, acima citado e bem assim do TRC, de 21-05-2019, pº nº 130/16.7T8FVN.C1, que refere: “Na servidão de vistas não se exerce a servidão através do disfrute das vistas mas através da manutenção da obra – janela, terraço, etc - em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho.”.
Assim sendo, tem de concluir-se que a construção dos RR não está em contravenção com o disposto no nº2 do artº 1.360 do CC, pelo que improcede o pedido de demolição e de condenação na sanção pecuniária acoplada.»
13. A A./Recorrente discorda do assim decidido, invocando que que em face do disposto no artigos 1360º e 1362º do Código Civil, não é discricionária a edificação a realizar pelo vizinho, em função dos referidos comandos legais e que está demonstrado nos autos a existência de uma limitação de qualidades inatas a uma habitação, com e edificação da obra em causa, limitando a exposição solar, a luminosidade, o arejamento e a salubridade, bem como a devassa completa para dentro de casa.
Como resulta do alegado, as referidas conclusões têm como pressuposto que tais factos ocorrem nos autos, o que só ocorreria se tivesse sido alterada a matéria de facto no sentido pretendido pela apelante, o que não sucedeu.
De todo o modo, sempre se dirá o seguinte:
Nos termos do n.º 1 do artigo 1360º do Código Civil, (Abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes), “[o] proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio”, acrescentando-se no n.º 2, que “[i]gual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela”.
Com tal norma visa-se, além do mais, evitar que com as sobreditas construções haja a devassa do prédio do vizinho.
No caso em apreço, não se encontra dado como provado que a obra edificada pelos RR. possua janelas ou portas a distância inferior a 1,50 mts., ou aberturas idênticas integrantes das normas em apreço. A este respeito, apenas nos apercebemos, pela peritagem, da existência de uma abertura numa das paredes laterais do saguão, junto à parede fontal para a janela da A., que está a 2,83 mts., mas que a testemunha FF referiu ser uma abertura “técnica” para limpeza, que não se enquadra no normativo em apreço.
Por outro lado, a janela implantada na casa da A. é que viola o referido preceito legal, por devassar o prédio que agora pertence aos RR.. Contudo, a sua existência é permitida por via da servidão de vistas, que na sentença se declarou constituída por usucapião, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 1362º do Código Civil.
De facto, como se prevê no n.º 1 do artigo 1362º do Código Civil “[a] existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião”, e a “[c]onstituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras mencionadas no n.º 1 o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras”.
Mas, como se concluiu, entre outros, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19/02/2013 (proc. n.º 68/10.1TBFVN.C1):
«1.- O benefício que a «servidão de vistas» – artigo 1362.º do Código Civil – confere ao prédio dominante não consiste na possibilidade do seu titular olhar em direcção ao prédio vizinho, até onde a vista alcançar, mas apenas facultar luz e ar ao prédio dominante.
2.- O respeito pela servidão de vistas por parte do titular do prédio serviente implica que este não possa construir, salvo respeitando a distância (profundidade) referida no n.º 1 do artigo 1360.º do Código Civil, defronte e imediatamente acima das janelas existentes no prédio dominante, porque esta construção afectaria a entrada de ar e luz no prédio dominante, nem ao mesmo nível ou, inclusive, em certos casos, imediatamente abaixo, se as construções, dadas as circunstâncias, prejudicarem a entrada de luz e ar no prédio dominante.»
Como se diz neste aresto:
«O termo «servidão de vistas» é a designação tradicional dada ao caso, mas não é o mais adequado, pois o benefício que a servidão confere não consiste na possibilidade de olhar em direcção ao prédio vizinho, até onde a vista alcançar, mas sim facultar luz e ar ao prédio dominante.
Neste sentido, e para situações como a dos autos, Cunha Gonçalves referia que “A inacção do proprietário vizinho, porém, dá lugar unicamente à servidão de ar e de luz” [Tratado de Direito Civil, Vol. XII. Coimbra, Coimbra Editora, 1938, pág. 87]). O mesmo sustentava Pires de Lima, ao dizer que “…o proprietário vizinho pode em qualquer altura levantar edificação, ainda que com ela tape as vistas ao prédio vizinho; o que não pode é tirar o ar ou vedar a luz porque estas ficam constituindo verdadeiras servidões” [Lições de Direito Civil (Direitos Reais), coligidas por Elísio Vilaça e David A. Fernandes. Coimbra: Atlântida Livraria Editora, 1933, pág. 229/230]. Na mesma linha de orientação, Pires de Lima/Antunes Varela referiram que: “O objecto da restrição não é propriamente a vista sobre o prédio vizinho, mas a existência da porta, da janela, da varanda do terraço, do eirado ou de obra semelhante, que deite sobre o prédio nas condições previstas no artigo 1360.º Não se exerce a servidão com o facto de se disfrutarem as vistas sobre o prédio, mas mantendo-se a obra em condições de se poder ver e devassar o prédio vizinho. Pode a janela ou a porta estar fechada, desde que o não seja, definitivamente, com pedra e cal, que a servidão não deixa de ser exercida. Por isso, pelo que respeita à sua extinção pelo não uso, é aplicável o disposto na segunda parte do n.º1 do artigo 1570.º” [Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição revista e actualizada (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 1987, pág. 219].
Verifica-se, como dizem estes autores, que o conteúdo da servidão que onera o prédio dos réus consiste, não no direito dos autores estenderem as vistas sobre o prédio dos réus e inclusive mais além, se não houver obstáculos, mas sim na fruição do ar e da luz no interior do prédio dos autores, através das duas janelas.
Por conseguinte, nos termos do n.º 2, do artigo 1362.º do Código Civil, constituída a servidão de vistas, ao proprietário vizinho, no caso os réus, só é permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo edifício ou construção e as obras que importam a servidão de vistas o espaço mínimo de metro e meio, correspondente à extensão destas obras.» (fim de citação)
14. Ou seja, o proprietário do prédio serviente pode, apesar da existência da servidão, construir no seu prédio, desde que não ofenda esta servidão.
Ora, no caso em apreço, como resulta dos factos provados, o saguão que constitui a obra dos RR., embora tenha as paredes laterais junto à janela do prédio da A., tem a parede frontal a mais de 1,50 mts da janela, concretamente 2,83 mts., e, contrariamente ao invocado pela recorrente, o seu prédio apenas sofreu uma ligeira redução da incidência da luz solar, estando assegurado o seu arejamento, pelo que não ocorre ofensa ao citado preceito legal, como, aliás, se decidiu na sentença
É certo que as AA. deixaram de ter as vistas desafogadas sobre o prédio dos RR. como antes tinham, mas, como resulta do que acima se disse, a servidão não lhes confere o direito a ver da janela até onde a sua vista alcança.
Deste modo, improcede a pretensão da recorrente relativa ao pedido de demolição da obra, e, consequentemente, a pretensão indemnizatória, fundada na ofensa dos invocados direitos de personalidade da recorrente, posto que não se provaram nem os danos, nem o invocado facto ilícito alegadamente causador dos mesmos.
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C) – Sumário
(…)
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
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Évora, 30 de Janeiro 2025
Francisco Xavier
Mária Branco Coelho
Manuel Bargado
(documento com assinatura electrónica)